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EuPTHUHu0807-89672012000300004

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variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Um pacto às escuras: da autorrepresentação em Alanis Morissette

Ninguém muda de pele com a facilidade das cobras Eugénio de Andrade We are temporary arrangements Alanis Morissette O presente estudo queda-se na interpretação (diga-se literária, se insistirmos num perímetro convincentemente diferencial entre essa designação terminológica e a de intersemiótica ou intermedial, mais atinentes com os tempos que correm) de duas letras de Alanis Morissette, cantora e compositora de origens canadianas, às quais, segundo a própria[1], se foi acrescentando muito do que se entranha e dissolve na miríade de designações (abstratas) daquilo que possamos denominar por eu: termos ambíguos e temerosos como identidade, caráter, sujeito, pessoa ou personalidade, com um espectro semântico que respira, entre todos, um plausível ar de família. Não tivesse a artista musical nascido no ano de 1974, trilhando uma carreira que se estende até aos dias de hoje, talvez a leitura das suas letras musicais fosse facilmente catalogável usando os estilemas que, por norma (sublinhe-se: norma convencional), classificam um autor à luz de figuras e topoï que confluem para um isomorfismo quase translúcido, denunciador de um conjunto de tratos que inscrevem, por exemplo, o sujeito num certo tipo de identidade cultural, num dado período de transição, com nervuras ou acalmias psicológicas que subjetivizam questões de amplitude política. Em resumo, ler a obra é ler-lhe os quadrantes, é contextualizar o sujeito e compreendê-lo num regime in locoe não ex nihilo: o microcosmo do eu singularizando inquietações macrocósmicas.

De facto, a escrita musical de Alanis Morissette, nascida sob etiquetas periodológicas facilmente descoláveis, porque inconsistentes, como as que o pós-modernismo, pós-modernidade ou hiper-modernidade designam, tanto se ins-creve como se ex-creve enquanto escrita, que é ex-crita, nessas cronotopias pouco fiáveis, se se tomar em consideração que o eu descrito nas suas canções dificilmente se filia a linhas de leitura preestabelecidas que facilitam a decifração de uma mensagem (uniforme) de uma artista que apresenta o seu trabalho, muito simplisticamente, como matéria autobiográfica. Se, enquanto subgénero mais ou menos coeso e definido dentro do sistema semiótico literário (esqueçamos, por agora, que Alanis canta o que escreve), a autobiografia acontece hoje sob a alçada teórica e filosófica do sujeito cartesiano descentrado, seja pelo contributo de Derrida, seja, muito antes, pelo impulso, até então inclassificado, do inconsciente freudiano, seja ainda pelo protagonismo usurpador da linguagem que nos substitui, à luz de Lacan, como imago, ludíbrio ou clivagem entre o moi e o je , então, o que dizer do pressuposto de que o sujeito descrito por Morissette nas suas lyrics é o mesmo sujeito que ela pensa ou diz ser? Por outras palavras, depois de Marx, Nietzsche e Freud (e apenas para citar três nomes ditos incontornáveis pelas indecisões e querelas psicopolíticas do Ocidente), como encher as brechas deixadas no eu clássico kantiano, que se torna descoincidente consigo mesmo? Tapar buracos, coser pontos, engessar fraturas como e com o quê? À parte o serem prosaísmos e metáforas, estes três gestos ortopédicos confirmam somente a natureza interminável do seu designatum e denotatum o eu , enquanto irradiarem da ansiedade gnómica do sujeito, confrontado com a ruína da equação iluminista homem = animal racional.

O bios da raiz etimológica de autobiografia situa-se entre duas margens intervenientes no processo de viver: o eu, de um lado, e a escrita, do outro.

Todos os preliminares impulsionadores da noção de descentramento deram azo a que se autonomizasse a escrita, o grafo na diegese do eu pelo eu, atribuindo- lhe propriedades genesíacas (quiçá intuitivas, diria Bergson) que surpreendem o criador, supostamente atento a todo o processo.[2] Por sua vez, como reza a doxa, se é verdade que Deus escreve direito por linhas tortas, será mentira afirmar que o mesmo Deus morreu depois de Nietzsche ter escrito sobre Ele, ou seja, não apenas uma escrita d’Ele, mas sobre Ele, por cima d’Ele? Do cadáver de Deus ainda se faz um luto penitencial (que é existencial), e a linguagem artística, no seu caráter multiforme de modelizar o mundo, parece estar ao serviço de restituir ao homem alguma da que este havia depositado, e depois sentido extinguir-se, na antiga transcendência ou metafísica, servindo-se dela para sublimar o presente sem a almofada do passado (mítico, histórico…).[3] Parte dessa , tanto quanto é legítimo afirmá-lo, reabilita o sujeito nos múltiplos espelhos onde ainda consegue ver refletida a sua imagem, apesar de todas as nódoas e névoas que os possam recobrir (recorde-se que a psicose do sujeito (cf. Lacan, 1966: 89-97) devém a única verdade possível desde o seu nascimento, sendo precipitado no mundo como um corpo que vem precocemente fragmentado, tateando a unidade de si numa sombra imaginária, ou seja, no seu reflexo no espelho).

Deste modo, e face à condição teológica tragicamente órfã e desamparada do sujeito, a escrita autobiográfica ressuscita a figura do autor (continuamos, portanto, no plano da imagem), que Barthes celebremente matara num contexto associado à premência autotélica do texto sobre as leituras de cariz biografista. O autorretrato, pictórico ou literário, restitui-lhe uma certa euidade de si, re(in)veste o eu retratado de uma aura subjetiva (sem que isso recubra démarches de furor expressionista), alheia aos regimes legitimadores que conferem à arte o seu poder museológico, depois da segurança simbólica bebida das grandes meta-narrativas, segundo Lyotard, se ter simplesmente esvanecido na sua inoperância ontológica, encolhendo o que na ideologia parecia grande. Quando nada extrínseco parece conseguir defini-lo, o sujeito procura autodefinir-se com o que sabe mas também com o que desconhece, com a insolência pregnante de uma ignorância insuperável que, para citar duas metáforas antunianas, apenas permite ao leitor de (auto)biografias ficar a par de uma casca, porque o acesso ao miolo é impossível e o conhecimento da intimidade nos está vedado (Antunes, 2012: 12). Das duas vias a da gnose e a da ignorância , talvez a segunda tenha sido a mais profícua: um furar contínuo dessa casca desafiante.

Supposed Former Infatuation Junkie, editado em 1998, figura hoje como um álbum musical sui generis, seja pelo seu sincretismo a nível dos registos pop, rock e indie, seja dentro da própria consistência técnico-compositiva e conceptual morissetteana, que com este lançamento discográfico não comprometeu todo o histerismo mediático à volta de Jagged Little Pill, mas também consignou a sua assinatura pessoal enquanto artista estranha ao meio (tanto musical como político) que anos antes a acolhera, ensimesmada no que realmente deseja exprimir e desinteressada de todos os satélites (comerciais) extrínsecos a esse imperativo primordial, o escrever(-se).[4] Nesse sentido, o booklet do segundo álbum surpreende e intimida o expectável ouvinte de música, sobretudo porque, visualmente, muitas das lyrics se apresentam como longas manchas grafémicas, com refrões alternativos no corpo da mesma canção, alguns dificilmente memorizáveis (quando não é o caso de nem existirem de todo), sujeitando o ouvinte a esforços de concentração sobre a natureza lisível e reflexiva da música, antes de se quedar numa simples audibilidade diletante que, por norma, facilita a receção de um texto emergente da ora vexada ora indemne pop culture (não fosse o epíteto música comercial lido pela crítica mais conservadora, de Theodor W. Adorno a Roger Scruton, como algo de nefastamente demolidor, porque desgastado, acrítico e, pior, atraente e hipnotizante).[5] À parte aquilo que possa estreitar os mais sensatos vaivéns de correspondências entre a escrita morissetteana e outros discursos (literário, filosófico, intermedial), o limbo dos estudos literários ou dos estudos culturais, com uma brecha por onde as designadas poéticas do rock possam respirar, permanecerá límbico: até que ponto será ou não justo considerar como falsa modéstia o facto de a instituição literária, enquanto linguagem normativa por excelência, celebrar a ruína e a famigerada decadência dos seus cultos, como o cânone de moldes bloomianos, promovendo colóquios, seminários e mesas redondas sobre uma morte que, pelo menos na prática, permanece bem viva sob outros meios de materialização e reprodução do literário? Américo Lindeza Diogo concretiza: Serão as bazófias da juventude o heavy metal dos Faetontes de sempre? Será que a Vénus com suas lácteas tetas e roxos lírios shoot to thrill? (Diogo, 2002/2005: 14).

