A (in)justiça relativa da acção positiva- A influência do género na
controvérsia sobre as quotas baseadas no sexo
OBJECTO DE ESTUDO
As minorias visíveis e as mulheres continuam a estar sub-representadas
mundialmente ao nível dos cargos dirigentes, em diversos sectores de actividade
(Vianello & Moore, 2004; Zweigenhaft & Domhoff, 1998).
Na política, excepto em alguns países, onde já há uma elevada representação das
mulheres, como é o caso do Ruanda (56,3%) e da Suécia (47%) (Inter-
Parliamentary Union, 2008), a evolução no sentido da igualdade de género ainda
tem sido mais lenta (Espada, Vasconcellos, & Coucello, 2002; Lisboa, Frias,
Roque, & Cerejo, 2006).
Perante a persistência desta realidade, nas últimas décadas, têm sido
efectuadas tentativas para diminuir a discriminação baseada nas pertenças
sociais e atenuar os efeitos da discriminação do passado (Kravitz &
Platania, 1993). É neste contexto que surgem as medidas de acção positiva
("affirmative action"), destinadas a promover a igualdade. Contudo,
estas têm gerado forte controvérsia (Crosby & Cordova, 1996), dividindo as
posições a favor e contra.
O objectivo geraldo presente artigo teórico é identificar as principais razões
desta controvérsia, de acordo com a literatura, dando particular destaque à
percepção de justiça. Em termos específicos, pretende trazer, como contributo
para este debate, o papel da ideologia de género na percepção da justiça, de
modo a procurar elucidar alguns dos argumentos regularmente usados pelos
detractores das medidas de acção positiva, como é o caso do argumento do
mérito.
Para tal, começamos por contextualizar e definir o conceito de "acção
positiva", primeiro em geral e depois focando o caso particular da sub-
representação das mulheres no política. Em seguida, apresentamos exemplos,
retirados da literatura, sobre algumas das opiniões face às medidas de acção
positiva, bem como explicações para a existência da controvérsia, dando
particular destaque à percepção de justiça. Depois, articulamos os estudos de
género com os estudos da percepção da justiça, abordando mais detalhadamente as
teorias da justiça distributiva, procedimentale da privação relativa, porque
pensamos que esta articulação nos ajuda a esclarecer alguns dos argumentos
frequentemente usados pelos detractores, como é disso exemplo o argumento do
mérito.
ACÇÃO POSITIVA: ORIGEM E DEFINIÇÃO
O termo surge nos Estado Unidos da América (EUA) em 1935, na Lei Wagner,
relativamente ao mundo do trabalho (Bacchi, 1996). No contexto dos direito
cívicos, a acção positiva foi concebida pelo Governo Kennedy em 1961, tendo
sido implementada, pela primeira vez, em 1965, durante o mandato do Presidente
Johnson, para combater a discriminação com base na "raça", cor,
religião e na nacionalidade. Em 1967, foi corrigida e generalizada às mulheres
(Thermes, 1999)
1
. Trata-se, de uma etapa que, segundo Thermes (1999), marca uma alteração na
evolução do pensamento político americano, porque a noção de "igualdade
de oportunidades" é abandonada em detrimento da "igualdade de
resultados", e os direitos do indivíduo cedem em detrimento das
reivindicações de grupo2.
Para Bergmann (1996), a acção positiva é uma política ou um programa que
procura lutar contra a discriminação e alcançar a diversidade, de modo a
reduzir a pobreza entre os grupos, consistindo em "planning and acting to
end the absence of certain kind of people - those who belong to groups
that have been subordinated or left out - from certain jobs and schools.
It is an insurance company taking steps to break its tradition of promoting
only white men to executive positions" (p. 7).
Há um vasto leque de medidas de acção positiva. Konrad e Linnehan (1995)
identificaram 119 tipos de medidas implementadas em empresa americanas,
nomeadamente, centradas nos objectivos a atingir e colocando directamente em
causa os procedimentos de contratação (e.g., a preferência por um candidato
minoritário suficientemente qualificado para o cargo) e destinadas a oferecer
um meio mais equitativo às minorias (e.g., incitações para submeter
candidaturas e programas de formação específica para as minorias interessadas).
Porém há, na literatura, uma distinção entre os programas de acção positiva
"soft"(e.g., procuram implementar a igualdade de oportunidades,
removendo as barreiras) e "hard"(e.g., as quotas, tratamento
preferencial) (Taylor & Moghaddam, 1994), sendo que os primeiros aprovam
explicitamente os princípios baseados na equidade individual e os últimos
envolvem uma mudança ideológica para um conceito baseado no grupo.
