O 25 de abril na Galiza dos anos setenta: impactos e consequências
O objetivo deste contributo é sintetizar o impacto da Revolução dos Cravos
(nome utilizado na historiografia para designar o processo revolucionário
iniciado em Lisboa na madrugada de 25 de abril de 1974) nos grupos com maior
centralidade dentre aqueles ativos nos campos cultural e político da Galiza em
meados da década de setenta do século XX. Para isto foi levantada a informação
específica gerada pelo projeto FISEMPOGA (sintetizada fundamentalmente em
Rodríguez Prado 2004, Torres Feijó 2007 e Samartim 2004 e 2010) e foram
realizadas as correspondentes análises qualitativas destinadas a fixar tanto os
discursos como as práticas com que esses grupos estabelecem no relacionamento
galego-português a raiz do processo revolucionário iniciado em 1974 na
República Portuguesa.
De maneira complementar, aproximamo-nos dos efeitos do 25 de abril na opinião
pública da Galiza através de uma sondagem realizada no jornal Faro de Vigo, de
onde são analisadas quantitativa e qualitativamente (com o recurso a gráficos e
a nuvens de palavras) as informações relativas a Portugal presentes entre 26 de
abril e 26 de julho de 1974 nas primeiras páginas do principal diário do sul da
Galiza nesta altura.
1. O estado de campo na Galiza: grupos e posições
Para apresentarmos sumariamente os principais grupos ativos nos campos da
cultura e da política da Galiza em meados de setenta verificou-se útil
(Samartim 2010) arrumar os agentes e organizações aí presentes em função das
suas tomadas de posição em relação ao processo de mudança política em curso na
altura. Esta mudança nas condições de possibilidade presentes no campo
político, quer na Galiza quer no conjunto do Reino da Espanha, resolver-se-á
finalmente com a passagem da ditadura centralista do General Francisco Franco
(falecido em 20 de novembro de 1975) para uma monarquia parlamentar consagrada
pela constituição plebiscitada em 6 de dezembro de 1978, a qual fixa como
regime de governo a democracia representativa e estabelece uma maior
descentralização político-administrativa por meio da (con)cessão de autonomia a
diversas comunidades, entre elas a Galiza.
Assim, é possível estabelecer dois eixos básicos em relação aos quais se
posicionam os grupos atuantes na Galiza da transição, o da Resiliência e o da
Resistência (para a análise das caraterísticas, as estratégias e as posições do
conjunto dos grupos presentes no SCG no período veja-se Samartim, 2010: 224-
262). A centralidade no primeiro destes espaços, relativamente autónomo no
campo cultural e onde se verifica um maior grau de adaptação às mudanças
provenientes do campo político, está ocupada por Galaxia. Este grupo toma seu
nome da editora fundada em 1950 pelos principais agentes procedentes da órbita
do Partido Galeguista que ficam no interior do País após a sua derrota na
Guerra da Espanha (1936-1939). Formado nos anos setenta tanto por agentes
próximos a essa organização autonomista na década de trinta do século XX como
por pessoas mais jovens que também apostam em circunscrever as suas ações aos
campos culturais, este grupo acumula e põe em valor os capitais procedentes do
galeguismo histórico (isto é, do conjunto do movimento de reivindicação da
identidade diferenciada da Galiza, ativo desde meados do século XIX), trabalha
virado para o controlo de instituições oficiais como a Real Academia Gallega
(hoje Real Academia Galega, RAG) e não arrisca no instável campo político de
setenta os capitais acumulados nas décadas em que praticamente monopoliza o
campo literário galego (até esse momento priorizado pelos próprios agentes
entre o conjunto dos campos culturais galegos).
