Desenvolvimento social: Algumas considerações teóricas
Embora os psicólogos do desenvolvimento contemporâneos concordem que retomar o
debate "nature-nurture" (biologia versusambiente social) é
infrutífero, estas duas diferentes concepções, dos determinantes do
comportamento humano persistem na psicologia académica, bem como no senso-
comum. Um bom exemplo disto é o controverso artigo de Scarr (1993), o qual
tenta promover a investigação em genética comportamental, alegando que, devido
ao facto de o ambiente social que rodeia os indivíduos ser tão semelhante, a
diversidade do comportamento humano deve ser explicada pelas diferenças do
património genético. Numa vigorosa reacção a esta posição, Baumrind (1993)
contestou a noção de semelhança dos ambientes sociais, sublinhando os
resultados de numerosos estudos empíricos, que demonstraram como diferentes
condições sociais estão relacionadas com diferenças no desenvolvimento precoce.
Curiosamente, os pioneiros da psicologia do desenvolvimento adoptaram uma visão
bastante diferente. Em vez de tentarem decifrar a contribuição relativa dos
factores genéticos e ambientais no desenvolvimento humano, argumentaram que
ambos actuam em conjunto. Por exemplo, Preyer (1888), um dos primeiros
investigadores do desenvolvimento da criança, propôs que o comportamento deve
ser entendido enquanto produto da interacção entre a biologia e o ambiente
social. As suas pesquisas sobre o desenvolvimento dos sistemas sensoriais
levaram-no a concluir que, ao longo do processo de ontogenia humana, existe
sempre um efeito bi-direcccional entre as funções adaptativas observáveis e as
estruturas orgânicas subjacentes. Da mesma forma, James Mark Baldwin (1902)
propôs que, ao nível comportamental, os resultados d a interacção entre
processos biológicos e psicológicos devem ser considerados mais do que a soma
das partes. A adaptação comportamental é um produto de forças sociais e
biológicas trabalhando juntas para promover níveis crescentes de adaptação
individual. As teorias de Baldwin sobre a interacção entre características
pessoais e experiências sociais realçaram a importância dos parceiros sociais
na construção da personalidade da criança, bem como dos aspectos bi-
direccionais na adaptação individual e social. Para Baldwin, a criança é ao
mesmo tempo um arquitecto e um produto das estruturas sociais que o rodeiam.
Numa reformulação moderna destas perspectivas psicobiológicas, Gottlieb (1991)
propôs que o crescimento individual é conjuntamente determinado pelo genótipo
da criança, pela sua experiência precoce e, ainda, por constrangimentos
imediatos do contexto desenvolvimental. Na sua perspectiva, o desenvolvimento é
o produto de uma co-acção entre a biologia e as influências sociais. As
mudanças desenvolvimentais podem ser reguladas em diferentes níveis de
complexidade orgânica, bem como dentro de cada um dos diferentes níveis. Se os
genes modelam o comportamento, as condições ambientais, também, regulam a
expressão genética. A noção de epigénese postula que o organismo e o contexto
estão integrados enquanto componentes de um sistema aberto, onde o estado
futuro do sistema é determinado por transacções multi-nível. Uma vez que a
variação no tempo dos processos biológicos, psicológicos e sociais não pode ser
pré-estabelecido, a mudança desenvolvimental é necessariamente probabilística.
Uma visão probabilística do desenvolvimento sublinha a diversidade e a
plasticidade de fénotipos particulares e realça que as trajectórias de
desenvolvimento individuais são sempre incertas, embora permaneçam dentro dos
limites de intervalos de reacção específicos de cada espécie.
Vários psicobiólogos contemporâneos argumentaram que, para que seja assegurado
um crescimento óptimo, o processo de desenvolvimento humano requer uma base
genética bem como um ambiente social suficientemente estimulante. Por outras
palavras, a informação que é disponibilizada à criança em crescimento é
fornecida tanto pela esfera genética, como pela esfera sociocultural (Valsiner,
1987). Tal como o património genético, os ambientes sociais possuem uma
organização particular e uma coerência interna próprias que tem implicações
funcionais no crescimento e no desenvolvimento. O ambiente social não é apenas
um suporte, mas é também construtivo e informativo (Lickliter & Berry,
1991). Os teóricos bio-sociais expandiram a perspectiva psicobiológica ao
enfatizar a importância dos limites da plasticidade comportamental (Edelman,
1987). As mudanças que ocorrem durante o desenvolvimento são, também,
governadas por processos selectivos que canalizam as actividades
comportamentais e representacionais, e restringem a emergência de estratégias
adaptativas alternativas. Estes constrangimentos selectivos limitam as
capacidades de ajustamento da criança a situações não familiares. Apesar de ser
esperado um certo grau de plasticidade, as diferenças precoces na experiência
social podem criar e manter diferenças qualitativas nas trajectórias de
desenvolvimento numa mesma população de crianças (Strayer, 1989).