Na política, o sistema de quotas é um dos mecanismos de aplicação da acção
positiva (Marques-Pereira, 2003) que estabelece um nível mínimo de
representação e participação para ambos os sexos. Actualmente, destina-se a
garantir às mulheres, que constituem mais de 50% da população, uma participação
nas listas eleitorais, subordinada a um objectivo quantificado, em percentagem
ou em número de lugares (Duarte, 1998). Este mecanismo pretende assegurar que
as mulheres não sejam meros símbolos na política mas, pelo menos, uma
"minoria crítica" de 20, 30 ou 40%. As quotas podem, ou não, ser
temporárias, sendo, neste caso, aplicadas até que não haja barreiras à sua
entrada (Global Database of Quotas for Women,International IDEA, 2006). Vários
países já recorreram às quotas, com sucesso, como é o caso do Ruanda (Inter-
Parliamentary Union, 2008). Outros implementaram a paridade, como é o caso de
França, em 2000 (Gaspard, Servan-Schreber, & Gall, 1992; Sénac-Slawinski,
2004) e de Portugal, em 2006 (Lei Orgânica nº 3/2006, 21 de Agosto)3.
No nosso país, imediatamente após a fundação da democracia, a Constituição de
1976 criou as condições políticas e jurídicas para que as mulheres pudessem
votar e ser eleitas para todos os cargos políticos sem quaisquer restrições
(ver os artigos 12º e 13º). Em 1980, foi ratificada a Convenção Internacional
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres
(CEDAW, 1979), que encoraja os Estados-Membros a adoptar medidas para melhorar
a participação política das mulheres (Avelar, 2001). Assim, o Estado português
acordou, nomeadamente, tomar "todas as medidas apropriadas para eliminar
a discriminação contra as mulheres na vida política e pública do país"
(Faria, 2000, p. 109). Nesta sequência, a IV revisão constitucional de 1997
salienta (através do artigo 109º) a importância de assegurar a igualdade de
género na política. A Constituição passou a conter medidas de acção positiva,
no sentido de se promover a participação política das mulheres (Miranda, 1998).
A CONTROVÉRSIA SUSCITADA PELAS MEDIDAS DE ACÇÃO POSITIVA
Perante as barreiras estruturais de discriminação e de violação do princípio de
justiça, a acção positiva é geralmente usada, pelos seus defensores, como uma
forma de compensação que pretende promover a competição justa, sendo
frequentemente percebida como uma forma eficiente para atingir a igualdade dos
resultados (Vogel-Polsky, 1989). Contudo, a sua implementação (sobretudo quando
realizada através de mecanismos considerados mais "hard") tende a
ser mal percebida por outras correntes de opinião, suscitando controvérsia
(Crosby & Cordova, 1996; Crosby & VanDeVeer, 2003; Crosby, Iyer, &
Sincharoen, 2006; Pratkanis & Turner, 1996), dividindo as posições a favor
e contra, sobretudo no caso das mulheres, que nem sempre são percebidas como um
grupo desfavorecido (Bacchi, 1996).
As medidas de acção positiva têm sido amplamente investigadas pelos cientistas
sociais (Crosby et al., 2006), focando-se, sobretudo, nas características da
acção positiva em si(e.g., que medida é; se é ou não processualmente justa),
nas características do alvo da medida(e.g., o sexo da pessoa; se tem ou não
mérito), ou na relação entre o observador e o alvo(e.g., se o/ candidato/a é ou
não do mesmo sexo) (Dietz-Uhler & Murrell, 1998). A investigação tem
identificado diversos factores psicossociológicos (e.g., atitudes, crenças e
percepções de justiça.
Assim, as opiniões dos defensores e detractores podem resultar do
(des)conhecimento do seu significado(e.g., Kravitz & Platania, 1993; Steeh
& Krysan, 1996). De facto, frequentemente, as crenças das pessoas sobre as
medidas de acção positiva são incorrectas, mostrando-se mais defensoras quando
as conhecem melhor (Kravitz & Platania, 1993), ou quando acreditam que
estas conduzem a resultados positivos (Konrad & Linnehan, 1999). Podem ter
uma causa semântica(Tougas, Crosby, Joly, & Pelchat, 1995; Truaux, Cordova,
Wood, Wright, & Crosby, 1998). Há várias terminologias para designar o
mesmo fenómeno, tais como "medidas positivas", "discriminação
positiva", "discriminação inversa", "acção anti-
discriminatória", "acção correctiva das desigualdades",
"mobilização positiva", ou "igualdade de oportunidades no
emprego" (Lorenzi-Cioldi, 2002), sendo que o uso de cada um destes termos
(que carregam o julgamento sobre o conceito) pode indicar a opinião (favorável
ou não) da pessoa.