Das várias escolhas possíveis na transição política em curso no período em foco
na Galiza, Galaxia posiciona-se do lado da reforma do sistema político face à
rutura democrática com o regime franquista, pela recuperação da autonomia
reconhecida para a Galiza pola República Espanhola em 1936 e não pela defesa do
direito de autodeterminação e o início de um processo constituinte de âmbito
galego (em ambos os casos em oposição ao programa defendido pelo nacionalismo
galego de esquerda na altura). Já em relação com a função e a posição do
principal marcador identitário a operar no conjunto do SCG (a língua da
Galiza), distinguimos no programa de Galaxia a defesa do caráter cooficial de
galego e castelhano numa futura Galiza autónoma, e uns certos usos e discursos
que, a partir da aceitação da unidade linguística galego-portuguesa, contemplam
uma difusa mas progressiva aproximação do estándar galego do seu equivalente
português.
Por seu lado, no espaço caraterizado pela resistência, pólo de maior
heteronomia no campo cultural e onde as tomadas de posição estão condicionadas
pela oposição às medidas reformistas procedentes do campo político, a
centralidade está ocupada pela Unión do Pobo Galego (atualmente Unión do Povo
Galego, UPG), organização político-partidária autodefinida como comunista e
patriótica que assume o marxismo e o anticolonialismo, e estabelece desde a sua
fundação em 1964 uma extensa rede de jovens agentes e de múltiplas organizações
com muita presença e atividade em âmbitos claramente referenciados no trabalho
político, tais como o sindical, o associativo, o vizinhal, etc.
Confrontada com as mesmas tensões apontadas para o caso de Galaxia, a UPG
aposta claramente pela rutura democrática com o franquismo, opõe-se à concessão
da autonomia e defende o direito ao exercício da autodeterminação da nação
galega. Já no que se refere à questão linguística, a UPG sustenta a
oficialidade exclusiva do galego na Galiza e, na base de uma difusa aceitação
da unidade linguística galego-portuguesa como um facto filológico sem utilidade
política normalizadora, centra a sua atenção na extensão dos usos do galego em
detrimento da qualidade desses usos, atualizando um modelo popularizante que
naturaliza materiais coincidentes com o castelhano e afasta o galego do modelo
utilizado pelo português (Samartim 2004).
1.1. O 25 de abril na resiliência
Quer para Galaxia quer para o conjunto dos grupos localizados no espaço da
resiliência, Portugal funciona como histórico referente de reintegração
(Beramendi 1991), isto é, como o sistema cultural com o qual o galego
compartilha normas, materiais e elementos definidores de diverso tipo e
funcionalidade (língua, cultura popular, saudade, lirismo, organização
territorial, ...); um sistema com que compartilhou um período histórico
considerado de esplendor (e do qual a lírica galaico-portuguesa funciona como
metonímia); e uma comunidade com a qual integrou uma mesma entidade (proto-
)nacional no passado e com a qual aspira a se reencontrar no futuro. Com esta
referencialidade a funcionar neste espaço sistémico em maior medida adaptativo
e que tem na cultura em geral e na literatura em particular o seu âmbito
prioritário de atuação, os agentes de Galaxia mantêm relações e têm entre os
seus homólogos lusos destacadas figuras dos campos literário e académico de
Portugal (Manuel Rodrigues Lapa, Jacinto de Prado Coelho, Hernâni Cidade,
etc.), importam através das suas plataformas (nomeadamente da revista Grial,
editada pelo grupo desde 1963) materiais procedentes do cânone fixo da
literatura portuguesa (Luís de Camões, Antero de Quental, Camilo Castelo
Branco, Teixeira de Pascoaes, ...) e rejeitam a transferência de qualquer
elemento enquadrável no chamado social-realismo, conjunto repertorial central
desde a década de sessenta no subcampo da poesia e, em geral, no conjunto do
espaço em maior medida politizado e heterónomo da resistência (Samartim, 2010:
359 e ss.).
Neste quadro geral de relacionamento, o 25 de abril produz neste pólo da
resiliência três impactos fundamentais: o estancamento no relacionamento
galego-português articulado neste espaço, a crescente desconexão com os agentes
lusos do galeguismo e uma maior presença do reintegracionismo no sistema
cultural português (Torres Feijó 2007).[2] Estes três impactos devem ser
explicados tanto em função das caraterísticas definitórias do grupo (caráter
pactuante dentro do âmbito cultural com maior grau de institucionalização e
afastamento da instabilidade política) como da evolução da sua política de
alianças no conjunto do período em foco.
