Entre o horror, a missão e a epopeia: Modalidades de atribuição de significado
à participação na Guerra Colonial Portuguesa pelos seus ex-combatentes
Quem esteve aqui não consegue voltar o mesmo …(Lobo Antunes, 1979, Os cus de
Judas)
INTRODUÇÃO
Não obstante a acentuada prevalência de PTSD nas amostras de combatentes, à
semelhança do que acontece com outras situações potencialmente traumáticas,
estas não têm como único desfecho a patologia física ou psicológica. Schnurr,
Rosemberg, e Friedman (1993, citado por Aldwin, Levenson, & Spiro III,
1994) já haviam demonstrado que uma exposição moderada a situações de combate
poderia resultar em modificações positivas de personalidade, contrariamente ao
que acontecia com uma exposição baixa ou acentuada. Elder e Clipp (1989, citado
por Aldwin, Levenson, & Spiro III, 1994) sugeriram que a exposição a
combate tanto poderia originar patogenia como ganhos desenvolvimentais.
Presentemente, no contexto da Psicologia Positiva, tem-se vindo a desviar a
atenção da patologia e a defender a elaboração de modelos compreensivos do
funcionamento humano que abranjam a totalidade da experiência humana desde o
sofrimento, passando pela resiliência até ao crescimento e funcionamento
optimal (Linley & Joseph, 2005; Seligman & Csikszentmihalyi, 2000,
citado por Amy, Cascio, Stangelo, & Campbell, 2005; Seligman, Steen, Park,
& Peterson, 2005). Bonanno (2004) refere mesmo que grande parte da
comunidade científica subestima a existência de resiliência face ao trauma,
considerando-a quer um estado patológico quer algo extremamente raro, presente
apenas em indivíduos excepcionalmente saudáveis, o que se poderá dever ao facto
do conhecimento sobre as estratégias de copingusadas pelos adultos expostos ao
trauma resultar essencialmente do estudo daqueles que apresentam grandes
perturbações psicológicas.
A possibilidade das situações de stressextremo poderem apresentar não só
consequências negativas mas também positivas, não é uma descoberta recente. Em
1964 Gerald Caplan, na sua teoria da intervenção na crise, já havia descrito de
que modo as situações de crise podiam ser perturbadoras ou maturantes. De
acordo com este autor, os indivíduos ao esforçarem-se por repor o equilíbrio
psicológico perturbado pela crise, poderiam beneficiar das dificuldades
enfrentadas, vindo a desenvolver estratégias de copinginovadoras e mais
eficazes. Autores como Frankl (1963) e Maslow (1970, citado por Tedeschi &
Calhoun, 2005) subscreviam igualmente a possibilidade das crises de vida
poderem desencadear mudanças pessoais positivas. Na mesma linha, a existência
de consequências positivas nas situações extremas de stressjá havia sido
demonstrada empiricamente por alguns autores no passado (e.g., Spprenkkle &
Cyrus, 1983, citados por Aldwin, Levenson, & Spiro, 1994). De facto, já em
1983, Zautra e Sandler (citado por Aldwin, Levenson, & Spiro, 1994), haviam
proposto dois modelos complementares para os efeitos de longo curso das
situações extremas de stress, considerando a possibilidade das mesmas poderem
vir a desencadear situações de sofrimento ou de crescimento psicológico. Na
mesma linha de pensamento, Antonovsky (1987, citado por Nunes, 1999) propôs o
conceito de sentido de coerência para explicar porque motivo alguns indivíduos
apresentavam uma boa saúde física e psicológica não obstante viverem em
situações de stressextremo. Este conceito já indiciava a mudança de interesse
dos investigadores dos paradigmas patogénicos para os salutogénicos e mostra-se
consonante com o objecto de estudo da recente Psicologia Positiva.
No âmbito dos aspectos positivos associados às situações de stressextremo, a
literatura apresenta-nos basicamente dois conceitos, a resiliência (Aldwin,
Levenson, & Spiro III, 1994; Bonanno, 2004; Fredrickson, Tugade, Waugh,
& Larkin, 2003; Stein, Tran, Lund, Haji, Dashevsky, & Backer, 2005) e o
crescimento pós-traumático (Amy et al., 2005; Frazier, Amy, & Glasser,
2001; Frederickson et al., 2003; Joseph, linley, Andrews, Harris, Howle,
Woodward, & Shevlin, 2005; Linley & Joseph, 2004, 2005; Powell, Rosner,
Butollo, Tedeshi, & Calhoun, 2003; Tedeschi & Kilmer, 2005; Tedeschi,
Park, & Calhoun, 1997).
