Psicologia Cultural e Desenvolvimento Humano: Um encontro com Barbara Rogoff
Psicologia Cultural e Desenvolvimento Humano
Um encontro com Barbara Rogoff
ZILDA FIDALGO (*)
Barbara Rogoff, da Universidade da Califórnia, é um nome de destaque na área da
Psicologia Cultural. Trabalhou no Laboratory of Comparative Human Cognition,
com Michael Cole, James Wertsch, Sylvia Scribner, entre outros. Dentre os
numerosos artigos e publicações ao longo dos últimos 20 anos, destacamos a obra
Apprenticeship in Thinking, uma obra de referência na área da Psicologia
Cultural. A Psicologia Cultural, nas suas diferentes vertentes, pretende
responder ao renascimento do interesse pela natureza social do ser humano, a
que se tem vindo a assistir nas últimas décadas. Este interesse, sendo
recorrente ao longo da história das ciências humanas, continua a ser tratado
segundo dois modelos arquétipos (Valsiner & van der Veer, 2000). No
primeiro desses modelos, os cientistas mostram uma grande preocupação em
demonstrar a “diluição” dos indivíduos nos contextos sociais. De acordo com
este ponto de vista, as pessoas são sociais porque submetem a sua personalidade
individual à necessidade de participar nas actividades de uma determinada
unidade social. O segundo arquétipo, pelo contrário, apresenta as pessoas
enquanto atraídas pelo mundo social, e por isso seguem as suas normas. Contudo,
um terceiro modelo enfatiza simultaneamente a individualidade (uniqueness) e o
relacionamento (relatedness) da pessoa com as unidades sociais, pretendendo
ultrapassar a parcialidade dos dois modelos anteriores. Este modelo, inspirado
no desenvolvimento das teses de Vygotsky, tem vindo a tornar-se o centro das
atenções desde os anos noventa, sob a designação de Psicologia Cultural. É
nesta abordagem que se situa o trabalho desenvolvido nos últimos 20 anos por
Barbara Rogoff, com um enfoque particular na observação etnográfica das
diferentes formas de participação guiada, em contextos de actividade social. O
seu objectivo é pôr em evidência a complexidade da unidade entre as pessoas e
os seus contextos sócio-culturais, recusando separá-los teoricamente. Aquando
da sua participação no XI Colóquio Psicologia e Educação, realizado em Novembro
de 2002, tivemos oportunidade de realizar uma longa entrevista com Barbara
Rogoff, de que apresentamos seguidamente breves excertos, com o objectivo de
clarificar os seus pontos de vista, no momento actual do seu trabalho.
ZF- Como situa a Psicologia do Desenvolvimento no quadro da Psicologia
Cultural, hoje, se é que podemos falar de uma perspectiva única nesta corrente
da Psicologia?
BR- Na família da Psicologia Cultural há hoje uma grande variedade de
abordagens. A maior parte não estuda o desenvolvimento, no sentido do estudo da
infância ou da criança, embora seja importante que se abra uma janela nesse
sentido. Aqueles que tentam abordar o estudo do desenvolvimento humano, em que
incluo o meu trabalho, deslocam-se de uma abordagem do desenvolvimento
individual, como se este acontecesse no vacuum, para o estudo de como as
pessoas crescem e se desenvolvem como participantes, (e não membros, o que
pressuporia uma fronteira entre membros e não membros), em comunidades
culturais. Uma das principais contribuições da Psicologia Cultural consiste
exactamente em mostrar que não há “pessoas genéricas”. Fala-se normalmente da
“criança” como se tal entidade existisse em si mesma. “A criança”o; não existe
enquanto tal - todas as crianças são históricas. Os seres humanos nunca estão
sozinhos, mas em comunidades culturais com uma história, e nós não temos
prestado atenção suficiente à forma como as pessoas participam nessas
comunidades. Em termos de oferta teórica neste campo, não penso que tenhamos
avançado o suficiente. Precisamos de mais investigação empírica e não apenas de
trabalho conceptual. Mas é evidente que o trabalho conceptual é importante e
reorienta a investigação.
ZF- A insuficiência de investigação empírica não poderá conduzir, por vezes, a
um discurso retórico sobre o desenvolvimento humano, a que falta sustentação?
BR- Com certeza. Mas existem já vários trabalhos de observação empírica que
ilustram alguns dos conceitos teóricos. A procura de situações em que se
“vejam” esses conceitos ou ideias é essencial. Por exemplo, a investigação de
Hutches (1991; 1993), sobre a construção de barcos e a arte de navegar, mostra
que a actividade cognitiva, tal como os instrumentos, está distribuída por
todos os que participam na actividade. No meu próprio trabalho estou
particularmente interessada nas variações e diferenças culturais nos processos
de socialização da linguagem, como é o discurso na família e na sala de aula.
Muito trabalho deste tipo tem sido feito, mas é muito recente.
ZF- O conceito de internalização, que aparece tanto em Vygotsky como em Piaget,
tem sido muito discutido, nomeadamente no seu livro Apprenticeship in Thinking,
em que prefere o conceito de apropriação por participação (participatory
appropriation). Gostaria que comentasse.
BR- Não me parece que exista grande concordância entre nós sobre o conceito de
internalização. No que me diz respeito, não preciso de outra palavra para falar
de participação, e sinto-me bastante confortável com o seu uso. A ideia que
tentei dar nesse livro é que a pessoa não é auto-contida e tem que ultrapassar
uma barreira para chegar à cultura. Seria como se houvesse uma “parede” entre o
indivíduo e a cultura, e essas fronteiras não existem. Neste momento não sinto
necessidade de usar a palavra apropriação, mas não estou absolutamente segura.
As pessoas e a cultura não são separadas, por isso a palavra participação, de
momento, é suficiente para mim. E não tem nada de “mágico”, mas traduz o que as
pessoas fazem para que as coisas aconteçam. Na participação num sistema
cultural há transformação.
O programa de investigação de Barbara Rogoff pode, assim, ser caracterizado a
partir das seguintes premissas: a) reconhecimento da natureza holística do
desenvolvimento humano, ou seja, as pessoas e as actividades constituem-se
mutuamente; b) observação dos processos de desenvolvimento pela participação
guiada nas práticas e nos contextos culturais; e c) prioridade das metodologias
qualitativas no estudo dos indivíduos em contextos culturais. O seu percurso
como investigadora conjuga a descrição etnográfica dos fenómenos e dos
diferentes modelos de psicologia popular (folk psychology) existentes, na
psicologia e na educação, e a experimentação em contextos reais de vida.
Desta vertente do seu trabalho dá-nos conta no seu último livro, Learning
Together: Children and Adults in a School Community(2001). Barbara Rogoff e
colaboradores - pais e professores -, relatam-nos uma experiência, que tem
vindo a ser construída nos últimos 20 anos, do que pode ser aprender por
participação numa Comunidade Escolar. A organização desta Comunidade Escolar
baseia-se na articulação das suas ideias teóricas e dos resultados da
observação etnográfica sobre a vida das crianças em diferentes comunidades
culturais.
(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa. UIPCDE.