Também podem ser consequência de crenças sobre a (in)existência de
discriminação(Konrad & Hartmann, 2001). É mais provável que as pessoas que
acreditam na existência de barreiras às oportunidades de membros de alguns
grupos defendam mais as medidas do que as que não acreditam, porque não vêem
necessidade para tal (e.g., ver Tougas & Veilleux, 1989). Podem dever-se ao
(anti)racismo.O racismo continua a existir na sociedade ocidental, embora
frequentemente expresso de forma subtil, como é o caso do racismo aversivo
(Dovidio, Mann, & Gaertner, 1989), sendo as pessoas racistas geralmente
mais detractoras. Apesar de, por vezes, apoiarem o princípio da acção positiva,
resistem mais à sua implementação do que as anti-racistas. As pessoas defendem
menos as medidas de acção positiva para os negros do que para os pobres ou os
deficientes (Kravitz & Platania, 1993; Steeh & Krysan, 1996). Podem
igualmente dever-se ao (anti)sexismo.O sexismo também persiste na nossa
sociedade (Tougas, Brown, Beaton, & St-Pierre, 1999), sobretudo de forma
subtil, como é o caso do sexismo ambivalente (Glick & Fiske, 1996). Há uma
associação negativa entre a defesa das medidas e as novas formas sexismo
(Tougas et al., 1995). Contudo, já foi mostrado que quando se informa, por
exemplo, os homens acerca das desvantagens das mulheres, estes passam a
defender mais as medidas (e.g., Tougas & Veilleux, 1989; Veilleux &
Tougas, 1989), embora a informação tenha mais impacto entre os menos sexistas
(Tougas et al., 1995).
As opiniões também podem resultar do individualismo vs. igualitarismo(Dovidio
et al., 1989), sendo que a detracção às medidas reflecte os valores do
individualismo e da meritocracia (i.e., acreditam que qualquer pessoa
competente tem elevadas probabilidades de ter sucesso) e a defesa do princípio
da acção positiva representa os valores do igualitarismo. A ideologia de
génerotambém pode ter influência nas opiniões4. Por exemplo, é mais provável
que as pessoas com crenças tradicionais acerca dos papéis de género percebam
menos a discriminação como um problema e, logo, defendam menos as medidas do
que as pessoas que têm crenças menos tradicionais (ver Clayton & Crosby,
1992). Da mesma forma, a ideologia política(Konrad & Linnehan, 1999) pode
afectar as opiniões das pessoas face às medidas. Geralmente, os de esquerda, na
Europa (Sineau, 2001) e os liberais, nos EUA, são mais defensores das medidas e
da igualdade, contrariamente aos de direita e aos conservadores (Bacchi, 1996),
que acreditam mais no individualismo e na meritocracia.
As opiniões das pessoas podem, ainda, ser efeito de interesses
divergentes.Provavelmente por serem vítimas de discriminação com mais
frequência (Bell, Harrison, & McLaughlin, 1997), geralmente, as mulheres
são mais defensoras das medidas do que os homens (Konrad & Hartmann, 2001;
Kravitz & Platania, 1993) e as minorias étnicas são mais defensoras do que
a maioria branca (Kravitz & Platania, 1993; Kravitz et al., 2000). Segundo
o modelo do auto-interesse, a acção positiva será determinada pelo facto de
proporcionar resultados positivos à pessoa ou ao seu grupo, devendo, por isso,
os homens brancos ser menos defensores da medida do que qualquer outro grupo
(Tougas et al., 1995), por não serem directamente beneficiados (ver Bell et
al., 1997; Bobo, 1998; Summers, 1995). Contudo, a importância do auto-interesse
é uma questão ainda em debate. Aliás, Kravitz e Platania (1993) mostraram que
as mulheres defendem mais as medidas, em geral, do que os homens (i.e., mesmo
quando estas não lhes são direccionadas). Por outro lado, se assim fosse, como
se explicaria a resistência de alguns beneficiários às medidas?