O conceito de resiliência tem sido caracterizado como a capacidade dos
indivíduos para lidarem com experiências emocionais negativas adaptando-se com
flexibilidade às exigências de mudança das experiências stressantes (Lazarus,
1993, citado por Tugade & Fredrickson, 2004). Bonanno (2004, p. 20) fala na
resiliência à perda e ao trauma e define-a "como a capacidade dos
adultos, habitualmente a viverem em circunstâncias normais, de manterem um
estado relativamente estável e saudável de funcionamento físico e psicológico
quando expostos a um acontecimento isolado potencialmente perturbador como por
exemplo a morte de algum familiar próximo ou uma situação de grande perigo de
vida" eacrescenta que a resiliência deverá ser distinguida da simples
recuperação à psicopatologia traumática pois, na sua opinião, ser resiliente ao
trauma exige que a pessoa mantenha um equilíbrio e stável, graças à utilização
de estratégias de coping adaptativas, aquando da vivência de uma situação de
stressextremo.
A capacidade prévia de resiliência face à adversidade, apesar de
inquestionável, não explica o facto, amplamente descrito na religião e na
filosofia, de que a luta e o confronto com grandes perdas na vida poder vir a
ser, para algumas pessoas, fonte de desenvolvimento da percepção do sentido da
vida e uma motivação para mudanças positivas de personalidade. Curiosamente, os
novos desenvolvimentos na área da psicotraumatologia têm vindo a mostrar que
algumas pessoas usam os acontecimentos de stressextremo como matéria-prima para
seu crescimento e desenvolvimento, por outras palavras, são capazes de
apresentar Crescimento Pós-Traumático - CPT (Amy et al., 2005; Frazier,
Amy & Glasser, 2001; Frederickson et al., 2003; Joseph et al., 2005; Linley
& Joseph, 2004, 2005; Powell, Rosner, Butollo, Tedeshi, & Calhoun,
2003; Tedeschi & Kilmer, 2005; Tedeschi, Park, & Calhoun, 1997).
Mais do que a manutenção de um "estado relativamente estável e saudável
de funcionamento físico e psicológico (...)" (Bonanno, 2004, p. 20) as
pessoas com crescimento pós-traumático denotam mudanças pessoais positivas e um
nível de funcionamento físico e psicológico superior ao que tinham antes de
haverem lidado com as experiências adversas (Linley & Joseph, 2004).
As evidências empíricas neste domínio mostram que 40 a 70% das pessoas que
experimentam um acontecimento traumático referem, mais tarde, alguma forma de
benefício dessa experiência, nomeadamente após desastres, lutos, cancro, entre
outros (Davis, Nolean-Hoeksema, & Larson, 1998; Schwartzberg & Janoff-
Bulman, 1991, citado por Joseph et al., 2005).
Convém salientar que não é a adversidade e o trauma que levam ao crescimento,
mas o enfrentamento que a pessoa lhes faz. Neste sentido, o crescimento pós-
traumático surge frequentemente em concomitância com o sofrimento emocional e
muitas das pessoas que o referem apresentam total consciência tanto dos
aspectos positivos como dos negativos da sua experiência (Calhoun &
Tedeschi, 2001). As investigações têm encontrado resultados ambíguos no que se
refere à associação entre crescimento pós-traumático e outras medidas de
ajustamento psicológico. Alguns resultados indicam que essa associação existe
mas, outros não (Calhoun & Tedeschi, 1998; Park, Cohen, & Hunt, 1996).
Lev-Wiesel e Amir (2003), num estudo feito em crianças sobreviventes ao
Holocausto, verificaram que o crescimento pós-traumático coexistia com o
sintoma de activação da PTSD.
O crescimento pós-traumático é uma consequência e um processo face à vivência
da adversidade (Tedeschi, Park, & Calhoun, 1997) resultante dum trabalho
cognitivo orientado para a reconstrução dos pressupostos da vítima sobre o eu e
sobre o mundo postos em causa pelo acontecimento traumático. Se o processo for
bem sucedido o resultado será a integração do acontecimento adverso em
construtos psicológicos de maior complexidade (Joseph et al., 2005; Tedeschi,
Park, & Calhoun, 1997). Tomando o crescimento pós-traumático como uma
consequência, é possível identificá-lo em três grandes domínios de mudanças: ao
nível da percepção do eu, dos relacionamentos pessoais e da filosofia de vida
(Tedeschi & Calhoun, 1995, citado por Tedeschi, Park, & Calhoun, 1997).