Enredando-se nos trâmites topológicos da autobiografia, cedo se depreende que a escrita morissetteana não gravita em torno de um sujeito estável, mas de um eu que se ao espelho e se apercebe de que também é visto, em sentido merleau- pontiano, ergo construído também pela alteridade, por uma inevitável reversibilidade do percurso fenomenológico da visão, em particular, e do corpo em toda a sua intensa, profusa e profunda estesiologia, em geral, corpo que se impõe figural e figurativamente numa hermenêutica das lyrics, pelo facto de o emissor dar rosto, voz e carne ao seu texto. Trata-se, portanto, de um ato performativo, se tomarmos a linguagem em contexto pragmático, como o que, neste estudo, serve de princípio estruturante. O apagamento do sujeito, se de facto acontece, é apenas metafórico, porque nunca deixa de ser/estar encorpado, sob a espessura da casca antuniana, desunhando aquele que diz eu. Por sua vez, se tomarmos em conta a interferência dos desígnios autobiográficos, mais irrepreensível se torna a afirmação barthesiana, segundo a qual quanto mais sincero sou, mais me torno interpretável (Barthes, 2009: 148).

No sofá: um estágio ao espelho A letra de The Couch, sétima faixa do álbum, constrói-se num jogo entre ambiguidades interpretativas e ambiguidades emocionais, ainda que o sentido conotativo das palavras seja quase embaraçosamente banal ou antipoético (à parte os critérios se existentes e/ou válidos que possam ajuizar o que eleva a poesia a ser poesia). É típico em Morissette servir-se das marginalidades da vida como matéria criativa, um anelo ostensivo sobre o que possa parecer espontâneo e óbvio, salvo o pleonasmo ou a redundância: quando tudo é demasiado transparente e hiper-informacional (cf. Baudrillard, Lipovetsky, Steiner, entre outros), como dar algum repouso ao olhar, que tudo e em nada repara, como um olho sem pálpebra? Fechar os olhos não em sentido figurado, mas também em sentido literal (relembre-se: as lyrics envolvem o corpo, a performance), pode proporcionar uma clarividência acrescida. A propósito, Mario Perniola parte da polissemia do verbo sentire, na língua italiana, que é a sua, para assinalar como ao mesmo é afeta tanto uma perceção sensível do mundo, como o significado mais específico de ouvir ou escutar: [o] acusma, aquilo que se ouve, é mais fluido e circulante do que o theasma, aquilo que se (Perniola, 1992: 46). No caso de The Couch, a voz recobre-se de um estatuto especial, que o mero facto de se tratar de música, e por isso cantável, não deve de todo esquivar-se à interpretação: num plano pragmático da análise discursiva, a voz do eu, escapando ao seu controlo pelo fluxo direto que imprime, colige a possibilidade de pluralizar o sujeito e de autorrepresentá-lo sob a carne experiencial do outro, com profundas implicações éticas mútuas: mais especificamente, falamos de um pai e de uma filha, mediados por um psicólogo (ou psicanalista) e, em menor grau de influência, pela presença da mãe, abafada pela díade referida logo após as duas primeiras estâncias (o espectro edipiano do desejo incestuoso é hermeneuticamente tentador).

Coincidências ou arrojos intertextuais à parte, The Couch assemelha-se ao que acontece em alguns dos metadiálogos de Gregory Bateson, nos quais também pai e filha escrutinam o metabolismo do processo dialógico: são conversas de domínio filosófico, cuja veemência proposicional permite que se extrapole o cerne temático para incidir na estrutura da própria conversa, que se revela igualmente essencial para o desenvolvimento do assunto (cf. Bateson, 1989: 7).

Esta articulação batesoniana forma/conteúdo serve, assim, de pressuposto teórico para a leitura de Morissette.

The Couch you hadn’t seen your father in such a long time he died in the arms of his lover how dare he your mother never left the house she never married anyone else you took it upon yourself to console her you reminded her so much of your father so you were banished and you wonder why you’re so hypersensitive and why you can’t trust anyone but us but then how can I begin to forgive her so many years under bridges with dirty water she was foolish and selfish and cowardly if you ask me I don’t know where to begin in all of my 50 odd years I have been silently suffering and adapting perpetuating and enduring who are you younger generation to tell me that I have unresolved problems not many examples of fruits of this type of excruciating labour how can you just throw words around like grieve and heal and mourn I feel fine we may not have been born as awake as you were it was much harder in those days we had paper routes uphill both ways we went from school to a job to a wife to instant parenthood I walked into his office I felt so self-conscious on the couch he was sitting down across from me he was writing down his hypothesis I don’t know I’ve got a loving supportive wife who doesn’t know how involved she should get you say his interjecting was him just calling me on my shit? just the other day my sweet daughter I was driving past 203 I walked up the stairs [in my mind’s eye I remember how they would creak loudly she was only responsive with a drink he was only responsive by photo I was only trying to be the best big brother I could I’ve walked sometimes confused sometimes ready to crack open wide sometimes indignant sometimes raw can you imagine I pay him 75 dollars an hour sometimes it feels like highway robbery and sometimes it’s peanuts I wish it could last a couple more hours so here we both are battling similar demons (not coincidentally) you see in getting beyond knowing it solely intellectually you’re not relinquishing [your majestry you are wise you are warm you are courageous you are big and I love you more now than I ever have in my whole life Na óbvia narratividade que atravessa este tema, a personagem inicial apresenta a situação-problema e os seus intervenientes: o drama familiar centrado na figura de um pai ausente na vida da filha, primeiro, porque ele refizera a vida com outra pessoa (he died in the arms of his lover), segundo, porque aquela fora negligente com ele (you hadn’t seen your father in such a long time: um quid incriminatório neste ato de fala, pois, parafraseando nomes incontroversos da pragmática, aquilo que se diz ultrapassa o que, na iminência, parece ser dito). ainda a figura da mãe, resiliente e submissa à condição falocêntrica do regime patriarcal: nunca abandonou a casa, nem voltou a casar. Numa vertente psicanalítica, que é sempre arriscada, a progressão do texto dará conta de que a morte do pai aqui encenada mais não é do que uma figuração fantasmática, um subterfúgio (defensivo) erguido pela filha para impedir que o episódio traumático por excelência a perda do pai se renove: afinal, parece justa a alegação de que a mera existência do pai age por si como um crime de repercussões atávicas, dado que, por reminiscência, a filha convoca à mãe a imagem paterna, padecendo, por isso, com o ostracismo (so you were banished) e um impasse nascido da incompreensão (you wonder why you’re so hypersensitive/ and why you can’t trust anyone but us).

