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EuPTHUHu0870-82312009000100002

EuPTHUHu0870-82312009000100002

variedadeEu
ano2009
fonteScielo

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Os efeitos dos maus-tratos e da negligência sobre as representações da vinculação em crianças de idade pré-escolar Os efeitos dos maus-tratos e da negligência sobre as representações da vinculação em crianças de idade pré-escolar Renata Benavente (*) João Justo (**) Manuela Veríssimo (***)

ABSTRACT This study assessed the influence of maltreatment or neglect during childhood on preschoolers' (3 to 6 years of age) attachment representations. The second goal of this article was to explore the relation between child's gender and attachment representations. The role of a non-abusive relationship with an alternative caregiver (minimizing the effects of maltreatment or neglect) in the child's attachment system was also investigated.

Maltreated children (N=20) and neglect children (N=40) were recruited from Portuguese Child Protective Services (CYPC). The non-maltreated and non- neglected children (n=30) were recruited from a Private Preschool Institution (they attend Kindergarten or Leisure Activities). Groups were similar in Socio- Economic Status (SES), age, gender and verbal abilities. Abuse status was assessed with an adapted version of the Maltreatment and Neglect Questionnaire (Calheiros, 1996). Verbal abilities of children were assessed with the "Hearing and Language" Scale of the Griffiths scales of mental development (Griffiths, 1970). Attachment representations were assessed with the Attachment Story Completion Task (ASCT; Bretherton, Ridgeway, & Cassidy, 1990). The stories were coded according to Miljkovitch, Pierrehumbert, Karmaniola, and Halfon (2003) Q-score methodology. Results show that maltreat or neglected preschool children have more insecure (deactivation or hyperactivation) and disorganized attachment representations, and less secure strategies when compared to controls. No differences in attachment representations were found as a function of the child's gender or as a function of the existence of relationship with a non maltreating or non neglectful adult. Results are discussed in terms of Attachment Theory and future investigation proposals are made.

Key words:Attachment, Maltreatment, Neglect.

A organização e o desenvolvimento das interacções afectivas entre a mãe e a criança foram alvo de diversas investigações que tiveram como base a hipótese conceptual formulada por Bowlby (1940, 1958, 1969, 1981) e mais tarde revista por Ainsworth e Bell (1970), por Ainsworth, Bell, e Stayton (1971) e por Ainsworth, Blehar, Waters, e Wall (1978). O conceito de vinculação pressupõe que as crianças desenvolvem modelos de representação interna do objecto primário com que se relacionam, de si próprias e de si próprias em relação com os outros, com base na experiência de relacionamento com o prestador primário de cuidados (Bowlby, 1988; George & Solomon, 1999). Através destes modelos, os afectos, as cognições e as expectativas acerca das interacções futuras vão- se organizando de modo a influenciar as relações subsequentes (Cicchetti & Toth, 1995). Ao estabelecimento de uma vinculação segura, por parte da criança, liga-se um modelo representacional das figuras de vinculação como estando disponíveis para a interacção e susceptíveis de proporcionar ajuda e bem-estar e um modelo de si própria, complementar do primeiro, em que o indivíduo se sente potencialmente capaz de ser amado (Cicchetti et al., 1995; Figueiredo, 1998). A confiança que estabelece em si e nos outros permite que a criança com uma vinculação segura possa entrar mais facilmente numa relação interpessoal calorosa e de confiança com os outros, ao longo da sua trajectória de desenvolvimento (Figueiredo, 1998).

A par da evolução do conceito de vinculação surgiram as técnicas de avaliação dos diferentes padrões. O primeiro procedimento de avaliação da vinculação, designado por Situação Estranha (Ainsworth et al., 1978), permite a classificação das crianças a partir dos doze meses, com base nos comportamentos observados em contexto laboratorial. Posteriormente foram concebidos instrumentos não para crianças, mas também para adultos e adolescentes, tendo por base as representações da vinculação. Os três padrões (seguro, inseguro-ambivalente/resistente, inseguro-evitante) inicialmente propostos por Ainsworth e colaboradores (1978), revelaram-se insuficientes para caracterizar todas as crianças, sobretudo as provenientes de amostras de alto-risco como as vítimas de maus-tratos ou filhas de mães deprimidas (Carlson, Cicchetti, Barnett, & Braunwald, 1989; Crittenden, 1988a,b; Radke-Yarrow, Cummings, Kuczynski, & Chapman, 1985; Spieker & Booth, 1988). Surgiu assim, a necessidade de conceber um quarto padrão de vinculação - o padrão desorganizado, cuja característica principal é a ausência de uma estratégia organizada e consistente ao nível da regulação das emoções (Carlson et al., 1989; van IJzendoorn, Schuengel, & Bakersman-Kranenburg, 1999).

