A receção da revolução dos cravos em França ou da descoberta de um novo rosto
português: alguns contributos
A dimensão relacional entre a cultura portuguesa e a cultura francesa
caracterizou-se no fio do tempo, já longo, por uma univocidade de atenção, de
conhecimento e de importação de modelos produtivos que Eduardo Lourenço, Nuno
Júdice ou Daniel-Henri Pageaux tão bem sublinharam em diversos estudos. Em
colóquios organizados na década de 80, no Centro Cultural de Paris, Fundação
Calouste Gulbenkian, e que visavam uma reflexão e rastreamento dos contactos,
trocas ou diálogos Portugal-França, Eduardo Lourenço salientava a comunicação
assimétrica entre os dois espaços culturais e Nuno Júdice lembrava a
satelização cultural portuguesa face ao espaço francês. Em contributo de 2005,
Daniel-Henri Pageaux referia também as relações triangulares (França, Espanha
Portugal) condicionadoras de processos de "assimetria, ignorância, miragem ou
bloqueio"[1] (Pageaux, 2005:15) a rodearem Portugal-França.
Já em 1984, o mesmo estudioso, na obra Imagens de Portugal na Cultura Francesa,
lembrava que na longue durée"Portugal permanece (…) como uma terra incógnita,
um país desconhecido pela maior parte dos franceses, um país que praticamente
não tem lugar na cultura francesa" (Pageaux, 1984:19). Ora se, como afirma
Otília Martins, corroborando Pageaux, "Le Portugal a très difficilement pénétré
dans l’imaginaire français" (Martins, 2004:34), certo é que estereótipos e
figuras, sobretudo ligados ao período das Descobertas, parecem constituir uma
constante nas representações culturais de Portugal por parte da França e muito
em particular por via literária. Não por acaso, Daniel-Henri Pageaux recorda
igualmente que "quer para os franceses do século XVI quer para os do século XX,
a história de Portugal começa com as grandes expedições marítimas e/ou
coloniais." (Pageaux, 1984:118)
Assim, Portugal é um país visto sob o signo do mar não apenas numa referência a
uma situação geográfica, mas ainda no que toca à construção de um império, a
partir de travessias marítimas, um imaginário intimamente eivado de memória
passada de uma mitologia das descobertas em torno de figuras como Vasco da Gama
ou o Infante D. Henrique, o Navegador, mesmo se um outro conjunto de lugares-
comuns também assoma de um modo recorrente: a referência ao terramoto, à
saudade, ao fado, aos azulejos ou, mais recentemente, à Lisboa, cidade branca,
na esteira de Dans la ville blanche(1983) de Alain Tanner.[2] Importa também
referir uma outra constante das últimas décadas, recordada por Pierre Rivas,
quando este reflete sobre as permanências e mutações da imagem de Portugal nas
letras francesas: "On est passé du Portugal de Camões, à l’identité forte,
impériale, conquérante, au mythe Pessoa (…)." (1992: 164). Nesse mesmo estudo,
uma observação de Rivas parece-nos fundamental, ainda que diga respeito a
autores do século XIX: Pierre Rivas lembra as ocorrências em torno de Portugal,
na obra de Stendhal e Baudelaire, dizendo que se trata de lugares da memória,
visitados como referência, com reverência, e saudados distraidamente (idem:
162). Esta saudação distraída será algo a que mais adiante voltaremos, enquanto
modo de relação que, a nosso ver, é também ele uma constante numa escrita
francesa onde Portugal emerge.
