Luuanda: o livro dos cheiros "fétidos" dos outros
TRIBUTO A LUUANDA
Luuanda: o livro dos cheiros "fétidos" dos outros
Adelino Timóteo[1]
No final da década de oitenta chegou-me às mãos esse livro, Luuanda, numa
edição das Edições 70. Era o tempo do boom dos escritores africanos, que as
Edições 70 publicavam. De certo, Luuanda de Luandino Vieira chegara-me às mãos
e já o escriba era uma lenda, através das suas narrativas mito-poéticas.
O estilo coloquial adoptado por Luandino Vieira foi talvez um calcanhar de
Aquiles neste primeiro contacto, ademais porque ele havia apostado na
‘crioulização’ do português como língua de expressão. A linguagem coloquial
repercutiria no falar desta gente dos subúrbios de Luanda, com uma forte
componente recreativa e de neologismos. Decifrar Luuanda foi possível através
de dois livros ensaísticos que as próprias Edições 70 haveriam de publicar.
Esses dois livros foram santo-e-senha para ler Luuanda e aperceber-me que a
componente lúdica era uma marca do coração do texto luandinense.
E nisto Luandino Vieira tornou-se como um bilhete de identidade que me permitiu
atravessar por certas zonas-tabus, funcionando como uma senha para conspurcar o
português padrão, de Portugal. O resultado foram os seguintes contos que
publiquei no Diário de Moçambique: "Zeferino, o homem que morreu três vezes"
(10/09/94), "Rodrigues, o herói da independência" (9/06/94), "O barrigudo" (04/
03/95), "A chave final do julgamento de uma prostituta" (18/03/95), "O tio
colorido" (14/01/95), "O pescador e a velha" (1/07/95), "Massinga" (27/0595),
"O Pretuguês" (1995?), "A Ana da Inhamudima" (1995?), entre outros, que embora
não publicados em livro, constam do espólio do ensaísta Pires Laranjeira. O
desvio do padrão normal, além de funcionar como uma profanação aos ditames
instituídos pelas escolas oficiais resulta junto dos leitores, por seu efeito e
cumplicidade, num efeito que rapidamente cria uma zona / espaço de interação
rápida escritor / leitor.
No Moçambique da primeira metade de 1990, reparei que o Suleiman Cassamo e Mia
Couto representavam esta corrente. Reparei que outro escritor luso-moçambicano,
Ascêncio de Freitas, glosava com muita naturalidade neste campo onde o viveiro
eram os musseques, ou seja, os subúrbios. A crise editorial dos anos 90 terá
levado a que aqueles meus escritos e outros que saíram na página "Diálogo", do
Diário de Moçambique, permaneçam ainda hoje não publicados, depois de uma
tentativa com o Mia Couto e o pai, Fernando Couto, de lhes dar a estampa em
1996, através da Ndjira.
A literatura que se fazia nos anos 90 em Moçambique não tinha outra forma de
escapar à corrente de Luandino Vieira, pois com a guerra em curso e a
ruralização das cidades este espaço de convergência criou esta forma de estar
na literatura, marcada pelo conflito entre a norma e o desvio. Os deslocados de
guerra e o enfraquecimento do sistema de educação, com a fuga de cérebros,
aceleraram a mussequitização do português e da língua em Moçambique. Se por um
lado tínhamos bem assegurado que o Guimarães Rosa era o pai da suburbalização
do português literário, por outro era evidente que Luandino Vieira era / é o
nosso pai africano nesta corrente. O Bahassane Adamodjy, com o seu livro
Milandos de um Sonho (2001), editado pela Quetzal, haveria também de marcar
essa tendência inevitável na prosa, e José Craveirinha, na poesia.
O título do livro "Luuanda" representa, a meu ver, uma catarse, operando no
contexto de uma nação e literatura que se pretende instituir. E as décadas 80 e
90 caracterizaram-se sobretudo pela fermentação do imaginário africano e do
reconhecimento das literaturas africanas de expressão portuguesa. As vivências
de Luandino Vieira nos musseques de Luanda lhe deram / emprestaram uma matriz
que irá marcar toda a sua obra posterior e de muitos outros angolanos, como o
Manuel Rui que em "Quem me dera ser onda" faz a caricatura da transposição /
transferência dos costumes e do linguajar dos subúrbios no espaço urbano. É o
que, em bom rigor, poderíamos chamar a bantunização do português angolano e
moçambicano que este Luuanda vem consagrar / conceptualizar, pela sua
publicação em 1963, e um sem número de edições que lhe seguiram. Ressuma, o
português de Portugal enriqueceu com a bantunização que Luuandino Vieira operou
através da escrita com um forte cunho de oralidade (ovambundo e quimbundo),
criando um espaço de aproximação entre o narrador / poder colonial e o leitor /
escritor lançando mão de provérbios, ditados e valores dos usos e costumes até
então ocultos e que irão ganhar um forte eco entre os confrades, o que
justificou o Grande Prémio de Novelística da Associação Portuguesa de
Escritores (APE).
"Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro
me contaram assim e não admito ninguém que duvide. (...) E isto é verdade,
mesmo que os casos nunca tenham passado", assim escreveu ele em Luuanda.
