Para fazer um mar: Literatura moçambicana e oceano Índico
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A primeira parte do título deste ensaio ' citação do título de um livro de
poemas deVirgílio de Lemos (2001) ' pretende apontar tanto para o processo de
construção de um imaginário literário no domínio da literatura moçambicana,
quanto para o processo de configuração do Oceano Índico como unidade de
análise. Para refletir sobre diferentes estratégias de se fazer um mar,
pretendo, de facto, abordar alguns aspectos da construção do imaginário do
Oceano Índico na literatura moçambicana, à luz da mais ampla configuração do
Oceano Índico como domínio de reflexão teórica e área de estudos com
preocupações e características próprias. Sugiro, pois, encararmos a proposta de
se fazer um mar lançada por Virgílio de Lemos, como contraponto poético, e
performativo, da opção epistemológica de se abordar o Oceano Índico enquanto
arquivo (Vergé, 2003: 246) ' um arquivo cujos materiais apontariam para outras
leituras e mapeamentos das modernidades periféricas'.
Diversos são, de facto, os pontos de articulação entre os materiais' da
literatura moçambicana, e os elementos de continuidade e ruptura que têm vindo
a ser identificados para caracterizar o Oceano Índico como unidade de análise,
encarado como uma arena interregional de interação política, económica e
cultural (Bose, 1998: 26). A partir de um posicionamento ainda mais inovador,
Shanti Moorthy e Ashraf Jamal distanciam-se da noção de arena interregional
de Bose, propondo considerarmos o Índico não tanto um espaço de interação entre
entidades regionais distintas, quanto uma região em si, uma área, cuja
heterogeneidade e hibridez seriam factores a priori. Este posicionamento funda-
se também na intenção de se questionarem as noções cristalizadas de
áreaeregião, bem como os paradigmas territoriais e continentais privilegiados
pelos Area Studies tradicionais (Moorthy & Jamal, 2010). Como é sabido,
estas perspectivas encontram contrapontos importantes no domínio dos estudos
literários, cada vez mais marcados por abordagens que procuram tanto
ultrapassar o foco nacional dominante, quanto, no mínimo, articular este mesmo
foco a outros possíveis paradigmas. No caso particular dos objetos desta
reflexão ' literatura moçambicana e Oceano Índico ' uma tendência de mútua
inclusão abre caminho para articulações fecundas, tendo em conta, por um lado,
a insistência na inclusão de costas e arquipélagos africanos na arena do Oceano
Índico[1]; por outro, a mais recente abertura para um enquadramento índico' da
literatura moçambicana.[2]
Como observa Hofmeyr, a propósito do corpus de conhecimentos produzido sobre o
Oceano Índico, recurrent rubrics are trade, capital and labour; religion
(often linked to trade); pilgrimage; travel; war, colonial rule and anti-
colonial movements; and port towns, bem como as ilhas e os arquipélagos
(Hofmeyr, 2007: 8). De facto, ilhas e cidades portuárias são lugares
privilegiados a partir dos quais se pensar o oceano como rede, por
representarem a ideia do cruzamento, no duplo significado de hibridação e
travessia. Nesta perspectiva, um primeiro ponto de articulação entre literatura
moçambicana e Oceano Índico, útil para se evidenciarem convergências e
especificidades, é dado pela representação literária da Ilha de Moçambique.
Refiro-me a um amplo corpus de textos, principalmente poéticos, escritos ao
longo de um arco temporal que vai desde os finais dos anos 40 ' lembremos as
Cinco poesias do mar Índicopublicadas em 1947 por Orlando Mendes ' até à
contemporaneidade. Trata-se de textos escritos por autores diversos, entre os
quais Orlando Mendes, Virgílio de Lemos, Rui Knopfli, Glória de Sant'Anna, Luís
Carlos Patraquim, Eduardo White e, mais recentemente, Sangare Okapi, com a
publicação do livro de poemas intitulado Mesmos Barcos ou Poemas de Revisitação
do Corpo (2007). Esboçarei a seguir alguns aspectos destas representações,
tendo em conta a variedade de escritores que se têm debruçado sobre este lugar,
mas sobretudo os diferentes significados atribuídos à Ilha.