Se houver um motivo na letra que seja de algum modo medular e transversal ao desassossego psicológico dos vários eus, talvez ele se quede no poder intimidante da gramática genética dos homens. Como assinala Mario Perniola, a propósito da sensologia, ou aisthesis, que recobre o mundo social e a imagem especular que os sujeitos partilham entre si, [o] que está por sentir pode ser sentido ou não; mas o sentido pode ser recalcado [] (Perniola, 1993: 12). Não é por acaso que o título da música joga com o léxico da psicanálise: o sofá ou o divã freudiano são os espaços emblemáticos onde o inconsciente fala, o qual, num estribilho por demais familiar, está estruturado como uma linguagem. Falar é, assim, o primeiro passo para desertar o desconforto que a comunicabilidade o material da comunicação tende a infligir, separando os eus, precisamente, pela parte que os une. O corte nos laços, quer afetivos quer comunicacionais, revela-se depois na inibição ou na autocensura, que, por sua vez, se reflete em expressões que desvendam as inconveniências do discurso aberto (a mãe: under brigdes with dirty water)[6] ou o autoflagelo estóico e ruminante que permeia os intervalos da maturação individual (o pai: I have been silently suffering and adapting perpetuating and enduring).

No que toca à filha, o seu silêncio interventivo reveste-a de uma natureza algo flutuante, porque nunca chega a ganhar corpo explícito na letra, salvo os dúbios enredamentos emocionais das duas últimas estrofes, cuja enunciação tanto pode partir do pai, como da filha (ainda que a hipótese do primeiro prevaleça sobre a segunda); é essa, aliás, a melhor estratégia narrativa para (con)fundir os sujeitos, reconciliando-os no facto de terem em comum uma divergência, seja externa (pai/filha) seja interna (as desavenças interiores). O seguinte verso, paradigmático na sua intenção puramente metatextual, decalca e corrobora a osmose dilemática dos eus pelo uso do pronome de primeira pessoa do plural, por um lado, e pelo dilema como clave de leitura, por outro: so here we both are battling similar demons (not coincidentally). O marcador conclusivo so é igualmente inaugural da ressonância afetiva (não apenas biológica ou hereditária), fazendo do amor (love) a última grande meta-narrativa, aquela que sobrevive ao desgaste do sentido.[7] Mesmo a nível entoacional[8], Morissette tende a diminuir o volume e a arrastar a voz nos versos finais, jogando com a entropia que é causa/efeito de um verso dito em constante atropelo vocal (as barras oblíquas marcam as pausas): you see in getting / beyond knowing it solely / intellectually you’re not / relinquishing your majestry. Pelo contrário, as unidades verbais que constituem os dois últimos versos fluem com maior clareza enunciativa, pondo a nu a intenção textual de abrir espaço à reconciliação, algo que, no foro dos atos perlocutórios, ecoa o sentido de espiritualização do discurso pela escrita (Ricœur, 2005: 50). Arrisca-se a leitura de que se visa transpor um sentido extrínseco às combinatórias formais de tempos (se acatarmos uma linha de pensamento stravinksiana, que dirime a hipótese de haver sentido ou emoção na música) para dentro da própria música: depois da tempestade (emocional), eis que chega o prenúncio de bonança que se sente (texto-corpo) e, por isso, se canta (música-corpo). Realizações diferentes do discurso, portanto, são atinentes à natureza das lyrics: discurso oral e discurso escrito, à parte as demarcações que os afetam singularmente, têm em comum o facto de serem isso discurso (cf. idem, 38-39), radicalmente vivo porque ao vivo, porque é agente da (e agido pela) força de enunciação. Por outras palavras, porque é um événement[9]e não uma mera sombra da idealidade, convertendo-se uma significação objetiva, ou utterance’s meaning, numa significação subjetiva, ou utterer’s meaning (Paul Grice apud idem, 58).

Porque se trata de lyrics, pensar na expropriação da palavra à música que a anima parece incongruente, e é-o de facto. Porém, uma leitura centrada apenas no texto desvelaria que muito do que está escrito não parece o mesmo quando é cantado. Isto, porque a performance de The Couch e, neste ponto, é indiferente tratar-se do registo em estúdio ou de um registo ao vivo constrói-se com base numa série de desconexões entre os elementos métricos e os elementos sintáticos, entre o ritmo sonoro e o desvelamento semântico, semelhantes aos encavalgamentos que, no discurso poético, fraturam a unidade entre som e sentido, e servem de tributo, implícito ou não, à transgressão da identidade poética, esboçando, como diz Agamben, uma figura de prosa (Agamben, 1999: 32). , de facto, pausas na articulação frásica que ficam momentaneamente suspensas; núcleos nominais que hesitam a ligação aos respetivos núcleos do predicado verbal; eixos de sentido desconexos, aliados à ausência de pontuação gráfica, que se atropelam no misto de desafogo e desconsolo que é expor uma torrente emocional que levou cinquenta anos a levedar e, insista-se, silenciosamente (primeiro e segundo versos, terceira estância).

Para o efeito, concorrem algumas construções frásicas que mimetizam o discurso oral e vivificam a palavra escrita com o seu quid de fisicalidade: por exemplo, how dare he; if you ask me (no sentido de dar uma opinião não solicitada); how can youjust (com o polissíndeto like grieveandhealandmourn); I don’t know (posposto a he was writing down his hypothesis, reforçando a vanidade do assunto em questão e acelerando a conversa para o seu âmago, que se tende constantemente a adiar); a interrogação you say his interjecting was him just calling me on my shit? (mais retórica do que inquisitiva, mas inequivocamente expiatória); can you imagine (sentimento de indignação). A figura retórica da paralipse parece parcelarmente ajustável, porquanto o eufinge não querer desenvolver o que o atormenta, mas vai deixando escapar algumas iluminações que confirmam a sua natureza umbrátil. Repare-se nos seguintes versos: just the other day [o recuo cronológico afere que a dor não é de agora, mas vem de trás, logo tocou-o profundamente] my sweet daughter [por um lado, a cumplicidade inegável do afeto, que somente a prática parece ofuscar; por outro, replica um dado sabido se sabe que ela é sua filha como eco de uma culpabilidade terrível no exercício (falhado) da sua função paterna: designá-la como daughter é nomear, é encarnar o significante] I was driving past 203 [uma informação geográfica despicienda, mas que aproxima os sujeitos na familiaridade enciclopédica evocada por cenários mutuamente reconhecíveis; acentua o seu drama, interior, na condição de nómada moderno, de sujeito sem repouso] I walked up the stairs in my mind’s eye/ I remember how they would creak loudly [imagem arquitetónica do seu delírio imaginativo: umas escadas que rangem, que avisam da presença do eu, enquanto corpo que se faz notar pelo peso que exerce no mundo leitura que se clarifica encavalgando-se no verso seguinte] she was only responsive with a drink [mãe, problema com o álcool] he was only responsive by photo [pai, amnésia seletiva: precisa de ver para se recordar de quem abandonou e, por conseguinte, da sua função paterna] I was only trying to be the best big brother I could [questão que se coloca: tratar-se-á de uma irrupção do discurso do psicólogo, descongelando a frieza deontológica e sucumbindo a um certa inclinação paternalista, mas de manifesta impotência? O superlativo the best é icário, como quase todos os excessos no choque entre a linguagem e o real: uma ambição que voa alto e cai longe].

A penúltima estância corrobora a intervenção de um terceiro (o psicólogo), no momento em que o pai se indigna contra o preço das consultas (can you imagine I pay him 75 dollars an hour note-se o implícito do discurso: como se não bastasse sentir dor ou remorso, ainda teve a preocupação de procurar ajuda terapêutica especializada; ele reconheceu que tinha um demónio a exorcizar).

Simultaneamente, esta ganga digressiva sometimes/ it feels like highway robbery and sometimes it’s peanuts/ I wish it could last a couple more hours condiz com o intuito obscurecedor do sujeito a que antes nos reportamos como atinente à paralipse: por um lado, oculta a fragilidade que advém de um sujeito dissociado de si (na quarta estância, a expressão I feel fine é uma clara denegação freudiana: negar o ponto nevrálgico é camuflar um sim); por outro, e em consonância com a premissa anterior, enche o discurso de entulho para preterir o irremediável choque frontal entre pai e filha.