Para além de uma iterativa revisitação de imagens cristalizadas em torno de um
momento histórico ou de um autor, cabe também registar a imagem que se constrói
de um Portugal primitivo, pobre e em perda,[3] face a uma intensa presença
migratória portuguesa nos anos 60, ou a descoberta surpreendente de um espaço
de finisterra europeia. Se na identificação de um rosto português o passado
glorioso de um país de navegadores é traço maior, para além das declinações
mencionadas, a Revolução de Abril passa identicamente a ocorrer com
regularidade no discurso em torno de Portugal. Como sublinha Graça dos Santos,
Si la grande vague d’émigration portugaise des années soixante a
tendance à générer en France (et au Portugal aussi, d’ailleurs) un
regard méprisant sur la génération de maçons et de femmes de ménage,
allant parfois jusqu’à identifier nationalité, culture et milieu
social, la Révolution des œillets vient placer le Portugal au premier
plan de l’actualité internationale. (Santos, 2002)
Muito embora possam então ser detetadas no fio do tempo presenças no imaginário
francês que tomam Portugal por objeto, a verdade é que o desinteresse e
desconhecimento face ao espaço luso são maioritários, no momento em que se dá
em Portugal uma inesperada revolução. Assim e como afirma ainda Pageaux: "Em
1974, a surpresa é enorme. Uma surpresa que só pode ser medida pela ignorância
dos franceses relativamente a Portugal." (Pageaux, 1984: 40) Nessa conjuntura,
vários intelectuais franceses de esquerda virão a Portugal movidos por uma
intensa curiosidade – e lembremos Simone de Beauvoir ou Jean-Paul Sartre –,
pois, como refere Otília Pires Martins, "dans la foulée des évènements
révolutionnaires, beaucoup d’intellectuels français ont visité le Portugal,
espérant peut-être y trouver la matérialisation de leurs idéologies politiques,
de gauche et d’extrême-gauche" (Martins, 2004 : 37). A Revolução de Abril será,
então, percebida por um filtro terceiro-mundista conhecido dos intelectuais
franceses e que afasta Portugal da Europa.
Conrad Detrez, autor belga, naturalizado francês e em 1975 correspondente da
Rádio Televisão Belga em Lisboa, falará, em Mélancolie du voyeur[4], obra de
1986, de uma vaga turística de esquerda que ruma a Portugal:
Et ils viennent(…) aux premières vacances. Ils font trois petits
tours, ils manifestent (et jettent un œil distrait sur ce fleuve-là,
comment est-ce qu’il s’appelle encore?). Ils s’égosillent, échouent,
les pauvres, à loger à la juste place, avec le juste ton, l’étrange
diphtongue: "Oui, nous sommes…Viva! Viva a…a…a revolução!" (qu’ils
prononcent tchon ou chao ou tchan ou, plus souvent, ciao, comme à
Turin ou Marseille). (…)
Mes touristes me réquisitionnent, d’office, comme des chefs. (…)
Heureusement les vacances prennent fin. Mes visiteurs (et
conseillers, donneurs de recettes) regagnent leur pays. (Detrez,
1986:113-115)
Em romance recente de 2013, Éléments incontrôlés, Stéphane Osmont situa-se em
isotopia similar quando o narrador, jovem com um percurso na extrema-esquerda,
recorda as suas férias em InterRaile a sua vinda a Portugal no Verão de 1974:
Je leurs avais proposé [à ses camarades] un grand projet en forme
d’apothéose du printemps : partir pour Lisbonne tous ensemble pendant
les vacances d’été. Un mois en bande dans le nouvel eldorado de la
révolution, ce serait un rêve. (Osmont, 2013 : 181)
Plus la frontière espagnole approchait, plus la proportion de
gauchistes augmentait parmi les voyageurs. Des Belges, des
Hollandais, des Allemands, des Anglais. Tous se rendaient en
pèlerinage dans le Portugal de la révolution. (Idem: 199)[5]
É pois neste contexto que Daniel-Henri Pageaux observa, com pertinência, a
ocorrência de uma mutação na construção de imagens em torno de Portugal por
parte da França. A Revolução de Abril surge como ponto de viragem que permite
abandonar a tradicional triangulação FrançaEspanha-Portugal, pela atenção na
singularidade portuguesa (Pageaux, 2005), a permitir descobrir escritores
portugueses, a atentar num espaço português que atravessa alguma literatura
estrangeira não francesa, a acolher em textos de viagem um universo luso, a
levar à emergência de universos ficcionais diegeticamente situados em Lisboa e/
ou ancorados na história portuguesa em obras de autores franceses.
No campo da literatura, pensar perceções e representações da Revolução de Abril
em França passa então por considerar duas questões: o que pode a literatura
traduzida e que ecos da Revolução na literatura francesa.
O que pode a literatura traduzida?
