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EuPTHUHu0807-89672013000200015

EuPTHUHu0807-89672013000200015

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0807-8967
ano2013
Issue0002
Article number00015

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Música como mundividência da estaticidade medieval à contemporânea

Numa reflexão sobre técnica e forma na música, Ligeti (1965: 5) sugere que as linguagens tonal e serial encerram na sua origem o princípio da sua dissolução.

Assim, de acordo com Ligeti (1965: 5), é na alteração de notas em sensíveis na musica ficta que tem origem, não a harmonia funcional e, com esta, a modulação, a forma e recursos expressivos que lhe estão associados, como também a sua dissolução, com neutralização da funcionalidade tonal pela generalização do princípio da nota sensível à harmonia e melodia. Do mesmo modo, quando se aplicam à forma os princípios seriais introduzidos para ordenar o material desprovido de funcionalidade tonal, desvanece a organização serial das alturas que havia dado origem ao processo (Ligeti, 1965: 5). Com base nesses pressupostos, e em considerações sumárias sobre íntima relação entre a funcionalidade dos materiais e a direccionalidade da música nos modos medievais, na tonalidade, e na atonalidade e serialismo, procurar-se-á mostrar que a transformação de tais materiais e direccionalidade é acompanhada de uma mutação da teorização cultural da temporalidade, evidenciando assim a técnica e materiais musicais como caso particular do pensamento cultural.

Modos e tonalidade Os modos medievais, caracterizar-se-iam designadamente, segundo Schulenberg (1986: 306), por uma lenta e fragmentária teorização, reduzida funcionalidade ' tendo as notas finalis e tenor ou tom de recitação como dois pontos focais ', e natureza melódica.[1] Tal conceção melódica dos modos, persiste mesmo na composição polifónica, em que se verifica uma relativa liberdade individual das partes, de forma que Schulenberg (1986: 308), se refere à polifonia do séc. XVI como um espaço que, ao contrário da composição tonal, cuja unidade vertical é evidenciada pelo baixo cifrado, não é coerente nem integrado. Com efeito, escreve Schulenberg (1986: 322), a polifonia pré-tonal tenderá, após redução, a revelar um campo estático de alturas dentro do qual as linhas gravitam, sem progredir para, ou a partir de, alguns pontos focais.[2] Partindo também da melodia, mas analisando o estilo a partir das curvas formadas por esta, Jeppesen (1970: 49-50) aponta para algumas tipologias que diferencia pela posição relativa do clímax e decréscimo de tensão, especificando, em particular, uma em que o clímax é colocado no início e seguido por um longo e gradual decréscimo de tensão, uma outra em que o clímax é colocado a meio da frase, com um equilíbrio entre a parte ascendente e descendente da melodia, e uma terceira, com um lento e longo crescimento de tensão conducente ao clímax no final da frase, e seguido por um abrupto decaimento da curva. Tais tipos de frase emergem em períodos históricos diferenciados, associando Jeppesen (1970: 49-50) o primeiro ao cantochão, o segundo, a Palestrina em particular, e o terceiro ao género dramático de Bach.

Embora Berger (2008: 12) contraponha que está patente em Bach uma dupla temporalidade ' a linearidade relativizada por uma conceção cíclica do tempo (seen from the absolute perspective of eternity), a progressiva deslocação do clímax melódico do início, para o meio, e mais tarde para o final da frase seria reflexo da evolução natureza e funcionalidade do próprio material musical.[3] É nesse sentido que aponta Berger (2008: 10), segundo o qual, num processo que remonta ao final do séc. XVII, designadamente, a Corelli, é no estabelecimento de um centro tonal, e em particular, no afastamento e na simétrica pulsão para esse centro na modulação, que reside a origem de uma direccionalidade sem precedentes à música.

Também Tarasti (1984: 305) sugere que, ao invés da música do Renascimento, em que um acorde podia ser seguido por qualquer outro, a música barroca inicia uma direccionalidade, ordem na sucessão e, em suma, um programa, apresentando-se o esquema harmónico I-V, V-I como paradigma do esquema sintático que viria a generalizar-se no classicismo, transformar-se no romantismo, e constituir-se em princípio fundamental na prática musical e discurso musicológico ' a narratividade, cujo modernismo do séc. XX procura neutralizar, em favor do princípio brechtiano do estranhamento (anti-illusionism) (Tarasti, 1984: 297).

