Tematização linguística e arte narrativa em Luuanda
A ficção angolana destaca-se das experiências ficcionais dos outros países
africanos de língua portuguesa pela variedade de propostas linguísticas
utilizadas. A emergência de um escritor como Luandino Vieira motivou um grau de
experimentalismo linguístico que se vem a detetar anos mais tarde, com
variantes diversas, em outros escritores, como é o caso de Manuel Rui ou de, um
dos mais recentes, Ondjaki.
A língua torna-se, além de uma estratégia verbal, ela própria ‘tema’, uma vez
que nela começa o trabalho ficcional, a captação rítmico-cultural da
angolanidade. Sujeita a maior ou menor grau de criatividade, a língua
portuguesa procura encontrar a sua identidade angolana, nomeadamente e em
especial na área urbana luandense, cujo grau de aculturação tem uma ascendência
e tradição que se prolongam retrospetivamente pelo menos até ao século
dezanove. A proliferação de uma escrita ambaquista[1] é um exemplo que virá a
ser retomado na ficção de Luandino Vieira.
A aventura linguística começou com os primórdios da literatura angolana.
Joaquim Dias Cordeiro da Matta que publicou entre muitos trabalhos sobre a sua
língua-mãe, uma Cartilha Racional para se Aprender a ler o Kimbundu Escrito
Segundo a Cartilha Maternal do Dr. João de Deus (1892), ao escrever a sua
poesia em registo duplo, colocando paralelamente o kimbundu ao lado do
português, iniciou um processo de criação linguística, cuja herança virá a
tornar-se no futuro suscetível de tratamento diversificado.
Com efeito, Luandino Vieira marca, com a publicação de Luuanda (1964), um
momento fundamental na escrita literária angolana que retoma vários dos trilhos
experimentais no tratamento da língua, iniciados anos antes. Foi-lhe atribuído
o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965,
motivo que levou ao encerramento daquela instituição pela polícia política
portuguesa (vd. Ferreira, 1980).
Um dos membros do júri, Alexandre Pinheiro Torres recenseou criticamente a obra
nos seguintes termos:
Três histórias que são – tão-somente no meu modesto juízo que não
pretendem sobrepor-se aos dos mais competentes e ao do tempo – três
obras-primas do nosso conto contemporâneo, e a enorme e imprevista
revelação de um escritor de sensibilidade excepcional e de notável
capacidade de criação de um estilo: o estilo que resulta da sapiente
fusão de regionalismos e latinismos (da mesma forma que Guimarães
Rosa), o estilo que deriva da mesma linguagem onde as tropelias
fonéticas, sintácticas e semânticas sofridas pelo português em
contacto com os linguajares tradicionais autóctones são apropriados
de maneira superior para a obtenção de uma escrita que, durante a
leitura, me foi quase sempre, motivo de admirada e deleitada
surpresa. (Torres, 1965)
Antes desta obra, que marca uma rutura na sua escrita, Luandino Vieira já tinha
escrito A Cidade e a Infância (1957), seguindo-se A Vida Verdadeira de Domingos
Xavier (1961) e Vidas Novas (1968). Publica depois a partir de 1974 Velhas
Estórias, No Antigamente, na Vida, e Nós, os do Makulusu. Seguem-se Macandumba
(1978), João Vêncio: os Seus Amores (1979), Lourentinho Dona Antonia de Sousa
Neto & Eu (1981). Após uma longa pausa na escrita, publicou recentemente De
Livros Velhos e Guerrilheiros, O Livro dos Rios e o Livro dos Guerrilheiros
(2006), além de vários livros infantis.
Luandino Vieira desenvolveu na sua criação tradições já iniciadas anteriormente
na literatura angolana: a crítica social, a atitude expressamente
anticolonialista, a ironia paródica. Retoma de forma indireta a herança de
ficcionistas como Alfredo Troni, António de Assis Júnior e Castro Soromenho,
uma vez que recupera a tradição da narração oral, a crítica de costumes, a
dimensão simbólica alusiva. Introduz nos textos repetições e redundâncias
discursivas intercalares, aberturas e fechos da narrativa característicos da
tradição oral. Utiliza ainda técnicas expressivas que lhe advêm da utilização
do kimbundu, língua que acentua e permite a animização de conceitos mais
abstratos, e uma dimensão mágico-espiritual mais ampla.
Por outro lado, Luandino recorre a uma modernização da linguagem ficcional
através do aproveitamento do discurso indireto, do monólogo interior, do fluxo
de consciência, da intertextualidade lexical e mudança constante de planos e
perspetivas, e ainda pelo recurso a técnicas narrativas próprias da linguagem
cinematográfica como a composição, recomposição e montagens. Com efeito, no
livro de contos Luuanda observa-se essa sinuosidade da técnica narrativa, que
‘naturaliza’ a oralidade, recompondo-a, recortando-a, recombinando-a,
revelando-se assim uma atitude reflexiva sobre o próprio processo estruturador
da estória.
Simultaneamente ficcional e meta-ficcional, o texto recolhe a tradição oral,
modernizando-a, e assume a impossibilidade de acesso a uma verdade, ao
considerar haver múltiplas verdades e no seu reverso, outras tantas mentiras.
