Motivação para a leitura ao longo da escolaridade
Distribuição dos participantespor género e ciclo de escolaridade
Instrumento e procedimentos
No presente estudo foi utilizada uma escala construída a partir de duas versões
anteriores, uma destinada a alunos do 1º ao 4º ano de escolaridade, que
contemplava somente 3 dimensões e outra para alunos do 5º ao 9º ano com seis
dimensões (Monteiro & Mata, 2001, 2002). A presente versão ficou
constituída por 34 itens distribuídos por cinco dimensões distintas:
Importância e Curiosidade- oito itens que caracterizam a importância
atribuída à leitura e a curiosidade para ler sobre novos assuntos (e.g.,
"Ler é importante porque aprendo coisas novas"); Reconhecimento
Social- sete itens que se referem à importância e gratificação sentidas
quando os outros (pais, professor e colegas) reconhecem os seus resultados e
performance em leitura (e.g., "Gosto que os meus pais reconheçam os meus
esforços para ler"); Razões Sociais- seis itens que reenviam para a
partilha de livros e de ideias sobre os livros (e.g., "Converso com os
meus amigos sobre o que leio"); Prazer- oito itens que caracterizam
a satisfação e prazer retirados dos momentos de leitura (e.g., "Quando
leio fico distraído e não dou pelo tempo passar"); Autopercepção de
Competência- sete itens que procuram identificar a confiança e as
dificuldades sentidas enquanto leitor (e.g., "Quando estou a ler tenho
que voltar atrás várias vezes, para compreender o que li").
Cada item é apresentado sob a forma de uma afirmação sobre a qual os alunos têm
que analisar o seu grau de identificação. As respostas são dadas numa escala
tipo Likert de quatro pontos, podendo estas variar entre "Muito diferente
de mim", "Diferente de mim", Parecido comigo" ou então
"Muito parecido comigo". A cotação é feita de 1 a 4 pontos de modo
a que 4 pontos reenviem sempre uma motivação mais elevada no domínio
considerado. No final são calculadas as médias das pontuações dos itens de cada
dimensão, obtendo-se assim cinco valores diferentes para traçar os perfis
motivacionais.
Uma análise factorial exploratória, usando a extracção de componentes
principais, seguida de uma rotação Varimax, permitiu analisar o padrão
factorial da escala. Este mostrou-se bem definido, distribuindo-se os itens
pelas cinco dimensões de acordo com a sua concepção. Resultou, então, uma
solução factorial com cinco factores, onde o grau de saturação de cada item com
o respectivo factor se mostrou adequado, sendo a média de saturação para todos
os itens de .65 e a percentagem de variância explicada de 55,5%.
No presente estudo a consistência interna das diferentes dimensões, avaliada
através do Alfa de Cronbach, revelou-se adequada. O valor mais baixo foi obtido
na dimensão Autopercepção de Competência (.69) o qual está muito próximo do
limiar da aceitabilidade (.70) (Nunnaly, 1978). Nas restantes dimensões o valor
do Alfa de Cronbach variou entre .84 e .89.
A escala foi administrada colectivamente, mas com os alunos mais novos, sempre
que se verificou essa necessidade, os itens foram lidos em voz alta. Os alunos
foram informados de que não existiam respostas certas nem erradas e que o que
interessava era a sua opinião. Após a administração dos itens exemplo, e a
certeza de que todos tinham compreendido passou-se à aplicação dos restantes
itens.
RESULTADOS
Estabelecemos como objectivo deste estudo a caracterização da motivação para a
leitura do 3º ao 9º ano de escolaridade, procurando analisá-la em função da
etapa de escolaridade e do género. Para esse efeito, realizámos uma análise de
variância multivariada considerando como variáveis independentes o ciclo de
escolaridade e o género e como variáveis dependentes as diferentes dimensões da
motivação para a leitura. Os resultados desta análise evidenciaram a existência
de efeitos principais do género [Pillai's Trace=0.011, F(5,1395)=3.14
p=0.008, η2=.01] e do ano de escolaridade [Pillai's Trace=0.281, F
(10,2792)=45.60, p<0.001, η2=.14], não se verificando efeitos de interacção
[Pillai's Trace=0.01, F(10,2792)=1.37, p=0.186, η2=.005].