Em primeiro lugar, quer durante a dominação colonial, mas sobretudo depois da
independência, a representação poética da Ilha de Moçambique tem de se
confrontar com um aspecto fundamental, constitutivo do imaginário relativo à
Ilha: o seu papel de entreposto de rotas comerciais, culturais e religiosas,
antes e depois da chegada dos portugueses. Este papel contribuiu para que se
originassem representações distintas, e por vezes opostas da Ilha, que foram
posteriormente apropriadas e recriadas por discursos diferentes. Por um lado, a
Ilha como lupanar da história (Sopa & Saúte, 1992: 53), sítio infernal de
escravatura, e de submissão às diferentes dominações que por ali passaram; por
outro lado, nas antípodas, a imagem de um lugar exemplar de convivência
pacífica entre povos e culturas, emblemático daquele mundo que o português
criou teorizado por Gilberto Freyre ' imagem, essa, celebrada durante a
passagem do sociólogo brasileiro por Moçambique e pela Ilha, no âmbito da mais
longa viagem pelas colónias portuguesas, relatada em Aventura e Rotina (1953).
Tais representações fazem da memória da Ilha uma herança problemática,
determinando o papel controverso que este lugar ocupa no imaginário nacional
moçambicano (Chaves, 2002) ainda na contemporaneidade. É, pois, com estas
imagens da Ilha, que as representações poéticas entram ora em aberta ruptura,
ora em processos de negociação.
Entre elas, uma das mais marcantes é dada pelo livro de Rui Knopfli, A Ilha de
Próspero, publicado em 1972 (Knopfli, 1989), onde os desdobramentos dramáticos
da voz poética denunciam as relações assimétricas que, durante o colonialismo,
estruturaram o espaço político, social e urbano da ilha. O olhar de Knopfli
aponta, a meu ver, menos para uma celebração eufórica da mestiçagem[3], do que
para a instabilidade / interactividade das representações identitárias, como
tentarei demostrar brevemente. De facto, a Ilha de Próspero configura-se como
zona de contacto (Pratt, 1992) onde as noções de autenticidade e pertença são
constantemente questionadas pelas estratégias de negociação das identidades que
se dão no espaço insular poeticamente recriado. Se o título do livro (rara e
singular apropriação da Tempestadede Shakespeare em língua portuguesa) aponta
para uma inequívoca relação de posse'A Ilha dePróspero ' por outro lado, a
articulação dos poemas traz uma multiplicidade de discursos que estilhaçam e
desestabilizam o discurso da autoridade colonial, sem contudo negar a violência
epistémica que lhe é inerente. Um dos recursos utilizados por Knopfli é a
subversão da lógica das relações estruturais entre os elementos textuais, como,
por exemplo, a clivagem entre título e texto, complexificada também pelos
contrapontos entre poemas e fotografias. De facto, as fotografias integram
activamente a construção da representação da Ilha e seus múltiplos sentidos,
reforçando o efeito de desestabilização de um olhar monolítico.
No poema Terraço da Misericórdia, por exemplo, se o título e a fotografia
convocam a arquitectura católica da Ilha, o ritmo espacial[4] do poema desloca
o edifício para o pano de fundo, colocando em primeiro plano a sonoridade de
outras religiões, como se pode ler nos versos seguintes: As sombras salmodiam
tristemente / versículos do Corão; Os lábios ressequidos do velho patiah
respondem ciciando mediúnicos o Gayatri (Knopfli, 1989: 53). Estas
sonoridades, cultural e religiosamente outras, são representadas em sua
subalternidade ' trata-se, de facto, de sombras que salmodiam tristemente,
ciciando, através de lábios ressequidos. Por outro lado, elas destacam no
pano de fundo branco da igreja, impondo-se como presença humana sobre a
espacialização do poder colonial. Estratégias análogas de inscrição de outras
narrativas, desestabilizadoras da hegemonia colonial ' concretizada pela
paisagem arquitectónica da Ilha ' informam outros poemas, como é o caso de
Mesquita grande:
Neste raso Olimpo argamassado em febre / e coral, o Deus maior sou
eu. Por mais / que as pedras, os muros e as palavras afirmem /outra
coisa, por mais que me abram o corpo / em forma de cruz e me submetam
a árida / voz às doces inflexões do cantochão latino,/por mais que a
vontade de pequenos deuses / pálidos e fulvos talhe em profusas
lápides / o contrário e a sua persistência os tenha / por Senhores, o
sangue que impele estas veias / é o meu. Pórticos, frontarias, o
metal / das armas e o Poder exibem na tua sigla / a arrogância do
conquistador. (Knopfli, 1989: 61)
Longe de devolverem uma imagem celebratória de mestiçagem e pacífica
convivência, os poemas de Rui Knopfli traçam um roteiro crítico no interior de
um lugar marcado por desigualdades e conflitos, repercorrendo também a
estrutura bipartida da Ilha ' característica das cidades coloniais ' dividida
entre a cidade de pedra e cal, e a cidade de macuti. No poema No Crematório
Baneane, o cemitério localizado no bairro da Ponta da Ilha transforma-se num
lugar de meditação em torno da existência de uma verdade universal a partir de
um ponto de vista outro:
Brahman e Atman, eis dois nomes apontando / à mesma verdade, porque
outro e um / a mesma coisa são. A Verdade Universal / no primeiro, no
segundo a que cada um de nós transporta dentro de si. [ ] /
Nachiketas, o jovem, repete a pergunta/milenar: Na morte de um homem
/ dizem uns, ele ée outros, ele não é./ Onde está a verdade?
