O caráter híbrido do conceito de referência em Ricur
1. Introdução
Proponho-me a desenvolver, neste artigo, uma análise do conceito de referência
em Ricur. Esta análise sustenta a tese de que o conceito de referência em
Ricur tem um caráter híbrido. É óbvio que uma tal tese não se pode resumir a
uma mera síntese daquilo que Ricur diz sobre a referência, uma vez que Ricur
nunca diz que o seu conceito de referência é híbrido. A análise parte, pois, de
uma visão diferente que exporei muito sucintamente.
Durante pelo menos um século, e grosso modo ainda hoje, costumava-se distinguir
entre dois macroparadigmas da filosofia da linguagem, o anglo-saxónico e o
continental. Não obstante esta distinção levantar uma série de questões, não
obstante esta opinião não ser unânime e de se poder falar numa tendência para
uma maior aproximação ou até um esbatimento das fronteiras entre estes
macroparadigmas, penso que há uma diferença fundamental que vigorou durante um
período razoavelmente extenso do século XX. Esta diferença tem a ver, segundo a
minha opinião, com dois pressupostos diferentes.
O primeiro pressuposto, o da linhagem analítica, parte do princípio de que é
inerente à linguagem uma indelével bipolaridade que se revela pela e na função
da referência (entendido este termo num sentido extremamente lato, englobando a
denotação, representação, referência no sentido restrito, etc.) da linguagem.
Não interessam em primeira linha, sob este ponto de vista, as diferenças entre
realismo(s) e anti-realismo(s), nominalismo(s) e realismo(s), etc.; o que
interessa é que uma grande parte da empresa de investigação parte dessa
bipolaridade. A linguagem estabelece uma ligação, seja qual for a sua
especificidade, com uma instância extralinguística, e é isso que cunha
determinantemente a maior parte das investigações da filosofia analítica,
principalmente todas as questões relacionadas com a verdade, que estão por
exemplo no centro das assim chamadas truth-conditional-semantics ou truth
theories.
A outra abordagem que marca muitas das teorias chamadas continentais' parte do
princípio de que não faz muito sentido assentar a filosofia da linguagem nesta
bipolaridade, pois essa, em última instância, sempre se revela como
unipolaridade. A linguagem faz, cria, constitui aquilo que é o mundo. Não
convém, portanto, pressupor uma realidade nua e crua, uma realidade em si, pois
a única realidade que temos é a realidade linguisticamente moldada, a que se
chama mundo'. É essa decididamente a posição que Ernst Cassirer defendeu, e
que está na base de muitas outras filosofias continentais', e.g. de Nietzsche,
Heidegger, Gadamer, Apel, Habermas, Derrida, etc. Não quer isso dizer que estas
teorias, entre si, não possam divergir muito, e tampouco quer dizer que o
fenómeno de referência esteja excluído das reflexões teóricas. Mas a referência
perde o valor de um problema nuclear, pois é um fenómeno que brota da própria
linguagem e que pode ser pensado satisfatoriamente no âmbito do seu domínio.
Embora possa haver algo fora de mim, esse fora' apenas ganha contornos,
cognoscibilidade, inteligibilidade se lhe for atribuída, consciente ou
inconscientemente, significância, e essa significância advém e constitui-se na
e pela linguagem. Não se adaptam aqui coerentemente as antinomias idealismo '
realismo, ou construtivismo ' representacionalismo, etc., pois o fundamental é
apenas que a bipolaridade linguagem ' realidade se torna aproblemática ou num
problema menor, e foi esse talvez o aspeto que conferiu às teorias de Husserl,
Heidegger, Ortega y Gasset a notoriedade de ter elegantemente vencido o
problema tão antigo como difícil, da cisão entre objeto e sujeito.
Partindo então desta distinção entre os dois grandes macroparadigmas da
Filosofia da Linguagem e os seus diferentes pressupostos fundamentais,[1]
debruçar-me-ei sobre o conceito de referência em Ricur. Baseio a minha análise
sobretudo, se bem que não exclusivamente, no texto Interpretation Theory:
Discourse and the Surplus of Meaning[2] de 1975, publicado quase que
imediatamente após a publicação de La métaphore vive. Tal como Ted Klein afirma
no prefácio de Interpretation Theory, este texto contém Paul Ricoeur's
philosophy of integral language (Klein 1976: vii), exposta numa síntese densa
e magnificamente lúcida.