Sendo The Couch uma espécie de tudo-ou-nada confessional que se vai gradativamente intensificando (note-se como a repetição adverbial adensa o clímax da dissociação e alienação do sujeito: I’ve walkedsometimesconfusedsometimesready to crack open wide/ sometimesindignantsometimesraw), a desculpabilização cínica do eu, além de tudo o que aqui foi mencionado, passa pela tentativa de se encarnar no lugar e na pele do outro, tentativa que, do ponto de vista liminarmente fenomenológico, está condenada ao fracasso. À parte a inocência quase risível do detalhe, e sem nos transviarmos pelo decalque biografista, importa relembrar que é a filha quem tenta vozear a consciência do pai, cruzando-a com a sua consciência. Mais do que tolerar o outro (equivalente a diminuir, no sentido, repugnante, com que Žižek (cf. 2006) trata a tolerância pós-Locke na era do capitalismo universal), o mérito do esforço passa por procurar compreendê-lo e partilhar o que se sente; subscreve-se a nível ético, mediado pela figura ondulatória do psicólogo que estimula a aproximação dos dois pelo que, entre eles, parece ser suscetível de desnovelar liames reatáveis.

O contraponto paralelístico vem na própria sintaxe de The Couch, se retomarmos a linha agambeniana sobre a métrica encavalgada: O enjambement traz, assim, à luz o andamento originário, nem poético, nem prosaico, mas, por assim dizer, bustrofédico da poesia, o essencial hibridismo de todo o discurso humano (Agamben, 1999: 32). Hibridismo que, humanamente irredutível, rastreia o insondável entre o pai e a filha, ou melhor, entre o pai e si mesmo (os seus múltiplos eus: we went from school to a job to a wife to instant parenthood) e entre a filha e si mesma, como espelhos compossíveis. Em linguística, isso passa com recorrência pelo jogo entre pronomes pessoais, pondo a tónica expressiva naquilo que [] la première personne avait tendance à fondre: clivages, tensions, métamorphoses (Lejeune, 1988: 86). De facto, a primeira pessoa do singular estabelece para o leitor apenas uma posição relativa do sujeito face ao texto, sem com isso lhe dar quaisquer garantias de objetivismo.

Assim, por muito que o discurso chegue a desnudar a subjetividade dos seus diferentes locutores[10], diz Agamben que, [] conhecendo a incognoscibilidade do outro, não conhecemos alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós (idem, 26).

À espera: marinar um cancro Se Kurt Cobain foi, tanto literalmente como em sentido figurado, o mártir de toda uma geração que, sem ele, se resignaria à mumificação vegetativa Here we are now! Entertain us![11] e ao gregarismo identitário dos frangos de aviário (Cobain, 2000: 19), se foi um suicida introvertido (consciente dessa lobotomia metafórica, mas não virtual) que os media vestiram da cabeça aos pés com os signos fisiognomónicos mais convenientes ao escândalo mediático (cf.

idem, 62) então, em 1995, Alanis Morissette tornar-se-ia a candidata ideal para incorporar o papel de novo bode expiatório (disse-se incorporar, porque no showbiz pós-Cobain, no seio da era capitalista, representar não basta). No entanto, contra as expectativas mais sádicas dos media, que assomam a rodos mal se pressente a iminência do cheiro a sangue, Alanis não se deixou imolar pela/ para a remissão de pecados anónimos que nada tinham a ver com os seus. Mesmo assim, durantes largos meses após a tournée de Jagged Little Pill, ela própria chegou a suspeitar que não voltaria a compor, esquivando-se para um Oriente onde o eco do seu nome próprio não fazia, de todo, tremer as águas. Com ela, o esquematismo girardiano do desejo mimético e da vítima sacrificial parecera ter sido suspenso: desta vez, não houve nem suicídios, nem overdoses de heroína, nem clínicas de desintoxicação, nem intervenções policiais a meio dos concertos; muito antes de haver o dobre de sinos como anúncio de um luto, Alanis dizia aleluia com Supposed, nua e serena, agradecendo à Índia, ao terror, à desilusão e a outros agrores.[12] Arriscar-se-ia dizer que Cobain formou uma banda cujo sonho maior seria alcançar o nome que lhe deram, mas foi Morissette quem terá compreendido melhor o sentido e o alcance do vislumbre nirvânico (thank you nothingness uma atualização do Nada segundo Schopenhauer?).

Ensaie-se um regime de comparações entre os dois artistas a partir das suas próprias reflexões autocríticas e metatextuais. Por um lado, os escritos do frontman dos Nirvana mencionam a imensidade do perigo autobiográfico na escrita, com um despudor inédito, logo irreverente sincronizado, por antífrase, com o seu tempo: por exemplo, para se referir às letras do álbum Bleach (em português, lixívia, evidenciando a natureza corrosiva do conteúdo, mas ao mesmo tempo desinfetante), Cobain equipara-as à descarga de uma fossa estagnada durante anos: eram a purga da minha consciência quase a apodrecer, depois dos anos de Aberdeen e de toda a merda em que tinha sido obrigado a viver (Cobain, 2000: 33-34). O risco dessa purga foi a sua mediatização exponencial, algo que, para William Burroughs, escritor preferido de Cobain [13], azo à seguinte interpelação de alarme: notaram que figurar na capa do Time é receber o beijo da morte? (Burroughs, 2002: 34) como quem diz que a autenticidade irredutível do artista (que antes de ser artista é humano) não se imiscui na luz dos holofotes, sob o risco da pele da aura ser fotossensível e inflamável.