Assim, Galaxia prioriza na altura o pacto com o Instituto de la Lengua Gallega
(hoje Instituto da Lingua Galega, ILG), um organismo criado no seio da USC em
1971 com objetivos específicos dentro do campo da codificação linguística. Esta
instituição oficial é formada na sua maioria por agentes jovens do galeguismo
da esquerda que iniciam a sua carreira universitária numa área em clara
expansão (por causa da previsível incorporação da língua da Galiza no sistema
de ensino obrigatório depois da aprovação em 1971 da Ley General de Educación)
e ocupa desde a sua fundação posições centrais no conjunto do SCG graças à
acumulação de capitais procedentes do campo do ensino (superior). Na sua
intervenção, o ILG atualiza critérios codificadores (como a abstração da fala
popular e, em segundo lugar, a tradição literária do galego moderno) até esse
momento relativamente secundarizados na tradição galeguista, de que Galaxia se
proclama herdeira. Esses parâmetros codificadores de que agora se aproxima
Galaxia na sua estratégia de confluência com o ILG (produzida em 1982 com a
aprovação conjunta pola RAG e o ILG das Normas Ortográficas e Morfolóxicas do
Idioma Galegooficializadas de facto polo governo autonómico galego no ano
seguinte) afastam o grupo das propostas que tomam como ponto de partida a ideia
da unidade linguística galego-portuguesa, defendidas com intensidade variável
até essa altura tanto por Galaxia como polo galeguismo historicamente
considerado e que continuam a ser sustentadas, explicitamente, por agentes
galeguistas portugueses como Manuel Rodrigues Lapa (1973).
Esta questão, somada às dinâmicas políticas nos dous países (o incerto final da
ditadura no Estado Espanhol e o início da revolução em Portugal) e às próprias
lógicas de ação de Galaxia, que não arrisca a sua posição nesses períodos de
instabilidade política, juntamente também com a falta de estruturas
institucionais sólidas de relacionamento com os galeguistas portugueses,
explicam o aludido estancamento das relações e a referida desconexão galego-
portuguesa neste espaço adaptativo.
Por seu lado, esses galeguistas portugueses reposicionam-se tanto perante a
estratégia pactuante de Galaxia no interior do SCG como face ao início do
processo revolucionário em Portugal, e promovem com maior intensidade nas
plataformas em que têm presença (Seara Novaou a Associação Portuguesa de
Escritores [APE], no caso de Lapa) aqueles agentes galegos que defendem com
maior frontalidade a identidade linguística galego-portuguesa, mas sem deixar
de promover também figuras centrais do cânone da literatura galega da altura,
tal como evidencia que Lapa apresente em inícios de 1975 para a integração na
APE Ramón Otero Pedrayo e Álvaro Cunqueiro – que se tinham declarado contrários
à sua proposta de integração galego-portuguesa de 1973 –, juntamente com o
reintegracionista Guerra da Cal e o agente da esquerda nacionalista Celso
Emilio Ferreiro (essa integração na APE, aliás, nunca se verificou; Torres
Feijó 2007). Juntamente com isto, estes galeguistas portugueses também
estabelecem colaborações táticas com a esquerda nacionalista galega, neste caso
apesar de um evidente afastamento programático fundamentalmente no que à ideia
de língua diz respeito (tal como veremos adiante).
Bom exemplo desta maior presença do reintegracionismo em Portugal através da
mediação destes agentes lusos divergentes da estratégia de Galaxia é a
publicação no número de setembro de 1974 do "Manifesto para a supervivência da
cultura galega" na revista Seara Nova, dirigida na altura por Rodrigues Lapa;
um texto que é resultado da ação de vários agentes vinculados ao galeguismo
cristão residentes em Roma, entre os quais sobressai o padre José-Martinho
Montero Santalha (et al, 1974).