As mudanças na percepção do eu levam a pessoa a deixar de se ver como uma
vítima e a intitular-se sobrevivente. Esta mudança é de alguma forma paradoxal,
pois o sobrevivente antecipa uma maior vulnerabilidade face a posteriores
acontecimentos adversos mas, ao mesmo tempo, apresenta um sentimento aumentado
de força pessoal (Calhoun & Tedeschi, 2001; Tedeschi, Park, & Calhoun,
1997) que lhe provoca uma sensação de inoculação face à adversidade. As
mudanças nos relacionamentos pessoais reflectem-se quer num sentimento
acrescido de empatia e de proximidade aos outros, quer numa expressividade
emocional aumentada (Calhoun & Tedeschi, 2001). As alterações na filosofia
de vida podem materializar-se em mudanças nas prioridades de vida, na atitude
existencial, na espiritualidade e na aquisição de sabedoria (Tedeschi, Park,
& Calhoun, 1997). As mudanças nas prioridades da vida passam pela
capacidade de apreciar "as pequenas coisas da vida", nomeadamente o
valor de cada dia (Tedeschi & Calhoun, 1996). A atitude existencial parece
alterar-se em consequência da transformação dos pressupostos prévios das
vítimas em relação ao mundo e manifesta-se numa maior consciência do
"sentido da vida" (Calhoun & Tedeschi, 2001) ou seja, as
pessoas que enfrentam a perda de familiares, violação, violência (...)
questionam-se muito mais sobre o sentido d a vida e inevitabilidade da morte,
independentemente de encon-trarem ou não respostas satisfatórias para essas
questões (Calhoun & Tedeschi, 2001; Yalom & Lieberman, 1991, citado por
Tedeschi, Park, & Calhoun, 1997). Ao nível espiritual, o crescimento pós-
traumático pode reflectir-se por si só na possibilidade de dar sentido ao
trauma permitindo a sua compreensão e integração (Weisner, Betzer, &
Stolze, 1991, citado por Tedeschi, Park, & Calhoun, 1997), no
desenvolvimento de um sentimento acrescido de compromisso para com as suas
crenças religiosas ou numa reconversão (Pargament, 1996, citado por Tedeschi,
Park, & Calhoun, 1997). Relativamente à aquisição de sabedoria, Tedeschi,
Park, e Calhoun (1997) apresentam-na como um conceito unificador das mudanças
ocorridas na generalidade das dimensões antes referidas, o que se traduz nas
aprendizagens feitas pelos sobreviventes ao trauma ao nível de aspectos tais
como: a valorização da vida; a clarificação das suas prioridades; investimento
no relaciona-mento com os outros; aquisição de estratégias para lidar com
situações adversas e na vivência do sentido espiritual da vida.
No âmbito das investigações sobre os efeitos positivos/benefícios percebidos da
participação em combate, os estudos de Aldwin, Levenson, e Spiro III (1994) e
os de Fontana e Rosenheck (1998) são de especial relevância para o nosso
trabalho uma vez que os autores analisaram o papel das avaliações positivas e
negativas feitas pelos ex-combatentes para as suas experiências de exposição ao
combate na predição da relação entre a exposição ao combate e a vulnerabilidade
ou resiliência face ao desenvolvimento de PTSD.
Aldwin et al.(1994), ao estudarem os veteranos da II.ª Guerra Mundial e da
Coreia, perceberam que estes enumeravam significativamente mais consequências
positivas do que negativas para a experiência de combate, sendo estas a
aprendizagem da cooperação/trabalho de equipa; a valorização da paz; o
desenvolvimento de um sentido de independência, a clarificação do objecto e
sentido da vida, auto-estima acrescida e o reconhecimento do valor da vida.
Fontana e Rosenheck (1998), num estudo com veteranos da guerra do Vietname,
identificaram um leque de benefícios e dificuldades psicológicas para a
experiência de combate mais abrangente do que os que foram descritas por Aldwin
et al.(1994). Relativamente às consequências psicológicas positivas, as
categorias salientadas pelos participantes foram: o auto-desenvolvimento (i.e.,
reconhecimento de maior assertividade, responsabilidade e fé religiosa), a
afirmação de crenças patrióticas (i.e., valorização da liberdade e da missão de
combate) e a solidariedade para com os outros (i.e., desenvolvimento de
tolerância, compaixão e proximidade em relação aos outros). No âmbito das
dificuldades psicológicas enumeradas pelos veteranos, Fontana e Rosenheck
(1998) referem a decepção nas crenças patrióticas (i.e., a constatação do
absurdo da guerra, dos motivos económicos que a sustentam e o descrédito na
ética da conduta de guerra), a autodecadência (i.e., a constatação de se haver
tornado menos ambicioso, descrente no valor da vida, mais negligente e receoso
da morte) e a alienação em relação aos outros (i.e., mais intolerante,
conflituoso e céptico quanto à bondade da natureza humana).
Em ambos os estudos foi possível verificar que as consequências positivas/
benefícios psicológicos diminuíam a relação entre PTSD e grau de exposição ao
combate, e que as consequências negativas/dificuldades psicológicas a
aumentavam. As evidências de ambas as investigações mostraram que a capacidade
de enumerar consequências psicológicas positivas para a exposição ao trauma
parece proteger os indivíduos relativamente ao desenvolvimento de PTSD,
enquanto que a enumeração de dificuldades psicológicas parece potenciá-la.