(Knopfli, 1989: 57)
Este tipo de destaque dado à cidade de macuti é revelador da divergência que A
Ilha de Prósperomarca em relação à narrativa dominante que celebrava a Ilha
como exemplo acabado de lusotropicalismo, e que, na contemporaneidade, se
renova, de certo modo, no apelo para a recuperação do património arquitectónico
de origem portuguesa. Segundo Cabaço, a rejeição destas narrativas está na base
da generalizada indiferença perante a degradação deste património, localizado
principalmente na cidade de pedra e cal, pelo hiato que existe entre o
significado atribuído à Ilha, por tudo aqui-lo que representa a cidade de
pedra e cal, e a interpretação dada por quem ha-bita a cidade de macuti
(Cabaço, 2002: 55).
Da cidade de pedra e cal, A Ilha de Prósperoregista também o ponto de vista de
quem a foi construindo, no poema Os Pedreiros de Diu, onde um sujeito
colectivo anónimo, cujo referente real é a mão-de-obra indiana enviada da
cidade de Diu para a colónia de Moçambique, evoca o trauma da travessia do
oceano:
Céu e mar, mar e céu, dia após dia,/ sem outro deleite que a lenta /
metamorfose das nuvens, desmesurados / carcinomas devorando o azul do
espaço./ Salobra a água, a ração mínima / a alguns (os mais felizes?)
leva-os / a febre e a disenteria, engole-os / o verde sombrio do
oceano sem fundo. (Knopfli, 1989: 83)
A Ilha ' supostamente de Próspero ' é assim representada enquanto espaço de
interação e apropriação conflituosa entre imaginários e discursos que a
história e a geografia colocaram em contacto.
Por seu lado, o poeta natural da Ilha do Ibo, Virgílio de Lemos, figura-chave
do ambiente cultural moçambicano das décadas de 50 e 60, partilha do tom
celebratório da mestiçagem, dando-lhe porém outras conotações. Ao lembrar a
viagem feita com Gilberto Freire à Ilha de Moçambique, em depoimento posterior,
Lemos assim descreve as mulheres da Ilha: descendentes de persas,
zanzibarenses, hindus, luso-goesas, swhaili-makwas, comorianas elas próprias
triplamente mestiças, arabo-sudanesas, etíopes, indo-chinesas... (Lemos, 1992:
157). Se a celebração da miscigenação e da mestiçagem, materializadas no corpo
feminino, ecoa as descrições de Gilberto Freyre em Aventura e Rotina, por outro
lado ao enumerar elementos diversos, Lemos salienta outros fenómenos e
processos de mistura que não passaram pela plasticidade do povo português.
Nesta perspectiva, e tal como afirmou Luís Carlos Patraquim no prefácio ao já
referido Para fazer um mar,a escrita de Virgílio de Lemos situa-se no Oceano
Índico[5], na medida em que elege os arquipélagos moçambicanos como lugares
onde provincianizar a Europa', renunciar a qualquer noção de autenticidade e
pureza e ressaltar a multiplicidade de matrizes, relações e trocas que marcaram
estes espaços: kifulo-me ouamisome / iboizo-me e / sendo mil sou eu / no
império dos sentidos (Lemos, 1999: 32).