Por outro lado, e face à escassez de fontes que denunciem o inverso, Alanis Morissette não pareceria tão afim de usar imagens excrementícias para ilustrar o seu misto de raiva e desânimo contra os traumas de infância e outros entraves da sua antropologia familiar (considere-se a letra de Perfect, do álbum Jagged Little Pill). Nas entrevistas, a sua sobriedade poderia ser considerada surpreendentemente desconcertante, tendo em conta que a sua forma de apresentação mundial condensou, numa mesma letra, expressões de uma Inquisição contra a pujança fálica (imediatamente sujeitas ao bip censório), tais como would she go down on you in the theatre e and are you thinking of me when you fuck her. Sob as lentes externas, a questão paradigmática tropeçava no erro de uma resposta meticulosamente confecionada: num escrutínio deficientemente biografista, esperava-se que a artista irreverente do palco e das músicas fosse coincidir ipsis verbis com a jovem adulta, vinte e um anos, olhos castanhos, natural de Toronto, aluna de mérito, maria-rapaz, signo gémeos, etc., etc.[14] Seria necessário um certo distanciamento temporal (físico e psicológico) para que Morissette conseguisse retroceder na carreira e obter uma maior acutilância crítica a respeito de tudo o que viveu, por escrito e por ex-crito. Ao pensar em retrospetiva, no ano de 2004, sobre o segundo álbum, apelida-o de my fuck- you record, admitindo não ter tido perceção do seu desaforo artístico na altura em questão: I guess I was simply writing what I needed to write. I found it all quite cathartic, actually, although I don't think the record company agreed”.[15] É quando entra em cheque a pulsão confessional, alcançando na escrita (diarística, musical) uma forma de expressão satisfatória e plenipotenciária, que Morissette se aproxima nitidamente de Cobain: não pelos resíduos fisiológicos e pelos canos do esgoto (que Cobain acolhe inevitavelmente, vitimando-se por isso), mas antes pelas metástases cancerígenas (que Morissette faz por curar ab ovo ad mala, renunciando à condição de vítima): It is never my intention to hurt or vilify someone through my songs. If that happens, then I am genuinely sorry, but I write them because I have to, in order to develop my sense of self. If I were to keep them bottled up, then all those bad feelings would marinate and I'd get cancer. I don't want cancer.”[16] Revivalismo da autobiografia, em registo radiofónico, e que nasce das intimidades como subterfúgio ímpio (Cobain) e como catarse holística ou medicina alternativa (Morissette): sem sucumbir às generalizações impróprias para consumo (validado pelo aparelho institucional) literário, a autobiografia como género dilata as suas margens trazendo a periferia para o centro, ou melhor (numa reivindicável atualização do discurso), trazendo as periferiaspara oscentros, dissolvendo as insolubilidades molares, os seus organismos abalizantes e todos os órgãos que afastam, por dentro, o eu no caso da autorrepresentação do seu núcleo essencial, que é o seu si mais fenotípico (cf. Deleuze & Guattari, 2004). Enquanto eventuais sortilégios genológicos, que beneficiam cada vez mais do seu hibridismo (se contornarem as Cassandras da literatura e as suas ameaças de crise[17]), as diferentes estratégias de autorrepresentação do sujeito, tal como as varinhas mágicas do Harry Potter, denunciam que não será tanto o sujeito a escolher o seu autorretrato ou a sua autobiografia, mas antes o autorretrato ou a autobiografia que interpelam o rosto e/ou a euidade do sujeito neles representado. Terá sido esse plasma flutuante que Cobain não compreendera a tempo? A tal fossa estagnada que não quis drenar para proteger o que em si julgava ser mais irredutível? Ao cometer suicídio, seria o seu dedo a premir o gatilho, como último desejo da sua megalomania de romântico pós-moderno, ou seria o Grande dedo do Outro sistémico a projetar na tela mediática um filme trágico perpetrado ao pormenor? O cancro a que Morissette acima se referia é ao mesmo tempo um sintoma de morte e um sintoma de vida, um sintoma de morte que cria vida, revelando-se-lhe um caminho divergente do de Cobain e garantindo-lhe a salvação. É o motor de todo um processo que combina inseparavelmente criação e bios, até que a pertinência da distinção entre os dois caia no anacronismo e dispense averiguações obsolescentes ou extrapolativas. É na esperança de curar esse cancro que o sujeito de I Was Hoping alicerça a sua na linguagem (e profere a linguagem da sua ): I Was Hoping as we were taking outside it was cold we were shivering yet warmed by the subject matter my wife is in the next room we’ve been having troubles you know please don’t tell her or anyone but I need to talk to somebody you said wouldn’t it be a shame if I knew how great I was five minutes before I died i’d be filled with such regret before I took my last breath and I said you’re willing to tell me this now and you’re not going to die any time soon and I said I haven’t been eating chicken or meat or anything and you said yes but you’ve been wearing leather and laughed and said we’re at the top of the food chain and yes you’re still a fine woman and I cringed I was hoping I was hoping we could heal each other I was hoping I was hoping we could be raw together we left the restaurant where the head waiter (in his 60's) said good-bye sir thank you for your [business sir you’re successful and established sir and we like the frequency with which you dine here sir and your money and when I walked by they said thank you too dear I was all pigtails and cords and there was a day when I would’ve said something like hey dude I could buy and sell this place [so kiss it I too once thought I was owed something I was hoping I was hoping we could challenge each other I was hoping I was hoping we could crack each other up I too thought that when proved wrong I lost somehow I too once thought life was cruel it’s a cycle really you think I’m withdrawing and guilt tripping you I think you’re insensitive and I don’t feel heard and I said do you believe we are fundamentally judgmental? fundamentally [evil? and you said yes I said I don’t believe in revenge in right or wrong good or bad you said well what about that man that I saw handcuffed in the emergency room bleeding after beating his [kid and she threw a shoe at his head.

I think what he did was wrong and I would’ve had a hard time feeling compassion for him I had to watch my tone for fear of having you feel judged.

I was hoping I was hoping we could dance together I was hoping I was hoping we could be creamy together A interpretação a que a artista sujeitara inúmeras vezes a música, sobretudo durante as digressões mundiais de The Junkie Tour e The One Tour (1998-2000), raramente se cingiu à reprodução mimética da versão registada no álbum. Nesta última, a letra é proferida num ímpeto vocálico que raia o relato futebolístico, marcado pela velocidade com que longos trechos de informação, sob a forma de diálogos ininterruptos (exceto pelos refrões, com variações frásicas), parecem querer impedir que a música se torne aderente à condição de ser reproduzida de memória, enquanto forma de organização e integração sociais, seguindo a lógica (silenciosa, sistémica, mas evidente) das moedas e do capital, porquanto funcionam como bandeiras das massas. Longe de reclamar para si um efeito terapêutico (uma espécie de feng shui musical que propicie atmosferas de conciliação solipsista, introspeção autoanalítica ou simples descarga de prazer libidinal, uma catarse), a letra e o respetivo trabalho de edição propiciam, ao invés, na opinião de fãs convictos da artista, sintomas de cefalalgia[18]: no seu conjunto, a canção distingue-se pela intensa carga de orquestração instrumental, arquitetada por motivos elétricos, tremulações bruscas e ruidosas, uso excessivo de guitarras e sintetizadores, assim como por evidentes manipulações vocais (como o jogo fónico de duplicação do emissor, isto é, a sobreposição de uma voz secundária àquela que domina o fluxo emissor, jogo esse pensado seja para figurar como um desinteressado artifício estético, seja, pelo contrário, para reforçar propositadamente determinados detalhes da letra, que uma entoação diferente e uma colocação atenta de pausas conseguem iluminar, funcionando como chaves-de-ouro interpretativas).[19] Entrevendo uma qualidade evocativa similar à do pleno storytelling, a canção fala, em três diferentes momentos divididos pela ocorrência do refrão, do sentimento de julgar, de se sentir julgado e de se sentir julgando o outro, respetivamente. A tríade não decorre necessariamente de um fluir cronológico situado, por exemplo, num mesmo dia, podendo ser legitimamente interpretada como uma interligação de tempos desfasados que convergem, porém, pela densidade do pathos, para um mesmo assunto dilemático. O percurso historiográfico do eu, se existir, será mais premente como linha de leitura a propósito da sequência proposicional dos refrões, que adiante explicitaremos. De resto, as três micronarrativas interpoladas, lidas num contexto atinente à autorrepresentação e seus derivados, oferecem um fulgor circunvolutivo, sempre in media res, que, entre o corpo do texto (lyrics) e o texto do corpo (performance), deixará e bem muitas coisas por dizer sobre o eu enquanto corpo no mundo.

sempre uma relação dialógica entre um eu e um tu, pontuada por imersões silenciosas de um narrador que parece sempre hesitar em dizer o que pensa. No primeiro desses momentos, decorrente ao ar livre, numa daquelas situações em que a intensidade dos tópicos de conversa relativiza e faz olvidar as circunstâncias envolventes (we were shivering yet warmed by the subject matter), o acompanhante do sujeito lírico admite, por um lado, os problemas conjugais que obrigam os dois a um pacto de sigilo (please don’t tell her or anyone/ but I need to talk to somebody), catapultando os versos seguintes para um regime de leitura que nunca se descola da pressão vigilante e dos sentidos tensos que permeiam o dito pelo não dito (e os respetivos interditos afinal, como vincou Lacan, o laço social é essencialmente paranoico: nunca se sabe ao certo medir a ousadia numa conversa, mesmo entre conhecidos, destrinçando com desenvencilhada espontaneidade o que é intimismo e o que é atrevimento, onde começa um e acaba o outro). De facto, segue-se uma pergunta existencial se seria vergonhoso constatar, na hora do aperto (mais precisamente, cinco minutos antes de morrer), how great I was , uma pergunta que, não sendo intrinsecamente retórica, fica, porém, sem resposta, dada a perplexidade e/ou a imaturidade que caracteriza(m) o feedback apaziguador do sujeito, para depois reforçar esse gesto esquivando-se ao tópico da morte (real) por intermédio de um breve small talk à volta de inocuidades como novos hábitos alimentares (que excluem chicken or meat or anything you said), temperados com o cómico de situação (but you’ve been wearing leather).