Assim, as consequências psicológicas positivas e as dificuldades psicológicas
revelaram-se mediadoras da relação entre a exposição ao combate e
desenvolvimento de PTSD. Adicionalmente, Fontana e Rosenheck verificaram que as
consequências psicológicas positivas tinham um papel moderador relativamente às
dificuldades psicológicas face ao desenvolvimento de PTSD ou seja, quando a
autodecadência estava presente em concomitância com o autodesenvolvimento, a
probabilidade dos indivíduos desenvolverem PTSD era muito menor do que quando
era apenas referida a autodecadência.
Os resultados destes estudos mostraram ainda que as consequências psicológicas
positivas e as dificuldades psicológicas enumeradas pelos veteranos de guerra
eram mutuamente independentes. Face a esse resultado, Fontana e Rosenheck
(1998) concluíram que mesmo circunstâncias tão terríveis e horríficas como o
trauma de guerra podem desencadear nas vítimas, lado a lado, significados
positivos e negativos. Sendo as experiências de stressextremo, como as de
combate, susceptíveis de fomentarem nos indivíduos tanto consequências
positivas como negativas, concordamos com Linley e Joseph (2005) quando os
autores nos dizem que a adversidade pode desencadear três ordens de
consequências, a psicopatologia, a resiliência e o crescimento pós-traumático,
pelo facto de desafiarem as teorias pessoais/ /significados das vítimas a
respeito do eu, dos outros e do mundo. Esse desafio surge como um risco e uma
oportunidade. Por um lado, aumenta a vulnerabilidade da vítima ao sofrimento
emocional e aos sintomas de PTSD (Bramsen, van der Ploeg, van der Kamp, &
Adérc, 2001), por outro lado, pode desembocar quer em resiliência quer em
crescimento pós-traumático, em função da forma como a vítima venha a fazer,
posteriormente, o processamento/ /atribuição de significado ao trauma
(O'Leary, Aldway, & Ickovicks, 1998).
OBJECTIVO DO ESTUDO
Este estudo teve como objectivo a compreensão da natureza e diversidade dos
significados atribuídos pelos ex-combatentes à sua experiência de participação
na guerra colonial portuguesa que decorreu entre 1961 e 1974 em Angola, Guiné e
Moçambique, e procurou explorar a possibilidade de, à semelhança dos autores
mencionados, também nós podermos encontrar atribuições de significado
diversificadas para a experiência da participação na guerra.
MÉTODO
Design e análises
Para a prossecução deste estudo optámos pela utilização de uma metodologia
qualitativa, especificamente, a Grounded Theory(Strauss & Corbin, 1990).
Esta metodologia revelou-se em conformidade com os nossos objectivos pois, por
definição, permite a compreensão das experiências e dos significados que os
seres humanos constroem em interacção (Fernandes & Maia, 2001) e apresenta
como princípio basilar a exploração, elaboração e sistematização dos
significados de um determinado fenómeno tendo em consideração as modalidades
interpretativas do conhecimento do mundo social e o próprio entendimento do
investigador relativamente ao fenómeno investigado (Pires, 2001).
Sendo a construção de teoria a pedra basilar da Grounded Theory, implementámos
uma metodologia de trabalho baseada em modalidades de pensamento indutivo. P
rocurámos concretizar as características distintivas da Grounded Theoryconforme
foram apresentadas por Glaser e Strauss (1967), nomeadamente recolher e
analisar os dados em simultâneo; criar códigos analíticos e categorias de
análise dos dados a partir dos próprios dados e não a partir de hipóteses
prévias; construir teorias provisórias para explicar os comportamentos e
processos; escrever de forma sistemática memorandos sobre a análise dos dados
com vista à construção e explicação de categorias; realização sistemática de
comparações entre os dados, entre os dados e os conceitos e entre os próprios
conceitos; o refinamento de categorias e realização da revisão bibliográfica
após a análise dos dados.
Participantes
Participaram neste estudo 361 ex-combatentes da Guerra Colonial Portuguesa,
todos homens (média idade 57,53 anos, d.p.3,69; mínimo 51, máximo 68), dos
quais 314 viriam a constituir a nossa sub-amostra. Estes sujeitos faziam parte
da amostra do estudo r ealizado por Maia, McIntyre, Pereira, e Fernandes (2005)
intitulado Factores preditores de PTSD, problemas de saúde física e
psicológica, ajustamento familiar, laboral e social em ex-combatentes da Guerra
Colonialno Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho. Os
sujeitos eram provenientes dos distritos de Beja (2,6%), Braga (48%), Chaves
(2%), Faro (4%), Porto (30.3%), Viana do Castelo (9,7%) e Viseu (3,4%). Os
sujeitos apresentam um baixo nível escolar sendo que 68,3% tem como
escolaridade o primeiro ciclo do ensino básico. Relativamente ao estado civil,
90,3% são casados. A grande maioria dos sujeitos não exerce actividade
profissional, 42,6% estão desem-pregados e 21,2% são reformados. Entre os
participantes, 57% considera que durante a Guerra Colonial esteve exposto a
experiências traumáticas. Uma grande parte dos sujeitos apresenta sintomas de
perturbação psicológica (56%) e 39% apresenta sintomas suficientes para lhes
ser diagnosticado PTSD.