Para além do caráter periférico dos seus assinantes, é importante apontar
também em relação a este Manifesto que ele apresenta um plano cultural
normalizador global para a língua da Galiza, denominada explicitamente "galego-
portuguesa", que propõe medidas destinadas a vários campos (literário,
educativo, audiovisual, religioso, etc.) e que advoga por uma gestão do
conflito linguístico que assume o caráter bilingue da sociedade galega como um
elemento positivo (Samartim, 2010: 339 e ss.), distinguindo-se neste ponto,
portanto, fundamentalmente do nacionalismo de esquerda, o qual entende a
presença do castelhano na Galiza como um indicativo da colonização cultural do
País que deve ser combatida e que, por meio do trabalho político, deverá ser
revertida para uma situação de monolinguismo social em galego (Rodríguez, 1976:
42).
Apesar de ser indicada a coincidência dos postulados do Manifesto com o ideário
de Galaxia, este grupo rejeita, por boca de um dos seus principais elaboradores
de ideias e codiretor de Grial, Ramón Piñeiro, a publicação deste texto na
Galiza (Torres Feijó, 2007: 694):
Piñeiro manifesta a sua coincidência com os postulados do
"Manifesto", afirmando estar "moi ben pensado", mas indicando que nas
"circunstancias" da altura, era impossível publicá-lo. Montero
[Santalha] atribui essas circunstáncias ao conteúdo político do texto
e ao quadro político-ditatorial vigorante [na Espanha]. Piñeiro
sugere-lhe que o faga chegar a elementos da Editora Nós de Buenos
Aires, cousa que fam mas sem fruto.
Rejeitado então tanto por Grialcomo pelo enclave galeguista de Buenos Aires, o
Manifesto beneficia da mediação de Lapa e é publicado em setembro de 1974 na
Seara Novacom a ortografia usual em Portugal, mas também em outubro desse mesmo
ano em espanhol na revista madrilena próxima da democracia-cristã Cuadernos
para el Diálogo. Achamos que este caso supõe um bom exemplo quer da cobertura
fornecida por Lapa para os agentes do reintegracionismo em Portugal (apesar da
relativa posição periférica deste movimento na Galiza) quer de como o referido
afastamento de qualquer envolvimento político durante a ditadura franquista
determina a ação tanto de Galaxia como até do conjunto do espaço institucional
da resiliência (sobretudo após o 25 de abril). Sirva como sustento desta última
afirmação a advertência feita pelo próprio Montero Santalha a Lapa em 28 de
maio de 1974: "Nao estará demais advertir que o nosso manifesto foi elaborado
antes do cámbio de régimen em Portugal e que, pelo mesmo, nao está determinado
por razoes políticas do momento mas por motivos histórico-culturais"
(apudMarques, 1997: 345). Esta posição geral verificada no espaço da
resiliência não coincide com a visão que Lapa tem do momento político, já que o
galeguista de Anadia percebe o 25 de abril como uma oportunidade que deve ser
aproveitada para o reforço do relacionamento galego-português, no entendimento
de que "a revolução portuguesa, entre outras coisas, pode abrir novas
perspectivas a uma solução do problema galego" (em carta a Xavier Alcalá, jovem
escritor na órbita do reintegracionismo, de 31 de maio de 1974; apudMarques,
1997: 345).
1.2. O 25 de abril na resistência
No espaço sistémico da resistência, cuja centralidade a UPG desputa com outros
grupos político-partidários de esquerda (localizados ou não no nacionalismo
galego), a funcionalidade referencial de reintegração que Portugal desempenhou
para o conjunto do galeguismo até 1936 é aqui e agora desigual, mas em todos os
casos ela opera com intensidade menor a como o faz no espaço da resiliência, e
é residual e não operativa politicamente para a UPG, que ativa em maior medida
uma referencialidade de analogia ou emulação (Beramendi 1991) dirigida primeiro
aos territórios que lutam pola sua independência de Portugal (como Angola,
Moçambique ou a Guiné) e, só depois de 25 de abril, para o Portugal
revolucionário (videSamartim 2004).