O recurso à irrupção dos marcadores fáticos da coloquialidade reforça essa ideia: o you know do segundo verso é tanto a confirmação de que as crises conjugais são filhas da humanidade, como pode ser interpretado como um apelo à compreensão de um terceiro, de um buddy de confiança. A comunicação fática é, por si , uma estratégia para assegurar uma presença, o que, num contexto como o que a letra apresenta no início, esvazia referencialmente tópicos subordinados à carne ou ao cabedal da indumentária, preenchendo-os com o valor axiológico de um paliativo contra a solidão (note-se que o par se encontra ao relento e ao frio, isolado, porque um deles tem um segredo que mais ninguém pode saber). Por sua vez, considere-se a afinidade entre a carne e o cabedal: o segundo, produto industrial, confirma a superioridade do homem em relação ao primeiro, que é um dado bruto; como na história do Rei que vai nu pela parada, o tu da canção tem o seu campo percetivo confinado à perpetuação de uma herança simbólica falsamente consciente, como diria Sloterdijk (we’re at the top of the food chain).[20] A rutura interior que se neste novo Rei deve-se à banha em excesso que as fórmulas hiperidentitárias a linguagem, a ideologia sobranceira, as várias camadas do ego, enquanto instâncias territorializantes, i.e., bloqueadoras (cf. Gil, 2009: 21) atrofiam até ao expoente do próprio excesso, que passa a devorar-se a si mesmo: como refere o tu, se somos senhores da cadeia alimentar, imunes aos esquemas da predação, admitimos, portanto, que estamos lúcidos de que, um dia, vamos morrer, ainda que vivamos como se não acreditássemos nisso (cf. ibidem).

Na situação seguinte, a do restaurante, a fórmula aplicada é a mesma, desta vez reforçada a nível entoacional. A construção repetitiva good-byesirthank you for your businesssiryou’re/ successful and establishedsirand we like the frequency with which you dine heresir embate, no fim, contra um efeito vocálico de suspense, ao arrastar o sintagma and your money, colocando-o em extrema evidência, não apenas do ponto de vista fónico, mas igualmente semântico: revela o que, na interpretação do sujeito, é a verdadeira chave-de- ouro (cínica) por detrás de toda aquela efusividade lisonjeira dramatizada pelo head waiter do estabelecimento. Eis um exemplo adequado para figurar na montra das teratologias (pós-)modernas, cujos monstros são tão-só projeções empoladas da melhor versão que o sujeito tem de si mesmo: o (apelidar alguém de) sir é quanto basta para denunciar o mal-estar da civilização que, depois de Freud e do desejo frustrado por um objeto (materno) traído pela orgânica umbilical (a carência reenviando para uma positividade do desejo), lugar, como advertiram Deleuze e Guattari (cf. 2004), aos múltiplos desejos flutuantes que não encontram nem precisam de um objeto onde possam achar repouso e absorvência de fluxos (o desejo reenviando para uma negatividade da carência).

A neurose passa por , aliando esquizofrenia às políticas do neo-liberalismo (and your money, novamente): uma identidade que se compraz numa dieta exagerada à base de indulgência e bezerros de ouro simbólicos, que engordam o complexo hiperidentiário do eu e, ao mesmo tempo, emagrecem o sentido cru que lhe é subtraível (reitere-se o fragmento I was hoping we could be raw together, com destaque para o adjetivo raw). A obsessão, que devém esquizofrénica, passa pela existência rizomática do eu pulverizada em mil bocados, o que, numa leitura despida de cinismos pós-modernos, é tudo menos encomiasta face à subversão guattaro-deleuziana do sujeito estilhaçado como um tipo único que rivaliza contra as arrogâncias ideológicas dominantes (cf. Žižek, 2006: 79). Em Morissette, passa mais concretamente pelo facto de o sujeito se projetar no outro atribuindo-lhe a sua própria subjetividade, nunca cessando de lhe atribuir (segundas, terceiras) intenções daí a cólera insubordinada que a forma de agradecimento thank you too dear desencadeia na protagonista, subitamente minimizada pelo paternalismo do empregado, sentindo-se reduzida ao estatuto morfológico de um advérbio aditivo (ela seria, assim, um elemento apendicular do sir, é o too do sir, inscrevendo-se na trama falogocêntrica de assinatura derrideana). Não é a linguagem em si, mas o contexto que dita o sentido: assim, a pretensa dear, revestida por folhos de puerilidade e ternura (I was all pigtails and cords), prefere ler o qualificativo simpático como uma subversão da retórica da auxesis ou amplificatio, i.e., quando, ironicamente, o sujeito sobrevaloriza alguma coisa que, pela sua natureza, não tem um valor socialmente reconhecido (como quando dizemos, perante um casebre, que é uma mansão; no contexto da letra, o termo dear estaria a forrar a versão defeituosa de cada uma das virtudes reconhecidas pelo empregado no acompanhante da lesada).

A atmosfera da terceira situação assume-se mais existencial, a avaliar pelo tipo de interrogações e inquéritos maniqueístas que levanta. O conteúdo proposicional, aliado ao tom de voz e ao ritmo acelerado com que desenrola intensidades (a versão gravada em estúdio corrobora esta descrição com um vinco de maior saliência intrigante, porque os movimentos de frases expiradas são mais impetuosos), estrutura-se de um modo paralelístico, mas que não pode ser considerado quiasmático, ou seja, desvela o cruzamento de desafogos e renúncias, de insinuações e críticas diretas, mas esse cruzamento não chega a permitir o choque e a subsequente dissolução (catártica, aurífera) das adversidades, cada vez mais severas. A nível da articulação sintática, os marcadores do discurso (direto e indireto) and I said and you said I said you said acentuam a dimensão disjuntiva e sideral de um diálogo que, numa transposição filosófica, ficaria perto de um cenário com contornos schopenhauerianos, cujo paroxismo mais insuportável seria culminar numa relação simbiótica entre os intervenientes. De facto, os marcadores impõem uma cesura entre o que é da minha responsabilidade e o que é da tua; deixam a nu os bordos, as pregas ou as costuras da comunicação, os relevos que, como numa superfície em formação, obstruem o seu nivelamento: é o que Barthes designa, pondo a tónica na expressividade da linguagem, como as figuras de interrupção e de curto-circuito, como o assíndeto e o anacoluto em construções paratáticas (Barthes, 2009: 117), figuras que tornam o sujeito porque carne, corpo, matéria opaca que a pele objetivamente resguarda inconvertível na e pela linguagem, resistente ao sentido (cf. idem, 107).

