O processo-T.A.T. abordado na perspectiva bioniana
-este complexo representações/afectos, por definição inorganizado (como
tudo o que pertence ao processo primário), vai confrontar-se com a barreira
consciente do ego, assim como com os seus mecanismos de defesa inconscientes,
para ser simbolizado através da linguagem. O ego irá ou não aceitar estas
moções, em função quer dos seus objectivos conscientes (cumprir a instrução,
que consiste em contar uma história), quer das suas possibilidades de defesa e
de "alívio";
- a história contada ou, mais precisamente, o conjunto do protocolo,
revela-se o resultado das capacidades do ego, na medida em que ele está
inserido numa situação contraditória e conflitual, constituída por imperativos
de natureza consciente e imperativos de natureza inconsciente, assim como os
seus modos respectivos de funcionamento - processos primários e
secundários de pensamento (Shentoub, 1970/71, 1972, 1990).
Segundo a teoria bioniana da identificação projectiva na relação continente-
conteúdo
O modelo teórico que subjaz ao processo T.A.T. é o de Bion (1962a/1991, 1963) e
deriva do modelo de desenvolvimento infantil, reportando-se à relação precoce
com o objecto materno e às mais primitivas interacções mãebébé.
O conteúdo latente das imagens-T.A.T. desencadeia pensamentos e afectos que
irão pressionar a mente no sentido de serem pensados. O sujeito deve ser capaz
de aceitar, conter e transformar estes conteúdos - produzidos pela
identificação projectiva interna - de modo a que se tornem aceitáveis,
toleráveis para a sua mente, isto é, deve ter a suficiente capacidade de
contenção interna, de modo a esses pensamentos poderem ser simbolizados.
O contacto com o complexo de representações/afectos activado pelo conteúdo
latente da imagem, assim como a necessidade de os pensar, implica a emergência
de sofrimento psíquico.
Só com uma capacidade satisfatória de tolerância ao sofrimento/frustração
psíquica o sujeito poderá elaborar uma história-T.A.T. A intolerância à
frustração/sofrimento é concomitante com a mobilização de defesas poderosas
visando anular, paralisar ou distorcer o pensamento e outras funções do ego.
Os processos de contenção-transformação-devolução interna estão assim não só na
dependência da maior ou menor tolerância à frustração/sofrimento, da qualidade
da função continente e da função alfa, mas também do tipo de vínculo emocional
predominante (L, H ou K) que o sujeito tem consigo próprio (e com o
examinador).
Perante a experiência de frustração, a realização negativa pode dar lugar à sua
simbolização ou não, em função da capacidade de tolerância a essa frustração, e
a experiência pode ser nomeada ou não através da palavra (narrativa).
Deste modo, numa situação de tolerância à frustração, pode dar-se uma
realização negativa ("não-coisa"), uma transformação. Caso
contrário dá-se uma não-transformação: a fuga, o evitamento, a defesa pelo
perceptivo ou pelo projectivo "evacuativo", etc., tudo o que possa
afastar o sujeito da confrontação com a sua verdade.
Concluindo, o processo T.A.T. tem necessariamente de ter em conta a capacidade
do sujeito de tolerar a dor mental e a frustração para que possa levar a cabo
as modificações (transformações) necessárias às experiências de frustração,
inevitavelmente impostas pelo contacto com aspectos dolorosos da realidade
interna activadas pelas características do conteúdo latente das imagens T.A.T.
(manejo da líbido e da agressividade tendo em conta a diferença de sexos e de
gerações).
O sujeito irá assim testar o seu modo dominante de funcionamento psico-
emocional: fugir/evitar ou modificar/transformar a frustração geradora de
angústia, criando algo.
Processo T.A.T. e função psicanalítica da personalidade
Depois de explicitadas as características do processo de elaboração/criação das
histórias -T.A.T. de acordo com a teoria freudiana clássica e de acordo
com aspectos da teoria bioniana, com os seus elementos constitutivos, e
reflectindo mais aprofundadamente, verificamos com surpresa que existe um
conceito amplo que aglutina e sintetiza todos estes elementos e processo
dinâmico, que é a função psicanalítica da personalidade(Bion, 1962b/1979).