Como aponta Otília Martins, é já depois de 1974 que o número de traduções de
autores portugueses contemporâneos aumenta significativamente. Resultado de um
importante contributo de tradutores e editores, mas também de outros mediadores
culturais como os comparatistas, a literatura portuguesa traduzida em França
contribui inegavelmente para uma acção de mediação cultural que permitirá
divulgar não apenas obras e autores, mas também temáticas atinentes à história
e cultura portuguesas do século XX. Na verdade, alguma literatura portuguesa em
França não pode deixar de ser considerada enquanto veículo de contacto com uma
realidade portuguesa ligada à Revolução dos Cravos ou que a ela levou: a
necessidade de mudança para um regime democrático ou a recusa/rejeição da
guerra colonial e da existência de dinâmicas coloniais. Obras de autores como
António Lobo Antunes, Lídia Jorge ou, mais recentemente, Dulce Maria Cardoso
[6], não podem deixar de ser consideradas nessa tomada de contacto por parte de
um público leitor francês – mesmo que eventualmente restrito – e no
questionamento do que pode a literatura traduzida nas relações entre culturas.
Respostas a questões de investigação como, qual o papel e o impacto da
literatura traduzida enquanto instrumento de mediação entre duas culturas
nacionais? Qual o lugar ocupado pela literatura portuguesa traduzida no sistema
literário francês?, seriam de extremo interesse para a problemática que nos
ocupa.
Mas, ainda para além da literatura portuguesa traduzida em França, haveria que
considerar outra literatura estrangeira traduzida em França e que fala de
Portugal, pois também ela concorre para um processo de mediação cultural.
Lembre-se, por exemplo, a este propósito, as considerações de Bertrand
Westphal, em "Pourquoi une géocritique de Lisbonne?", quando equaciona a
constituição de Lisboa como lugar literário a partir da leitura/ receção de
obras pertences a diferentes literaturas nacionais, estudo este que de algum
modo pode ser encarado como testemunho de um tal processo de mediação quando o
autor refere a sua própria experiência de leitura.[7]
Que ecos da Revolução na literatura francesa?
Objeto a não esquecer numa busca de ecos da Revolução poderá ser a literatura
de viagens, já que
Tal objecto, para além de se constituir como literatura de mediação
[8] não negligenciável no campo das relações interculturais,
apresenta-se como espaço fértil na construção, perpetuação ou
redescrição de representações, na medida em que trabalha
aproximações, por parte do escritor-viajante, a uma cultura de
chegada, a partir da sua própria cultura de pertença. (Outeirinho,
2010: 221)
Retomando as expressões felizes de Olivier Rolin em O meu chapéu cinzento, obra
que integra um texto sobre Lisboa, o que está em causa nos textos de viagem é
uma história-geografia de recordações (Rolin, 2001:123) ou recordação de
recordações (idem: 175).[9] É esse de facto o caso quer de Souviens-toi de
Lisbonne(1998) de Olivier Frébourg quer de Retour à Lisbonne(2007) de Max
Alhau.
Souviens-toi de Lisbonnede Olivier Frébourg apresenta-se como um conjunto de
memórias em torno de viagens a Lisboa, mas também a Buenos Aires, duas cidades
que, por sinédoque, dão conta daquilo a que, em Bar des flots noirs, Olivier
Rolin chama de processo de homotetia (Rolin, 1987: 120-121). Escreve Frébourg:
De Lisbonne je devais glisser vers Buenos Aires, donner à la saudade
une cambrure argentine. Ma vie n’est plus que tango et fado. Le
Portugal et l’Argentine se confondent dans la même utopie, dans le
même vaillement du monde, des corps et des êtres. (Frébourg, 1998:
71)[10]
Souviens-toi de Lisbonneintegra a literatura de viagens até pela constante
rememoração de obras e autores viajantes em Portugal. Com efeito, o narrador-
viajante segue nos passos de anteriores escritores franceses em Portugal:
Jacques Chardonne, Valéry Larbaud, Jean Giraudoux ou Michel Déon. Os topoiem
torno de Portugal, e em particular de Lisboa, abundam : Lisboa é uma cidade
atlântica (idem: 9), refere-se o império luso – "L’empire n’est plus qu’un
département du finistère" (idem:14) –, lembra-se a proverbial melancolia
portuguesa, que de resto é a do próprio narrador (idem: 21), ou também a
proverbial saudade. Convocam-se autores como Camões, Pessoa, Torga. Mas que
rastos da Revolução de Abril? Apenas uma brevíssima referência:
Nous étions tombés sur le Portugal, comme des badauds devant une
agence de voyages s’extasient devant un atol de Polynésie. Le
Portugal serait notre nouvelle patrie. Nous avions découvert son
histoire, sa littérature: Camões, Pessoa; la Révolution des œillets.