Os resultados das análises univariadas, no que se refere aos efeitos do ano de
escolaridade, permitiram constatar que estes ocorrem em todas as dimensões da
motivação - Prazer [F(2,1399)= 132.2 p<0.001, η2=.16], Importância/
Curiosidade [F(2,1399)=130.1 p<0.001, η2=.16], Reconhecimento Social (F
(2,1399)=192.6 p<0.001, η2=.22]; Razões Sociais [F(2,1399)=107,8 p<0.001,
η2=.13] e Autopercepção de Competência [F(2,1399)=24,687 p<0.001, η2=.03)]. A
análise da Figura 1 permitenos constatar que à excepção da dimensão da
Autopercepção de Competência, os valores de motivação para a leitura vão
baixando à medida que o ano de escolaridade aumenta. Uma análise post-
hocutilizando o teste de Tukey permite evidenciar que estas diferenças são
significativas entre todos os ciclos de ensino, exceptuando para a dimensão
Autopercepção de Competência. Neste caso, os alunos do 1º Ciclo apresentam
valores significativamente mais baixos que os dos 2º e 3º Ciclos, não se
verificando diferenças entre os alunos destes dois ciclos de estudos.
FIGURA_1
Média das diferentes dimensões da motivação para a leitura, por ciclo de
escolaridade
A análise da Figura 1 permite-nos ainda constatar que os valores mais elevados
se encontram nas dimensões Importância/ /Curiosidade, Reconhecimento Social e
Prazer, para todos os ciclos de escolaridade. Na dimensão Autopercepção de
Competência encontramos os valores mais baixos, situando-se estes abaixo do
valor médio da escala (2,5). Assim, os nossos alunos atribuem importância às
actividades de leitura, gostam de ver os seus progressos reconhecidos pelos
outros significativos mas não se consideram bons leitores.
No que se refere ao género, os resultados da análise de variância demonstraram
a existência de diferenças significativas em todas as dimensões com excepção da
Autopercepção de Competência [Prazer [F(1,1399)=11,834 p=0.001, η2=.008],
Importância/Curiosidade [F(1,1399)=7,602 p=0.006, η2=.005], Razões Sociais [F
(1,1399)=10,411 p=0.001, η2=.007] e Reconhecimento Social [F(1,1399)=5,539
p=0.019, η2=.004)]. Em todas as dimensões nas quais se verificou a existência
de diferenças significativas as raparigas apresentaram valores mais elevados
que os rapazes (Figura 2).
FIGURA 2
Média das diferentes dimensões da motivação para a leitura, por ciclo de
escolaridade
A análise do eta quadrado parcial permite evidenciar que os efeitos do ciclo de
escolaridade são mais fortes que os do género (.14 vs. .01) e afectam
predominantemente a dimensão Reconhecimento Social, a qual apresenta um forte
declínio com o avançar da escolaridade.
DISCUSSÃO
Este estudo teve como propósitos caracterizar os perfis motivacionais para a
leitura de crianças do 3º ao 9º ano de escolaridade, em função do ano de
escolaridade e do género.
Os resultados aqui apresentados revelam um efeito do ano de escolaridade na
motivação para a leitura, em particular nas dimensões do Prazer, Importância e
Curiosidade (dimensões associadas à motivação intrínseca), no Reconhecimento
Social (motivação extrínseca) e na Autopercepção de Competência. Para estas
dimensões, com excepção da Autopercepção de Competência, os valores
motivacionais decresceram com o aumento do ano de escolaridade.
É por todos sabido que as crianças quando entram para a escola sentem uma
vontade muito grande em aprender e revelam muita curiosidade em relação às
actividades escolares em geral e, para a leitura, em particular. Em estudos
anteriores, autores como Eccles, O'Neill, e Wigfield (2005), Harter et
al. (1992) e Lepper et al. (2005) tinham constatado que a motivação intrínseca
para a aprendizagem decrescia ao longo da escolaridade. No campo da motivação
para a leitura estes dados foram confirmados por Baker e Wigfield (1999),
Gambrell et al. (1996), Monteiro e Mata (2001) e Wigfield e Guthrie (1997).
Esta tendência para uma descida global dos valores motivacionais tem sido
frequentemente explicada tendo em conta dois aspectos: as características de
desenvolvimento das crianças e a diversificação de áreas de interesse e de
competência. No que se refere às características de desenvolvimento, as
crianças mais novas têm capacidades mais limitadas para perceber as situações e
para se compararem com os outros (Harter, 1990, 1999; Wigfield, 2000). Este
facto conduz, muitas vezes a avaliações das situações e opiniões muito mais
positivas, por serem menos rigorosas e objectivas. Por outro lado, a
diversificação de áreas de interesse, à medida que vão crescendo e contactando
com novas actividades e matérias pode levar a que uns alunos se dediquem mais a
um tipo de actividade e outros a outro, provocando um decréscimo em alguns
aspectos das suas motivações. Neste sentido, a simples análise da subida e
descida dos níveis motivacionais parece insuficiente para uma compreensão clara
dos processos motivacionais. Desta forma, é necessário compreender se esses
valores se mantêm ainda em níveis positivos, ou se a sua descida é tão
acentuada que se possa efectivamente tornar um problema, por inibir o
envolvimento dos sujeitos nas actividades. A análise dos dados da Figura_1
permite-nos observar alguns indicadores preocupantes. A descida é tal forma
acentuada que, para os alunos do 3º ciclo, não há qualquer indicador
motivacional francamente positivo, pois nenhum apresenta valores iguais ou
superiores a 3. De realçar que o Prazer se apresenta no ponto médio, enquanto
que nas Razões Sociais para a leitura e Autopercepção de Competência os níveis
motivacionais são bastante baixos.