Vejamos então:
-A Função Psicanalítica da Personalidadedesigna uma atitude mental
profunda face à verdade e ao conhecimento de si mesmo - trata-se do
vínculo K(Bion, 1962b/1979) - isto é, a pulsão epistemofílica(Klein,
1930/1996), os movimentos de auto-conhecimento, a "pulsão" para
conhecer as suas próprias verdades, propiciada pela confrontação com as imagens
T.A.T., as quais representam "situações humanas clássicas" (Murray,
1938) ou "situações relacionadas com os conflitos universais"
(Shentoub et al., 1990, p. 27).
- Obviamente que o pensamentoé solicitado neste processo, constituindo
aquele o material (pensamentos activados pelo conteúdo latente da imagem) que
vai pressionar o aparelho para pensarde modo a ser pensado. O pensamento sendo,
como vimos atrás, o resultado de uma realização negativa(Bion, 1962a/1991),
isto é, da confrontação das pré-concepçõesdo sujeito com as várias temáticas
das imagens T.A.T.
- Neste processo está também implícita a capacidade suficiente para
enfrentar, tolerar, transformar e nomear a dor e o sofrimentoinerentes à
confrontação com os pensamentos e afectos activados pela confrontação com o
material T.A.T., assim como a capacidade negativa(Bion, 1970), isto é, a
tolerância à dúvida, ao mistério, à incerteza face à ambiguidade do material,
ao que se passa no interior da mente do próprio sujeito, e ainda aos
desenvolvimentos a dar às narrativas.
-A função continente(Bion, 1963) está evidentemente presente na medida em
que existe um aparelho psíquico com a capacidade de acolher pensamentos e
afectos inorganizados, caóticos e destabilizadores e seguidamente transformá-
los em representações simbólicas que posteriormente possam dar lugar a uma
linguagem estável e a narrativas organizadas e coerentes. A função continente
implica ou acompanha-se de uma tomada de consciência do self, à medida que o
sujeito se vai confrontando e elaborando as várias temáticas sugeridas pelas
imagens T.A.T.
-A relação continente/conteúdo(Bion, 1963) está incluída na função
continente, com a possibilidade da mente do sujeito tolerar os movimentos
regredientes e progredientes, as oscilações entre as posições esquizo-paranóide
e depressiva (entre movimentos de dispersão e de integração), na medida em que,
na elaboração da história, há necessariamente movimentos oscilatórios entre a
necessidade de controlo e o deixar ir, entre os movimentos progredientes e
regredientes, entre os processos primário e secundário do pensamento, entre o
pensamento divergente e convergente, em suma, entre a razão e a fantasia. É
esta relação continente/conteúdo que permite a "relação de
intimidade" (Meltzer & Harris 1973/1980) com o próprio sujeito, na
medida em que se funda num laço emocional intenso, rico e profundo.
-A sublimação/simbolizaçãoderiva dos deslocamentos intervindo no processo
pulsional, simultâneamente ao nível do alvo e do objecto da pulsão (Freud,
1910b/1984, 1927a/1981), ou das transformações das representações de coisa em
representação de palavra (Shentoub & Debray, 1970/1971), ou da
transformação dos elementos beta em elementos alfa (Bion, 1962a/1991),
propiciando elementos oníricos, de rêveriee narrativas, em que há uma depuração
dos elementos físicos, sensíveis, pulsionais em elementos mais abstractos,
simbólicos e coadunáveis com o pensamento secundário.
-A reparação(M. Klein, 1935/1996) também faz parte integrante e dinâmica
da Função Psicanalítica da Personalidade e da elaboração/ /criação da história
T.A.T. na medida em que o sujeito, sendo capaz de tolerar esta situação
destabilizadora (situação T.A.T.), "entrega-se a um trabalho psíquico que
visa restaurar a completude e a coerência do objecto (interno e externo)"
(Marques, 1996, p. 42) - ou, utilizando uma expressão nossa, o desejo
reparatório em relação a si próprio, à sua integridade (reparação do self) e
aos seus objectos internos - procurando e criando novos objectos, o que
reenvia para as noções de reparação simbólica(Houzel, 1991).
Capacidades continentes dos vínculos L e H e qualidade da história
A partir deste momento pretendemos avaliar as repercussões no processo-T.A.T.
da qualidade da função continente em relação aos vínculos emocionais amor (L) e
ódio (H) que fazem parte intrínseca da ligação entre dois sujeitos, ou entre
duas partes do mesmo sujeito.