2. A referência como ligação entre linguístico e extralinguístico
Na sua Autobiographie intellectuelle[3], Ricur confessa que a conceção da
referência como ligação entre linguístico e extralinguístico constituiu, ao
longo de muitos anos, uma preocupação central da sua teoria da linguagem: J'ai
dit plus haut avec quelle véhémence je plaidais pour une conception du langage
qui rendît justice à sa visée extra-linguistique (AI, 46). A escolha destas
palavras demonstra já por si que havia necessidade, na perspetiva de Ricur, de
combater uma conceção errada', uma conceção que falhava gravemente na empresa
de entender o fenómeno da linguagem. É sabido que essa era a conceção
estruturalista da linguagem, na altura bastante consagrada e divulgada.
A refutação da conceção estruturalista constitui, pois, o ponto de partida das
reflexões de Ricur sobre a linguagem. Esta refutação é motivada, em primeiro
lugar, pelo facto de o estruturalismo desembocar numa desvalorização daquilo
que é exterior à linguagem. Cientificamente valioso é apenas aquilo que se
passa no sistema da langue, no interior da linguagem, de maneira que a ligação
com o seu exterior seria, do ponto de vista científico, negligenciável. As
palavras com as quais Ricur termina a sua breve síntese do estruturalismo na
parte inicial de Interpretation Theory expõem claramente a sua crítica a esta
posição:
The last postulate [o do estruturalismo; este postulado sustenta que
todas as relações são imanentes ao sistema] alone suffices to
characterize structuralism as a global mode of thought, beyond all
the technicalities of its methodology. Language no longer appears as
a mediation between minds and things. It constitutes a world of its
own, within which each item only refers to other items of the same
system, thanks to the interplay of oppositions and differences
constitutive of the system. In a word, language is no longer treated
as a form of life, as Wittgenstein would call it, but as a self-
sufficient system of inner relationships. (IT, 6)
Se bem que se saiba hoje que a redução da posição de Saussure a um rigoroso
favorecimento da sincronicidade em detrimento da diacronicidade é falsa e um
mito criado pelos editores da primeira edição do Cours, isso não alterará
profundamente o pretexto da crítica de Ricur. Pois é um pressuposto duro do
estruturalismo que o código da estrutura determina a mensagem. Seja na
linguística (e.g. Saussure, Círculo de Praga, Hjelmslev), na teoria da
literatura (e.g. Barthes, Jakobson e o formalismo russo), na antropologia (e.g.
Lévi-Strauss), a primazia dada ao código é um facto assumido, um essential, um
axioma duro. As ciências estruturalistas que partem deste princípio de que
aquilo que unicamente interessa é a investigação das regras que vigoram no
interior de um sistema de signos são apelidadas, por Ricur, de Semiótica. The
object of semiotics ' the sign ' is merely virtual (IT, 7), pois assenta na
arbitrariedade dos signos e nas suas interrelações intrasistémicas, na mera
diferença que, segundo Saussure, é um princípio negativo. Mas não é a
virtualidade em si que é o maior mal, mas antes a ignorância do facto de que a
exteriorização' da linguagem é algo decididamente essencial. Só quando se
prova que este último postulado é justificado, se prova ao mesmo tempo a
insuficiência da Semiótica.