Isto é assim porque a UPG, que contempla no seu programa um vínculo federativo
peninsular, faz depender as suas ações e os seus relacionamentos, no interior
dos campos culturais ou doutros, da sua estratégia e do seu programa político,
campo este onde reside e é referenciado o conjunto da sua atividade. Por isso,
na receção que o grupo faz à Revolução dos Cravos, já no número de maio de 1974
da sua revista Galicia Emigrante, a UPG coloca a referência à unidade cultural
galego-portuguesa significativamente no passado e põe o acento na identidade
das lutas políticas em curso (UPG, 1974a; itálicos nossos):
A UPG (...) vive niste intre unhas das eisperencias máis fermosas da
súa hestoria: o país fraternal que é Portugal ven de aniquilar o
feixismos e camiña cara á democracia. Todo o pobo galego vibra de
solidaridade i entusiasmo. Os muros das aldeas e cidades de Galicia
cóbrense de letreiros nos que se le VIVA PORTUGAL! Xamáis a concencia
da antigua unidade cultural galegoportuguesafoi tan lúcida no corazón
das masas oprimidas da nación galega. Xamáis o sentimento de que a
vosa loita é a nosa loitafoi tan fonda e cordialmente asumida por
toda a xeografía galega.
Podemos afirmar, então, que um dos primeiros impactos da revolução portuguesa
no espaço sistémico ocupado pola esquerda nacionalista galega foi o reforço da
(antiga) referencialidade cultural galego-portuguesa. Ora, neste caso essa
referencialidade está circunscrita ao plano dos discursos e está ausente das
práticas culturais reais do grupo que, por exemplo, tem uns usos linguísticos
contrários ao reintegracionismo e continua a não considerar útil do ponto de
vista normalizador o facto filológico da unidade linguística galego-portuguesa,
tal como sustenta o seu principal ideólogo para os assuntos linguísticos e
literários, Francisco Rodríguez (1976). A estratégia da UPG passa então por
atualizar em chave política essa "antiga unidade cultural galego-portuguesa",
lida agora em chave de solidariedade internacionalista.
Desta maneira, o principal impacto do 25 de abril no espaço chefiado pola UPG
diz respeito ao estabelecimento, ao reforço e à consolidação da rede de
relações, apoios e solidariedades (nos campos político e cultural) já iniciados
antes de 1974 e ainda hoje vigorantes. Contudo, é importante destacar que,
quanto às caraterísticas desse relacionamento claramente reforçado depois de
abril, ele é assimétrico (favorável à Galiza), e também que os grupos homólogos
da UPG no campo político-cultural da esquerda revolucionária portuguesa aceitam
os repertórios nacionalistas elaborados e promovidos pola UPG na Galiza.
Os principais antecedentes deste relacionamento em chave política estão
presentes no campo literário, para onde a UPG promove através dos seus agentes
os repertórios próprios do social-realismo (nomeadamente através da poesia), no
entendimento de que estes contribuem para a implementação do seu programa
político revolucionário e são úteis e atrativos igualmente na outra margem do
Minho. Assim, os contactos prévios da esquerda nacionalista galega ao período
revolucionário português têm a ver com a publicação na editora Razão Actual, do
Porto, em 1972, de duas antologias de poesia social de dois produtores
referenciais do antifranquismo na Galiza, Manuel Maria e Celso Emilio Ferreiro,
assim como com a publicação duma Introdução ao nacionalismo galego(Paisagem
Editora 1973) por um dos mais ativos agentes da UPG em Portugal até a
atualidade, o jornalista e escritor José Viale Moutinho, um ano depois de que
José Afonso tivesse estreado o "Grândola" na residência universitária
compostelã do Burgo das Nações (em 10 de maio de 1972).