Procedimentos
Os sujeitos foram seleccionados aleatoriamente a partir de uma base de dados de
uma associação de ex-combatentes e foram convidados telefonicamente a
participarem num estudo nacional com ex-combatentes, a decorrer na Universidade
do Minho.
O protocolo de investigação era constituído por vários instrumentos que
caracterizam social e demograficamente os participantes e fazem uma descrição
da história militar, nomeadamente no que diz respeito à exposição a combate e
outras experiências adversas bem como à forma como avaliam actualmente esta
experiência. Para além disso procura fazer uma avaliação da história de
desenvolvimento em termos de cuidados recebidos e uma caracterização do
funcionamento actual tanto em termos de psicopatologia como de queixas de
saúde.
Os resultados aqui relatados referem-se à análise das respostas escritas dadas
pelos sujeitos à questão de estudo, Que significado tem na sua vida ter estado
na guerra(Maia e col., 2005) que constitui a única parte de resultados de
natureza qualitativa integrada neste protocolo.
A análise das respostas dos sujeitos foi feita segundo os procedimentos de
codificação aberta e axial tal como são preconizados pela Grounded Theory e sem
recurso a qualquer programa informático de análise qualitativa de dados.
RESULTADOS
A análise das respostas mostrou-nos a existência de 61 afirmações diferentes,
que indexam a experiência de participação na guerra a significados positivos,
negativos e ambíguos. As respostas de maior frequência foram nenhum, algo sem
objectivos e sem futuro(16,2%), defender a pátria serviço cumprido(12,4%)
(Quadro_1).
QUADRO_1
Frequência das afirmações sobre o significado da guerra (n=361)
Afirmação Frequência
Nenhum, algo sem objectivos e sem futuro 51 (16,2)
Defender a pátria, serviço cumprido 39 (12,4)
Obrigado, contrariado, cumprir um dever imposto 37 (11,8)
Atraso na vida pessoal/profissional 28 (8,9)
Perda de tempo irreparável, inutilidade 27 (8,6)
Orgulho/honra 23 (7,3)
Crescimento pessoal 7 (2,2)
Contribuição para problemas a nível de saúde física e psicológica 7 (2,2)
Guerra roubou melhor tempo da vida - a juventude 7 (2,2)
Um tempo de sofrimento 6 (1,9)
Uma injustiça 5 (1,6)
Marcou para toda a vida quer pela positiva quer pela negativa 5 (1,6)
Guerra sem vantagens - afinal perdeu-se tudo 4 (1,3)
Sentir-se usado pelo estado português 3 (1,0)
Mal-estar permanente 3 (1,0)
Conhecer áfrica 3 (1,0)
Defender e proteger os portugueses que lá estavam ou a população que lá 2 (0,6)
vivia
Conhecer amigos 2 (0,6)
Desgosto 2 (0,6)
Foi bom 2 (0,6)
Sentimento de raiva, desgosto pela forma como ex-combatentes são tratados, 2 (0,6)
esquecimento
Impedimento - progredir profissionalmente 2 (0,6)
Prazer de conhecer novas terras 2 (0,6)
Destruiu a nível psicológico 2 (0,6)
Uma vítima 2 (0,6)
Anos de vida perdidos 2 (0,6)
Insegurança 2 (0,6)
Contribuição para a formação 2 0(,6)
Revolta 2 (0,6)
Sente-se um homem diferente 1 (0,3)
Foi horrível, queria fugir 1 (0,3)
Modificou a maneira de ser para pior 1 (0,3)
Fez coisas que não devia ter feito 1 (0,3)
Sentiu-se útil pelo seu desempenho 1 (0,3)
Não se sentir orgulhoso 1 (0,3)
Sociedade em que vive não reconhece o sacrifício que passou 1 (0,3)
Não ter medo a nada 1 (0,3)
Arruinou a saúde e vida pessoal 1 (0,3)
Grande alteração do sistema nervoso 1 (0,3)
Defender-se a si próprio 1 (0,3)
Ajudou a formar a sua personalidade-mais resistente 1 (0,3)
Contribuiu para estragar famílias e países atrasados 1 (0,3)
Defender uma causa que era justa 1 (0,3)
Tomada de consciência das suas capacidades e forças 1 (0,3)
A vida por um fio 1(0,3)
Ser um bom português 1 (0,3)
Amadurecer, mais conhecimento 1 (0,3)
Mais compreensivo para com o ser humano 1 (0,3)
Satisfação 1 (0,3)
Sentir-se mais agarrado à vida 1 (0,3)
Sentir-se um herói 1 (0,3)
Raiva da descolonização 1 (0,3)
Defender o que era nosso 1 (0,3)
Disciplina 1 (0,3)
Racismo 1 (0,3)
Mais compreensivo para com situações de vida 1 (0,3)
Medo 1 (0,3)
Muitas vidas perdidas 1 (0,3)
Contribuição para problemas 1 (0,3)
Total das respostas 314
Não respondem 48
Na sequência da codificação aberta e axial que levámos a cabo a partir das
afirmações dos sujeitos foi-nos possível identificar duas categorias centrais
como representantes do significado atribuído à participação na Guerra Colonial
Portuguesa, a Guerra enquanto vivência e a Guerra enquanto espólio. A Guerra
enquanto vivência é múltipla nas suas manifestações. Para alguns sujeitos
constituiu um período da vida pautado pelo tormento, para outros, o simples
cumprimento de um serviço ou até a vivência de uma epopeia. A Guerra enquanto
espólio pode ser vista nas perdas e nas aquisições que dela resultaram para os
sujeitos.