Quando os prestadores de cuidados adoptam, em relação à criança, comportamentos desadequados, nomeadamente sob a forma de maus-tratos ou de negligência, os comportamentos e as representações da vinculação das crianças são afectados. A investigação tem demonstrado que as crianças sujeitas a experiências de maus- tratos ou de negligência têm maiores probabilidades de desenvolver padrões inseguros de vinculação (Crittenden, 1985, 1988a) e vinculações desorganizadas (Carlson et al., 1989). Estes padrões parecem surgir como forma de maximizar as experiências de segurança e de minimizar a ansiedade num contexto de indisponibilidade ou rejeição (Stovall-McClough & Dozier, 2004). Diversos estudos têm concluído que as crianças sujeitas a este tipo de experiências desenvolvem padrões muito inseguros de vinculação, constroem modelos distorcidos do Self e percepcionam os outros como indisponíveis e rejeitantes (Carlson et al., 1989; Crittenden, 1988b; van IJzendoorn et al., 1999). Existe, no entanto, pouca investigação acerca dos efeitos das experiências de maus- tratos ou de negligência sobre as representações da vinculação, em crianças de idade pré-escolar. Assim, para esclarecer as consequências deste tipo de vitimização na organização da vinculação foi delineado o presente estudo.

OBJECTIVOS Os objectivos da investigação, alicerçados nos princípios da Teoria da Vinculação foram: (1) Determinar as representações da vinculação de crianças vítimas de maus- tratos e de negligência, que permanecem na família, comparando-as com as representações da vinculação de crianças que não forma sujeitas a este tipo de vitimização; (2) Esclarecer a influência do género da criança na adopção de estratégias de vinculação não seguras (desactivada, hiperactivada ou desorganizada); (3) Avaliar a influência da relação com um adulto não negligente e não maltratante na minimização dos efeitos dos maus-tratos e da negligência perpetrados pelos prestadores de cuidados; (4) Reforçar a necessidade de desenvolvimento de uma intervenção protectora tão precoce quanto possível junto de crianças integradas em famílias maltratantes ou negligentes, designadamente através do desenvolvimento e implementação de projectos de intervenção desenhados para este tipo de populações de risco e (5) Contribuir para o melhor conhecimento das técnicas de avaliação da vinculação utilizadas neste estudo - Attachment Story Completion Task (ASCT; Bretherton et al., 1990) e o sistema de codificação das histórias proposto por Miljkovitch e colaboradores em 2003.

METODOLOGIA Participantes Participaram no estudo 90 crianças com idades compreendidas entre os 33 e os 82 meses. A média de idades era de 57,54 meses (desvio-padrão: 12,73).

Relativamente ao género 39 crianças eram do género feminino (43,33%) e 51 do género masculino (56,7%). A selecção da amostra, designadamente dos grupos "experimentais", foi feita com base numa abordagem combinada em que se consideraram as classificações existentes nas CPCJ's (Almada, Seixal e Setúbal) e os indicadores decorrentes da aplicação de uma versão modificada do Questionário de Avaliação de Maus-tratos e de Negligência (Calheiros, 1996, 1998). O grupo "controlo" era composto por utentes de uma Instituição Particular de Solidariedade Social integradas em ensino pré-escolar e ATL, não apresentando indícios de maus-tratos ou de negligência. Desta forma, procurou-se obter a melhor aproximação das amostras em relação à idade, ao género, à classe social e às competências verbais.

Das 105 famílias de crianças com processo nas CPCJ's que convocámos, compareceram 65 (ou seja 61,9%). Em 5 situações, as crianças recusaram-se a permanecer com a observadora inviabilizando a aplicação da prova de avaliação das representações da vinculação. Todos os responsáveis pelas crianças aceitaram participar na investigação, numa taxa bastante superior à registada noutros estudos designadamente o de Hollman e McNamara (1999) em que a percentagem de pais que prestaram o consentimento activo para que os filhos participassem em investigações deste tipo foi de 38,76%.