Ambiguidades que a vida e seus "casos" demonstram e que encontram um lugar mais
que perfeito na literatura. É isto exatamente o que se lê na "Estória do ladrão
e do papagaio", incluída em Luuanda:
Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou,
aonde começou, porquê, praquê, quem? saber mesmo o que estava se
passar no coração da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga
as conversas, as macas? Ou tudo o que na vida não pode-se-lhe agarrar
no princípio, quando chega nesse princípio vê afinal esse mesmo
princípio era também um fim doutro princípio e então, se a gente
segue assim, para atrás ou para a frente, vê que não se pode partir o
fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda
noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, pára, esconde,
aparece...E digo isto, tenho minha razão. As pessoas falam, as gentes
que estão nas conversas, que sofrem os casos e as macas contam, e
logo ali, ali mesmo, nessa hora em que passa qualquer confusão, cada
qual fala a sua verdade e se continuam falar e discutir, a verdade
começa a dar fruta, no fim é mesmo uma quinda de verdade e uma quinda
de mentiras, que a mentira é já uma hora da verdade ou o contrário
mesmo. (Vieira, 1964: 82).
Salvato Trigo (1980) observou justamente que a "voz-do-povo": Misoso ietu,
kidi; muenhu uetu, makutu – é o melhor juízo valorativo levantado na
generalidade por todas as obras de José Luandino Vieira.
Integrar os missoso tradicionais na narrativa moderna, como o faz Luandino,
corresponderá não só a revificar e perenizar o próprio objeto literário,
atualizando as suas origens culturais, mas também a torná-lo mais circulante, e
portanto mais sensível aos narratários africanos, na medida em que consegue
mimetizar a forma griótica de narração. Os narradores em Luandino, têm, pois,
sempre em vista o narratário, como acontece na poética popular. Esta foi
descrita e classificada pelo missionário suiço Heli Chatelain em Folk-tales of
Angola (1894) e considera a existência de diferentes narrativas orais, as
fábulas (com animais) designadas em kimbundu por mi-soso e as histórias
verdadeiras com fim instrutivo, designadas por maka. As narrativas históricas
são chamadas ma-lunda. Os provérbios, ji-sabu, estão ligados de perto às makas,
assim como as adivinhas ji-ngongo (vd. Chatelain, 1960).
A este propósito, Phyllis Reisman chama a atenção num artigo sobre Luandino
para o uso do termo designativo do género estória, que considera estar baseado
na incorporação das estruturas da narrativa oral (Reisman, 1987: 73). A autora
refere ainda que Tamara Bender na sua tradução inglesa de Luuanda (1980)
sublinha também esta questão:
He [Luandino] used the Portuguese termo ‘estórias’ (‘tales’) instead
of the more traditional Portuguese term ‘histórias’(‘stories’)
because he believed estória more correctly translated the kimbundu
word "musoso", defined as a moral story or allegory, fable, narrative
or tale.
(Bender, 1980)
A ‘estória’ é assim um género característico, que parece ser uma sábia
reinvenção da maka e do missoso, mantendo a sua herança de narrativa oralizante
e procedimentos estilísticos e retóricos que a tornam recetáculo de herança do
cancioneiro oral angolano. Por outro lado, as manipulações linguísticas
resultam também dessa necessária adequação entre os ritmos de relato que
travejam a representação escrita da narração oral.
Se o processo reflexivo da narrativa de Luandino Vieira começa na língua,
através da sua tematização, ela estende-se ao género, pelo experimentalismo.
Pode-se confirmar que a ‘estória’ é uma opção que Luandino – enquanto griot
urbano – escolhe para as suas narrativas e que a obra Luuanda tão
significativamente emblematiza.
Esta forma híbrida sustenta os vários cruzamentos de género que se encontram na
obra de Luandino. Sobre este tema, Carlos Ervedosa (1979) refere que, de forma
mais ou menos indireta, se encontram na narrativa oral as matrizes de uma
literatura angolana que, a partir da segunda metade do século XX, e em especial
com Luandino, foi veículo de um trabalho de subversão da hegemonia do discurso
literário europeu metropolitano, aliando a consciência de uma identidade
cultural à ideia de nacionalidade e da libertação nacional.
As três estórias de Luandino em Luuanda retomam essa herança, em situação de
sincretismo, reinventando os elementos do imaginário coletivo e do mitológico.
E este sincretismo da voz e da letra constitui tal, como tem sido apontado pela
crítica, um dos aspetos da originalidade da sua escrita (Mata, 1992: 52 seg.).
Tal sincretismo, com suas formas específicas, parece configurar, efetivamente,
uma das dimensões da angolanidade literária, que se define pela confluência de
géneros e pela modalização de formas. Por sua vez, a língua é mediatizada por
uma forma concreta, a estória, tornando-se elemento indissociável no processo
de reatualizar o género literário. É pois assumindo-se como estória que se faz
a narrativização do real quotidiano, à maneira dos contadores de ‘estórias’,
iniciando Luandino Vieira esta arte com uma obra singela de três narrativas,
que misturam elementos fabulares à crítica social.
A insistência na tematização linguística é evidência da importância das
metamorfoses formais no desenvolvimento da ficção angolana. Luandino Vieira
iniciou esse processo com as suas narrativas, e Luuanda, pela sua
originalidade, pelo impacto mediático e histórico, torna-se sem dúvida uma obra
exemplarmente emblemática neste domínio. Modelo experimental de ritmos e de
formas de narrar as estórias, Luuanda é um exercício reflexivo sobre a língua e
sobre as formas de a narrar, obra que de certo modo está na fundação do diverso
desenvolvimento da moderna ficção angolana.