Comentário a liberdade e justiça social(capítulo IV)
Comentário a liberdade e justiça social(capítulo IV)
Maria João Cabrita*
*Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Centro de
Estudos Humanísticos, 4710-057 Braga, Portugal.
majcabrita@hotmail.com
O capítulo intitulado Liberdade e Justiça Social ilustra exemplarmente o modo
como João Cardoso Rosas emprega a sua caixa de ferramentas rawlsianas na
clarificação de problemas contíguos à discussão pública coeva, recorrendo a uma
linguagem inteligível a qualquer pessoa desperta pelo mundo social e político e
não apenas aos seus pares ' o filósofo político, como acentua o autor, não
representa uma autoridade especial.
Neste exercício de reflexão, o filósofo é desafiado pela questão: haverá
liberdade sem justiça social? Na prática parece que assim seja, mas ' como
assinala ' nem sempre e necessariamente é assim. Consequentemente, antes de
confundir-se os conceitos de liberdade e de justiça social, de submergir nas
suas afinidades, urge avaliar-se o significado de cada um per se ' como
proferiu Isaiah Berlin: liberdade é liberdade (1958: 172) . Por outro lado,
esta diligência pretere a desagregação definitiva entre a liberdade e a justiça
social, sustentada por alguns teóricos ' Hayek, por exemplo. Na proximidade de
Berlin, João Cardoso Rosas distingue os conceitos de liberdade e de justiça
social ' a fim de evitar a amálgama entre um e outro ' e estabelece conexões
conceptuais e valorativas entre eles ' afastando-se, assim, da ideia hayekiana
de que a justiça social, ou distributiva, é ilusória e contraria a liberdade.
Com este intuito, a sua análise desenvolve-se a partir do tema liberdade e
liberdades, prossegue sobre o mote elementos do conceito de justiça social
e, por último, desemboca [n]o valor da liberdade.
Em liberdade e liberdades, o filósofo mostra como as várias versões da visão
dualista da liberdade ' liberdade dos antigos versus liberdade dos modernos de
Benjamin Constant; liberdade positiva versus liberdade negativa de Isaiah
Berlin; e liberdade de versus liberdade para do discurso mais comum e
idealista ' se prestam mais à confusão que ao esclarecimento (p. 63) do
conceito ético-político de liberdade. Detenhamo-nos, então, na sua apreciação
sobre estas variantes dualistas. Na terminologia de Constant, a liberdade dos
antigos implica a participação directa e activa dos cidadãos na res publica
' é de carácter republicano e concerne à democracia directa. Mas a liberdade
como participação, essencialmente política, revela a submissão do indivíduo à
polis. Por sua vez, a liberdade dos modernos é compreendida como liberdade
enquanto gozo da independência privada (p. 61). De carácter liberal e
associada à democracia representativa, esta liberdade enfatiza o valor dos
direitos do cidadão enquanto liberdades civis. À luz desta noção, o exercício
dos direitos políticos do cidadão é opcional e não determinante do conceito de
liberdade.
Mais actual, a distinção de Berlin entre liberdade negativa e liberdade
positiva revela a polaridade entre a liberdade como não interferência (p.
62) e a liberdade como autonomia ou autodeterminação (ibidem) ' se aquela
corresponde exactamente à liberdade dos modernos, esta amplia a ideia de
liberdade dos antigos de modo a abarcar outras visões características da
modernidade (ibidem). Perscrutar a nossa liberdade negativa equivale a
perguntar até que ponto podem os outros interferir comigo? (ibidem);
diferentemente, o inquérito à liberdade positiva revê-se na questão quem nos
governa? (ibidem). No pensamento político contemporâneo é visível o realce de
uma em detrimento da outra ' enquanto os liberais privilegiam a liberdade
negativa, os republicanos privilegiam a liberdade positiva.