As opiniões podem, ainda, dever-se à auto e hetero-percepção de
(in)competência.Estudos realizados em laboratório sobre medidas mais
hardmostraram que os beneficiados são percebidos pelos não-beneficiados como
menos qualificados (cf. Heilman, 1996; Pratkanis & Turner, 1996),
suscitando sentimentos de revolta (Heilman, 1996) e os beneficiados também
podem duvidar das suas competências (cf. Heilman, Rivero, & Brett, 1991) ou
acreditar que os outros o fazem (Heilman, Block, & Lucas 1992; Truaux et
al., 1998), podendo ter efeitos psicológicas. Outros estudos (e.g., Ayers,
1992; Heilman et al., 1991) mostram que estes não se sentem prejudicados pelas
medidas e só quando não têm confiança nas suas competências (e.g., os jovens) é
que parecem sofrer as consequências negativas (Truaux et al., 1998). Clayton e
Crosby (1992), defensores da acção positiva, salientam que os investigadores
também devem conhecer o significado das medidas (e.g., saber que o mérito é
tido em conta) antes de realizarem os estudos.
As opiniões também podem ter a ver com as (des)vantagens da acção positiva.
Embora existam detractores das medidas, que as culpam, nomeadamente, de
conduzir ao desemprego das pessoas que não são beneficiadas (Clayton &
Crosby, 1992), há defensores que acreditam (e.g., Clayton & Tangri, 1989)
que se estas forem correctamente implementadas podem elevar os padrões
existentes. Ao aumentarem a igualdade (e.g., de género e étnica), como se
começa a verificar (Konrad & Linnehan, 1999), também aumenta a diversidade
de talentos disponível (Crosby & Blanchard, 1989), sendo benéfico para as
empresas, a sociedade (Plous, 1996; Pratkanis & Turner, 1996) e o ensino
(Tien, 2000), tendo a efeitos económicos positivos (Konrad & Linnehan,
1999).
Finalmente, também é provável que as opiniões sejam originadas pela percepção
da (não)violação de princípios/regras.A acção positiva, como uma medida geral
(cf. Son Hing, Bobocel, & Zanna, 2002), assim como as medidas soft,parece
ser defendida pela maioria das pessoas, como sendo um bom mecanismo para lidar
com a discriminação. Contudo, a nível específico (e.g., medidas hard), isso nem
sempre acontece, mesmo entre os membros dos grupos beneficiados perante
cenários de discriminação flagrante (Taylor & Moghaddam, 1994). Se os
defensores as consideram justas e necessárias, porque procuram repor a justiça
de que certos grupos foram historicamente privados, os detractores não vêem de
todo essa injustiça ou acham que ela não tem de ser socialmente
"regulada", vêem-na antes como uma forma de discriminação, por
violar algumas regras da justiça (Clayton & Crosby, 1992), como o mérito.
Em suma, parecem ser vários os factores que influenciam as opiniões dos
defensores e detractores das medidas de acção positiva e que podem contribuir
para explicar a existência da controvérsia sobre as mesmas. Em seguida, damos
particular destaque à percepção de justiça.
A JUSTIÇA DA ACÇÃO POSITIVA
O que é que no dia-a-dia nos faz dizer "É justo!" ou "É muito
injusto!"? Será que a justiça tem uma forma única/universal, ou adoptará
diversas formas5, consoante as situações, contextos e períodos? Para dar a cada
pessoa o que lhe é devido, deve-se considerar os seus méritos ou as suas
necessidades? Não será mais legítimo dar a cada uma partes iguais? Este é o
problema da justiça distributiva: como repartir os recursos entre as pessoas
que, directa ou indirectamente participaram na sua constituição ou dela
dependem. Esta é frequentemente acompanhada de questões ligadas à justiça
procedimental: como saber qual o procedimento a utilizar para proporcionar
distribuições justas. E, no caso concreto das medidas de acção positiva, por
que será que algumas pessoas (sobretudo as pessoas directamente beneficiadas)
ficam insatisfeitas? Procuraremos responder a esta questão recorrendo ao
conceito de privação relativa.
Justiça distributiva
A área da justiça percebida das medidas de acção positiva tem recebido bastante
atenção (e.g., Bobocel, Son Hing, Davey, Stanley, & Zanna, 1998; Davey,
Bobocel, Son Hing, & Zanna, 1999).