(Idem: 31)
Sob o signo de Pessoa constrói-se o texto de Max Alhau, Retour à Lisbonne: O
Guardador de Rebanhos, Lisboa: o que o turista deve vere O ano da morte de
Ricardo Reisconduzem-no na errância por Lisboa. Texto que se apresenta como o
resultado do seu diário de bordo, denominação de ressonância marítima, nele se
faz referência a anteriores visitas[11]: uma ainda durante o regime
salazarista, outra por volta de 1998 e aquela, mais recente, de que se faz
agora o relato. Quase nada se diz porém sobre a Revolução dos Cravos, a não ser
notações que decorrem da deambulação pela cidade e registo dos espaços
encontrados (Alhau, 2007: 34). Assim surge uma referência breve à " (…)
sinistre prison d’Aljube où sous Salazar on incarcéra et tortura" (idem: 35),
lembra-se o encarceramento de Miguel Torga e a placa evocativa que aí se
encontra do 25 de Abril, seguida de comentário: "Espèrons que les nostalgiques
de ce regime se sont évanouis dans l’ombre, que le temps les a voués au
silence." (ibidem). Mas será a memória de um tempo passado que sempre regressa
ao longo da narrativa: "Toujours le même rappel d’une époque de gloire qui
colle à la mémoire des Portugais" (idem: 30), e Lisboa ilustra "la rencontre
des siècles" (idem: 33).
Tanto Frébourg como Alhau parecem sobretudo cumprir o preceito de reverência ao
lugar-comum: o terramoto, a saudade, o fado, os azulejos, os elétricos, Camões,
Pessoa, mas também Eça, Torga e ainda Pessoa via Saramago.
A Revolução de Abril ou seus prolongamentos surgirão ainda noutros textos e
autores franceses. No romance de 1977 de Dominique de Roux, Le cinquième
empire; num outro romance, já tão estudado, de Antoine Volodine, Lisbonne
dernière marge, publicado em 1990; em Éléments incontrôlés(2013) de Stéphane
Osmont, integrando um conjunto de momentos e acontecimentos em torno de
movimentos contestatários dos anos 60 e 70 na Europa; ou ainda nesse objeto
escrito dificilmente rotulável, mistura de poesia, prosa, narrativa e até
micro-ensaio, Fado (avec flocons et fantômes), de 2000, de Jean-Claude Pinson.
Nesta obra, Jean-Claude Pinson narra um périplo que, inesperadamente, junta
Pessoa/Psoa, Leopardi ou ainda Baudelaire/Beaudelaire, e que vai até Lisboa por
sugestão deste último:
Et c’est ainsi que nous avons quitté Bruxelles, pris l’avion pour
Lisbonne (…)
Beaudelaire pour l’occasion avait mis son gilet
rouge
en l’honneur des œillets huit jours à boire du vin du fado sous les voûtes
sanglots à la chandelle des guitares à faire les fadas pour ne penser
nada nitchevo à rien(Pinson, 2000 :73)
Se uma micro-homenagem à Revolução de Abril ocorre, também em Pinson se retoma
o toposdos azulejos (idem: 75), o fado e a guitarra portuguesa[12] (idem: 55)
ou, eventualmente, as viagens de descoberta, por alusão, quando se refere a
ameaça do escorbuto já que a navegação dura há semanas, só que agora… navega-se
na tela do computador.[13]
No que toca aos textos que se apresentam em espaço de paratexto como romances,
atentemos em Le cinquième empire, Lisbonne dernière margee Éléments incontrôlés
[14].
Le cinquième empirede Dominique de Roux[15], diegeticamente situado em Portugal
e em alguma África de língua portuguesa – Guiné-Bissau, Moçambique –, e no
período de guerra colonial que antecede e prepara a Revolução dos Cravos, é
talvez a obra que mais destaque dá a esse período da história portuguesa.
Dominique de Roux não só conhecerá de perto a situação vivida nas colónias
portuguesas como ainda os protagonistas militares que serão, pouco tempo
depois, protagonistas do período revolucionário.