Para além desses contactos e das presenças já existentes, tal como apontámos, o
25 de abril faz com que aumente a presença cultural galega em Portugal, quer
através de antigos e novos agentes quer de ações de apoio e solidariedade
política, como a publicação de livros e revistas ou a organização de eventos
culturais e atividades políticas, entre as quais destaca a cobertura dada em
Portugal para a impressão das "Bases Constitucionais" e o "Programa provisório"
da UPG, a distribuição de imprensa partidária, a emissão periódica semanal do
Rádio-Clube Português para a Galiza, a apresentação em Portugal da associação
de massas da UPG (a ANPG) etc. (Torres Feijó 2007: 698 e ss.).
Ora, dissemos também que esse relacionamento era estabelecido nos termos e de
acordo com os repertórios marcados pola UPG. Achamos que pode exemplificar este
ponto a publicação polo referido Viale Moutinho em 1975 do Catecismo do
camponês(na editora Futura), versão portuguesa do Catecismo do labrego(escrito
em 1889 por Valentín Lamas Carvajal para denunciar as condições de vida do
campesinato galego) explicitamente apresentada como uma edição traduzidae
bilingue, isto é, de acordo com o programa linguístico da UPG para a Galiza
daquela altura.[3] O mesmo pode ser dito do facto de intitular com a forma
"Galicia" (usada na altura pola UPG em troca da galego-portuguesa "Galiza") a
capa do número especial que a revista da esquerda portuguesa Vérticededica ao
grupo em 1974 (Vértice"Galicia com Portugal UPG", nº 367-368, Ag.-Set. 1974).
Chamamos a atenção, contudo, tanto para a publicação desse volume monográfico
já em 1974 como também para a celebração na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto no ano 1975 dumas "Xornadas das Letras Galegas",
[4] porque em ambos os eventos participa Manoel Rodrigues Lapa e ambos servem,
portanto, para exemplificar a referida colaboração tática de agentes
galeguistas portugueses procedentes da resiliência com os grupos da esquerda
nacionalista galega, apesar do evidente afastamento programático existente
entre ambos. De facto, a participação de Lapa em Vérticesupõe uma clara tomada
de posição deste agente contra a ideia de língua (popularizante) sustentada
pela UPG (1974b) noutra das suas publicações doutrinárias, Rego, onde o grupo
coloca já a que, por outro lado, será a ideia de cultura que defina o programa
do grupo e sustente as suas ações neste campo ao longo de todo o período (UPG,
1977: 48): "A cultura galega é patrimonio exclusivo das clases populares". Esta
ideia é frontalmente contestada por Lapa (1974: 581), quem afirma com
rotundidade que "A língua de cultura vai contra os hábitos adquiridos do
linguajar do povo" (videSamartim, 2010: 368 e ss.).
Contudo, apesar da maior intensidade no relacionamento virado para o lado
português (cujos agentes prestam atenção ao caso galego através dos seus
homólogos da esquerda, alegando desconhecimento e invocando a unidade cultural
e espiritual galego-portuguesa), as transferências portuguesas para o SCG neste
espaço da resistência continuam a ser escassas (daí o apontado caráter
assimétrico do relacionamento) e estão circunscritas à ativação do caráter
referencial de emulação em campos como o dramático, com a imitação de
repertórios lusos e o debate de se o teatro português pode ser ou não integrado
na categoria de teatro (em) galego (Samartim, 2010: 373-374); o campo
cinematográfico, com a divulgação em festivais e cineclubes galegos do Cinema
Novode Portugal e do Brasil[5]; ou o campo musical, com a reapropriação do
folclore e da função de compromisso da música galega assumido pela Nova Canción
[6] a imitação do que estavam a fazer na altura cantores lusos como José
Afonso, Cilia ou Vitorino (Rodríguez Prado, 2004; Samartim, 2004: 9 e Samartim,
2010: 379-381). Esta incorporação de repertórios lusos realiza-se na Galiza
através da rede associativa criada pela esquerda e o nacionalismo desde finais
de sessenta, que acolhe agora também alguma (menor) presença de agentes lusos
nas suas atividades (videSamartim 2004).