Convém intercalar aqui uma observação importante: o que rejeita Ricur aqui é
de facto uma posição que está na base de muitas teorias continentais da
linguagem. Esta posição parte do princípio de que a estrutura da língua
determina o pensar e o agir dos seus falantes, e foi defendida não só pela
corrente linguística da Sprachinhaltsforschung na Alemanha (Weisgerber, Ipsen,
Trier, Gipper etc.) durante meio século (de 1925 a 1975), mas também por
filósofos como Cassirer, Hönigswald, o primeiro Apel, e de uma certa maneira
também por Heidegger e Gadamer. Para além de Humboldt e Herder recorreu-se,
nalguns autores, principalmente a Saussure, pela sua conceção da língua como um
facto social que exerce um impacto sobre os seus respetivos falantes. Mas esta
posição não se prende necessariamente com o estruturalismo, pois, a título de
exemplo, não se encontra em Lévi-Strauss e apenas de uma forma fundamentalmente
transformada em Barthes, ou foi rigorosamente contestada por Jakobson. Daí que
possamos alertar para um facto importante: o pressuposto de que a língua e a
sua estrutura, ou uma estrutura de um sistema de signos em geral, determina a
conceção do mundo' não se prende necessariamente com o estruturalismo,
tampouco como a defesa da tese da construção linguística da conceção do mundo
não se prende necessariamente com o pressuposto de que a linguagem é um sistema
fechado. É este facto que fornece o motivo deste artigo. Pois a minha tese
parte do princípio que Ricur, por um lado e devido à sua aversão à clausura'
da semiótica estruturalista, quer provar que a linguagem necessita de algo
extralinguístico, tese que leva diretamente à derrota da tese dura da semiótica
sobre a linguagem como sistema auto-suficiente e fechado. Por outro lado, o
próprio Ricur defende uma posição que sustenta pelo menos de uma certa maneira
que o mundo é, no fundo, linguisticamente construído. Como esta posição se
encontra (para Ricur) em perigosa' proximidade da semiótica, haverá a maior
necessidade de marcar claramente as diferenças. E esta marcação das diferenças
passa pelo conceito de referência.
Atentar-me-ei, após esta breve descrição do contexto subjacente do problema em
questão, à análise do perfil que o conceito de referência adquire em Ricur.
Tendo em conta o aspeto mais fundamental, referência' significa para Ricur
que se sai da clausura do sistema dos signos. É esta ideia que alicerça e
motiva a distinção entre semiótica e semântica que assinala o combate teórico
com o qual Ricur se compromete. Segundo Ricur, a semiótica ignora que a
linguagem', a vários níveis diferentes, implica uma saída de si mesma.
O primeiro destes níveis é indicado pelo entendimento de semântico'. À
semântica pertence a frase, à semiótica o signo. A frase, por sua vez, não se
deixa reduzir à sua função de signo, não é apenas um signo, mas algo que, ao
combinar um signo (nome) com outro (verbo), predica algo de um sujeito (IT, 6-
9). Esta predicação apenas é entendida na sua plena essência quando se tem em
conta a função da referência. Daí que apenas a semântica e não a semiótica
possa entender o fenómeno da referência.
A um segundo nível, a saída do sistema fechado dos signos é implicada pelo
discurso. O discurso, embora contenha em si as especificidades da langue e da
parole no sentido saussuriano, é mais do que a mera soma de langue e parole,
pois o emprego dos termos de langue e de parole, segundo Ricur, levaria, de
antemão, a um caminho errado, i.e. à visão de que a parole é a mera aplicação
casual do código da langue. Muito pelo contrário, acontece algo no discurso que
não é cientificamente previsível quando se investiga apenas a langue enquanto
sistema semiótico. Embora o significado dos signos seja um momento que subjaz a
cada discurso e que se deve à langue, este significado apenas ganha o seu valor
predicativo no discurso, i.e. no momento em que se relaciona um significado com
algo que lhe é exterior, com uma coisa'[4]. Visto que o código, o sistema dos
signos, se tornará atual e sairá do estado de virtualidade apenas quando um
signo for relacionado com o exterior, e visto que este relacionamento ocorre no
discurso enquanto evento', prova-se assim que o discurso é um termo muito mais
abrangente do que os dois termos de langue e de parole. Pois o termo de parole
não nos diz nada sobre o valor de verdade[5], sobre a adequação ou não da
aplicação do código da langue, e a langue não é, em termos ontológicos, nada ou
é apenas virtual se não for ligada àquilo que lhe é exterior.
A um terceiro nível, entra também em jogo o próprio conceito de referência.