Adoptar uma perspectiva bio-social na psicobiologia do desenvolvimento permite
expandir as perspectivas dos sistemas desenvolvimentais, ao acentuar a
importância de processos peculiares de desenvolvimento que ocorrem em nichos
socio-ecológicos particulares. Os nichos particulares impõem constrangimentos
específicos ao comportamento e servem de contexto facilitador de comportamentos
culturalmente apropriados (Strayer, Verissimo, & Manakowska, 1996; Strayer,
1989). Numa perspectiva bio-social, as crianças são vistas como agentes activos
que integram, especificamente, a informação sobre o seu ambiente que melhor
corresponde ao seu nível actual de funcionamento psicológico e fisiológico. O
estudo das estruturas interpessoais na transmissão de informação social, é
essencial para a compreensão dos processos de desenvolvimento, que geram tanto
as características comuns como a diversidade da adaptação humana (Strayer et
al., 1996).
As últimas duas décadas testemunharam uma renovação do interesse no papel
primário das relações precoces no desenvolvimento de capacidades cognitivas,
afectivas e comunicativas. Este interesse não é inteiramente novo. Já na década
de 1930, Vygotsky, tinha defendido as origens socioculturais do desenvolvimento
cognitivo. Nesta perspectiva, a experiência cognitiva da criança e stá
socialmente enraizada, uma vez que ocorre em primeiro lugar num contexto
interpessoal e só depois se torna integrada num plano psicológico pessoal. Dito
de outro modo, Vygotysky acreditava que o conhecimento é praticado inicialmente
num contexto interpessoal, antes de ser interiorizado e apropriado pela
criança. Vários investigadores que trabalharam posteriormente sobre esta ideia
focaram os seus esforços nos processos de construção social - isto é, na
forma como os adultos facilitam diferencialmente o desenvolvimento cognitivo
das crianças (Laboratory of Comparative Human Cognition, 1983; Rogoff &
Gardner, 1984). De acordo com estes teóricos, as crianças são inicialmente
dependentes dos outros para exercer a regulação dos seus pensamentos e acções,
mas depois sob a influência dos adultos que servem de "andaimes",
por assim dizer, as crianças tornam-se cada vez mais capazes de uma auto-
regulação efectiva (Wertsch, 1979).
Embora à primeira vista a perspectiva socio-cultural de Vygotsky pareça ser
diferente em muitos aspectos de uma abordagem Piagetiana mais clássica do
desenvolvimento, ambos os modelos estão de acordo quanto à importância central
das relações interpessoais enquanto força motriz do crescimento cognitivo da
criança. Piaget propôs que o sujeito epistémico nunca é um sujeito isolado, e
que os significados simbólicos são construídos através da interacção com o
mundo. Numa reinterpretação das reflexões de Piaget sobre a socialização
precoce, Youniss (1980) sublinhou que o desenvolvimento cognitivo não envolve
apenas conhecimentos sobre objectos e lugares mas, também, os conhecimentos
adquiridos durante interacções sociais com outros. As relações sociais em si
mesmas rapidamente se tornam tópicos de reflexão cognitiva.
Para Youniss, tal como para Piaget, o desenvolvimento cognitivo é mais rápido
quando se dá no seio de relações interpessoais íntimas e próximas. O
crescimento e desenvolvimento do indivíduo necessita de uma contínua
reconstituição do selfatravés das transacções sociais com outros (Youniss,
1980). Em última instância, o significado das acções de cada um apenas pode ser
entendido à luz das acções dos outros. As relações próximas, e em especial as
amizades com os pares, fornecem contextos importantes que modelam o
desenvolvimento afectivo e cognitivo. A dinâmica da adaptação socio-cognitiva
existente em tais relações não envolve apenas o dar e receber de informação. O
desenvolvimento socio-cognitivo requer níveis de descentração que envolvem a
co-construção social de significados mútuos com parceiros sociais
significativos. A perspectiva co-construtivista não só sublinha o papel das
relações sociais na construção de um sistema integrado de conhecimento, como
coloca ênfase também na importância que os interesses e valores pessoais têm na
gestão da atenção selectiva a experiências particulares (Wozniak, 1993). As
mudanças desenvolvimentais que facilitam o ajustamento face a pressões
específicas, num determinado contexto socio-cultural, contribuem para a
construção de níveis apropriados de competências comunicativas locais.