A justiça distributivadiz respeito às percepções de justiça das pessoas sobre
os resultados obtidos (Cohen & Greenberg, 1982). Segundo Cohen e Greenberg
(1982), o conceito de "justiça distributiva" surgiu na teoria da
troca de Homans, em 1961 e foi desenvolvido por Adams, em 1963, passando a
designar-se "teoria da equidade". Baseada na regra da
proporcionalidade, esta teoria postula que o resultado é percebido como justo
pela pessoa quando a proporção entre os seus investimentos (inputs)e os seus
resultados (outcomes)é igual à proporção entre os investimentos e os resultados
de outra(s) pessoa(s) com quem se compara. Se o resultado desta comparação for
desigual ocorre iniquidadee se for menos recompensada a pessoa percebe o
resultado como injusto e fica insatisfeita. Portanto, apesar de tudo, nesta
abordagem a (in)justiça parece ser entendida como um sentimento relativo.
Mais tarde, esta abordagem foi criticada por alguns autores (e.g., Deutsch,
1975), que a consideravam simplista, nomeadamente, por reduzir a justiça à
proporcionalidade,emergindo uma abordagem multidimensional. Esta nova abordagem
sugere que os objectivos da situação determinam se as normas distributivas são
percebidas como justas (Davey et al., 1999). Por exemplo, Deutsch (1975)
defende a coexistência de três normas primárias de justiça distributiva: a
equidade, a igualdadee a necessidade. A equidadeseria a norma saliente quando o
objectivo da situação fosse promover interacções económicas eficientes6, a
igualdadeseria a norma saliente nas situações em que se pretendesse manter boas
relações sociais, e a necessidadeseria a norma saliente quando o objectivo da
situação fosse promover o desenvolvimento pessoal e o bem-estar. É sugerido,
portanto, que a escolha das pessoas por uma norma distributiva depende do seu
objectivo numa determinada situação, ou contexto. Mais recentemente,
Kellerhals, Modak e Perrenoud (1997) vêm dizer que estes três princípios
escondem várias sub-regras (i.e., a igualdadesubdivide-se em igualdade de
oportunidades, satisfações e tratamentos; o méritoreconhece ora o esforço, ora
a produtividade ou o talento; e a necessidadeoscila entre a subjectividade e a
objectividade) e que estas são frequentemente contraditórias entre si (e.g., a
igualdade das satisfações supõe uma igualdade de oportunidades, mas assegurar
esta pode fazer com que se negligencie o tratamento). Davey et al. (1999), por
sua vez, acreditam que é possível que algumas pessoas prefiram o princípio de
equidade quando outras preferem o princípio de igualdade. Nesta linha, Dupuy
(1994, citado por Kellerhals et al., 1997, p. 15) defende que nas sociedades
individualistas não há uma "medida comum" para se avaliar os
méritos, não existindo um valor fundamental que seja aceite por todos. Os
méritos são plurais e a sua origem (individual ou social) pode ser contestada.
Por isso, não se sabe se estes devem, ou não, ser tidos em conta e qual o peso
de cada um, pelo que o mais corrente é optar-se por uma regra de igualdade.
Como indicado inicialmente, a acção positiva representa uma resposta sócio-
política a problemas que surgem das injustiças contra grupos historicamente
desfavorecidos, como as mulheres (Clayton & Crosby, 1992). Estas têm
sofrido discriminações que são inconsistentes com a ideologia meritocrática,
fundamental na democracia ocidental (Crosby & Blanchard, 1989), por isso,
foi necessário um "remédio". Em geral, as pessoas não só tendem a
considerar que o sistema deve funcionar de acordo com a ideologia
meritocrática, como também acreditam que é assim que o sistema funciona
efectivamente (McNamee & Miller, Jr., 2004). Porém, o facto de vários
grupos sociais sofrerem discriminações contradiz a justiça da ideologia
meritocrática (Crosby & Blanchard, 1989), parecendo antes tratar-se de uma
ilusão da meritocracia(Palacios, 2004), um mito que serve para justificar o
sistema e manter o status quo(e.g., Jost, Banaji, & Nosek, 2004; McNamee
& Miller, Jr., 2004; Sidanius & Pratto, 1999).
Foi neste contexto, devido às violações percebidas de dois dos princípios
básicos (igualdade e equidade/mérito) que surgiu a necessidade de se adoptarem
medidas de acção positiva. Todavia, estas medidas, sobretudo alguns casos
particulares, como vimos, têm sido criticadas, sendo caracterizadas como
políticas injustas que também violam os mesmos princípios, sobretudo o mérito
(Bobocel et al., 1998; Davey et al., 1999; Son Hing et al., 2002). Os programas
que atribuem menos peso ao mérito e mais peso ao estatuto do grupo-alvo são
avaliados mais negativamente (Kravitz & Platania, 1993; Veilleux &
Tougas, 1989). De facto, o argumento geralmente utilizado pelos detractores
sobre as quotas é que a selecção se realiza com base nas características
demográficas das pessoas e não nas suas competências pessoais (e.g., Crosby et
al., 2006; Davey et al., 1999; Son Hing et al., 2002). Este argumento também é
frequentemente interiorizado pelos beneficiados das medidas que as consideram
paternalistas e 'humilhantes' (Amâncio, 2004), duvidando, muitas
vezes, das suas capacidades (Heilman et al., 1991).