A guerra enquanto tormento
O tormento dos soldados apresenta expressão emocional e perceptiva. As emoções
indexadas ao período de mobilização são a ameaça sentida devido ao perigo de
morte eminente, o sentimento de injustiça por haverem sido obrigados a
participar na guerra e a vivência de sentimentos de culpa por acções
perpetradas nos teatros d e guerra. Entre as afirmações que ilustram esta
propriedade referem-se a um tempo de sofrimento; a vida por um fio; foi
horrível; queria fugir; uma injustiça; mal-estar permanente, fez coisas que não
devia ter feito (...).Ao nível perceptivo o sofrimento manifesta-se na denúncia
do absurdo dos motivos da guerra, no reconhecimento de terem sido mobilizados
para a guerra através da coacção e da manipulação. Nas palavras dos sujeitos,
nenhum significado, algo sem objectivos e sem futuro; sentir-se usado pelo
estado português; ter sido obrigado; ter participado contrariado; cumprir um
dever imposto.
A guerra enquanto cumprimento de um serviço
A guerra enquanto o cumprimento de um serviço manifesta-se na aceitação da
legitimidade das causas da guerra, na visão do serviço militar enquanto uma
obrigação à Pátria e na execução das operações com uma atitude de profissiona-
lismo, defender o que era nosso; defender e proteger os portugueses que lá
estavam ou a população que lá vivia; defender a pátria; serviço cumprido. Ao
nível emocional a indexação da guerra ao cumprimento de um serviço manifesta-se
em sentimentos de satisfação e realização pessoal, sentiu-se útil pelo seu
desempenho; sentiu-se um bom português; satisfação.
A guerra enquanto epopeia
A guerra enquanto epopeia caracteriza-se pela percepção da guerra enquanto uma
oportunidade para conhecer países, povos e culturas completa-mente
desconhecidos até há data e desenvolver novas amizades, prazer de conhecer
novasterras; conhecer África; conhecer amigose pela expressão de sentimentos de
patriotismo e de heroísmo, satisfação; sentir-se um herói; foi bom; orgulho/
honra.
A Guerra enquanto perdas irreparáveis
As perdas irreparáveis decorrentes da guerra manifestam-se aos níveis político/
humanitário e pessoal. No âmbito das perdas políticas/humanitárias contam-se a
perda das colónias, o atraso do desenvolvimento dos países Africanos e as
inúmeras baixas tanto nos militares como na população civil, muitas vidas
perdidas, guerra sem vantagens - afinal perdeu-se tudo, contribuiu para
estragar famílias e países atrasados. As perdas ao nível pessoal distribuem-se
pelas áreas da saúde, grande alteração do sistema nervoso; arruinou a saúde e
vida pessoal; destruiu a nível psicológico; contribuição para problemas aos
níveis de saúde física e psicológica, do ciclo de desenvolvimento pessoal,
guerra roubou melhor tempo da vida - a juventude; anos de vida perdidos;
perda de tempo irreparável; inutilidade, da integração social, sociedade em que
vive não reconhece o sacrifício que passou, sentimento de raiva, desgosto pela
forma como ex-combatentes são tratados, esquecimento; da progressão académica e
profissional, impedimento de progredir profissionalmente; perda de tempo
irreparável, inutilidade, atraso na vida pessoal/profissional.