Estes dois vínculos fundamentais na relação de objecto podem ser potencialmente
desorganizadores do psiquismo e da qualidade dos seus processos de pensamento,
se excessivos, representando um modelo de falhanço do trabalho de ligação,
integração e simbolização, isto é, da função continente para o psiquismo.
Quando existe uma satisfatória função psicanalítica da personalidade ou
capacidades continentes do psiquismo verifica-se uma tendência geral clara dos
sujeitos submetidos ao T.A.T. para manifestarem essa capacidade continente dos
vínculos emocionais L e H.
Por outro lado, existe uma correlação positiva entre a relação continente/
conteúdo positiva, a capacidade do sujeito se conhecer a si próprio (K+) e a
capacidade continente dos vínculos emocionais L e H, o que significa que quanto
mais sólida for a capacidade continente do psiquismo, mais possibilidade
apresentará o sujeito para tolerar certos conteúdos psíquicos e de os utilizar
no processo-T.A.T.
Continência dos vínculos L e H
Iremos ilustrar esta tendência geral positiva para a continência dos vínculos
emocionais através de excertos de um protocolo-T.A.T., parecendo-nos útil, para
melhor compreensão, no protocolo, da presença das capacidades continentes
(acolhimento, tolerância e transformação dos pensamentos e emoções vinculares)
no processo-T.A.T., a exposição de algumas informações anamnésticas
respeitantes ao sujeito em causa.
Assim, Filipe tem 30 anos e é actor profissional de teatro, actualmente
consagrado, fazendo parte do corpo de actores residentes de uma grande
companhia de teatro. Nasceu em África, sendo o décimo segundo de uma fratria de
treze irmãos. Vivia com os pais e mais alguns familiares. Aos doze anos conhece
aquele "que me salvou da delinquência", e a quem chama
carinhosamente "pai emprestado". Aos quinze anos sofre uma
depressão clínica de certa gravidade, com ideações suicidas. Aos dezasseis anos
faz as malas e vem para o continente sem perspectivas de vida. Passados uns
meses conhece, através de um amigo, um encenador de uma companhia de teatro que
lhe oferece trabalho e um quarto para dormir nas instalações da companhia. Há
14 anos que aquela "se tornou a minha família". Terminou
recentemente uma relação amorosa de alguns anos, isto porque "a minha
namorada descobriu que eu lhe tinha sido infiel".
Cartão 2
- 10´´ - "Ela sente necessidade de... Ela é uma pessoa que
sente necessidade de partilhar o conhecimento. Decidiu mudar alguma coisa na
comunidade dela e acredita que tudo passa pela literatura, pela palavra. Todas
as manhãs, ela não se cansa de percorrer vários quilómetros para tentar dizer
às pessoas a importância dos livros. E porque também adora o campo, não é? Mas
ao mesmo tempo há uma insatisfação nela. Talvez se queira mudar para a cidade.
Então talvez não. Acredita que é uma coisa passageira. Aquilo que ela procura
na cidade há-de passar pela aldeia dela, onde ela acha que está tudo mais
equilibrado, não é? E tem uma boa relação com a mãe. Apesar de não concordar
muito que a irmã tenha engravidado nova. Um dia ela acredita que vai escrever
um livro sobre a comunidade dela, sobre a aldeia dela. Talvez nunca mais pense
em ir para a cidade. Acho que é tudo... Os olhos dela são muito espertos"
- 4´5´´.
Cartão 4
- 5´´ - "Eles eram muito felizes quando se conheceram. Ela
gostava muito dele e ele dela. Partilhavam uma vida em comum. Até que ele
descobriu que aquilo tudo era plástico. Mas não da parte dela, da parte dele.
E, confuso, não sabia se lhe contava se não. Porque no fundo acreditava que
gostava dela. Então evitava o contacto com os olhos dela, a protecção que ela
lhe dava. Uma protecção quase carnal. Esta dualidade frustrava-o... fazia-
o perder-se com os amigos. Mas ela mesmo assim não desistiu dele. Continuava a
procurá-lo e a protegê-lo e isso magoava-o. Porque ele estava na dúvida se era
o verdadeiro amor que ela sentia por ele ou se era de plástico. Mas a única
solução para descobrir era voltá-la a pedir em casamento. Para ter a certeza
que os olhos dele e o coração estremecem quando a têm por perto" -
3´35´´.