[4] No mesmo sentido, Ligeti (1965: 16) salienta que na música tonal, quer a pulsação métrica, quer a relação de um determinado elemento com o que o precede e o que lhe sucede, permite ordenar os eventos, por vezes paralelos, ou localmente contraditórios, numa direção única ( ) no tempo, o que aproximaria a música da linguagem.

Não obstante, Ligeti (1965: 17) identifica em Beethoven processos que, sem paralisar o fluir do tempo, criam uma ‘dissociação' deste, ao apresentar simultaneamente o sucessivo.[5] Por outro lado, nota Kramer (1981: 541), com a profusão do cromatismo e modulação na música do final do séc. XIX, o clímax é diluído, eventualmente adiado ou não materializado, sendo a definição tonal remetida para níveis estruturais mais elementares e a função de prolongação tendencialmente assegurada pela superfície melódica.

Atonalidade e serialismo Do mesmo modo que Ligeti (1965: 17), que apresentava a montagem em Stravinsky como generalização da simultaneidade do sucessivo pontualmente identificada em Beethoven, Kramer (1981: 541-2) propõe que, com a diluição da funcionalidade tonal, consumada na música atonal de Schönberg, a continuidade e progressão na música passa, na ausência de previsibilidade, a ser assegurada por aquilo que designa de linearidade não-direcionada, ou, mais radicalmente, a assumir um carácter não-linear ou descontínuo.[6] Kramer (1981: 545) propõe ainda, com particular incidência na música contemporânea, as categorias de (1) tempo múltiplo (multiple time) (pressupondo uma linearidade que permita a perceção e reordenamento das partes); (2) tempo-momento (moment time), assim designado na sequência da formulação de Stockhausen (moment form) (Kramer, 1981: 546-51), em que é radicalizada a descontinuidade, com uma segmentação marcada, podendo as partes ser relacionadas, mas não ligadas por uma transição e; (3) tempo vertical (vertical time), cuja audição compara a contemplar uma peça de escultura, e em que, nomeadamente, não se verifica na organização temporal, nem a criação, nem a resolução de expectativas, sendo o contraste e hierarquia minimizados ' uma música não-teleológica (Kramer, 1981: 551).[7] Tal ausência de direccionalidade não é estranha àquilo que Ligeti (1965: 16) designa de espacialização do tempo (‘spacialization of the flow of time').[8] Essa espacialização emerge mais intensamente com o serialismo integral que, de acordo com o compositor, nasceu sob o signo do totalmente estático ao serem desativadas as forças que conduzem [drive] o fluir do tempo (Ligeti, 1965: 16).[9] Também Schulenberg (1986: 322) aponta para a relevância da noção de espaço, particularmente, na música do séc. XX.[10] Um ou mais espaços podem constituir-se como princípio formal, segundo Schulenberg (1986: 323), sendo que, dentro de um dado espaço, ou na passagem de um espaço a outro apresenta-se frequentemente não uma articulação direcionada, mas uma stasis, em que podem não ser diferenciados pontos focais e não focais.[11] Como ilustração de um aspeto técnico particular, a um nível elementar, da neutralização da direccionalidade e desenvolvimento temático, poder-se-ia apontar, como é o caso em Webern, a construção de séries em espelho, com um eixo de simetria, ou a reciprocidade da série original e da retrógrada que implicam, segundo Ligeti (1965: 16), uma reversibilidade [interchangeability] das direções temporais. Sem prejuízo da irreversibilidade do tempo, os palíndromos exibem uma reversibilidade da estrutura ou inversão espacial que, como indica Trippett (2007: 523), embora esporadicamente presente em música anterior, proliferam na música pós-tonal do século XX.[12] Música e cultura Se até ao final do . XVIII, aventa Berger (2008: 9), a sucessão das partes não tem subjacente uma clara direccionalidade temporal, a partir daí dificilmente se compreende a música sem recurso à linearidade e ordenação temporal, sendo tal desenvolvimento reflexo da mutação cultural que é a modernidade e da conceção do tempo histórico que a acompanha ' a passagem de uma conceção cíclica para uma conceção linear do tempo.