Esta apreciação é, todavia, demasiado vaga. Como acentua o filósofo, no seio do
pensamento liberal existem muitas famílias, da mais igualitária (Rawls) à mais
libertária (Nozick), divergindo pelo que tomam como interferência ' os
obstáculos criados pelos outros, todos os obstáculos externos, os obstáculos
internos, etc. Do mesmo modo, o pensamento republicano não tem uma visão
unívoca quer da liberdade positiva, quer da sua conjugação com a liberdade
negativa ' da qual não prescinde. Neste âmbito, o filósofo limita-se a indicar
um rumo ' remete para o artigo Republicanismo de Roberto Merrill e Vincent
Bordeau (in Rosas J. C. (coord) 2008, Manual de Filosofia Politica, Lisboa:
Almedina, pp. 109-127). Porém, teria sido oportuno elucidar a disparidade da
liberdade republicana relativamente à liberdade positiva de Berlin ' quer
por não se basear na participação política virtuosa, dada a sua visão da
participação como utensílio da não dominação, sem a qual não é possível gozar
da não interferência; quer ainda por evitar os perigos do autoritarismo
através do seu compromisso com a não dominação e as instituições liberais-
democratas que a colocam em prática.
Na esteira deste aparte, prossigo na análise do filósofo à visão dualista da
liberdade. O dualismo conceptual da liberdade é sublimado, no discurso corrente
e mais ideológico, pela distinção entre liberdade de e liberdade para. A
primeira, correspondendo à liberdade negativa e coincidindo, historicamente,
com a liberdade dos modernos, é ideologicamente peculiar ao liberalismo
económico e ao neoliberalismo; a segunda, correspondendo à liberdade positiva
e, coincidindo parcialmente com a liberdade dos antigos, é característica, em
termos ideológicos, do republicanismo e socialismo. Radicalismo que espelha o
conflito entre a defesa do Estado mínimo e a defesa do Estado de bem-estar
social, de um tipo de Estado que protege as liberdades individuais e propicia
as condições materiais que garantem a efectivação das liberdades civis.
Na medida em que a visão dualista da liberdade ' sobretudo nas duas últimas
versões ' incide especialmente no diferente valor que atribuímos às diversas
liberdades (p. 63), no enaltecimento ou das liberdades políticas ou das
liberdades civis, não clarifica o conceito de liberdade. Neste âmbito, a
liberdade como uma relação triádica de Gerald MacCallum é muito mais frutífera
' somos assim remetidos para o texto Negative and Positive Freedom (1967).
Trata-se de uma noção meta-teorética ' porque inscrita numa teoria sobre as
diferenças entre as teorias da liberdade ' e não social e política, como a de
Oppenheim (1950/60), e que influenciou profundamente a tradição da filosofia
analítica. Paradoxalmente, como mostra MacCallum (1967), a liberdade triádica
de Oppenheim, como a relação entre dois agentes e uma acção particular
(obstruída ou não), por ser redutível à liberdade negativa de Berlin não
dilucida o conceito de liberdade no domínio social e político.
Para MacCallum, como lembra o filósofo, todas as concepções de liberdade, seja
qual for a liberdade específica em questão (negativa, positiva, liberal,
republicana, etc), revelam uma mesma relação triádica e concernente aos
seguintes elementos: agente ou agentes; constrangimentos ou obstáculos; e
aquilo que ele ou eles podem fazer. Neste sentido, alguém é (ou não é) livre de
obstáculos para fazer (ou não) algo/de tornar-se (ou não) algo. À luz desta
noção, conclui-se que as vertentes da visão dualista da liberdade '
especialmente as de Constant e de Berlin ' devem ser lidas como (...) tomadas
de posição em relação à importância relativa das várias liberdades (p. 65).
Ora, a demarcação das concepções de liberdade decorre precisamente do diferente
peso valorativo atribuído às diversas liberdades.
O conceito triádico de liberdade de MacCallum aconselha, assim, que se reflicta
não tanto sobre a liberdade como sobre as liberdades particulares e o seu peso
relativo (p. 65). A relevância em falar de liberdades (e não da liberdade), no
horizonte ético-político, é ilustrada pela teoria da justiça como equidade de
Rawls ' no primeiro princípio da justiça a liberdade é traduzível em liberdades
básicas (de pensamento, de expressão, de reunião, o direito à integridade
pessoal, etc.), por um elenco de liberdades alcançável tanto empiricamente,
dado reflectirem a tradição do constitucionalismo moderno, como dedutivamente,
quando pensadas como necessárias à realização dos planos de vida dos
indivíduos, na prossecução das suas próprias concepções de bem.