Instrumentos Questionário de Avaliação de Maus-tratos e Negligência Adaptado(adaptação do instrumento original de Calheiros, 1996) Para uma avaliação global das várias tipologias de maus-tratos a que uma criança pode estar sujeita, surgiu no nosso país o Questionário de Avaliação do Mau Trato e Negligência, desenvolvido por Calheiros em 1996. O QMN (Calheiros, 1996) considera os valores culturais prevalecentes na nossa sociedade sobre os limites do que é considerado aceitável e não aceitável nas práticas da relação pais-filhos, permitindo uma avaliação clara e objectiva da situação de cada criança. Todas as áreas definidas pela autora no instrumento foram encontradas nos Códigos do Direito Português (Código Civil Português, 1990; Código Penal Português, 1982). O instrumento teve por base a validação dos constructos mau trato e negligência e destina-se a avaliar a ocorrência destes fenómenos, após o seu preenchimento por técnicos que conheçam a criança e a dinâmica familiar que a envolve. Trata-se de uma medida válida acerca das situações associadas aos actos parentais abusivos e às consequências destes para as crianças (Calheiros, 1998).

O questionário é composto por 18 itens organizados em 6 categorias: mau trato psicológico, mau trato físico, negligência psicológica, negligência física, abuso sexual e trabalho infantil. Para cada item, são efectuadas três afirmações relativas a factos observáveis que dizem respeito à criança, ou ao comportamento parental, ou dos adultos substitutos (ex.: a criança sofreu pequenos acidentes provocados por falta de segurança que causaram danos físicos; os pais/adultos substitutos não tratam a criança quando está doente, etc.). Em relação a cada afirmação, solicita-se que seja identificada a presença, ausência, desconhecimento ou suspeita dos factos. Este instrumento pode também ser utilizado para despiste de circunstâncias de risco (quer de maus-tratos, quer de negligência) favorecendo um diagnóstico mais preciso, quando suspeitas de vitimização.

A utilização da versão adaptada do Questionário de Avaliação do Mau Trato e Negligência (Calheiros, 1996), apesar da existência de processo na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (que indiciava algum tipo de vitimização), visou apurar a tipologia do abuso de que a criança é ou foi alvo, de modo mais rigoroso. Por outro lado, a nova versão daquele instrumento permitiu-nos aceder a uma panóplia de informações sócio-demográficas essenciais para este estudo.

Attachment Story Completion Task(ASCT; Bretherton et al., 1990) A Attachment Story Completion Task (ASCT), foi criada em 1990 por Bretherton e colaboradores. A prova consiste numa tarefa de completamento de histórias (com recurso a pequenas figuras representativas da família) e permite aceder aos modelos internos de funcionamento em crianças com 3 anos de idade. Trata-se de uma técnica que avalia as representações da vinculação da criança (Main, Kaplan, & Cassidy, 1985; Waters, Rodrigues, & Ridgeway, 1998). As histórias que compõem a tarefa foram concebidas para fazer realçar as diferenças individuais acerca de temas relacionados com a vinculação.

A aplicação da prova começa por uma primeira história neutra (festa de aniversário), cujo objectivo é familiarizar a criança com a metodologia.

Seguidamente, apresentam-se 5 inícios de histórias (o sumo entornado, o joelho magoado, o monstro no quarto, a partida e o reencontro) sugerindo-se que a criança lhes continuidade verbalmente, ou encenando pela manipulação dos bonecos representativos da família. A classificação das histórias produzidas pelas crianças tem em conta não apenas as verbalizações mas também o comportamento não verbal, designadamente a manipulação das figuras representativas da família.

Cartes pour le Complètement d'Histoires(CCH; Miljkovitch et al., 2003) O sistema de codificação da ASCT, utilizado neste estudo, foi concebido em 2003 por Miljkovitch, Pierrehumbert, Karmaniola, e Halfon. Este instrumento consiste numa metodologia de tipo Q-sort que permite classificar as produções (verbais e não verbais) das crianças desencadeadas pelas histórias da ASCT (Bretherton et al., 1990).

A técnica permite quantificar as estratégias de vinculação das crianças (ao nível das representações) e caracterizar o modo como constroem uma narrativa.

Trata-se de questionário, sob a forma de Q-sort, que é usado pelo codificador.