Expressão essa reveladora de fidelidade do escriba com a tradição, e não só, de
comprometimento com o meio em que vive, desempenhando ele a tarefa de portador
da sociedade em que está inserido.
Em Luuanda, Luandino Vieira forneceu-me / emprestou-me um narrador que não
precisa de ser cunhado com uma forma oficial que o autorize a escrever, não
sendo ele mais do que co-produtor de uma nova língua portuguesa e paralela que
vive e opera num espaço confinado e clama por um reconhecimento. Será por isso
que o livro continua incólume, na sua inter-temporalidade. Ele chamou-me
atenção para uma escrita despojada de artifício e de maniqueísmo. Uma escrita
que ventile o ar e o aroma do espaço e lugar com que ela faz corpo.
A missão da escrita literária é resgatar o imaginário cultural e levá-lo a
perdurar. Augurado este pressuposto, só assim se compreende a sobrevivência
deste livro que influencia a minha escrita em Nós, os do Macurungo (2013), na
perspectiva de que há um narrador, a seu modo, preocupado com a recreação da
língua e em salvar a oralidade, a partir de uma periferia que irá influenciar e
catalisar a mudança ao nível do próprio sistema linguístico / padrão literário
nacional.
Luandino Vieira representa para mim um escritor que, com esta forma de operar a
escrita e a língua, me transmite um à vontade quanto ao meu lugar na escrita,
livre de qualquer rococó, livre de qualquer etiqueta que privilegie a posição
da escrita literária feita actualmente nas antigas colónias, por isso
reclamando um tratamento mais sério, pelos estudiosos e editoras, à evolução ao
longo dos cinquenta anos, que as literaturas africanas foram tomando, à injusta
e redutora imagem que a limita a dois ou três nomes reconhecidos, enquanto aos
demais lhes é dada uma posição subalterna.
Uma vez aqui chegados, Luandino Vieira, inventor de uma marca literária que se
compatibiliza com o seu meio e o seu tempo mereceria, a par desta homenagem
pelos 50 anos deste Luuanda, uma nata e plêiade de escribas que lhe dessem eco,
em se tratando ele de pai deste modus de fazer literatura, desse modus de
rasgar a gramática e voltar a juntar o puzzle dos papéis, a seu modus
encantatório e maravilhosamente belo, pois é com ele que se sente o cheiro
"fétido" dos outros que atormentam ainda, hoje, a preguiça de embrenhar nos
subterrâneos de África que mais de quinhentos anos passados, continua por
descobrir.
A síndrome que levou ao assalto da APE e a desculpa para se não reconhecer
mérito ao Luuanda, depois dos prémios que mereceu, continua a povoar o meio
inóspito dos estudos literários onde determinados círculos críticos e
intelectuais mantêm latentes a alergia à aceitação natural da herança africana,
e assim o mérito da chama de Luandino Vieira continua na penumbra, essa mesma
que continua acesa nos musseques de Luanda, de Maputo, da Baía, e retintamente
está desfocada nos escaparates das livrarias de Lisboa, reincidente dos
"cheiros fétidos dos outros" que alimentam o folclore e a nostalgia de um
paraíso perdido.
Notas
[1]Adelino Timóteo nasce a 3 de fevereiro de 1970, na cidade da Beira,
Moçambique. Formado em docência de língua portuguesa, não chega a exercer a sua
profissão. Também licenciado em Direito, exerce a atividade de jornalista,
combinando-a com as artes plásticas e escrita literária. Em 2004 e 2007 foi
respetivamente homenageado pelo Instituto Superior Politécnico e Universitário
(ISPU) e Conselho Municipal da Beira, no primeiro caso pela sua poesia, no
segundo pelo seu contributo cultural para a urbe, como escritor e artista
plástico. Em 1999 venceu o Prémio Anual do SNJ para a melhor Crónica
Jornalística. Em 2001 venceu o Prémio Nacional Revelação de Poesia AEMO. Um
excerto dos seus poemas, traduzidos em Italiano, consta da revista Dis/
Uguaglianze.
Publicou os seguintes livros de poesia: Os segredos da arte de amar (1999,
AEMO), Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique (2002, NDJIRA), A
Fronteira do Sublime (AEMO), Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida
(Prémio BCI/AEMO 2011) e Livro Mulher (2013, Alcance Editores). Na prosa, se
lhe destacam: Mulungu (2007), A Virgem da Babilónia (2009), ambos pela Texto
Editores, Nação Pária (2010), Nós, os do Macurungo (2013), Não Chora, Carmen
(2013), essas pelas Alcance Editores, Na Aldeia dos Crocodilos (2014 –conto
infantil, edição Contos pelo Mundo), Apocalipse dos Predadores (Chiado Editora,
Portugal). Ele está antologiado na Antologia da Poesia Moçambicana Nunca mais é
Sábado (Dom Quixote, Lisboa), Colectânea Breve da Literatura Moçambicana
(Identidades), Poesia sempre (2006, Biblioteca Nacional do Brasil) e
Capitalismo um feito Revolução um direito (Galiza, Espanha), entre outras.
Campus de Gualtar
4710-057 Braga
Portugal
ceh@ilch.uminho.pt