Contudo, estas percepções são objectivamente infundadas porque, na prática,
quando as medidas de acção positiva são implementadas, o mérito é tido em conta
(Clayton & Crosby, 1992), mesmo no caso das quotas (Henriques, 2006), caso
contrário tratar-se-ia de uma medida contrária ao Direito comunitário. Por
outro lado, assumir a violação do princípio de mérito é pressupor que há uma
forma objectiva de medir o mérito (Crosby & Clayton, 2001), quando é
conhecida a dificuldade de se encontrarem medidas rigorosas que não sejam
afectadas por factores sociais ou contextuais (Crosby & Blanchard, 1989).
Além disso, já vimos que os argumentos contra as quotas não se aplicam de igual
forma a todos os grupos-alvo. De facto, num estudo realizado em Portugal
(Santos, 2004, Estudo 2), com 310 participantes de ambos os sexos, mostramos
que os participantes são significativamente mais favoráveis às medidas
relativas aos "deficientes no trabalho" e às "regiões
subdesenvolvidas" do que às "minorias étnicas no trabalho" e
às "mulheres na política". Assim, as pessoas não parecem ser contra
as medidas em si mesmas, as suas opiniões parecem antes depender das percepções
que têm do grupo-alvo.
Como vimos, a ideologia de género também deve influenciar os julgamentos das
pessoas sobre as medidas (Clayton & Crosby, 1992), sobretudo as que se
baseiam no sexo. Por exemplo, os detractores das medidas que consideram que a
desigualdade existente entre homens e mulheres é fruto de uma situação
histórica 'natural' que deve evoluir normalmente para a igualdade
(Santos & Amâncio, 2006), parecem ser influenciados pela ideologia de
género. Na investigação de Santos (2004), mostrou-se que as pessoas continuam a
considerar que a política é um mundo masculino (papel), visto que o perfil dos
políticos/ /deputados se compõe, sobretudo, de traços geralmente associados ao
estereótipo masculino (Estudo 1), como "inteligente". Além disso,
os homens parecem ser percebidos como "naturalmente" competentes
para a política, enquanto que as mulheres, geralmente mais associadas à esfera
privada, devem provar que o são (normas comportamentais) parecendo, por isso,
considerar certo que os homens estejam na política e as mulheres não (crença)
(Estudo 3). Em termos das quotas baseadas no sexo, verificou-se que as mulheres
consideram as quotas mais justas do que os homens. Contudo, consideram-nas
significativamente mais justas quando são aplicadas aos homens do que quando
são aplicadas às mulheres (Santos, 2004, Estudo 3).
O argumento do mérito encontra-se bastante presente nos debates sobre as quotas
baseadas no sexo, mesmo entre os próprios políticos (Amâncio, 2004; Gaspard et
al., 1992). Porém, é sabido que os critérios de selecção são muito subjectivos
neste contexto (Agacinski, 1999), tendo mais a ver, segundo Freire (2003), com
ligações a grupos profissionais ou sindicais e outros 'capitais'
sociais e políticos do que com qualificações e 'capitais' culturais
(Bettencourt & Silva Pereira, 1995). Aliás, o argumento do mérito, tão
saliente quando se trata da entrada das mulheres na política, um mundo que
continua a ser masculino (Thébaut, 2003), geralmente, não se aplica aos homens
(Espada et al., 2002; Gaspard et al., 1992), o que significa que a avaliação do
mérito também pode ser influenciada pela ideologia de género (Santos, 2004,
Estudo 3; Santos & Amâncio, 2007). Ou seja, para além da genderizaçãoda
profissão de político/a (mais associada ao estereótipo masculino), parece haver
uma genderizaçãodo mérito (também mais associado ao masculino neste contexto).
De facto, neste último estudo mostramos que as avaliações que as pessoas fazem
do mérito não são neutras. Embora tenhamos mostrado que o mérito é normativo,
sobretudo no caso dos homens, que atribuem mais mérito em abstracto, também
mostramos que o mérito é genderizado, sobretudo pelas mulheres. As suas
avaliações constroem-se em torno das expectativas de menor mérito por parte das
mulheres e de legitimidade reconhecida aos homens para ocuparem os cargos de
deputados.