Este modelo permite uma codificação global dos comportamentos observados, apesar de alguns índices remeterem para aspectos específicos do brincar. A classificação é obtida pela determinação das distâncias, através duma correlação de Pearson, entre as respostas do sujeito e de outros protótipos, relativamente a 4 estratégias de vinculação (segurança, desactivação, hiperactivação e desorganização). Assim, obtêm-se os índices de aproximação da criança observada e desses protótipos, ou seja os Q-scores. A criança não é apenas enquadrada numa categoria, mas caracterizada em 4 eixos que correspondem a cada estratégia de vinculação.

A adopção de uma estratégia segura de vinculação perante a tarefa de completamento de histórias implica que a criança não se sinta ameaçada pelos temas evocados. Estas crianças não exibem uma ansiedade exagerada perante a prova e mostram-se dispostas a brincar produzindo uma narrativa com facilidade e espontaneidade. Envolvem-se sem dificuldades nas histórias e desenvolvem conteúdos expressivos, não estereotipados e pautados pelo afecto. São capazes de simbolizar uma variedade de estados emocionais designadamente as emoções negativas tais como a tristeza e a zanga. As personagens apresentam múltiplas facetas e a narrativa não se centra apenas aspectos positivos. Por outro lado, as crianças seguras tendem a mostrar uma atitude construtiva face aos problemas pelo que, neste contexto, são capazes de reagir aos temas da separação e desenvolver acções que permitam manter a vinculação.

As crianças que mostram uma inibição do sistema de vinculação (desactivação) tendem a evitar os temas relacionados com a vinculação, causadores de níveis de stresse significativos. Perante as tarefas propostas pela ASCT estas crianças mostram-se muito relutantes em participar no completamento das histórias.

Quando se envolvem na construção das narrativas fazem-no de modo superficial centrando-se nos estereótipos familiares sem introduzir emoções. Outro aspecto importante é o facto de apresentarem dificuldades marcadas no reconhecimento dos aspectos negativos das personagens e das relações de vinculação. São incapazes de relatar acontecimentos ou emoções negativas. Têm grande dificuldade em representar-se como alvo da protecção e ajuda no seio da família e quando na história sugere uma ameaça aos laços de vinculação estas crianças são incapazes de desencadear conteúdos que permitam o restabelecimento da proximidade e da segurança. Na história do regresso, por exemplo, as crianças evitantes não mostram sentimentos de alegria impedindo, muitas vezes, que o reencontro seja consumado.

Nas crianças em que predominam estratégias de hiperactivação do sistema de vinculação observa-se o inverso do se regista nas crianças evitantes: uma focalização nas emoções negativas e uma grande dificuldade em descrever sentimentos de serenidade. No plano das representações, as crianças ambivalentes mostram uma incapacidade para reagir de modo construtivo perante as problemáticas da vinculação. A simples evocação de tais situações pode provocar um sentimento de cólera tornando-se evidente a dificuldade em gerir emoções. O stresse desencadeado pelas histórias iniciadas pode limitar a capacidade de brincar, pelo que se observa frequentemente uma notória dificuldade em construir narrativas e um envolvimento emocional desadequado.

Estas crianças parecem ficar bloqueadas nos aspectos negativos das histórias o que as impede de conceber um final feliz. Apesar desta ausência de resolução é provável que tomem consciência quase imediata das emoções negativas associadas a cada situação. Comparando com o que se observa na Situação Estranha (Ainsworth et al., 1978), procuram reagir instantaneamente ao tema da separação, procurando pôr fim à distância sem simbolizar um reencontro feliz.

A caracterização das crianças desorganizadas obedeceu aos pressupostos definidos por Solomon, George, e De Jong (1995). uma tendência para desfechos marcados pelo controlo da situação ou fins catastróficos em que as personagens são geralmente representadas como totalmente impotentes ou absolutamente sós. A introdução de temas de desintegração das personagens ou da família é comum. O exercício da disciplina evocado traduz-se geralmente em acções exageradas e violentas, onde predominam os conteúdos agressivos e de destruição. Muitas vezes, são atribuídas funções parentais às personagens representativas das crianças. Estas narrativas são muitas vezes pouco coerentes e desorganizadas, podendo a criança também adoptar uma postura de inibição, ansiedade ou mutismo.

Para além dos protótipos enunciados, os autores desta metodologia de codificação procuraram realçar as características do brincar e das representações específicas. Assim, após uma análise em componentes principais, definiram 6 escalas, correspondentes a cada aspecto específico do brincar: A - colaboração; B - representações do apoio parental; C - narrativa positiva; D - expressão adequada dos afectos; E - reacção à separação; F - distância simbólica e, G - falha na competência narrativa.