2. O impacto do 25 de abril através da imprensa (Faro de Vigo)
Para esta primeira aproximação ao impacto que o 25 de abril teve na opinião
pública da Galiza recorremos à informação veiculada através da imprensa porque,
tal como refere Cristina Martínez Tejero (2008: 17), integrante do grupo
Galabra com vários contributos a partir da análise deste tipo de materiais, a
utilidade desta tipologia de corpus para o estudo da cultura reside na sua
"própria natureza como principal difusora das atividades acontecidas no ámbito
da cultura e também pelo seu papel como elemento vertebrador da sociedade à que
chega, contribuindo para identificar e coesionar umha comunidade mediante a
dotaçom do acesso aos mesmos conteúdos informativos".
Foi selecionado o jornal Faro de Vigopara realizarmos uma sondagem nos três
meses imediatamente posteriores ao 25 de abril de 1974 porque este é um dos
dois diários de maior tiragem na Galiza da altura (juntamente com La Voz de
Galicia) e o mais lido no Sul da Galiza e, de facto, com um destacado impacto
no território galego geograficamente mais próximo a Portugal, em cuja região
norte também conta com alguns pontos de distribuição. Levantamos a informação
sobre Portugal (mais em concreto sobre a situação política portuguesa derivada
do 25 de abril, já que este é o único assunto atendido no período em foco)
presente nas primeiras páginas deste jornal entre 26 de abril e 26 de julho de
1974 porque entendemos que este período é suficientemente representativo da
presença que a Revolução dos Cravos teve na opinião pública galega
imediatamente depois de abril; e selecionamos as primeiras páginas do jornal
porque o facto de ocupar esse lugar de destaque é já um indicativo da
importância atribuída à notícia por este meio de comunicação.
Já quanto ao procedimento de análise, realizamos tanto contagens das
informações sobre a revolução portuguesa presentes no jornal, para conhecermos
assim o impacto absoluto deste facto no jornal e a sua intensidade relativa,
como análises do discurso com que o processo revolucionário é comunicado nas
primeiras páginas do Faro de Vigo; neste último caso as análises são feitas a
partir de procedimentos que permitem conhecer a recorrência e inferir a
relevância das palavras utilizadas nos cabeçalhos pelo jornal em foco
(representamos graficamente os resultamos como uma nuvem de palavras elaborada
com http://www.tagxedo.com/ e apresentamo-los abaixo na Figura_2).
Parece relevante indicar que entre 1 e 25 de abril de 1974 o Faro de
Vigopublica 20 números e, neles, apenas uma notícia sobre Portugal aparece na
primeira página do jornal.[7] Em termos estritamente quantitativos, isto
significa uma presença de 5%. Ora, a partir de 25 de abril e nos meses
seguintes, em concreto entre 26 de abril e 26 de julho desse ano, a presença
portuguesa nas primeiras do Faro de Vigoatinge 70%, divulgando informação
referente unicamente ao processo revolucionário e à situação política
portuguesa dele derivada. Estamos em condições de afirmar, portanto, que o
principal impacto do 25 de abril de 1974 em relação com a imprensa galega tem a
ver tanto com o aumento relativo como com a centralidade da presença
informativa portuguesa na Galiza, tal como pode ser conferido no gráfico
seguinte.[8]
Deste aumento significativo da informação relativa a Portugal verificado
empiricamente neste jornal de referência, podemos inferir que existe um aumento
equivalente do interesse pelo processo revolucionário português no conjunto da
opinião pública galega. Mas, para além disto, interessa-nos analisar também
qual é o tratamento que este meio de comunicação de massas reserva para este
processo, porque a linha editorial seguida por um meio de difusão maciça como
Faro de Vigocontribui sem dúvida, ainda que em graus e modos variáveis, para
marcar quer a posição perante um acontecimento concreto quer, em geral, os
modos de visão e divisão da realidade da população que recebe essas mensagens.