Julgo que o trabalho poético de autores como Knopfli e Virgílio de Lemos, e
suas representações do Índico, ressaltam à partida a complexidade da tarefa de
se pensar o Oceano Índico a partir de Moçambique e Moçambique a partir do
Índico. Se de acordo com Moorthy e Jamal (2010), a hibridez é considerada como
característica a priorida constituição da região do Oceano Índico, é preciso
salientar, pensando a partir de Moçambique, e tal como foi defendido por
reflexões influentes, que no contexto da dominação colonial portuguesa, via
ideologia lusotropicalista, a mestiçagem torna-se uma ferramenta do império, um
argumento de legitimação da missão civilizadora, uma prática de assimilação, e
uma narrativa da identidade nacional portuguesa (Almeida, 2000; Santos, 2002).
Trata-se de uma ambivalência de fundo que, a meu ver, perpassa as
representações em objecto, possibilitando múltiplas leituras e interpretações.
[6]
Como estes exemplos demostram, a representação da Ilha de Moçambique na poesia
moçambicana se constrói na encruzilhada de retóricas e discursos diversos; se
por um lado se trata de questionar ' ou negociar com ' o discurso colonial
baseado na ideologia lusotropicalista, por outro lado, sobretudo a seguir à
independência política de Moçambique, a representação da Ilha e do Índico
funcionam como estratégia de oposição à cristalização de uma moçambicanidade de
sentido único.
A conhecida declaração de Samora Machel, segundo a qual era preciso que
morresse a tribo para que nascesse a nação, é associada, em leituras e análises
contemporâneas, à radicalização do discurso e da prática política pós-III
Congresso da Frelimo (1977) na luta contra o tribalismo' e as divisões, o que
originou um apagamento generalizado e sistemático da expressão da diferença, e
de outras narrativas identitárias (Khosa, 2013; Chiziane, 2013).
Seguindo uma lógica análoga, o passado colonial, bem como os outros possíveis
passados, igualmente estruturadores de relações identitárias no espaço
moçambicano, foram objecto de rasura, em prol de uma visão segundo a qual a
nação moçambicana e a sua história eram produtos exclusivos da luta de
libertação, que se tornou a única memória consentida para os moçambicanos
(Cabaço, 2009; Meneses, 2012). Este processo pode ser encarado também à luz da
análise geral de Achille Mbembe das correntes de pensamento africanas de cariz
democrático' e progressista'. De acordo com Mbembe, para esta corrente de
pensamento, la manipulation de la rhétorique de l'autonomie, de la résistance
et de l'émancipation sert de critère unique de légitimation du discours
africain authentique (2000 : 18).
O conceito de moçambicanidade tal como vinha sendo interpretado a partir da
releitura a posteriori do processo de libertação, articulava-se à dicotomização
acentuada entre zonas libertadas e zonas do inimigo, entendidas não apenas
como espaços militares, mas também investidas de sentido político e simbólico
(Meneses, 2012: 95-96). O acesso ao espaço da revolução identificava-se com a
assunção do projecto da moçambicanidade, que por sua vez, nas palavras de
Cabaço, representava um segundo nascimento, implicando a ideia de uma ruptura
radical das estruturas relacionais tanto de cariz colonial quanto tradicional
(Cabaço, 2007:401-2). Tal forma de entender a moçambicanidade traduziu-se numa
radicalização do conceito de unidade nacional, a qual se encontraria ameaçada
por qualquer instância de diferença. Nesta perspectiva, as diferenças culturais
que desde sempre marcaram Moçambique vinham a ser percepcionadas como factores
centrífugos, sendo portanto consideradas como potenciais divisões. É evidente
que esta interpretação da noção de moçambicanidade se traduz na instituição de
uma fronteira capaz de delimitar e proteger o que é tido como nacional, sendo o
nacional identificado com a luta e o movimento de libertação. A referida
fronteira entre zonas libertadas e zonas do inimigo acaba por operar a nível
identitário produzindo as suas gramáticas de pertença, e as suas lógicas de
inclusão e exclusão, geradoras de novos centros e novos espaços periféricos.
Estes factores são cruciais, a meu ver, para um entendimento mais amplo da
ruptura operada pelo aparecimento da escrita de Luís Carlos Patraquim, Mia
Couto e, posteriormente, do grupo reunido à volta da revista Charrua, na medida
em que a dimensão estética desta ruptura, amplamente salientada pela crítica
(Mendonça, 2008; Leite, 2003), se liga a posicionamentos distintos frente aos
discursos prescritivos sobre o que é a identidade moçambicana, e o que deveria
ser a literatura que a representa.[7] Por outras palavras, a ruptura destas
escritas não se traduz apenas na afirmação de distintas concepções da
literariedade e do valor estético, como também, num deslocamento das fronteiras
identitárias impostas por uma moçambicanidade de sentido único, de certo modo
ainda moldada pela ideologia revolucionária.