Cartão 5
- 10´´ - "Alice, chama-se, ou D. Alice. D. Alice é a santa
mãe protectora, digamos assim. Gosta de ter pessoas em casa e cuidar de tudo.
Até que um dia ficou embasbacada ao encontrar flores num jarro por cima da
mesa, onde ela tinha acabado de recolher as flores antigas. Ela tinha a certeza
que não estava ninguém em casa. Perguntava-se a si mesma como é que aquelas
flores tinham aparecido no jarro, se ela tinha removido as antigas. Porém,
esquecera-se que o Jorge, o seu filho mais velho, tinha o mau hábito de
surpreendê-la com pequenos truques, como bonbons ou chocolates debaixo do
travesseiro, flores no frigorífico, ou ainda pudim flan caseiro 'feito
para a mamâ', como dizia. Quando ela pensou no filho sorriu e compreendeu
a relutância que tem em aceitar presentes ou surpresas" - 4´.
Cartão 6BM
- 10´´ - "Veio despedir-se da mãe. Talvez porque vai viver
para outras regiões, ou talvez porque se vai casar. Na verdade ele tem tantas
dúvidas que não sabe porque se vai despedir da mãe que, muda, pensa:
'porque é que tem que ser assim? Porquê criar uma coisa? Investimos tanto
e um dia é como se quebrasse porque sevai ausentar de nós'. Ele tenta
convencê-la. Tenta explicar-lhe que a dada altura é importante, é preciso,
mesmo porque algum dia terá de fazer a sua vida. A mãe recusa-se a compreender
e coloca as desvantagens da sua velhice para convencer o filho a ficar. Diz que
daí em diante já não iria perguntar a que horas chegou, que já não teria
ninguém para esperar para jantar. Dizia que uma parte dela morria naquele
instante. Ele, frio, responde que algum dia temos que morrer e vai-se embora.
Curiosamente a mãe adoece. Talvez venha a morrer. Acaba assim" -
4´10´´.
Cartão 7BM
- 10´´ - "'Quando for velho quero ser como tu',
dizia o velho rapaz... o jovem rapaz. Porque tinha uma certa admiração por
pessoas mais velhas. Por isso não perdia o momento de estar com elas, de ouvir
as suas histórias, pois acreditava que todos aqueles percursos que eles tinham
feito, que tudo aquilo que tinham tentado fazer e construir não tinha sido em
vão, que não tinham acabado. Que ele sim, era o testemunho de toda aquela
procura e que por isso seria ele a continuar a estrada que os outros tinham
feito. Para também ser como eles e construir histórias e partilhar experiências
até encontrar a grande essência ou seja, o amor. Porque queria que todos eles
nessa viagem que tinham feito... só existia uma lacuna, a ausência do mesmo, do
amor. Por isso levavam as testas engelhadas, os cachimbos apagados e não
lavavam as mãos antes de cada refeição. Ele acreditava que ia ser diferente,
apesar de gostar deles, dos velhos" - 3´30´´.
Cartão 13MF
- 5´´ - "'Acabei de cometer um grande erro', dizo
João. 'Ela gostava de mim, trocou tudo, a sua vida, para estar comigo e
eu, num acto de estupidez e loucura, encaminhei-a ao demónio. Matei-a sem
razão. Não mais quero vê-la como pessoa. Não mais voltarei a pronunciar a
palavra Eu. Fugirei de todos os que se aproximarem de mim e temerei todos os
que disserem que me amam, todos aqueles que me falarem de amor. Talvez venha a
ser poeta. Talvez redija num só verso todas as memórias daquele que foi o meu
amor. Talvez acredite que outra vidavenha a brotar do sonho do meu querer. Ela
era inocente. Eu é que sou culpado em não compreender a dualidade do amor. Não
fugirei. Ficarei aqui à espera das consequências por ter profanado a minha
fidelidade no amor. Vou-me suicidar' (gesto)" - 3´40´´.
Estas histórias revelam-se, como o conjunto do protocolo de Filipe,
satisfatoriamente dominadas, integradas e coerentes, a flexibilidade do seu
registo defensivo permitindo-lhe a evocação dos conflitos muito perto das
solicitações latentes dos cartões, sem que o sujeito nunca se sinta invadido.
A relação triangular reactiva-lhe o manejo da líbido e da agressividade, num
registo a princípio muito sublimado e seguidamente mais pulsional (cartão 2).