Mantendo-se no trilho de Rawls, a análise do filósofo centra-se, então, nos
elementos do conceito de justiça social ' conceito que, tal como o de
liberdade, se diferencia das várias concepções. Começa por lembrar que o
conceito de justiça em geral é definido pela necessidade em encontrar uma
divisão adequada dos benefícios e encargos que resultam da vida em sociedade
(p. 66); uma divisão não arbitrária que preveja o tratamento análogo de casos
semelhantes e distinto de casos diferentes. Ao adjectivar-se a justiça de
social toma-se em consideração dois aspectos intuitivamente associados ao
conceito e ilustrados pelas ideias de igualdade de oportunidades e de
distribuição de rendimentos e riqueza, incorporadas no segundo princípio da
justiça como equidade. Na concepção de Rawls, a ideia de igualdade de
oportunidades assume dois sentidos distintos: 1) como princípio de carreiras
abertas às competências ' trata-se, neste sentido, de um princípio de não
discriminação perante a lei e que é relevante, consequentemente, para os
indivíduos historicamente discriminados (os pobres, as mulheres, as minorias
raciais, etc); e 2) como igualdade equitativa de oportunidades- substancial e
não meramente formal. Esta última acepção é mais exigente ' visa não só abolir
barreiras legais discriminatórias como garantir a quem nasce numa situação
desfavorável que não seja por isso preterido no ingresso às diferentes funções
e posições. Consequentemente, cabe ao Estado fornecer os meios necessários ao
acréscimo das expectativas dos indivíduos quando estes, por mero acaso, se
encontrem à partida numa situação social desfavorável. O Estado deve garantir,
por exemplo, o acesso dos indivíduos à educação e ao desenvolvimento cultural,
quer seja através de um sistema de ensino público, de um sistema criterioso de
subsidiação de escolas privadas, de cheques-educação, ou de qualquer outro
método.
Todavia, que uma sociedade seja equitativa do ponto de vista das oportunidades
não significa que não seja desigual ' até porque os talentos são
diferentemente remunerados pelo mercado e, por outro lado, a boa sorte de
alguns é por vezes acompanhada pelo azar de outros (p. 68). Na concepção em
análise, porque igualitária, isto constitui um problema; ou seja, a justiça
social comporta também princípios de redistribuição de rendimento e de riqueza.
Mas outras acepções de distribuição justa não reconhecem isto como um problema
' é o caso, por exemplo, da concepção de justiça histórica de Nozick, segundo a
qual a distribuição de rendimentos e riqueza se rege pelas regras do mercado
livre, sendo suficiente que estas acompanhem a igualdade de oportunidades como
não discriminação. Nesta óptica, os haveres entram no mundo vinculados às
pessoas, que têm direitos sobre eles e os transaccionam voluntariamente.
Uma acepção de distribuição justa mais estrutural e igualitária, que conceba a
sociedade como um sistema de cooperação entre iguais e não como mero somatório
de indivíduos ' ou senão mesmo como artefacto da linguagem ' procura regras
para uma redistribuição mais justa que a decorrente das transacções livres
entre os indivíduos. Neste caso, urge avaliar-se os critérios a utilizar em
vista da distribuição. O filósofo confronta-nos com duas alternativas: o
princípio da utilidade marginal decrescente e o princípio da diferença de
Rawls. Mas acaba por enveredar por esta opção, dado aquela, ao maximizar o bem-
estar social na sua totalidade, não ter por preocupação maior a justiça
distributiva mas o aumento da utilidade geral, do bem-estar agregado.
Distintamente, o segundo critério exige maximizar a situação daqueles que
estão em pior situação à partida (p. 69).