[13] Também segundo Kramer (1981: 539), a tonalidade emerge como caso particular da linearidade que domina o pensamento ocidental da Idade do Humanismo à primeira Guerra Mundial, coincidindo o apogeu da tonalidade (desenvolvida particularmente a partir de 1600, e decaindo no final do séc. XIX) com o da linearidade na teoria cultural (enquanto progresso) e científica (enquanto mecanicismo e evolucionismo, marcados por Newton e Darwin). Para além disso, e no sentido de salientar a especificidade cultural do sistema tonal e do tempo como construção, Kramer (1981: 539-41) recorda que tal linearidade não é universal mas antes culturalmente construída, como mostra uma análise comparativa de música não europeia em que está esta ausente e que, ao implicar familiaridade com o idioma, constitui esta comportamento aprendido (Kramer, 1981: 540).[14] Não deixaria do mesmo modo a desintegração de tal linearidade no séc. XX de ser entendida como ‘homologia estrutural' (Berger 2008) entre o tempo histórico e o musical (Kramer 1981; Trippett, 2007).[15] Por outro lado, e com particular relevância para a contextualização daquilo que Ligeti (1965: 16) designa de espacialização do tempo, Jameson (2003: 695-7) propõe que, com o fim da modernidade, se verifica na cultura do séc. XX a primazia da teorização do espaço (como sinónimo de exterioridade) em detrimento do tempo (como sinónimo de interioridade, subjetividade e lógica), identificando este como objeto moderno e aquele como pós-moderno.[16] Sumário e discussão Como referido, os modos medievais, definidos por um âmbito, dois pontos focais e natureza melódica, conformam, designadamente na polifonia, um espaço estático (Schulenberg, 1986). A tonalidade, por sua vez, que domina a produção musical do séc. XVII ao séc. XIX, apresenta-se como um material dinâmico, cuja natureza marcadamente hierarquizada e funcional é suscetível de uma articulação direcionada em formas extensas com um desenvolvimento orgânico. Na sequência da dissolução da funcionalidade tonal e da atonalidade, no início do séc. XX, o serialismo integral apresenta-se como totalmente estático concorrendo para aquilo que Ligeti (1965: 16) designa de espacialização do tempo. No caso elementar da construção melódica, verifica-se uma evolução do perfil, em que o clímax é progressivamente deslocado do início (canto gregoriano) para o final da frase (Bach) (Jeppesen, 1970), a que corresponde uma progressiva importância da direccionalidade, criação de expectativas e aumento de tensão (adiamento da resolução). No palíndromo, encontraríamos uma metáfora para a dissolução da tensão e direccionalidade do próprio material musical, no caso particular do serialismo integral. Verifica-se assim uma transformação dos materiais e práticas composicionais que se caracteriza pela criação e diluição de direccionalidade, passando sucessivamente de uma configuração estática, a uma dinâmica, e à neutralização da direccionalidade na espacialização do tempo (Ligeti).

Tomando como certa a especificidade cultural da direccionalidade na música (Kramer, 1981), constatar-se-ia uma homologia estrutural (Berger, 2008) entre essa construção e o contexto cultural em que emerge, verificando-se em ambos os domínios a passagem de uma conceção cíclica a uma conceção linear do tempo, consolidada nos séc. XVIII e XIX (Kramer 1981; Berger, 2008), e finalmente, à sua diluição e à primazia da teorização do espaço (objetividade) em detrimento do tempo (subjetividade), que corresponderia a um pensamento pós-moderno (Jameson, 2003).

Pensando a história das proporções na representação da figura humana, Panofsky (1989) toma como pressuposto que não evolução técnica, no sentido de substituição de uma técnica menos eficaz por uma mais eficaz, mas sim uma alteração de mundividência que a técnica plasma. A técnica é não um domínio autónomo, mas ela própria um dado cultural, e, desse modo, objeto de reflexão.

Foi esse raciocínio que se procurou demonstrar na historicidade dos materiais musicais.


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