Na generalidade, esta investigação (Santos, 2004; Santos & Amâncio, 2007)
confirma a existência de uma assimetria simbólica entre homens e mulheres. De
facto, de acordo com o modelo da assimetria simbólica (Amâncio, 1994), a
diferenciação entre as categorias de sexo assenta numa individuação dos homens,
que convive com a sua pertença grupal (o sujeito mantém a sua singularidade
mesmo quando pertence a um grupo) e numa desindividuação das mulheres, que são
confundidas com o seu grupo (a pertença grupal elimina a singularidade do
sujeito). Considerar esta assimetria pode ser pertinente para percebermos
melhor a controvérsia que existe, sobretudo quando se confronta a acção
positiva (neste caso, as quotas baseadas no sexo) com o argumento do mérito. Em
primeiro lugar, porque esse argumento é individualizante e esvazia o sentido
colectivo da discriminação que justifica a acção positiva para os seus
defensores. Em segundo lugar, porque, enquanto argumento individualizante,
favorece (ou "justifica") o domínio dos homens em sectores como a
política.
Justiça procedimental
Outra área de investigação que tem atribuído bastante atenção à questão das
medidas de acção positiva prende-se com a teoria da justiça procedimental
(Thibaut & Walker, 1975). De acordo com esta teoria, as pessoas não se
preocupam apenas com a distribuição dos resultados, mas também avaliam os
procedimentos utilizados na tomada de decisão. Uma situação é percebida como
justa quando o procedimento é percebido como justo, independentemente do
resultado, sendo geralmente percebido como mais justo quando é dada a
oportunidade à pessoa de expressar a sua opinião (i.e., lhe é dada voz). Esta
abordagem dá, assim, mais importância aos meios do que aos fins. Segundo
Nacoste (1987a), enquanto que a equidade/mérito é um dos valores subjacentes à
justiça distributiva, a igualdade é o valor subjacente à justiça procedimental.
Porém, como vimos, se as pessoas tendem a concordar com a igualdade de
oportunidades, também tendem a resistir às medidas de acção positiva que,
embora se destinem a tornar essa igualdade real, são frequentemente percebidas
como indo no sentido oposto (Clayton & Tangri, 1989).
Seguindo o raciocínio desta perspectiva, quanto mais a acção positiva for
percebida como justa (i.e., quanto mais o procedimento for percebido como
justo) maior é a probabilidade de as pessoas avaliarem favoravelmente os
beneficiados (Nacoste, 1986). Segundo Veilleux e Tougas (1989), mesmo quando as
pessoas estão conscientes e desaprovam uma injustiça, como a discriminação, não
são favoráveis a nenhum meio de reparação que lhes pareça injusto. Para estas
autoras, há uma maior probabilidade de as medidas serem apoiadas pelas pessoas
se forem coerentes com os valores predominantes na sociedade ocidental (i.e.,
individualismo e equidade). De facto, Nacoste (1987b) mostrou que a selecção
baseada no sexo era considerada menos justa do que a selecção baseada na
combinação do sexo e do mérito. Para Nacoste, quando os procedimentos dão
vantagem a uma característica particular (e.g., ser mulher), reduzem os
sentimentos de controlo/vozdaqueles que não possuem essa característica (e.g.,
os homens), fazendo com que considerem estes procedimentos injustos. Contudo,
quando os resultados decorrem de procedimentos que lhes permitiram expor o
ponto de vista, são considerados mais justos (Miller, 2001). Em contraste,
Lorenzi-Cioldi e Buschini (2005) verificaram que as medidas mais hardque só
consideram o sexo são, muitas vezes, mais facilmente aceites do que as medidas
mais softque também consideram o mérito individual. Segundo os autores, ao
salientarem a pertença grupal dos beneficiados directos (as mulheres), as
medidas mais hardfortalecem o fenómeno do essencialismo. Por exemplo, cada
mulher seria julgada e representada em função de estereótipos de género e da
categoria "mulheres" e não tanto enquanto uma pessoa singular, com
características próprias. Este fenómeno levaria a um enfraquecimento da
percepção de ameaça por parte do outro grupo (e.g., homens) e,
consequentemente, a uma maior aceitação dessas medidas (Lorenzi-Cioldi &
Buschini, 2005). A título ilustrativo, os políticos podem aceitar mais
facilmente o mecanismo das quotas baseadas no sexo, porque, ao associarem mais
as mulheres ao espaço privado, podem concluir que estas são incompetentes na
área da política e, logo, menos ameaçadoras para eles.