Escala de Audição e Fala da Prova de Desenvolvimento de Ruth Griffiths (Griffiths, 1970) Para garantir a comparabilidade dos vários grupos da nossa investigação, em termos de competências linguísticas, recorremos a uma escala da prova de desenvolvimento concebida por Griffiths (1970), a "Escala de Audição e Fala". De todas as escalas que compõem a prova, esta é, segundo Griffiths (1970), a mais intelectual por apelar à diversificação do vocabulário, à utilização de diferentes componentes do discurso e ao uso de frases para descrever as relações entre imagens.

Procedimento Neste estudo foram constituídos dois grupos "experimentais" (vítimas de maus-tratos e vítimas de negligência) e um grupo "controlo" (crianças sem suspeita de maus-tratos ou negligência) atendendo ao delineamento "quasi-experimental" adoptado.

Constituímos também grupos em função da variável independente género das crianças e da existência uma relação privilegiada com um de adulto significativo não maltratante ou negligente.

A composição dos grupos foi feita com base numa abordagem combinada em que se conciliaram as classificações de maus-tratos e negligência usadas pelas instituições que colaboraram connosco (Comissões de Protecção de Crianças e Jovens) com critérios específicos para a investigação e os resultados da versão modificada do QMN (Calheiros, 1996), de acordo com a proposta de Crittenden, Claussen, e Sugarman (1994). Esta opção metodológica baseou-se nos resultados obtidos em investigações com amostras de crianças maltratadas ou negligenciadas, que demonstram que a utilização de informações provenientes de diferentes fontes (ex.: registos médicos, questionários, entrevistas, relatórios de serviços de protecção de menores, etc.), permite uma definição mais clara da tipologia de maus-tratos e de negligência e uma redução da heterogeneidade dos grupos (Mash & Wolfe, 1991). De facto, a adopção de combinações de critérios em que se associam designações oficiais com designações independentes, permite garantir a especificidade necessária para os objectivos da investigação (Giovannoni, 1989).

Considerando os objectivos do estudo, as crianças avaliadas permaneciam integradas na família. O primeiro grupo estudado era composto por crianças com história de maus-tratos com processo instaurado nas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, situação confirmada e tipificada através da versão modificada do QMN (Calheiros, 1996). O segundo grupo incluiu as crianças vítimas de negligência cuja situação foi também sinalizada àquelas entidades e corroborada pelo QMN (Calheiros, 1996). As crianças que compunham o grupo " controlo" eram utentes de Instituição Particular de Solidariedade Social, integradas no ensino pré-escolar ou em ATL (Actividades de Tempos Livres) e não apresentavam indicadores de vitimização. O recrutamento dos participantes visou a comparabilidade das amostras relativamente às variáveis: idade, género, competências verbais e estatuto sócio-económico.

Após o contacto com as CPCJ's foi efectuado o preenchimento do QMN (Calheiros, 1996) em conjunto com os técnicos gestores de caso e com base nos registos existentes nos processos individuais das crianças. Em seguida, agendaram-se os momentos de contacto com os pais de modo a prestarem o consentimento para que os seus filhos pudessem participar no estudo e, havendo concordância, marcaram-se os momentos de avaliação das crianças, preferencialmente nas instalações das CPCJ's. Houve, no entanto, uma excepção: realizou-se a avaliação de uma criança no equipamento de apoio à infância que frequentava, a pedido dos pais.

A aplicação das provas de avaliação psicológica teve a duração média de 45 minutos por criança e foi sempre efectuada em gabinete fechado, com as dimensões e as condições de conforto adequadas. A ASCT (Bretherton et al., 1990) foi gravada em áudio, sendo o registo dos comportamentos não-verbais efectuado por escrito.

RESULTADOS Os Q-scores de segurança, desactivação, hiperactivação e desorganização foram determinados para todos os indivíduos estudados (N=90). As médias, os devios- padrão, os valores mínimos e máximos de cada estratégia da vinculação são apresentados no Quadro 1.