Neste âmbito, convém, no entanto, ter em consideração que o próprio Ricur
distingue entre dois tipos de referência, a referência ostensiva situacional e
a referência estabelecida na escrita (cf. IT, 80ss.). No que concerne ao
primeiro tipo de referência, este caracteriza-se por a coisa' referida estar
presente ou acessível ao locutor e aos interlocutores aos quais se dirige o
discurso. Aqui, a dimensão do extralinguístico está implicada de uma forma mais
direta: a coisa referida ou o estado de coisas referido fazem parte da mesma
situação real'. No subcapítulo Meaning as "Sense" and
"Reference" (IT, 19-22), encontram-se formulações absolutamente
claras sobre o problema em questão. Relacionando as suas teses direta e
explicitamente com as definições de sentido e referência em Über Sinn und
Bedeutung de Frege, Ricur realça as implicações ontológicas do conceito de
referência:
This notion of bringing experience to language is the ontological
condition of reference, an ontological condition reflected within
language as a postulate which has not immanent justification; the
postulate according to which we presuppose that something must be in
order that something may be identified. This postulation of existence
as the ground of identification is what Frege ultimately meant when
he said that we are not satisfied by the sense alone, but we
presuppose a reference. (IT 21)
Chegamos, por assim dizer, com esta visão ontológica sobre a referência, ao
cume da posição de Ricur, pois a demonstração da necessidade da pressuposição
da existência autónoma da coisa referida implica indubitavelmente uma saída do
círculo fechado da linguagem. Chegados ao cume, falta apenas confirmar quais as
conexões entre os mencionados três níveis conceituais (semântica, discurso,
referência). No que respeita à conexão entre semântica e referência, podemos
ler o seguinte:
Finally, semiotics appears as a mere abstraction of semantics. And
the semiotic definition of the sign as an inner difference between
signifier and signified presupposes its semantic definition as
reference to the thing for which it stands. The most concrete
definition of semantics, then, is the theory that relates the inner
or immanent constitution of the sense to the outer or transcendent
intention of the reference. (IT, 21s.)
Relativamente ao discurso, aparece nele manifestamente não só a referência ao
mundo, mas também às dimensões ilocucionária e interlocucionária' (ou
alocucionária') (cf. IT, 14) do ato de fala. No âmbito do problema em análise
neste ensaio posso negligenciar esta questão. Basta que fique claro que o
discurso, segundo Ricur, estabelece uma auto-referência ao locutor e uma
referência ao mundo, pressupondo assim também ele a saída do sistema fechado da
linguagem. Acrescento as passagens do texto de Ricur que me parecem explicitar
o assunto em questão com suficiente clareza:
Discourse refers back to its speaker at the same time that it refers
to the world. This correlation is not fortuitious [sic], since it is
ultimately the speaker who refers to the world in speaking. Discourse
in action and in use refers backwards and forwards, to a speaker and
a world. (IT, 22)
Em jeito de conclusão desta primeira parte, convém então salientar o seguinte:
para combater a visão redutiva da semiótica estruturalista sobre a linguagem,
Ricur recorre ao conceito de referência na aceção que lhe foi dada por Frege
em Über Sinn und Bedeutung e que cunhou fortemente o tipo das análises da
linhagem analítica da filosofia da linguagem que se sucedeu. A referência
pressupõe, assim, uma saída da clausura da linguagem, de modo que seria redutor
conferir à linguagem todo o peso da construção' da realidade. Sem o seu
correlato, a realidade além da linguagem', não há construção de um mundo. Esta
conclusão, porém, vem a ser, de uma certa forma, contrariada pelo segundo tipo
de referência que é a referência estabelecida pela escrita e, no último Ricur,
pelo texto.