ABORDAGENS ETOLÓGICAS
A investigação pioneira em etologia animal dirigiu-se sobretudo para o estudo
sistemático dos padrões fixos de acção [fixed action patterns]. Estas
estruturas comportamentais foram consideradas inatas e o produto da selecção
filogenética. As estruturas sociais de grupos estáveis eram, também, vistas
como tendências específicas da espécie baseadas em determinados modos inatos de
adaptação colectiva (Lorenz, 1965). No entanto, a emergência da etologia
social, nos anos 1970, implicou uma maior ênfase na forma como as dinâmicas da
adaptação social reflectem a interacção contínua entre processos
comportamentais e processos ecológicos de uma dada espécie no seu
habitatparticular (Crook, 1966; Kummer, 1968).
A diversidade da adaptação social individual era, então, vista como uma fonte
importante da variabilidade inter-individual, a qual se tornaria então o
possível objecto da selecção natural. Se a integração e o ajustamento dentro de
um sistema social estabelecido eram considerados como sendo requesitos para a
sobrevivência a curto-prazo, então tais adaptações deveriam determinar o
sucesso reprodutivo individual a longo prazo (Crook, 1970; Kummer, 1968, 1971).
A dicotomia organismo-ambiente, que era tradicional na etologia social, foi
então re-conceptualizada em termos da existência de três sistemas em contínua
interacção: o habitatfísico, a estrutura do grupo social, e o organismo em
desenvolvimento. Esta reformulação teve importantes implicações nos modelos
teóricos sobre o desenvolvimento social, em disciplinas vizinhas, tais como, a
etologia da criança e a psicologia do desenvolvimento (Crook, 1970).
Em vez de colocarem a ênfase nas noções clássicas de padrões de acção
específicos da espécie, os estudos etológicos do comportamento social de
primatas não-humanos dedicaram grande atenção aos sistemas hierarquizados de
sinalização. Nesta perspectiva, a actividade comunicativa foi conceptualizada
como estando sujeita a modulações estratégicas em diferentes contextos sociais
e físicos. Em geral, determinadas formas particulares de comportamento social
foram associadas com papéis específicos prevalentes no interior da estrutura do
grupo. O valor adaptativo de certos comportamentos particulares, depende tanto
do estatuto do indivíduo no interior do sistema social, como do relacionamento
social estabelecido entre os indivíduos (Crook, 1970).
Uma das contribuições teóricas mais importantes que surgiu da etologia dos
primatas foi a formulação de um modelo dialéctico sobre a estabilidade dos
relacionamentos sociais. Os pioneiros da primatologia formularam a teoria de
que a organização social do grupo envolveria o equilíbrio entre forças coesivas
e dispersivas que operavam no interior de uma dada unidade social (Carpenter,
1942; Yerkes, 1928; Zuckerman, 1932). A necessidade de regular estas duas
forças opostas permitia explicar tanto a estrutura emergente do grupo bem como
a estabilidade dos relacionamentos sociais. Teoricamente, a coesão social era
vista como decorrente do interesse comum do grupo para explorar de forma
optimizada os recursos ecológicos e sociais; por seu lado a dispersão social
decorreria da inevitável competição que surge quando certos indivíduos tentam
maximizar o seu acesso aos recursos às custas de outrem. As diferenças no
acesso aos recursos que resultam destes vários processos têm consequências
directas e imediatas para o crescimento e o desenvolvimento individual. Para
além disso, as discrepâncias no acesso dos indivíduos a tais recursos geram
diferenças significativas na aptidão reprodutiva individual a longo prazo
(Dawkins, 1976).
A ECOLOGIA SOCIAL DA COMUNICAÇÃO
Na sua teoria ecológica da condição humana, Bronfenbrenner (1978) argumentou
que as transacções subjacentes ao desenvolvimento ocorrem à medida que os
grupos de organismos interagem colectivamente com o ambiente, para criar um
sistema dinâmico aberto de nível superior. Inspirado pela noção de
"campos ambientais" que modelam a acção humana, formulada por
Lewin, Bronfenbrenner elaborou um modelo ecológico do "desenvolvimento
humano em contexto social", sublinhando o fenómeno de acomodação mútua
progressiva entre a pessoa e os seus contextos sociais quotidianos
(Bronfenbrenner, 1978). O desenvolvimento é por ele entendido como acontecendo
através de processos progressivamente mais complexos de interacção recíproca
entre um organismo bio-social activo e as pessoas, objectos e símbolos do seu
ambiente envolvente (Bronfenbrenner, 1978). Percebendo a vastidão das
capacidades adaptativas humanas, Bronfenbrenner insistiu na ideia de que
modelos teóricos unidimensionais nunca poderão explicar o desenvolvimento das
acções humanas. As explicações para as questões desenvolvimentais requerem
abordagens multidimensionais e não-lineares. Os estudos ecológicos devem ser
bi-direccionais e multivariados, mas devem sobretudo acentuar os sistemas
abertos funcionando num contexto em contínua mudança (Soczka, 1989).