QUADRO 1 Valores médios, máximos e mínimos observados nas representações da vinculação por estratégia de vinculação

Nos Quadros 2, 3 e 4 apresentamos as médias, os devios-padrão, os valores mínimos e máximos, por estratégia de vinculação, para cada grupo. A testagem das hipóteses de investigação foi antecedida da garantia de homocedasticidade e de comparabilidade das amostras, pela confirmação da inexistência de diferenças significativas entre os grupos, relativamente às variáveis: idade (através da análise de variância), competências verbais, classe social e género (através do teste de Qui-Quadrado). As 2 variáveis relacionadas com a idade (idade da criança à data da aplicação da prova de avaliação das representações da vinculação e idade da criança à data da sinalização), são contínuas e, por isso, apurámos se diferiam significativamente da distribuição normal, nas 3 amostras, através do teste de Kolmogorov-Smirnov. Garantidos estes pressupostos prosseguimos para a testagem das hipóteses.

QUADRO 2 Médias, Desvios-padrão, valores mínimos e máximos das estratégias de vinculação no grupo de crianças maltratadas QUADRO 3 Médias, Desvios-padrão, valores mínimos e máximos das estratégias de vinculação no grupo de crianças negligenciadas QUADRO 4 Médias, Desvios-padrão, valores mínimos e máximos das estratégias de vinculação no grupo controlo

As 6 primeiras hipóteses de investigação (Hipótese 1 - no grupo composto por crianças maltratadas, as médias dos Q-scores de desactivação, hiperactivação e desorganização são significativamente mais elevadas do que as médias dos Q-scores do grupo de crianças sem suspeita de maus-tratos ou de negligência; Hipótese 2 - a média dos Q-scores de segurança é significativamente mais elevada no grupo de crianças sem suspeita de maus- tratos ou de negligência que no grupo de crianças vítimas de maus-tratos; Hipótese 3 - no grupo de crianças vítimas de negligência, as médias do Q- scores de desactivação, hiperactivação e desorganização são significativamente mais elevadas do que as médias dos Q-scores do grupo de crianças sem suspeita de maus-tratos ou de negligência; Hipótese 4 - a média do Q-score de segurança é mais elevada no grupo de crianças sem suspeita de maus-tratos ou de negligência que no grupo de crianças vítimas de negligência; Hipótese 5 - no grupo de crianças maltratadas, a média do Q-score de desorganização é significativamente mais elevada do que a média do Q-score de desorganização no grupo de crianças negligenciadas; Hipótese 6 - no grupo de crianças vítimas de negligência, a média do Q-score de desactivação é significativamente mais elevada do que a média do Q-score de desactivação no grupo de crianças maltratadas) foram testadas com o recurso à estatística paramétrica, designadamente à análise de variância seguida dos testes de Tukey e Scheffe. A homogeneidade das variâncias foi confirmada pelo teste de Levene e a igualdade das médias das amostras, através dos testes de Welch e de Brown-Forsythe. Em relação à variável segurança, verificámos que existem diferenças entre os 3 grupos [F(2,87)=18,235; p=0,000]. Na variável desactivação também se observam diferenças entre os 3 grupos [F(2,87)= 16,306; p=0,000]. Também se observaram diferenças na variável dependente hiperactivação em função da amostra sujeitos [F(2,87)=5,776; p=0,004]. Finalmente, no que concerne à desorganização os valores da estatística também indiciam a existência de diferenças entre as amostras [F(2,87)=13,020; p=0,000]. Para percebermos entre que grupos ocorrem as diferenças identificadas na análise de variância, efectuámos o teste de Tukey (Honest Significant Difference). Esta análise permite-nos aceitar H1 relativamente às variáveis segurança, desactivação e desorganização, pois observaram-se diferenças significativas entre a amostra de crianças maltratadas e a amostra de crianças sem suspeita de vitimização.

As hipóteses 5 (no grupo de crianças maltratadas, a média do Q-score de desorganização é significativamente mais elevada do que a média do Q-score de desorganização no grupo de crianças negligenciadas) e 6 (no grupo de crianças vítimas de negligência, a média do Q-score de desactivação é significativamente mais elevada do que a média do Q-score de desactivação no grupo de crianças maltratadas) não foram confirmadas, uma vez que não se observaram diferenças significativas ao nível da desorganização e desactivação entre crianças vítimas de maus-tratos e crianças vítimas de negligência.