3. A referência como exteriorização do sentido
A referência estabelecida pela escrita difere da referência ostensiva/
situacional pelo facto de (geralmente) não existir uma situação comum entre
locutor / autor de um texto e ouvinte / leitor, havendo, antes pelo contrário,
um hiato espácio-temporal entre enunciação e receção do discurso. Mas esta
suspension or suppression (IT, 81) da referência ostensiva não significa que
não haja referência nenhuma:
Does this mean that this eclipse of reference, in either the
ostensive or descriptive sense, amounts to a sheer abolition of all
reference? No. My contention is that [poetic] discourse cannot fail
to be about something. In saying this, I am denying the ideology of
absolute texts. (IT, 36)
Esta afirmação sustenta não só a tese de que existe um tipo de referência não
situacional, mas também que esta referência não é (ou apenas em raríssimos
casos) autoreferencial', como pretendiam, relativamente ao discurso poético,
os formalistas russos. Antes pelo contrário, a referência da escrita abre uma
nova realidade, à que Ricur chama mundo. For me, the world is the ensemble of
references opened up by every kind of text, descriptive or poetic, that I have
read, understood, and loved. (IT, 37). Esta realidade de segunda dimensão é
uma realidade que só o homem pode ter, pois implica, bem à maneira de
Heidegger, ter uma noção da temporalidade da nossa existência. Mesmo assim,
mantém uma caraterística peculiar que marca a diferença para com o pensamento
de Heidegger. Esta diferença diz respeito ao entendimento e à conceção da noção
de realidade. Pois, segundo Ricur, a escrita, mesmo estando separada da
situacionalidade e realidade' direta ou, por assim dizer, ostensivamente
alcançável, não se reduz ontologicamente à linguagem, porque [l]anguage is not
a world of its own. It is not even a world. (IT, 20). O que é então o mundo e
o tipo de realidade deste mundo, se não é nem a realidade de primeiro grau nem
a linguagem? Estamos a chegar ao cerne da nossa questão: ficou, por um lado,
claro que o discurso situacional pressupõe a referência de primeiro grau às
coisas', à realidade de primeiro grau. Neste sentido, o recorrer a Frege é
perfeitamente entendível. No que respeita ao entendimento do tipo de referência
estabelecida pelos textos, já não temos a mesma certeza. Veremos esta questão
mais de perto.
Para começar, relembro a convicção fundamental da filosofia continental nas
suas mais variadas versões: segundo este paradigma, aquilo a que Ricur chama
mundo é uma realidade que depende essencialmente da conceptualização
linguística, pois sem esta nem sequer haveria mundo, ou seja, se bem que possa
haver algo fora do alcance linguístico, este algo apenas se transforma em mundo
se passar pelo tratamento' linguístico. Pois a linguagem disseca, combina,
forma e compõe a nossa visão das coisas, ou seja, dito à maneira de um Kant
metacriticamente transformado, não há experiência objetiva' senão como
experiência linguisticamente moldada. Ontologicamente, esta realidade brota do
seio da linguagem e depende fundamentalmente dela, e não está oposta a ela ou
separada dela, o que não quer dizer que ela própria tenha um caráter meramente
ou exclusivamente linguístico. Será que Ricur é capaz de contrariar
definitivamente este paradigma ou de passar ao lado dele? Penso que não, e
reservo esta última parte do artigo à justificação da minha posição.
(i) Num primeiro argumento sustento que Ricur concebe a referência ao mundo,
ou seja a referência que é o mundo, como conceptualização, como projeção
realizada por meio da linguagem. As passagens que demonstram esta posição são
numerosas. Cito apenas duas: na página 37 de Interpretation Theory, Ricur dá
razão a Heidegger e à sua análise da compreensão em Ser e Tempo: o que
entendemos num discurso (da escrita) is not another person, but a pro-ject,
[sic] that is, the outline of a new way of being in the world. (IT, 37). É
sabido que o aspeto de novidade, mencionado na passagem citada, se prende, para
Ricur, essencialmente com a função da metáfora viva'. É a metáfora viva que
constrói novas perspetivas sobre o mundo, ou dito mais radicalmente, que
constrói novos mundos. Daí Ricur, emInterpretation Theory, cuja publicação
sucedeu imediatamente à de La métaphore vive, poder resumir o teor nuclear da
sua teoria da metáfora aí apresentada com a seguinte frase: But metaphor
theory ( ) shows how new possibilities for articulating and conceptualizing
reality can arise through an assimilation of hitherto separated semantic
fields. (IT, 57; itálico presente autor). E mais algumas páginas à frente,
quando elogia o contributo de Max Black para os progressos nas teorias sobre a
metáfora,[6] incidindo sobretudo sobre a função paralela de novos modelos
teóricos e da metáfora, Ricur anota:
As Max Black puts it, to describe a domain of reality in terms of an
imaginary theoretical model is a way of seeing things differently by
changing our language about the subject of our investigation. This
change of language proceeds from the construction of a heuristic
fiction and through the transposition of the characteristics of this
heuristic fiction to reality itself. (IT 67; itálico presente autor)
Há que salientar aqui não apenas o traço fundamental da conceptualização e da
sua aplicação na' ou transposição para' a realidade, mas também a distinção
de duas realidades, uma de primeiro e uma de segundo grau, em plena
correspondência com as