As relações no seio do casal (cartão 4) são erotizadas mas tumultuosas,
marcadas pelo medo da não correspondência, a duplicidade e a possibilidade da
desilusão.
A relação com a imagem materna é extremamente ambivalente: quer edipiana e
idealizada (cartão5), quer desidealizada para se poder libertar (cartão 6BM).
Se o acesso à ambivalência é possível, já o reconhecimento da perda de objecto
é mais problemática, apesar de a integrar numa história lábil, muito bem
elaborada (cartão 6BM).
Na relação com a imagem paterna (cartão 7BM) a ambivalência mantém-se intensa,
apesar do primeiro movimento ser de excessiva idealização positiva. A
dificuldade em assumir os investimentos agressivos parece contribuir para
travar a possibilidade, no sujeito, de realizar um movimento identificatório
sem o custo de uma excessiva culpabilidade.
É esta culpabilidade e ambivalência extrema que se manifesta clara e
intensamente na relação amorosa e sexual (cartão 13MF), dificilmente contida,
com a vertente narcísica destrutiva consequente à agressividade a aparecer
("vou-me suicidar").
Contudo, a mobilização de defesas relativamente flexíveis correspondendo a uma
continência activa, permite a Filipe elaborar com eficácia as problemáticas com
as quais é confrontado, parecendo até que lhe provocam uma efervescência
dramática criativa. O seu funcionamento defensivo, essencialmente lábil,
permite a criatividade. Apesar da intensidade da excitação, que traduz
claramente a mobilização de todo o arsenal defensivo, a qual é reveladora da
fragilidade do envelope e do trabalho de protecção, parece-nos que esta
fragilidade, não colmatada por um sistema defensivo rígido, permite o trabalho
do pensamento no domínio da criatividade.
Neste contexto, e tendo também em conta as suas histórias aos cartões 3BM
("perdeu as pessoas de quem mais gostava"), 7BM ("só existia
uma lacuna, a ausência de amor" e 13B ("mas o que ele
verdadeiramente espera é que passe alguém que lhe dê alguma coisa para comer
(...) o puto nunca janta"), solicitando a perda e/ou o abandono do
objecto, o protocolo do Filipe parece-nos exemplar de um tipo de processo
criador que D. Anzieu (1992) designou "criações-consolidações", no
qual o criador faz das poucas estimulações recebidas pela figura maternal, em
criança, a matéria única de uma obra cujo objectivo é fazê-las durar
eternamente; no caso do Filipe, a actividade criadora pode ser concebida como
uma tentativa para escapar à depressão e/ou à angústia de aniquilamento que ele
sente activa dentro de si próprio.
Contenção dos vínculos L e H
A presença pesada e contínua da defesa pela contençãoassinala a fragilidade da
função continente para o psiquismo, com repercussões negativas no processo-
T.A.T. ou seja, ao nível dos processos de pensamento de qualidade conducentes à
criação de uma história de qualidade.
Uma ilustração clara desta falha continente através da defesa pela contenção é-
nos dada pelo protocolo de Guilherme, também ele actor, completamente dominado
pelos procedimentos CI e CF, assinalando a inibição (contenção) e pela ausência
de procedimentos A1,B1, isto é, procedimentos concorrendo para a encenação dos
conflitos, assim como para a expressão dos vínculos L e H:
Cartão 2
- 5´´ - "Desenho do antigo regime. Rapaz atlético, a cultura,
o físico. Rapariga bem vestida. Educação".
Cartão 4
- 5´´ - "(risos) O gajo está numa casa de meninas porque há
uma lá atrás".
Cartão 5
- 10´´ - "Ouviu um barulho durante a noite e foi ver o que se
passava".
Cartão 6BM
- 5" - "Um gajo novo e a mulher do Castelo Branco.
Não...tô a brincar. Alguém que foi dar uma notícia desagradável e está com
receio de dar a notícia, pois ele veio lá de fora... não tem roupa de quem
estava em casa".
Cartão 7BM
- 10´´ - "Um conselho do mais velho".
Cartão 13MF
- 5´´ - "Matou-a... ou acabou de morrer, porque está
tapadinha e tem um braço pendurado. E ele está com pena".
Outro exemplo ilustrativo da defesa contínua pela contençãoé o protocolo de
Ana, em que é flagrante o esforço contínuo que faz para manter o controlo da
agressividade na relação de objecto, pela utilização massiva de procedimentos
rígidos, claramente obsessivos.