O facto de não se terem confirmado diferenças significativas entre as crianças do género masculino e feminino, em relação às estratégias de vinculação adoptadas, não permite aceitar as hipóteses 7 (nas crianças do género masculino dos 3 grupos - maltratadas, negligenciadas e sem suspeita de maus-tratos ou de negligência -, as médias dos Q-scores de desactivação, hiperactivação e desorganização são significativamente mais elevadas do que as médias dos Q-scores das crianças do género feminino dos mesmos grupos) e 8 (a média do Q-score de segurança é significativamente mais elevada nas crianças do género feminino dos 3 grupos do que a média do Q-score observada em crianças do género masculino dos mesmos grupos). Os resultados do teste tde Student, em relação às quatro variáveis dependentes foram: segurança [t(88)=0,907; p=0,367], desactivação [t(88)=-0,016; p=0,312], hiperactivação [t(88)= 1,341; p=0,183] e desorganização [t(88)=-0,300; p=0,765].

A influência da relação com um adulto significativo não maltratante ou não negligente também não pareceu determinar diferenças em termos de estratégias de vinculação em crianças vítimas de maus-tratos ou de negligência, pelo que não é possível aceitar as hipóteses 9 (as crianças maltratadas ou negligenciadas que não estabeleceram uma relação com um adulto significativo não maltratante ou não negligente apresentam médias dos Q-scores de desactivação, hiperactivação e desorganização significativamente mais elevadas do que as médias dos Q-scores das crianças maltratadas ou negligenciadas que estabeleceram uma relação com um adulto significativo não maltratante ou não negligente) e 10 (a média do Q- score de segurança é significativamente mais elevada no grupo de crianças maltratadas ou negligenciadas que estabeleceram uma relação com um adulto significativo não maltratante ou não negligente do que a média no grupo de crianças maltratadas ou negligenciadas que não estabeleceram qualquer relação com um adulto significativo não maltratante ou não negligente). Os valores registados foram: em relação à estratégia segura, t(58)=-0,157 e p=0,876; para a desactivação, t(58)=0,259 e p=0,797; na estratégia hiperactivada t(58)=-0,195 e p=0,846 e, em relação à estratégia desorganizada t(58)=0,575 e p=0,568.

DISCUSSÃO Os resultados da presente investigação corroboram a hipótese de que as experiências de maus-tratos ou de negligência na infância estão significativamente associadas a representações inseguras da vinculação (desactivadas, hiperactivadas e desorganizadas) em crianças de idade pré- escolar. Não se verificaram, contudo, diferenças significativas entre o grupo de crianças maltratadas e o grupo de crianças negligenciadas no que concerne às representações da vinculação. Também no que diz respeito ao género das crianças, não se observaram diferenças ao nível das representações da vinculação. A existência de um adulto significativo não maltratante não influenciou significativamente as representações da vinculação das crianças maltratadas ou negligenciadas.

A presente investigação permitiu ainda concluir que as metodologias de avaliação e de classificação das representações da vinculação utilizadas parecem adequar-se às amostras estudadas. Quanto às limitações deste estudo, importa realçar as dificuldades observadas ao nível da discriminação entre maus-tratos e negligência (fenómenos geralmente concomitantes), as dificuldades na avaliação das representações da vinculação (aplicações não filmadas; investigação, aplicação e classificação das provas efectuada pela mesma pessoa), a impossibilidade metodológica de determinar a influência da precocidade dos abusos nas representações da vinculação bem como a qualidade da relação com um adulto significativo sobre as representações da vinculação das crianças, no contexto da hierarquia das vinculações (Main, 1999). Assim, sugere-se o aprofundamento destas influências recorrendo ao conceito de apoio social (percebido pela própria criança e pelo adulto prestador de cuidados).

Parece-nos, também, premente esclarecer até que ponto estas representações são estáveis e a sua relação com as representações da vinculação do adulto responsável pela criança, segundo o princípio da transmissão intergeracional (Fonagy & Target, 1997; Miljokovitch, Pierrehumbert, Bretherton, & Halfon, 2004; Soares, 1996; Zeanah, Benoit, Barton, Regan, & Hirshberg, 1993), com vista à identificação de factores protectores e de risco que possam orientar a adopção de medidas preventivas e de intervenção com crianças vítimas de maus-tratos ou de negligência e suas famílias.

O facto de termos observado um número significativo de vinculações não seguras nos grupos de alto-risco estudados (vítimas de maus-tratos ou de negligência) justifica o delineamento de programas de intervenção baseados na Teoria da Vinculação específicos para estas famílias. Estes programas teriam como objectivo principal a promoção de mudanças nas representações da vinculação através de uma abordagem centrada nas interacções mãe-criança.


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