Em 1996, Bronfenbrenner clarificou quais as condições de aplicação do seu
paradigma ecológico ao estudo do desenvolvimento humano. As pesquisas
ecológicas deveriam examinar as relações multivariadas existentes ao longo do
tempo entre as medidas relativas a Pessoas, Processos e Contextos(PCC). No seu
modelo PCC, Bronfenbrenner propõe que as variáveis relativas à Pessoa deverão
incluir características do indivíduo avaliadas aos níveis socio-histórico,
psicológico e biológico. O Contextorefere-se a constrangimentos situacionais
que podem ir desde as diferenças nos sistemas socio-culturais (e.g., Nativos
americanos versusEuro-americanos), diferenças contemporâneas no acesso aos
recursos (e.g., classe operária versusclasse média), aos modos prevalentes de
interacção familiar (e.g., estilos parentais autoritário versusdemocrático). Os
Processosvariam ao longo do tempo e existem como função conjunta da pessoa e do
contexto; a interacção entre variáveis da pessoa e do contexto não é nem
linear, nem aditiva, mas sim sinergética.
O modelo ecológico rejeita explicitamente a assumpção de que os processos
desenvolvimentais são de carácter universal. Em vez disso, adopta um ponto de
vista onde as diferenças qualitativas no desenvolvimento individual resultam
das variações nos atributos dos parceiros sociais e dos padrões de troca
social. Apesar deste modelo fornecer um enquadramento intuitivamente acessível
para a investigação do desenvolvimento humano, é muitas vezes difícil delinear
distinções operacionais entre os vários componentes do modelo. Por exemplo,
Strayer, Veríssimo e Manikowska (1996) ilustraram como a segurança da
vinculação primária pode ser entendida tanto como uma variável da pessoa, como
um aspecto do contexto interpessoal, ou ainda como parte de um processo de
regulação socio-afectiva. Uma vez que as pessoas se encontram em transacções
contínuas com os contextos, é frequente esbaterem-se as fronteiras empíricas
entre os componentes do modelo ecológico.
A adopção de uma perspectiva ecológica no estudo do desenvolvimento da criança
requer uma revisão das noções construtivistas sobre a interacção organismo-
ambiente, em favor de uma visão mais dinâmica dos processos co-adaptativos das
populações. Segundo Bronfenbrenner o modelo PPCdo desenvolvimento da criança,
sublinha a necessidade de um tratamento mais rigoroso de diversos factores que
modelam a adaptação precoce da criança. A especificação adequada de
características pré-existentes das pessoas e dos contextos levanta questões
profundas sobre como descrever e classificar a diversidade dinâmica dentro de
dadas populações de sujeitos. Os esforços para elucidar as forças sistémicas
que dão forma ao crescimento e ao desenvolvimento individual requerem o uso de
estratégias não-paramétricas multivariadas que são pouco familiares para muitos
investigadores das ciências sociais.
Problemas semelhantes a estes já tinham ocorrido nas ciências biológicas,
nomeadamente, na pesquisa sobre processos co-adaptativos em ecosistemas
restritos ou semi-fechados (Legendre & Legendre, 1984). Por exemplo, a
primeira tarefa da ecologia é estabelecer curvas de tolerância adaptativa para
uma determinada espécie; a curva de tolerância é uma caracterização
multivariada do espectro de ambientes nos quais a espécie é viável. A evidência
empírica indica-nos que determinados aspectos físicos e sociais do ambiente co-
variam de forma a modular zonas de tolerância, e que essa modulação está, por
sua vez, normalmente sob a influência de outras variáveis. A adaptação emerge
enquanto resposta integrada a pressões combinadas e em interacção, vindas de
diferentes partes do ecossistema, e não envolve o ajustamento a pressões
selectivas unitárias. Neste contexto, a noção de que existe um nível optimal
fixo de desenvolvimento pode ser considerado como um artifício da simplificação
conceptual, a qual persiste no uso de análises univariadas na sua exploração do
controlo ambiental (Putman & Wratten, 1984).
De uma forma semelhante para a psicologia, os processos de desenvolvimento não
podem ser compreendidos através de análises singulares de aspectos pré-
seleccionados do funcionamento social, psicológico ou biológico. A
diferenciação de trajectórias de desenvolvimento requer que se faça uma
classificação multi-dimensional, usando variáveis ecológicas relevantes, de
modo a derivar categorias empíricas referentes às normas locais que regulam os
processos adaptativos em sub-grupos específicos de pessoas.