As nuances schopenhauerianas não serão tanto uma intertextualidade ensaística, rebuscando na letra marcas residuais que infirmam inquestionavelmente o filósofo das vontades resignadas, mas serão antes um deslize psicológico que ressoa a uma atualização encorpada do seu pensamento: parece que nada no texto, ou na vida dos seus sujeitos, vai acabar bem, qual lei de Murphy. Por um lado, o sujeito desmistifica alguns mitos pessoais constrangedores, como o sentir-se descartável, minimizado, ao tornar cada conversa (como a que de momento estabelece) numa arena e cada interlocutor, num potencial adversário (I too thought that when proved wrong I lost somehow). Por outro, contesta e desacredita uma fórmula anti-leibniziana, segundo a qual o homem viveria no pior dos mundos possíveis, apenas para dar de cara a seguir com uma dissonância assertiva (ela: I too once thought life was cruel; ele: do you believe we are fundamentally judgemental? fundamentally evil?/ and you said yes). Condenados ao sofrimento, ao caos, ao ressentimento, à nuvem incondensável da indiferenciação, repetidos ciclicamente mas sem certezas (it’s a cycle really) os dois sujeitos repercutem o estigma schopenhaueriano, segundo o qual a metafísica é tributária de uma interpretação da realidade empírica que, não sendo infalível (ao invés do idealismo especulativo de Fichte, Schelling e Hegel), pode ser reexaminada e corrigida. O mundo é a minha representação absolve a hipótese de isomorfismo, mas absorve os essencialismos pios no mesmo caldo de promiscuidade: o mundo fenomenal é a pura representação de um mundo volitivo, das vontades pessoais como aspirações prementes de vida, de desejos que, por instinto, são irrefreados. As volições tornam-se, assim, democraticamente suportáveis, porque a peneira do mundo, que é vontade e representação, deixa passar tudo, está furada; e, se assim é, o sofrimento é inevitável, porque conspira sempre contra nós, iludindo-nos com a frugalidade dos apetites (Schopenhauer antecipa, portanto, Freud e o acefalismo intransitivo das pulsões, que ficam sempre à deriva, insatisfeitas).

Eis, na letra, uma concretização desse aspeto: 1) I said I don’t believe in revenge in right or wrong good or bad (assume-se a insolvência do maniqueísmo perante a frigidez dos valores decantados que objetivam o mundo ou, para retomar imagens anteriores do texto, que encouraçam a sua carne fazendo- a passar por biológica ou natural; a crença no que é relativo ou subjetivo mina a realidade enquanto categoria universal hegeliana; rompe-a por intrusão da ética, em sentido levinasiano, enfraquecendo a nobreza tutelar ou a presunção apofântica das dicotomias, as linhas finas cada vez mais representativas do declínio da modernidade num prefixo pós- que sabe sempre a pouco); 2) well what about that man that I saw handcuffed in the emergency room bleeding after beating his kid/ and she threw a shoe at his head./ I think what he did was wrong and I would’ve had a hard time feeling compassion for him (o introdutor adverbial reitera o condão desafiante a que a protagonista antes se reportara no verso I too thought that when proved wrong I lost somehow; a sideração entre os dois é irreconciliável, com o interlocutor a ripostar os argumentos do adversário num esquema similar ao da antanagoge; a ética zen do eu influi um alheamento contestável, segundo o outro, quando este descreve o caso de um homem algemado por ter batido no filho que, fazendo jus ao karma budista, foi ele próprio vítima de violência pela mulher que lhe arremessou um sapato, pondo-o a sangrar da cabeça; o tu manifestamente se esquiva às ambiguidades morais e adota afetos partitivos: o fulano agiu mal, merecendo ser duplamente castigado pela justiça pessoal, com o sapato da esposa, e pela justiça civil, razão pela qual está preso , sem direito a condolências ou alternativas antálgicas; por outras palavras, aquele fulano não sou eu: é a cabeça dele que sangra, não a minha; o sangue que escorre é indolor e asséptico, porque o meu olhar recusa-se a tocar-lhe; aquela cabeça que eu vi, mas não olhei, não tem visage, porque não houve entre mim e aquele homem a erradicação essencial da espacialidade, fazendo do Outro um absoluto Outro; cf. Lévinas, 1988).[21] Sem a mediação da alteridade que lhe outorga um sentido de si eu sou um quem, e não uma coisa impercetível, pelo facto de haver um outro além de mim que me reconhece , o sujeito não existiria como tal. Não é esse o caso aqui porém a mediação fica, na prática, muito aquém do que o esperado (nem de pão vive homem, mas ainda assim o pão nunca deixa de ser indispensável): o sujeito que repete duas vezes I was hoping por verso, em cada refrão, é posto à prova, na sua experiência pessoal, para perceber que a sua performance ético-narrativa, alicerçada em cada uma das esperanças ou expectativas, se queda apenas nas boas intenções. Por outras palavras, muito literalmente, repete duas vezes eu (I) e apenas uma nós (we); o campo de reversibilidade é autofágico, não recíproco, dentro do imaginário do sujeito que, como no mito de Eco (versus Narciso), fica condenado a ouvir-se a si próprio (quando profere I was hoping, logo a seguir repete-seI was hoping), insistente na sua obstinação sem objeto (porque este, o tu, é imaginariamente objetal), ficando emparedado pelo que é impenetrável, inegociável e incognoscível no destinatário do seu afeto.

A ordem sequencial das expectativas em cada refrão permite construir o seguinte campo de ação imaginário, em que as projeções obedecem a fases psicologicamente determinadas: 1) uma projeção de cariz mais utópico, idealista ou romântico, confiante na reciprocidade terapêutica (we could heal each other) e na franqueza que advém de um completo desnudamento mútuo, como o que o adjetivo raw sugere no verso imediatamente a seguir; 2) e porque a anterior tentativa se revelara inoperante, segue-se uma projeção mais realista, violenta e intrusiva, que abale profundamente os dois sujeitos (we could challenge each other; we could crack each other up); 3) face ao fracasso das outras duas e, agora, sob uma urgência que se afirma cada vez mais improvável de acabar vitoriosa ou resolvida, o sujeito constrói uma situação socialmente convencional, que desbloqueie o que os atravanca na relação ou, numa perspetiva conducente à mesma ideia, mas de uma forma mais direta, que aproxime o nós daquilo que fazem os outros (we could dance together), mesmo que o puro facilitismo raie a vulgarização do eu, que se mostra demasiado disponível e lançado ao despudor e à comoção descaradamente melosa (we could be creamy together). O correlato literário desta última atitude seria o equivalente a uma anagnórise patética num romance de tipo sentimental, oscilando entre o cómico e o trágico (mas em que o primeiro triunfa, aos olhos heterónomos, sobre o segundo, fazendo jus, de novo, à paranoia lacaniana): quando a postura e a sobriedade de nada valem, estala-se o verniz e resvala-se para uma necessidade bruscamente desenfreada, tendendo para a humilhação pessoal, na tentativa de palmilhar à pressa o que resta de um destino possivelmente promissor ou a imago que o eu preserva ainda, dentro de si, desse destino, como a última esperança sobrevivente no psicodrama do seu (conceito de) amor.

Se a linguagem substitui o mundo ostensível, acolchoando-o com a seda do simbólico (a enunciação imperativa morre não mata ipso facto), essa substituição não deixa de esconder uma intenção agressiva, vampirizando o mundo daquilo que nele é natural para nele investirmos projeções, sonhos e ânsias espectrais que jamais dissolverão as suas insatisfações (o objeto petit a, segundo Lacan). Sendo assim, a linguagem implica sempre uma violência incondicional, dado ser ela o barómetro pela qual os desejos são encaminhados, como diria Freud, para do princípio do prazer, para fora das suas imediações seguras e convenientes. Neste sentido, em I Was Hoping, é sob a ameaça de violência que o eu se retesa, sendo coagido a manobrar as suas respostas sinceras para fora do circuito fático e metalinguístico da comunicação, num regime de auto-sabotagem: tanto o canal como o código são afetados (na senda estruturalista de Jakobson, o eu não prolonga o vazio estruturante do contacto social: o outro sabe da sua presença, mas não obtém a confirmação de que está a ser ouvido, nem pode testar ou verificar se o mesmo código é mutuamente partilhado). Exemplo disso é a possibilidade do retraimento do eu se tornar ofensivo, seja ele deliberado ou não, por ser indutor de culpabilidade (you think I’m withdrawing and guilt tripping you); mas, logo de seguida, explica por que os fins justificam os meios (I think you’re insensitive/ and I don’t feel heard): ou seja, se existe primeiro uma auto-vitimização involuntária (como quando dizemos que foi sem querer), logo a seguir o dispositivo incriminatório é acionado para aliviar as eventuais repreensões (foi sem querer, mas tu também fizeste alguma coisa que, se te pusesses no meu lugar, levar-te-ia a fazer o mesmo que te fiz).