Nesta perspectiva, a representação do Índico e da Ilha de Moçambique adquirem
os contornos de um processo de revisão da versão da história construída pelo
discurso oficial da moçambicanidade, sendo a Ilha de Moçambique um dos lugares
emblemáticos da multiplicidade de narrativas do passado e do presente. Não será
uma casualidade, então, a clara alusão ao Oceano Índico que marca o primeiro
livro de poemas de Luís Carlos Patraquim, publicado com o título de Monção em
1980 ' o mesmo ano da publicação do terceiro volume de Poesia de Combate da
Frelimo. De acordo com Pearson, as monções são elementos que participam da
estrutura profunda da constituição do Oceano Índico (2003), pelo que a opção de
Patraquim e a sua proposta estética indicam assumir a dimensão índica como eixo
estruturador da reflexão poético-identitária, sendo a Ilha de Moçambique e o
Oceano Índico escolhidos como lugares' matriciais: Porque ao princípio era o
mar e a Ilha. ( ) Nomes sobre nomes. Língua de línguas em Macua matriciadas
(1992: 42). Trata-se, porém, de lugares de uma origem ficcionada que questionam
o laço entre sangue e território tradicionalmente invocado nas definições
identitárias, apelando mais para la possibilité d'ancestralités multiplex
(Mbembe, 2000: 29) do que para uma origem de sentido único, ou para uma
hibridez problemática. Na escrita de Patraquim, a Ilha é o lugar escolhido a
partir do qual interrogar as narrativas históricas e identitárias produzidas
pelos poderes políticos, numa tentativa de fuga à incorporação da identidade
individual operada pela ideologia dominante: Não me digam nada. Esqueçam-me,
anónimo, sem história, aqui peixe emerso, cardume denso fazendo-me no dia-a-dia
imperativo dos meus plânctons inglórios. ( ) Porque aqui me esqueço do que me
querem. Da história que me fizeram e fui (1992: 43-45).
Na crónica Mapeamento Onírico para a Descoberta da Rua do Fogo' Patraquim
evoca o património de lendas e cantares da Ilha de Moçambique, ficcionando um
itinerário à procura da lendária orua ti fogo, mencionada num cantar popular em
língua emakua. A versão livre do cantar em língua portuguesa, é mais um exemplo
da representação da Ilha como zona de contacto, na medida em que a Rua do Fogo
[8], sendo elemento de uma toponomástica popular e subalterna, pois nunca
completamente representável na nomeação oficial, se trasforma num lugar de
negociação, de oblíqua resistência e agenciamento na zona de contacto:
De longe esta ilha parece pequena
De longe esta Ilha parece pequena /Esta Ilha é grande ./Tem longa
história desde os habitantes aos seus monumentos / Não nos é possível
contar-vos tudo quanto temos / Pois há outros que querem também
falar-vos /Se ainda quereis ouvir algos nossos / ficais muito tempo
nesta Ilha./ Assim mostrar-vos-iam a rua de fogo / onde vós nunca
chegastes. (Sopa & Saúte, 1992: 49)
O deslocamento das fronteiras identitárias contido na proposta poética de
Patraquim é partilhado por Eduardo White, que se inscreve nesta tradição
poética índica com livros como Amar sobre o Índico(1984), mas sobretudo com Os
Materiais do Amor(1996) e Janela para Oriente(1998), onde o sujeito da
enunciação poética constrói múltiplas topografias do Índico que podemos ler à
luz de outra noção central nos estudos sobre o Oceano Índico ' a noção de
ressaca. Se Pearson utiliza a noção e a imagem da ressaca para conceptualizar a
interdependência entre mar e terra na constituição das sociedades costeiras
(2006), na poesia de Eduardo White esta noção adquire múltiplos alcances, na
medida em que a deslocação poética e identitária para o Índico articula um
duplo movimento de incorporação de outros imaginários no interior das
fronteiras nacionais, e de projecção da moçambicanidade para fora destas mesmas
fronteiras. Ou, por outras palavras, a interdependência identitária que a
poesia estabelece entre o espaço nacional e o espaço do Índico.