Esta descida dos valores motivacionais para a leitura, nomeadamente nos
indicadores que aparecem associados à motivação intrínseca (e.g., Prazer,
Importância e Curiosidade) pode também ser explicada pelas práticas pedagógicas
utilizadas pelos professores nas actividades de leitura. Quando as práticas de
avaliação pedagógica dos professores se regem por interpretações normativas, em
que comparam os alunos uns com os outros, em que estimulam a competição, podem
levar a que estes dêem mais importância às notas e à comparação social,
conduzindo a um decréscimo progressivo da motivação intrínseca pela leitura
(Baker, Dreher, & Guthrie, 2000; Wigfield, 2000). Por outro lado, a
utilização de práticas de ensino muito tradicionais, assentes quase
exclusivamente na utilização do manual, de fichas e composições, tal como
refere Sim-Sim (2001), pode ter um impacto negativo tanto ao nível das
aquisições como do envolvimento das crianças em situações de leitura De resto,
esta ideia tem sido profundamente explorada nos últimos anos por uma equipa de
investigadores da Universidade de Maryland, que desenvolveram e implementaram
um programa de trabalho sobre a leitura denominado CORI (Concept-Oriented
Reading Instruction) (Guthrie, McRae, & Klauda, 2007; Wigfield, Guthrie,
& Von Secker, 2000; Wigfield, Guthrie, Perencevich, et al., 2008). Este
programa procura integrar o ensino das ciências e da leitura, usando materiais,
actividades e práticas diversificadas, estratégias de leitura variadas, e
valorizando a leitura partilhada. Os resultados de diversas investigações sobre
os efeitos deste programa evidenciam diferenças, não apenas no desempenho em
leitura, mas também ao nível das motivações (e.g., curiosidade, envolvimento,
desafio), concluindo pela existência de um efeito positivo, com uma magnitude
moderada a forte (Guthrie, McKae, & Klauda, 2007). Assim, mostra-se que as
práticas de abordagem à leitura e à escrita, podem ser determinantes no tipo e
nível de motivação, factor este que poderá justificar o decréscimo verificado
ao longo dos três ciclos de escolaridade, nos indicadores motivacionais dos
alunos participantes neste nosso estudo.
No que se refere à motivação extrínseca, a literatura normalmente refere um
aumento ao longo da escolaridade, no que respeita a aprendizagem em geral
(Eccles, O'Neill, & Wigfield, 2005; Harter, Whitesell, &
Kowalksi, 1992). Contudo, os dados da investigação sobre motivação para a
leitura, não têm mostrado indícios deste aumento da motivação extrínseca.
Usualmente os indicadores de motivação extrínseca utilizados, no estudo da
motivação para a leitura, são os incentivos, quer em termos de Notas quer em
termos de Reconhecimento Social (Baker & Wigfield, 1999; Gambrell, Palmer,
Codling, & Mezzoni, 1996; Monteiro & Mata, 2001; Wigfield &
Guthrie, 1997; Wigfield, Guthrie, & McGough, 1996). O que se tem verificado
é que em relação às Notas não há qualquer efeito significativo do ano de
escolaridade, mas no que se refere ao Reconhecimento Social, este normalmente
decresce. Esta descida do Reconhecimento Social faz sentido se pensarmos que à
medida que a criança vai conseguindo fazer avaliações do seu desempenho de
forma mais autónoma necessita cada vez menos dos reforços extrínsecos que os
outros significativos (pais, colegas e professores) possam fazer relativamente
à sua performanceem leitura. Na presente investigação estes valores são
bastante positivos durante o 1º ciclo e ainda durante o 2º ciclo, notando-se um
decréscimo bastante acentuado no que se refere ao 3º ciclo. Nestes alunos mais
velhos, é muito menor a sua necessidade de confirmação de competência, ou
reconhecimento do seu esforço por parte dos outros que lhes são próximos, daí o
Reconhecimento Social já não ser um motivo essencial para se dedicarem à
leitura.