Dominique de Roux, editor, escritor e, à época da Revolução, jornalista,
correspondente e enviado especial para Portugal, em ligação com a emissora
pública francesa ORTF, será o único jornalista estrangeiro em Lisboa no momento
em que eclode a revolução. Testemunha directa da história do seu tempo[16],
dela dará memória em Le cinquième empire, através de um narrador-personagem de
nacionalidade francesa, François Mazin:
Uma voz: "Venha! Nós estamos aqui, François, A Revo…"
Seria na França? Na Holanda? Poder-se-ia ainda acreditar nela, na Revolução?
Comecemos por excluir a Lua. Eu estou em Lisboa, olhando pela janela as pedras
do Palace cobertas de salitre e a Avenida deserta, almofadada, 25 de Abril,
três da manhã, pensável, impensável, já no passado. O porteiro sobe a trazer-me
a sua pitadinha de sal: o exército terá tomado o poder.
No e em quem acreditar? Os guardas-nocturnos passeiam-se de nariz colado às
montras. O vento do sul empurra os papéis nos passeios.
Saio. Praça do Rossio, a luz das lâmpadas cai sobre as fontes Wallace. Ouvem-se
os passos dum noctâmbulo. Pára, volta a andar, ocupado, talvez, a acender um
cigarro. Cães atravessam, agarrados à cadela, à frente. Rua do Ouro, bancos,
ourivesarias, os bancos da pazsocial, dos Espírito Santo e dos gnomos de
Zurique. Basta de lubricidade!
Se, em Espanha, nunca se passa nada, em Portugal aparentemente, devia passar-se
ainda menos.
– Olhe, soldados! – disse ao aproximar-se o senhor do cigarro. (Roux, 2001:
287)
A imagem em filigrana de um Portugal adormecido regressa através de uma
Revolução improvável, silenciosa, sem sangue. Como se afirmará mais adiante,
após segmentos descritivos em catadupa que nos dão conta do regresso de
políticos exilados, do confronto de projetos ideológicos diversos, de
tentativas de tomadas de poder que levarão ao Verão quente do PREC:
Aqui os cornos do touro trazem bolas de lã, e tudo o que pode
ensanguentar a arena não entra na organização do espectáculo. Ninguém
deseja enfrentar ninguém, há-de acontecer um milagre, Nossa Senhora
de Fátima! (Idem: 320)
Conrad Detrez em Mélancolie du voyeurafinará por um diapasão próximo ao narrar
sintética e ironicamente a Revolução num país de brandos costumes:
Un coup d’État poli, feutré. Ministres, généraux se sont levés avant
le soleil. Des inconnus frappaient à la porte. Nous sommes des
mutins, ont dit les mutins. Ils ont déposé ces messieurs. Ils leur
ont permis de se raser, se parfumer, choisir leur chapeau. On les a
conduits, toujours courtois, jusqu’à l’aéroport, pour l’exil. Et au
peuple on a distribué ces armes belles, rouges, un exemple pour
l’univers, les insurgés de l’univers, guerriers de toutes nations,
tout poil, toutes classes, idéologies…les mutins ont distribué aux
masses œillets. Bon enfant, rêveurs – toute leur histoire le dit –
les doux Lusitaniens se sont mis à faire "la révolution aux œillets".
Jolie recette. J’apprécie. (Detrez, 1986: 110)
Retomando a abordagem da obra de Dominique de Roux, vemos que, auto-
inscrevendo-se num registo ficcional, Le cinquième empirese ancora numa
factualidade histórica conhecida e reconhecida, a envolver figuras como António
de Spínola, Kaúlza de Arriaga ou Otelo Saraiva de Carvalho. Contudo, esta
presença de um passado recente da história portuguesa é atravessada –
inevitavelmente? – pela rememoração de um tempo das Descobertas:
Lisboa sai do rio. (…)
O estuário tem a cor amarela da erva, da testa ossuda daquele Bartolomeu Dias,
descobridor do Cabo da Boa Esperança. Dali partiram os roteadores astrólogos e
os pilotos mouros das caravelas. (Roux, 2001: 62)
De novo, surgem as referências à Lisboa dos azulejos e dos elétricos amarelos
(idem: 77), à melancolia (idem: 127)[17], ao terramoto (idem: 93), ao país do
fado e da saudade (idem: 243): "O verdadeiro pensamento é a saudade: onde o
pesar é o maior desejo, onde a ausência provocada é a presença mais duradoura.