Nas ondas deste duplo movimento, retomarei duas afirmações do historiador
Sugata Bose, que me parecem cruciais para uma síntese dos tópicos que abordei.
A primeira diz respeito à profunda ligação que existe entre a história do
Oceano Índico enquanto arena inter-regional e a sua poesia, ligação esta que,
na abordagem de Bose, passa pelo desenvolvimento dos diversos nacionalismos do
Índico, e da configuração de universalismos alternativos como traços
distintivos de uma poética polifónica, transnacional e translinguística. Um dos
caminhos para pensarmos esta ligação noutra escala, a partir de Moçambique e a
partir da ruptura epistémica que se vai construindo ao longo da primeira metade
do século XX e que desembocará num anticolonialismo plurifacetado e marcado por
contradições e conflitos, é o caminho de uma certa imaginação profética da
nação, ora eufórica, ora disfórica, levada a cabo pela poesia moçambicana que
convoca a Ilha de Moçambique como lugar de articulação de um discurso
identitário complexo. Trata-se, portanto, de um dos itinerários que poderão
confluir na configuração das poéticas do Índico.
A segunda afirmação de Bose diz respeito à necessidade de um deslocamento
epistemológico fundamental para a conceptualização do Oceano Índico como
unidade de análise, ou seja, a renúncia a se fixarem os limites espaciais desta
arena inter-regional, já que margens e fronteiras deveriam ser pensadas menos
como noções geográficas do que como categorias relacionais.
As afirmações de Bose são cruciais para equacionarmos o lugar geográfico e
epistémico que abordei, na medida em que a representação da Ilha de Moçambique
e do Oceano Índico na poesia moçambicana não se reduz nem a um motivo
literário, nem a uma configuração metonímica da nação ou do Índico, mas ao
funcionar como sinédoque articulada de ambos estes espaços, configura uma
proposta que assume a dimensão relacional, a transnacionalidade e a indicidade
como elementos constitutivos de uma moçambicanidade' não essencialista, menos
fundada na integração de elementos identitários distintos do que na constante
mobilidade das relações entre estes elementos. Significante, como já referi, de
uma zona de contacto. Por outras palavras, para além de funcionar como
referência geográfica e cultural, e como componente identitária reinventada
pelo imaginário literário, o Oceano Índico, tal como vem sendo conceptualizado
pela análise teórica, encontra na representação literária um contraponto que o
configura como paradigma epistemológico de alcance mais amplo, suscetível de
possibilitar outra equação das relações entre espaço e identidade, bem como dos
conceitos de nação, identidade nacional e, inclusive, de literatura nacional.
Relativamente à este último conceito e tópico, o corpus que abordei contém
sinais evidentes que solicitam propostas metodológicas capazes de abrir caminho
para se pensar tanto a literatura moçambicana a partir do Índico, como para se
pensar as literaturas do Índico também a partir de Moçambique e da sua
literatura. Sinais estes, que a publicação de narrativas de ficção, como Terra
Sonâmbula (1992) e O Outro Pé da Sereia(2007) de Mia Couto, Índicos Indícios
(2005) de João Paulo Borges Coelho, entre outras, vêm declinar a partir de
outras visões e linguagens. De modo especial, se os Índicos Indícios vêm
desafiar um argumento comum de que apenas o Norte de Moçambique se inscreve nos
circuitos do Índico, por outro lado uma questão que permanece em aberto diz
respeito ao facto de o Norte, e a sua representação, continuarem a funcionar
como elemento e registo de um exótico interno (Martins, 2009), sendo, de facto,
o Norte menos lugar de enunciação do que lugar enunciado, lido e pensado na
maioria das vezes a partir de outros lugares.
Uma outra questão diz respeito às ferramentas concretas de construção quer de
um imaginário, quer de um paradigma literário do Índico a partir de Moçambique.
Ou seja, por um lado, é preciso alargar a análise para a multiplicidade de
recursos que a poesia e outras formas de escrita literária utilizam para
fazer' o Índico. Por outro lado, cabe-nos pensar em ferramentas críticas
simultaneamente transversais e situadas, que favoreçam uma dimensão
translinguística, no intuito de nós também, leitores e estudiosos destas
literaturas, fazermos' este mar.