Ilustramos com a história ao Cartão 6BM:
- 5´´ - "A mesma época. Reproduções ou desenhos continuam a
ser da mesma época. Aqui vejo nitidamente que é uma pessoa de idade, a mulher,
não propriamente uma pessoa velhinha. Era normal para uma pessoa daquela época
que se vestisse assim. Depois há um rapaz ou um homem, ele é um homem mas há
uma grande diferença de idades. Não sei se ele é filho ou neto, ele olha para
trás para o seu mundo. O seu mundo não tem nada a ver com o mundo do homem. Ele
parece aborrecido, contrariado e o que eu acho é que há aqui uma grande
incompreensão de parte a parte... Digo de parte a parte por ele ser bastante
mais novo e poder não se aperceber das razões da pessoa mais velha, mas o que é
facto é que a pessoa mais velha também não se apercebe das razõesdele, seja lá
o que está em causa. Tenta ser respeitoso, está com o seu chapelinho na mão,
tem uma atitude de respeito mas ela está mesmo de costas voltadas... Pronto,
aparece uma janela mas ninguém está a olhar à janela. Para mim é um conflito de
gerações. Ele está inseguro, está angustiado, digamos na linguagem que se usa
agora 'raios partam não sei o que fazer à velha', não sei se deva
pôr isso. E ela ao mesmo tempo 'como é que é possível?! como é que é
possível?!'. Aliás ela até tem um lencinho na mão e ele o chapéu, ela faz
a ceninha do choro. Naquela altura era costume usar o lencinho, servia para
tudo. Não tenho dúvidas que era uma pessoa velha, no outro ainda tinha porque
parecia o peito de uma pessoa jovem. Aqui não ponho nunca a ideia que seja um
marido. Não é um marido" - 10´15´´.
Incontinência dos vínculos L e H
Mas também é frequente encontrar na clínica momentos revelando a ausência da
acção da função continente, momentos de uma total incontinênciade um dos
vínculos emocionais, impedindo qualquer processo mental criativo.
Ilustramos estas situações de incontinência com duas histórias de dois
protocolos-T.A.T.:
Bernardo - Cartão 10
- 5´´ -"Isto são pequenos ramos velhos todo torcidos, ramos
mortos, poemas de Verharem que falam dos velhinhos, duas árvores secas"
- 35´´.
Manuel - Cartão 10
- 10´´ -"Nada. Volta a página. Estou a ver um grande nariz no
meio da página (ri) assim como uma mão (sorri)".
Os sujeitos parecem recusar a expressão libidinal no seio do casal, sugerida
pelo conteúdo latente da imagem.
Em relação ao primeiro, ficamos com a ideia de que a expressão libidinal,
apesar de heterossexual, é proibida. Este cartão evoca o carinho e ele fala de
"ramos velhos todos torcidos, ramos mortos". Trata-se, de facto, de
uma percepção libidinal muito mórbida, mortífera.
No segundo caso trata-se de um autêntico escárnio, um ataque mortífero em
relação à expressão libidinal.
Em ambos os casos, a incontinência da agressividade destruidora, do ódio,
impede qualquer dinâmica criativa.
No entanto, o que se observa normalmente em sujeitos dotados de uma
satisfatória função psicanalítica da personalidade, facilitadora do processo-
T.A.T. é revelarem a capacidade continente em relação aos vínculos emocionais,
apesar de se observarem pontualmente momentos de incontinência ou de contenção
nos processos psíquicos, não afectando significativamente, todavia, os
processos de simbolização e criatividade.
Iremos ilustrar esta dinâmica, através de dois excertos de protocolos-T.A.T. de
dois sujeitos:
Horácio - Cartão 6BM
-"Posso pedir-lhe uma coisa? Quem é que inventou estes testes e
decidiu que as pessoas estão bem ou mal a partir das respostas?... (digressões
durante as quais, aparentemente, não olha para a imagem)1´30´´ - Duas ou
três explicações: a primeira, a mãe ter-lhe-ia dito: 'então tu vais casar
com aquela desavergonhada!' Bem... o que me está a chatear é o chapéu,
porque se fosse mesmo filho dela, não estou a ver porque é que teria o chapéu.
A mãe e o filho logo depois do falecimento do pai, o falecimento ou o
despedimento. A terceira, o filho vem anunciar à mãe que se ia embora
definitivamente, que isso vai desgostar os dois, mas que é uma decisão
irrevogável" - 3´.