Assim, a história é para o Português tanto memória como espera." (Idem: 128)
Quando chega no Verão de 1975, ver a Revolução em marcha é o objetivo de
Antoine Volodine.[18] Lucília Carvalho lembra que "a viragem à ‘esquerda’ a que
se assistia então no espaço político português, surgia como um precioso ‘campo
de ensaio’ a viver e a escrever" (Carvalho, 2002 : 34). Em 1990, publica
Lisbonne dernière marge.
Como observa Chloé Conant, "ses livres, qui démontrent la possibilité d’une
véritable littérature politique actuelle, ni forcément ironique, ni forcément
distanciée, sont imprégnés de la terrible désillusion qui a succédé à
l’engagement, y compris à l’engagement violent." (Conant, 2006: 121) Também em
texto inédito, "Lettre hèle-néant", Volodine dá testemunho precisamente da
promessa de que a Revolução de Abril se revestiu para todos aqueles que
aspiravam a uma mudança:
J’ai eu sous les yeux, donc, brusquement, Lisbonne pendant l’été
1975, que les Portugais appellent o verão quente,l’été chaud. C’était
un temps d’espérance encore, une période de l’histoire contemporaine
où on ne passait pas son temps à se retenir de respirer, comme on
allait le faire ensuite pendant les années quatre-vingt et quatre-
vingt-dix (…).[19]
Ficção dentro da ficção ou de como a ficção permite pensar o real e autoriza
pensar a História, Lisbonne dernière margede Antoine Volodine possibilita uma
reflexão sobre os movimentos revolucionários através de uma história situada em
Lisboa, num tempo pós-revolucionário e num tempo em que tais propostas parecem
exauridas, história a envolver Ingrid Vogel e Kurt Wellenkind, um casal de
alemães apaixonados, ela uma terrorista, ele um polícia que a quer fazer
desaparecer, criando-lhe uma nova identidade. Como afirma Lionel Ruffel, "La
fiction devient une prolongation de la révolution par d’autres moyens (…)"
(Ruffel, 2004: 169), e Volodine não pode assim deixar de assumir na sua obra um
"devoir d’inventaire" (idem:171). É pois neste contexto que, ao longo de
Lisbonne dernière marge, os tempos da Revolução são rememorados ou pelas
referências a uma conversa da protagonista Ingrid Vogel com um dos capitães de
Abril que então ameaçava extinguir investidas contra-revolucionárias com o fogo
de canhões (Volodine, 1990: 128-129), ou pela lembrança das manifestações do
ano de 1975, ocasião para referir os intervenientes vários:
Ils avaient commencé à discuter sur la Révolution des Œillets,
l’année 1975. Ingrid faisait montre d’une science étendue; elle ne se
trompait jamais sur les dates des manifestations importantes, et
d’ailleurs en juillet 75, en août, elle avait participé à certaines
d’entre elles, réclamant, poing levé au milieu des soldats en
treillis, au milieu des invalides de vingt ans, revenus sans jambes
d’Angola ou du Mozambique, exigeant, avec la foule gauchiste, la
dissolution de l’Assemblée constituante. Elle citait les noms des
officiers du Conseil de la révolution, elle jonglait avec des sigles
que Kurt identifiait de temps en temps, mais pas toujours: COPCON,
SUV, PRB-BR, RALIS, UDP, MFA, MRPP, LUAR, PCP. (Idem: 136)
É também de revisitação e de rememoração de contextos revolucionários dos anos
60 e 70 e ainda de uma vaga terrorista europeia da década de 70 que se trata em
Éléments incontrôlés, romance a acolher uma preocupação política e crítica que
parece atravessar alguma literatura francesa contemporânea. Após Maio de 68 e
ligado à extrema-esquerda, o narrador vai fazer a sua experiência portuguesa no
Verão de 1974. Do relato dessa viagem a Portugal, apenas um episódio num
percurso mais longo que o levará mais tarde a Itália, assoma uma revolução
inusitada e inesperada na finisterra europeia, promessa e esperança para todo
um movimento revolucionário e transformador mais alargado que se deseja:
(…) une révolution venait d’éclater au Portugal. L’histoire était à
peine croyable: le 25 avril, des militaires en armes avaient renversé
la dictature salazariste. (…)
Le mouvement était enclenché, il serait irréversible. Après le Portugal,
l’Espagne franquiste tomberait à son tour. Puis la France, puis toute l’Europe.