[9]
Assim, tal como se depreende da informação disponibilizada abaixo na figura_2,
Faro de Vigopresta especial atenção à formação do Governo português e ao início
do processo de descolonização (assim o indicam a presença e a recorrência de
palavras como Angola, Mozambique, Ginea, PAIGC, conversaciones, contactos,
Ultramar, ...). Destaca-se igualmente a centralidade atribuída nos títulos das
notícias à figura de Spínola, o nome próprio com maior número de ocorrências (a
muita distância de Marcelo Caetano) e também a relação entre as ações ou as
tomadas de posição localizadas na esquerda do espectro político e termos como
saqueo, amenazas, ocupación ilegal, desórdenes,...
Achamos que as duas questões referidas em último lugar contribuem para
esclarecer a posição deste meio de comunicação de massas em relação ao processo
revolucionário português, no sentido de que a mensagem transmitida pelo jornal
(sujeito, por outro lado, às sanções contempladas na "Ley de prensa e imprenta"
[10]) tende a posicionar os seus recetores em relação a um foco positivo
identificado com Spínola e ideias como ordem ou governo (quiçá esteja a
funcionar aqui a homologia com a figura de outro militar, Francisco Franco, que
ainda ocupava na altura a chefia do Estado Espanhol) e um foco caraterizado
negativamente em termos de violência e desordem, e reservado para os movimentos
populares da esquerda.
3. Síntese conclusiva
Após a nossa análise do impacto do 25 de abril na Galiza de meados da década de
setenta do século XX, sustentada em trabalhos anteriores de Galabra (entre os
quais destacamos para o que segue Torres Feijó 2007), podemos concluir que a
revolução portuguesa de 1974 significou nos campos da política e da cultura:
(1) Um maior desenvolvimento da ação sócio-cultural apenas dos grupos
da esquerda nacionalista (nomeadamente da UPG, que age em função de
lógicas, interesses e relações políticas) e não do galeguismo
culturalista de Galaxia, que se recusa a agir com parâmetros
referenciados no campo político e não arrisca a posição conquistada
em décadas de trabalho cultural num campo político aberto e instável
(quer seja na Galiza quer em Portugal).
(2) A vulgarização da literatura e da cultura galegas nas novas
plataformas emergentes no sistema cultural português, promovidas pela
esquerda portuguesa e que acolhem preferencialmente materiais e
repertórios transferidos pelos seus homólogos galegos.
(3) A construção duma rede de relações e dum conjunto repertorial
definidor da atuação nos campos da cultura ainda hoje vigorantes, em
que, no que à literatura diz respeito, os textos e o seu
funcionamento se referenciam na altura na denominada poesia social e
de resistência, e os elementos repertoriais que desenham o
relacionamento que são aceites pelos grupos da esquerda portuguesa
tal como definidos pelos seus parceiros galegos.
(4) A emergência e consolidação da UPG como o referente político-
cultural na Galiza para determinados setores da esquerda portuguesa,
o que traz como consequência que o vínculo galego-português substitua
na Galiza o vínculo hispano-português (que poderia estar representado
pelo Partido Comunista de España)
Fora destes campos, nesta primeira aproximação do impacto do 25 de abril no
espaço da opinião pública, detetamos o aumento da presença informativa
portuguesa no campo da comunicação da Galiza, e chamamos a atenção para o
interesse despertado polo processo de descolonização e para a centralidade
atribuída à figura de Spínola, assim como, em geral, para a promoção através da
imprensa generalista de um discurso favorável à recuperação da ordem pública em
Portugal. Estes elementos articulariam então o discurso público elaborado e
socializado polos meios de comunicação de massas em relação à Revolução dos
Cravos, discurso jornalístico condicionado pelo quadro legal vigorante no
Estado Espanhol e virado para a criação de um estado de opinião que
necessariamente não deverá colidir com os interesses e posições sustentadas
pelas autoridades do regime, as quais dificilmente estarão interessadas em
promover simpatias por qualquer situação potencialmente desestabilizadora do
quadro sócio-político do franquismo, tal como a que está a ser vivida no outro
lado da fronteira e que, como foi apontado, funciona já como modelo para a
juventude localizada na oposição de esquerda.