Tal como demonstrara que as diversas concepções de liberdade se articulam a um
mesmo conceito de liberdade, à liberdade enquanto relação triádica, o filósofo
mostra que qualquer uma das concepções de justiça social mencionadas ' liberal
igualitária (Rawls), liberal libertária (Nozick) e a alternativa utilitarista '
pode ser vista como uma aplicação de um mesmo conceito de justiça social. É sob
este intuito que enceta a sua análise sobre as conexões conceptuais e
valorativas entre o conceito de liberdade e o conceito de justiça social que,
como assinalado, integra uma especificação da igualdade de oportunidades (...)
e uma perspectiva distributiva de algum tipo (ibidem).
O valor da liberdade constitui a categoria que permite estabelecer a ligação
entre os dois conceitos ' distinto da liberdade em si mesma, o valor da
liberdade consiste na capacidade de um cidadão prosseguir os seus fins nos
quadros da estrutura de regras definida no sistema de liberdades iguais para
todos (p. 70). Isto significa que, conquanto a liberdade possa ser a mesma
para todos, como no caso de um Estado de direito democrático, o valor, ou
proveito, da liberdade difere ' será maior para quem possua mais riqueza ou
poder, por exemplo. Esta distinção permite contestar a ideia de que uma
liberdade sem um alto valor assegurado à partida não significa nada (ibidem) '
sustentada por aqueles que crêem que sem justiça social não existe liberdade.
Na perspectiva do filósofo, a existência da liberdade não depende do valor da
liberdade ' podemos ter a liberdade de viajar pelo mundo fora e não possuirmos
dinheiro para fazê-lo, mas isso não anula essa liberdade; dado que a qualquer
momento, uma vez que a nossa capacidade económica aumente, poderemos fazê-lo.
Não obstante, a ideia de que a liberdade depende do valor da liberdade é
sustentável no horizonte das liberdades políticas ' alguém que num Estado de
direito democrático não tenha recursos para se deslocar ao local de voto vê ser
nulificada a sua liberdade de votar. Como salienta o filósofo, as liberdades
políticas são direitos de tipo especial (p. 71), dado o seu efeito perder-se
quando tenham um valor baixo ou nulo ' daí questões como as da acessibilidade
de todos às assembleias eleitorais e da transparência do financiamento dos
partidos e candidaturas políticas serem indispensáveis à democracia. Também
aqui se denota a proximidade do autor a Rawls, à ideia de que uma sociedade
democrática deve garantir que as liberdades políticas sejam asseguradas pelo
seu justo valor ' este deve ser aproximadamente ou, no mínimo, suficientemente
igual para todos os cidadãos, de modo a todos terem uma mesma oportunidade de
ocupar cargos públicos e de influir no resultado das decisões políticas.
Retomando a questão da relação das liberdades em geral ' políticas e sociais '
com a justiça social e o valor da liberdade, o filósofo mostra como os casos da
liberdade de escolha de ocupação e das liberdades de expressão e de reunião
ilustram que se ninguém tem mais liberdade apenas porque há mais justiça
social, também é verdade que todos têm um maior valor das suas liberdades
quando a justiça social é efectiva (p. 71s). Da mesma forma que o valor da
liberdade de escolha de ocupação dos mais desfavorecidos à partida aumenta na
sequência da interferência do Estado em prol do acesso de todos à educação e
formação profissional, o valor da liberdade de expressão acresce com a
igualdade de oportunidades num sentido equitativo (p. 72) e o da liberdade de
reunião com a melhoria do nível socioeconómico dos indivíduos. Este ensaio
guia-nos, assim, pela elucidação conceptual que sonda o âmago da sociedade
contemporânea.
Ao terminar a leitura do ensaio Liberdade e Justiça Social, confronto-me com
duas questões que me parecem relevantes: 1) se a justiça social tem por
objectivo maximizar o valor da liberdade para os mais desfavorecidos da
sociedade, poderá ser compensatória para quem conduza a sua vida sem qualquer
empenho ou que seja apático ao sistema social? ; e 2) de que modo, nesta via de
reflexão do elo entre as liberdades e a justiça social, a renúncia à
participação política poderá constituir um embaraço social?