Tentando articular estas perspectivas, uma hipótese de pesquisa em ambas as
direções surge da percepção do evidente e, até óbvio, recurso, na poesia
moçambicana, à dimensão material das culturas do Índico. Objectos, especiarias,
essências, panos, joias, pedras preciosas, madeiras e embarcações, bem como os
lugares de produção, circulação e troca, tais como portos, bazares, feiras, ou
lojas, marcam a textura índica da poesia moçambicana, dando lugar, por exemplo,
a poemas que reinventam receitas (Leite, 2006), ou que através de procedimentos
de acumulação de ingredientes' culturais e identitários distintos, conectam a
culinária, o consumo de alimentos e bebidas, o uso de objectos do quotidiano
que remetem para os antigos e modernos circuitos do Indico, à representação da
identidade, como no caso da poesia de Eduardo White. Penso também em poemas
construídos em torno de léxicos técnicos da navegação ' a caravela e o pangaio
' da ourivesaria, da produção de têxteis, evocando sistemas de conhecimentos
distintos, que entram em conflito ou em políticas de colaboração,
características das zonas de contacto. No contexto da enunciação poética,
trata-se, a meu ver, de um recurso suscetível de entrar em relações ora de
rutura, ora de negociação com arquivos literários, intelectuais e
epistemológicos diversos, tais como o arquivo colonial e as tradições dos
saberes orientalistas e africanistas; as tradições poéticas modernistas e pós-
modernas da colecção, do catálogo ou até do museu; as poéticas do quotidiano e
das formas concretas; a escrita etnográfica, ou ainda as poéticas globais da
celebração do exótico e da diferença.
Por outro lado, elementos materiais como a comida, ou outros tipos de objectos,
funcionam como suportes concretos de projecções e representações de cariz
social, cultural e identitário (Meneses, 2009), configurando, ao mesmo tempo,
geografias e circuitos globais. A este propósito, como afirma Akhil Gupta: a
gastronomia proporciona-nos uma perspectiva íntima sobre o modo como as pessoas
constroem hierarquias de classe, identidades étnicas, diferenças de género,
fronteiras religiosas e distinções entre o sagrado e o profano (Gupta, 2006:
212). Para Gupta, a circulação das especiarias e de outras mercadorias, e
sobretudo, as constantes negociações identitárias que dela resultaram constroem
a paisagem de uma globalização periférica ainda por contar. No caso de
Moçambique, Meneses insiste na importância da mobilização e activação da
memória sensorial como forma criativa de negociar a relação entre passado e
presente e de fornecer representações diversificadas do país (Meneses, 2009).
Neste sentido, a dimensão material da cultura conecta objectos, meios e métodos
de produção e consumo e as configurações e reconfigurações das identidades: as
trocas e os consumos nas suas dimensões materiais e simbólicas e as relações
sociais que lhe estão subjacentes. Se, como afirma Miguel Vale de Almeida, o
corpo é uma interface privilegiada de natureza e sociedade (Almeida, 2004), a
cultura material, por sua vez, é suscetível de funcionar como interface
múltipla entre corpo, natureza e sociedade, veiculando as mútuas transformações
e incorporações.
Será possível mapear a representação literária das multifacetadas culturas
materiais do Índico como forma de apreendermos o modo como a literatura
reinventa as negociações identitárias, tornando por vezes os lugares da
produção ou os próprios actos de consumo como dimensões de criatividade
(Miller, 2007)? Penso, por exemplo, no conto O pano encantado de João Paulo
Borges Coelho (2005), onde a alfaiataria, lugar de conflito entre distintas
vivências da religião islâmica, se torna também um lugar de criação artística e
de agenciamento, em que a narrativa subalterna da personagem de Jamal será
inscrita apenas no objecto, ou seja, no pano encantado, sugerindo a ambiguidade
das fronteiras entre arte e técnica, entre material e imaterial. Poderão as
várias declinações da materialidade da cultura tornar-se numa ferramenta
crítica situada e transversal para a comparação das literaturas do Índico?
Uma das possíveis objecções que poderão surgir em relação a este tipo de
abordagem, sobretudo a partir de posicionamentos dos estudos literários
africanos tem a ver com o argumento comum e fundamentado de que as literaturas
africanas sempre sofreram de uma leitura de cariz antropológico, em detrimento
dos aspectos estéticos, consideradas como produtos de informantes nativos
privilegiados. Será uma leitura orientada pela noção de cultura material uma
forma renovada de ler o antropológico no poético, ou não será pelo contrário,
uma forma possível de extrair o poético do antropológico?