Outra manifestação do insucesso fático ou metalinguístico prende-se com o facto de cada uma das três partes da canção terminar com um verso que exprime manifestamente a contenção do sujeito no confronto com a alteridade, que surge sempre atrofiante e inibidora, manifestando-se em atitudes corporais de prudência e concomitante renúncia: 1) um elogio inoportuno porque ele é casado, sente-se emocionalmente fragilizado e confessa ter problemas com a esposa revela-se mais glacial do que as condições atmosféricas locais e mais anorexigénio do que qualquer dieta seletiva (and I cringed); 2) a coragem com que enfrenta o empregado de mesa politicamente correto, ergo derrogatório por definição é fruto de um arrufo imaginário (o karma: and there was a day when I would’ve said something like hey dude I could by and sell this place so kiss it) e termina com um amuo silencioso, ou seja, acaba por subscrever involuntariamente o dito popular segundo o qual quem cala consente, ao mesmo tempo que intensifica a fratura lacaniana (apud Žižek, 2009: 85) entre o sujeito do enunciado (o modo como o eu, sujeito falante, se representa no seu discurso) e o sujeito da enunciação (o próprio falante), invejando o outro que reside em si mesmo (I too once thought I was owed something); 3) a consciência de que a coação individual é sintoma de uma relação que ficará dada por perdida, a partir do momento em que o eu se retrai com medo de magoar o seu semelhante/dissemelhante (I had to watch my tone for fear of having you feel judged). O procedimento é semelhante ao usado em The Couch pelo pai: a manifestação do verdadeiro interesse (logo censurável) desdobra-se do início ao fim da canção até a retórica da paralipse se tornar evidente ou, no mínimo, teoricamente suspeitável.

O incomunicável do inconsciente manifesta-se na parole pela transgressão do ser, como fratura da obstrução indestrutível entre emissor e recetor, mas sem nunca elevar as cisões comunicantes à ideia feliz de uma porosidade ou transparência ilocutórias. Ricœur, num flirt ao legado de Leibniz, trata o fenómeno comunicativo como a incomunicabilidade das mónadas, assente num inegável paradoxo: le paradoxe, c’est que la communication est une transgression, au sens propre du franchissement d’une limite, ou mieux d’une distance en un sens infranchissable (Ricœur, 2005: 12). O plano eumórfico de adulterar as eternas contingências, as presenças eternamente adiadas que o desejo elege como objetos de investimento libidinal, acumula somente impaciências que, como refere Alanis Morissette, geram bons pretextos para fazer músicas e, numa fase ulterior, fruto de experiências ansiogéneas, para extrapolar as vedações do texto, pisando o território desconhecido que escapa às garras da escrita: Is it beneficial to try to return, literally and physically, to the scene of a crime? Do you really need a face-to-face confrontation in order to reach closure? I've always been hopeless in confrontation, and I'm terrified of arguments, but increasingly I feel I have to learn to do this. So far, I've only managed to do it through my songs, but I now know that more healing can happen in two seconds in the same room with that particular person than me singing the song a thousand times across the planet.

No fundo, o perigo de extrapolar a dimensão ficcional ou autotélica das canções põe em evidência o quid inefável que a obra de arte, da literatura à pintura, não comporta, porque provém do lado inconsciente e profundo que atravessa os materiais do produto (o texto e a música, neste caso), sem nunca se realizar por completo. Por criar insatisfação, é que a cantora acredita que o regresso à cena do crime poderá resolver o impasse lançado pelo produto (e fadiga) do seu ofício. De certa forma, inverte-se o processo criativo tradicional: é a obra (passiva) ou criação (e o eu nela imbuído) que origem a um criador ou sujeito-agente. A obra ensaia a vida, minimizando-lhe os riscos: En général on réinvestit dans l’écriture autobiographique une compétence acquise préalablement dans d’autres formes de création. [] L’innovation, elle, est souvent une greffe. Dans son essai sur Le roman comme recherche, Michel Butor présente le roman comme le laboratoire du récit. On expérimente in vitro, avec plus de liberté et moins de risques, avant d’opérer in vivo (Lejeune, 1988: 78).

Conclusão: oh yes! I’m the great pretender (The Platters) Para concluir, atente-se no seguinte trecho de um dos metadiálogos de Bateson, que parte da interrogação da filha sobre, primeiro, o que leva um francês a mexer tanto o corpo enquanto fala (atitude que a menina inicialmente considera excessivamente histriónica) e, segundo, sobre o efeito culpabilizante que nela se repercutiria acaso o seu interlocutor, francês, cessasse abruptamente de gesticular: Filha: [] pai, tu disseste que todas as conversas são para dizer às outras pessoas que não se está zangado com elas.

Pai: Eu disse isso? Não, nem todas as conversas, nem tudo em cada conversa, mas a maior parte. Às vezes, se as pessoas estiverem dispostas a ouvir com cuidado, é possível fazer mais do que trocar cumprimentos e desejos de boa saúde. Mesmo mais do que trocar informação. As duas pessoas podem mesmo descobrir qualquer coisa que nenhuma delas sabia antes. [] Filha: Pai, porque é que as pessoas não podem dizer Não estou zangado contigo e ficarem-se por ? Pai: Ah, agora estamos a chegar realmente ao problema. O ponto é que as mensagens que trocamos por gestos não são de facto as mesmas que as traduções desses gestos em palavras.

Filha: Não compreendo.

Pai: Quero dizer que nenhum esforço em dizer a alguém por simples palavras que se está ou não se está zangado é tão bem sucedido como dizer-lhe por gestos ou tom de voz.

Filha: Mas, pai, tu não podes usar palavras sem nenhum tom de voz, pois não? Mesmo que alguém use um tom tão neutral quanto possível, as outras pessoas saberão que está a evitar mostrar as suas emoções, e isso é uma espécie de tom, não é? Pai: Sim, suponho que é. É o que eu disse agora mesmo: que o francês pode dizer qualquer coisa especial se parar os gestos que faz com os braços. (Bateson, 1989: 23-4) O diálogo é, desde Platão, uma estratégia indireta usada pelo eu para se desdobrar em múltiplas personae, esbatendo-se aquilo que denunciaria um certo exacerbamento narcísico da sua parte. Mesmo as simples palavras constituintes, ensina o pai à filha, são um refúgio topológico ironicamente a céu aberto: o percurso que vai do eu que fala (ou canta) ao seu próprio discurso está marcado por uma complexidade discursiva, dialógica e multi- fratal, sob telhados de vidro, partilhada pelos dois. Nos trâmites da autorrepresentação, o eu consciente de si é o eu consciente do outro, que também existe e, por isso, interfere no devir-eu/outro daquele, enquanto fenómeno polirrítmico da formação da identidade subjetiva, que, segundo Heraclito, põe todas as coisas em fluxo. É face a essa diferença inexaurível que o sujeito ensaia a sua identidade, p(r)ensando as palavras logos articulável por algoritmos saussurianos com camadas de mímica, modulações tonais, tratos e traços que, neste estudo, as lyrics e a vida não galvanizam, mesmo que a sua neutralidade possa parecer impositiva e desarmante (o devir-eu devindo outros é uma banalidade inflacionada pelas experiências diárias mais ínfimas e espontâneas, funcionando como o processo heteronímico de Pessoa). Porquanto designativo de um alter-ego mítico, Ninguém continua a ser, de Ulisses ao garrettiano Frei Luís de Sousa, uma resposta de proporções homéricas na filogénese do eu. Neste sentido, Alanis Morissette assina por baixo não se sabe é de quem é a mão.


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