Quanto às Razões Sociais o que se verifica é que estas, em etapa nenhuma da
escolaridade, surgiram como razões importantes para o envolvimento com a
leitura. Para além disso, essa importância vai decaindo significativamente ao
longo da escolaridade. A explicação que apresentámos anteriormente no que se
refere à influência das práticas pedagógicas de abordagem à leitura no
decréscimo da motivação intrínseca pode novamente ser mobilizada. Uma vez que
as práticas tradicionais não promovem, usualmente, nem a partilha nem a
cooperação entre os alunos, isso também não é transposto para as suas
características motivacionais nem para as utilizações da leitra.
Os resultados apresentados permitiram também evidenciar que os efeitos do ciclo
de escolaridade eram mais fortes que os do género. De qualquer modo, apesar de
o ano de escolaridade introduzir alterações mais significativas nas
características motivacionais, parece-nos importante também reflectir sobre
algumas alterações encontradas em função do género. Os estudos têm demonstrado
que as raparigas são, em muitos aspectos mais motivadas para a leitura do que
os rapazes (Baker & Wigfield, 1999; Monteiro & Mata, 2001; Wigfield
& Guthrie, 1997) desenvolvendo, também, atitudes mais positivas face à
leitura (McKenna, 2001; McKenna, Kear, & Ellsworth, 1995). Também alguma
investigação incidindo sobre os hábitos e gosto pela leitura evidencia
diferenças atribuíveis ao género, que se revelam desde o início da escolaridade
(Lages, Liz, António, & Correia, 2007; Santos, Neves, Lima, & Carvalho,
2007). No nosso estudo verificou-se, igualmente, que as raparigas apresentavam
valores mais elevados de motivação para a leitura do que os rapazes nas
dimensões: Prazer, Importância/Curiosidade, Reconhecimento Social e Razões
Sociais. Neste sentido apontam também resultados do Pisa 2000 (Ramalho, 2001) e
do PISA 2003 (Ramalho, 2004) que vieram demonstrar que as raparigas portuguesas
revelaram melhores desempenhos em leitura do que os rapazes. Estes resultados
podem ser explicados pelo desenvolvimento de expectativas sociais mais
positivas, criadas a partir de categorizações feitas em relação ao desempenho
de rapazes e raparigas em leitura (Baker & Wigfield, 1999; McKenna et al.,
1995). As expectativas em relação ao desempenho nas actividades de leitura,
levam a que os professores estimulem, encorajem e tenham um tratamento
diferenciado para com os seus alunos, consoante o género, dando mais atenção,
interagindo mais e colocando questões sobre a leitura mais frequentemente e com
maior complexidade para as raparigas (Good, 1987; MyHill & Jones, 2006;
Rubie-Davies, 2006). Este tratamento diferenciado pode levar a que os alunos se
envolvam com a leitura de forma distinta e, consequentemente, pode conduzir a
níveis de motivação para a leitura desiguais. Estas diferenças devem ser
levadas em consideração em contexto de sala de aula pelos professores, em
particular quando querem envolver os seus alunos e motivá-los para a leitura.
Este estudo, permitiu-nos conhecer melhor as características motivacionais dos
alunos ao longo da escolaridade e, deste modo, retirar algumas pistas para o
desenvolvimento de estratégias pedagógicas que possam promover aspectos
específicos da motivação e, assim conduzir a um maior envolvimento com a
leitura. Fica evidenciada a necessidade de se mobilizarem, nas nossas escolas,
estratégias que promovam o prazer e o gosto pela leitura, uma vez que os alunos
chegam ao 3º ciclo retirando pouca satisfação dos momentos de leitura.
Certamente que o Plano Nacional de Leitura (Alçada, Calçada, Martins, et al.,
2006), com as estratégias e actividades em implementação, poderá introduzir
algumas mudanças neste panorama, contribuindo para alterações na forma de
envolvimento com a leitura, através de acções direccionadas para as crianças,
as famílias e a escola. Poderá também contribuir para uma diversificação e
adequação das práticas pedagógicas, o que é essencial, tal como se verificou
nos estudos com o programa CORI (Guthrie, McRae, & Klauda, 2007; Guthrie,
Wigfield, & Von Secker, 2000; Wigfield, Guthrie, Perencevich, et al.,
2008).
Por outro lado, embora a leitura seja uma prática que deveria ter uma
componente social muito enraizada, devido à sua própria natureza (Wigfield,
2000), isso não transparece nos perfis motivacionais destes alunos. As Razões
Sociais associadas à leitura, como a partilha, as trocas os confrontos de
opiniões, não são motivos importantes para estes alunos lerem. Mais preocupante
é ainda a situação quando constatamos que as motivações associadas às Razões
Sociais decrescem significativamente com a escolaridade, assumindo valores
muito baixos entre os alunos do 3º ciclo. Uma mudança nas abordagens à leitura,
na escola e em casa, poderá contribuir para alterações significativas de
atitudes e hábitos de leitura e torná-la uma prática mais rica e partilhada
socialmente.