(Osmont, 2013 : 180-181)
Servindo uma reflexão sobre a História, deste modo se regista e se aviva uma
memória ligada à revolução portuguesa num quadro que se pretende mais lato e
face às expectativas goradas, às promessas não cumpridas que os movimentos
revolucionários desse período do século XX anunciavam, pois como lembra
Volodine em "Lettre à hèle-néant": "On avait l’impression que la belle vie
allait surgir sur Terre, depuis les rives du Tage, après tant de fausses routes
et tant d’échecs et de millions de morts."[20]
Depois de Abril de 1974, que percepções e representações literárias de Portugal
se encontram em França através da literatura e que a Revolução dos Cravos terá
alterado? E quais os modos ou o modo maior de aproximação à cultura portuguesa?
Parafraseando Olivier Frébourg, o que parece perpetuar-se é um Portugal de
mitologia (Frébourg, 1998: 67) em que o lugar-comum, o estereótipo, é tão só
rememorado e raramente reinvestido de novas concretizações. Em O meu chapéu
cinzento, Olivier Rolin ardilosamente também a ele recorre:
Ah, era inevitável que se chegasse aí. Pessoa. Grande lugar-comum a
evitar, agora. Com, em primeiro lugar, o fado, em segundo as
sardinhas e o bacalhau, em terceiro o terramoto de 1755, em quarto os
azulejos, em quinto a saudade. Talvez também os eléctricos. (Rolin,
2001: 90)[21]
Para além do novo rosto quase sempre distraidamente entrevisto da Revolução dos
Cravos – à exceção dos textos de Roux, Volodine ou Osmont –, a converter-se em
mais um topos nas aproximações a Portugal, vale a pena destacar o crescente
espaço ocupado pela melancolia, por vezes o spleen, quase sempre de Lisboa[22].
De resto, não há como referir, e particularmente nas últimas décadas, o lugar
maior ocupado por Lisboa[23], tantas vezes visto como espaço de errância
metafísica, de busca identitária ou aventura identitária (Carvalho:38),
associado a processos de introspecção, um espaço marcado também por uma
isotopia marítima. Como já em 1992 Pierre Rivas apontava, nos nossos dias
Portugal parece resumir-se apenas a Lisboa, "[une] ville des Songes(…) image de
notre condition de rêveurs éperdus, de notre situation existentielle, en marge,
à la dérive, ‘ailleurs’" (Rivas, 1992 : 162). E ainda: "on est passé de la
médiation épico-historique du Portugal de Camões, au labyrinthe de la solitude
de Pessoa, de la geste héroïque à l’intranquillité, de Coïmbre à Lisbonne, du
manuélin au post-moderne, de l’affirmation impériale à la quête identitaire."
(Ibidem) Encerrado o Salão do Livro de Paris que teve lugar em 2000 e em que
Portugal era o convidado de honra, Michel Cahen faz o seguinte balanço:
Plus généralement, on peut se demander quelle image on a, en France,
de ce pays de la "méditerranée atlantique", vingt-cinq
ans après l’été chaud de 1975 qui vit déferler à Lisbonne des
cohortes de militants et intellectuels français venus admirer le
PREC, le "processus révolutionnaire en cours".
Force est de constater que le puissant effet modernisateur de cette révolution
a, chez nous, été complètement oublié. (…)
Mais le Salon était précisément l’occasion de faire connaître la production
intellectuelle foisonnante de ce pays ô combien modernisé par un quart de
siècle de démocratie(…). Non, on a voulu continuer de donner du "
Portugal pépère " l’image d’un pays, petit et si joli, de poètes et de
nostalgiques ! (…) Cette attitude monomaniaque de n’imaginer le Portugal que
par le biais de la littérature et de la poésie (à la limite, aussi de la
nostalgie et du fado (…). (Cahen, 2000:761-762)
Transformadas em imagens virais, imagens cristalizadas, as perceções e
representações do estrangeiro são igualmente resultado de auto-representações
que tendem a perpetuar-se e que atingem também a Revolução de Abril. Sendo
embora a Revolução dos Cravos um novo rosto português descoberto pela França,
tal rosto parece desvanecer-se ou quase desaparecer nas brumas da memória.