A Guerra enquanto aquisição
A guerra permitiu efectuar aquisições aos níveis instrumental e psicológico. As
mais-valias instrumentais foram a possibilidade dada a alguns dos sujeitos para
finalizarem a sua escolaridade básica e para tirarem a carta de condução,
contribuição para a formação; amadurecer; mais conhecimento. As aquisições ao
nível psicológico distribuem-se entre a vulnerabilidade e a maturidade. As
vulnerabilidades expressam-se na consciência de se haver adquirido uma maior
instabilidade emocional, contribuição para problemas a nível de saúde física e
psicológica; mal-estar permanente; sentir-se uma vítima; grande alteração do
sistema nervoso e no sentimento de exclusão social, sociedade em que vive não
reconhece o sacrifício que passou; sentimento de raiva, desgosto pela forma
como ex-combatentes são tratados; esquecimento.A maturidade expressa-se nas
áreas da autonomia, amadurecer; mais conhecimento; tomada de consciência das
suas capacidades e forças; ajudou a tornar a sua personalidade mais resistente;
defender-se a si próprio, e filosófica, mais compreensivo para com o ser
humano; mais compreensivo para com situações de vida.
Nas Figuras_1 e 2 apresentamos uma tentativa de organização axial das
categorias Experiência de Guerrae Espólio de Guerratendo em consideração as
suas respectivas propriedades.
FIGURA_1
FIGURA_2
DISCUSSÃO
Os nossos resultados sugerem a existência de significados múltiplos para a
experiência da guerra colonial reforçando a ideia de Quintais (2000) quando
refere que apesar da faceta narrativa mais destacada desta guerra ser a que
remete para os significados traumáticos, ela não é de forma nenhuma a única. A
análise das afirmações dos ex-combatentes permitiu-nos perceber com mais
acuidade o apelo da Psicologia Positiva face ao desenvolvimento de modelos
compreensivos do funcionamento humano que abranjam a totalidade da experiência
desde o sofrimento, passando pela resiliência, até ao crescimento e
funcionamento optimal (Linley & Joseph, 2005; Seligman &
Csikszentmihalyi, 2000, citado por Amy et al., 2005; Seligman et al., 2005). A
emergência de significados negativos e positivos face à exposição ao combate
mostra que mesmo em situações tão horríficas como a guerra, é possível
encontrar, lado a lado, significados positivos e negativos (Fontana &
Rosenheck, 1998).
A groundedanálise dos dados permitiu-nos seleccionar duas grandes categorias
integradoras dos significados das experiências de guerra, a guerra enquanto
vivência e a guerra enquanto o espólioque dela resultou. O carácter da guerra
enquanto experiência surge nas propriedades Tormento, Serviço e Epopeia. A
Vivência de Guerra na sua propriedade Tormentopoderá estar associada ao aspecto
"sísmico" que é atribuído aos acontecimentos traumáticos dada a sua
capacidade para destruir os pressupostos dos indivíduos sobre si próprios,
sobre os outros e sobre o mundo (i.e., enquanto local justo e seguro) (Bramsen
et al., 2001; Ferreira, 2003; Joseph et al., 2005; Tedeschi, Park, &
Calhoun, 1997). De facto, os dados sugerem que a experiência de tormento
resultou de sentimentos de decepção face à constatação do absurdo da guerra, da
percepção de haver sido manipulado para nela participar e em sentimentos de
ameaça de morte e de culpa pelas acções praticadas. Estas emoções parecem em
conformidade com a definição de acontecimento traumático de acordo com o DSM-IV
(APA, 2000). Relativamente à experiência de guerra na sua dimensão de
Serviço,as afirmações mostram-nos que, para alguns ex-combatentes, a guerra
parece ter sido apenas o cumprimento de um dever profissional/ /militar. Poder-
se-á supor que esta indexação da participação na guerra ao cumprimento de um
serviço possa ter contribuído para que alguns ex-combatentes tenham passado por
ela de uma forma resiliente, mantendo um estado relativamente estável e
saudável de ajustamento físico e psicológico não obstante terem sido expostos a
acontecimentos extremamente perturbadores (Bonanno, 2004). A propriedade
Epopeiada categoria Vivência de Guerra parece classificá-la como uma situação
pertinente e fomentadora de sentimentos de patriotismo, heroísmo e de
satisfação pelas oportunidades de descoberta de novas terras e novos amigos.
Esses sentimentos de satisfação, heroísmo e patriotismo poderão estar próximos
dos benefícios percebidos ao nível do desenvolvimento de sentimentos positivos
em relação ao eu, e em sentimentos acrescidos de patriotismo encontrados no
estudo de Aldwin et al.(1994).