Cartão 7BM
-"(Digressão muito longa sobre o futebol) -30´´
-Digamos que há um velho e um jovem. O velho acaba de demonstrar uma
evidência ao outro, com ar de quem diz: 'Estás a topar que estou
seguro'. O outro olha..." (digressão imediata sobre a América).
Estas histórias mostram à evidência tratar-se de um sujeito com uma
problemática paterna e materna não integrada e não resolvida.
No cartão 6BM, o cartão da confrontação materna, começa por pôr-lhe o problema
da sua própria saúde mental. A longa digressão sobre os testes e os psicólogos,
num modo agressivo e portanto defensivo, vai permitir-lhe elaborar três
histórias.
A primeira é altamente conflitual e ele é obrigado a eliminá-la porque o filho
não suporta a agressividade da mãe, minimiza o seu discurso e anula a filiação:
"se fosse mesmo filho dela".
O segundo tema é o falecimento do pai. Este tema já é mais banal e o sujeito é
bastante mais restritivo e controlado, na medida em que nenhum afecto é
expresso.
E, por fim, um terceiro tema socializado, com defesas flexíveis, variadas e não
aparentes, revelando a acção de uma função continente do psiquismo e do vínculo
H.
Mas ele demorou imenso tempo para chegar aqui. A elaboração começa pela
angústia; uma angústia muito íntima sobre a sua saúde mental, e termina com uma
boa história, mas só depois de numerosas tentativas e falhanços. Como se ele
soubesse que produzir, criar uma história, significa resolver a sua angústia.
No cartão 7BM a problemática paterna apresenta-se semelhante à problemática
materna que acabámos de explicitar, mas aqui ele não consegue uma saída
positiva através de uma boa história.
Vejamos também o caso de António - Cartão 5:
- 10´´ - "É muito 1900. Um bocado miserabilista. Um pouco
casa de porteira... A mulher abre a porta e grita para o marido que deve estar
numa cozinha qualquer: 'Já são mais que horas para os miúdos se
deitarem!'. Há uma coisa que me choca desde o início: não há nenhuma
agradável. O que me choca também, é esta mulher, neste interior, não me
interesso mesmo nada em relação a ela, e lamento-a um pouco por viver num mundo
que não me agrada. Fica-se com a impressão de que tudo o que ela me pudesse
dizer não teria para mim qualquer interesse".
Cartão 6BM
- 10´´ - "É o mensageiro sombrio que vem anunciar uma má
notícia a esta pobre mulher. Talvez a morte de um próximo. Não sei. Mas devido
à sua idade, ela já passou por tanta coisa que adquiriu uma espécie de fleuma.
Ela olha para um... imagino um jardim, pela janelae consola-se pensando em
Deus, na natureza, misturando tudo um pouco".
Cartão 7BM
- 10´´ - "O pai aconselha o filho. O filho que já é mais que
adulto. Não sei o que poderei dizer além disto... 'Eu também passei por
isso!'. Por onde é que eu não sei, ele está a destilar-lhe a filosofia
daqueles que viveram mais do que os outros. Tem um bigode que faz lembrar...
não sei quem, é simpático. Estou a falar do velho... menos do filho".
A história ao cartão 5 é impressionante. Existe o tema banal, mas António
projecta uma violência muito intensa, como se existisse um ódio e um desprezo
entre ele e a figura materna: "tudo o que ela me pudesse dizer não teria
para mim qualquer interesse". Encontramo-nos plenamente no registo da
rejeição da mãe, isto é, no registo da incontinência do vínculo H em relação à
imagem materna. Esta mãe é miserável e triste, desinteressante, e se é
lamentada no plano consciente é odiada no plano inconsciente.
A história ao cartão 6BM mostra-nos novamente, apesar de muito mais integrado
(presença da função continente dos vínculos emocionais), o lamento consciente e
o ódio inconsciente em relação à figura materna: "adquiriu o hábito do
desgosto" e "ela mistura tudo um pouco". No entanto, e devido
a uma maior capacidade continente do vínculo H, consideramos uma história
conseguida.
No cartão 7BM revela-se a projecção da mesma agressividade dificilmente contida
em relação à figura paterna. Apesar de ser "simpático", o seu
discurso é chato e supérfluo.