O espólio da guerra colonial apresentou-se diversificado quer nas perdas
irreparáveis, quer nas aquisições com as quais os ex-combatentes continuam a
ver-se contemplados. Afirmações como: mal-estar permanente, sofrimento,
arruinou a saúde e a vida pessoal, destruiu a nível psicológicomostram que, na
sua faceta de perdas irreparáveis e vulnerabilidade, a guerra colonial ainda
não adquiriu a qualidade de passado nas narrativas dos ex-combatentes. Esta
incapacidade de integrar o acontecimento traumático como parte do passado
pessoal e a sua permanência na vida psíquica (Ferreira, 2003), espelhada nos
nossos resultados, mostra-se em consonância com o facto de 36% dos sujeitos da
nossa amostra apresentarem sintomas suficientes para lhes ser diagnosticado
PTSD (Maia et al., 2005).
Mas nem só de perdas irreparáveis e de vulnerabilidades se faz o espólio de
guerra dos ex-combatentes. A outra face da moeda destas guerras coloniais
mostra-nos que, em consonância com Aldwin, Levenson, e Spiro III (1994) e
Fontana e Rosenheck (1998), para alguns ex-combatentes, esta guerra fomentou o
desenvolvimento de uma maior maturidade pessoal. A propriedade Maturidade
Pessoal emergiu a partir das afirmações que associam a guerra ao
desenvolvimento de uma personalidade mais resistente e madura; ao
desenvolvimento de uma maior compreensão da vida, e da natureza humana; à
tomada de consciência das próprias capacidades e força pessoal; ao
desenvolvimento da autodisciplina e a uma maior valorização da vida e parece
reflectir crescimento ao nível das dimensões formativa, emocional e ética.
Estes resultados sugerem alguma proximidade ao conceito de Crescimento Pós-
Traumático (Amy et al., 2005; Frazier et al., 2001, Frederickson et al., 2003;
Joseph et al., 2005; Linley & Joseph, 2004, 2005; Powell et al., 2003;
Tedeschi & Kilmer, 2005; Tedeschi, Park, & Calhoun, 1997). Poder-se-á
supor que alguns ex-combatentes poderão ter conseguido, através da luta/
enfrentamento das memórias perturbadoras dos acontecimentos da Guerra Colonial
construir uma narrativa pessoal capaz de conferir sentido a um período de
mudança das suas vidas (Neimeyer, Prigerson, & Davies, 2002) e em
consequência terão conseguido fomentar um sentimento de continuidade entre a
vida antes e depois da guerra (Tedeschi, 1999). De facto, as consequências mais
positivas da exposição à adversidade/trauma relacionam-se com a capacidade de
aprender algo que leve à transformação da auto-imagem, da relação com os outros
e das crenças (Sledge et al., 1980, citado por Fontana & Rosenheck, 1998;
Tedeschi & Calhoun, 1996). Essa narrativa pessoal alterada vai ao encontro
de Maia (2001, p. 187) quando diz que se espera que as pessoas saudáveis
"mudem ao longo das suas experiên-cias de interacção com diferentes
pessoas em diferentes contextos" e faz-nos repensar Lobo Antunes (1979)
quando o autor afirma que Quem esteve aqui (i.e., guerra colonial) não consegue
voltar o mesmo...
E é exactamente de mudança ao nível da percepção do eu, da relação com os
outros e da filosofia de vida (i.e., crescimento pós-traumático) que nos falam
Tedeschi, Park, e Calhoun (1997) ao afirmarem que algumas pessoas conseguem
atingir um nível de funcionamento físico, social e psicológico superior ao que
apresentavam antes de terem sido desafiadas a enfrentar a dissonância cognitiva
provocada por acontecimentos altamente perturbadores como é o caso da violência
de guerra.
Concluindo, o nosso trabalho é francamente exploratório e como tal poderá ter
algum mérito mas também limitações. Pensamos que o seu valor reside no facto
de, através de uma metodologia qualitativa, nos ter permitido perceber que os
ex-combatentes da guerra colonial foram capazes de construir significados
múltiplos para as suas experiências de guerra. A guerra enquanto Experiência ou
a guerra enquanto Espólio tanto se pode revestir de grandes decepções/perdas
como de satisfação/benefícios.
Quanto às limitações patentes neste trabalho, salientamos o desafio/dificuldade
de utilizar a metodologia da Grounded Theorycom dados tão parcos como as
afirmações de resposta a uma única questão. Por vezes o conteúdo das afirmações
parecia-nos ambíguo ou incompleto e não nos era possível recolher dados
adicionais. No sentido de minimizar esta limitação encontra-se em curso um
estudo aprofundado com a aplicação da Grounded Theorya entrevistas de histórias
de vida dos ex-combatentes com o objectivo de perceber se existirão de facto
diferenças nas modalidades de atribuição de significados às vivências de guerra
entre os ex-combatentes com e sem perturbações psicopatológicas e se em alguns
poderemos identificar resiliência e/ou crescimento pós-traumático.