Para Tyler e McGraw (1986), as pessoas opõem-se às medidas de acção positiva,
porque estas são contrárias a um dos critérios chave da justiça
procedimental- a consistênciade tratamento entre as pessoas. À medida que
o peso da pertença social aumenta, a consistência de tratamento diminui e a
justiça julgada deverá também diminuir. Tyler e McGraw (1986) mostraram que os
julgamentos da justiça procedimentalsão tão, ou mais, importantes que os
julgamentos de justiça distributivana avaliação de aspectos políticos e legais,
o que faz sentido, porque é mais difícil avaliar objectivamente a justiça dos
resultados do que determinar se o procedimento correcto foi seguido. Apesar de
admitirem que a justiça procedimentalé importante, Clayton e Tangri (1989)
consideram-na insuficiente, porque pensam que os meios podem não justificar os
fins.
Na política, já vimos que a justiça procedimentalé questionável. Os partidos
políticos utilizam processos informais de recrutamento, sendo processos
centralizados e pouco ou nada democráticos (Freire, 2003), existindo, assim,
uma enorme margem de indefinição nas normas a adoptar no processo de
recrutamento parlamentar e uma "folga" significativa para se
manifestarem influências e patrocínios políticos ou pessoais.
Privação relativa
Uma área crucial quando se procura entender a variação de opiniões ou atitudes
que existe face às medidas de acção positiva (Clayton & Tangri, 1989;
Tougas & Beaton, 1992), diz respeito à privação relativapercebida (e.g.,
Crosby, 1976, 1982; Runciman, 1966; Stouffer, Suchman, DeVinney, Star, &
Williams, 1949) e ao fenómeno da tolerância da privação pessoal.
Muito sinteticamente, o conceito "privação relativa"surgiu numa
investigação de Stouffer et al. (1949), onde os autores concluem basicamente
que o sentimento de privação (insatisfação, descontentamento) surge de
avaliações que as pessoas fazem dos seus resultados, em comparação com os
resultados de outras pessoas, ou seja, o sentimento de privação é subjectivo.
Desde essa altura, vários investigadores (e.g., Crosby, 1976, 1982; Runciman,
1966) têm estudado as condições em que as pessoas se sentem injustamente
tratadas, assim como as suas consequências, e identificaram diversos factores
necessários para que ocorra privação. Em 1976, após ter realizado uma revisão
de literatura sobre o tema, Faye Crosby propôs cinco pré-condições que
considera necessárias para conduzir a sentimentos subjectivos de privação. Para
a autora, uma pessoa pode experimentar sentimentos negativos de privação
relativa quando: deseja de ter X, considera ter o direito ater X, percebe que
outra pessoa tem X(a comparação com os outros), considera que é possível obter
X(a praticabilidade/possibilidade) e não se sente pessoalmente culpada por não
ter X(Crosby, 1976). Apesar de ter havido alguma evidência empírica a suportar
este modelo, baseando-se em resultados de outros estudos (e.g., Crosby, 1982),
mais tarde, a autora conclui que afinal bastam duas pré-condições para prever
adequadamente a privação relativa, ou seja, basta a pessoa desejar ter Xe
sentir que tem o direito de ter Xpara experimentar sentimentos negativos de
privação.
Runciman (1966) distingue privação fraterna(suscitada pela comparação inter-
grupos) e privação egoísta(suscitada por comparações inter-pessoais)
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, podendo existir a privação relativa dupla(quando há privação pessoale grupal)
e a privação relativa pelos outros(sentimento de alguém que percebe que uma
pessoa de outro grupo é desfavorecida).
A privação relativapressupõe que os níveis de ressentimento das pessoas têm
implicações no seu comportamento. Por exemplo, foi assumido que há uma maior
probabilidade de os desfavorecidos aceitarem o status quoe tolerarem a
privação, quando não se sentem injustamente tratados, e agirem para melhorar a
sua situação quando estão ressentidos (ver Olson & Hafer, 2001). Para
Runciman (1966), as consequências dependem do tipo de privação: as pessoas com
um sentimento de privação fraternapodem adoptar comportamentos colectivos que
procuram tanto a mudança social (e.g., acções colectivas), como a manutenção do
status quo,enquanto que o sentimento de privação egoísta(e.g., o stresse) pode
levar a comportamentos individuais que visam a alteração da situação pessoal
(e.g., apostando na formação pessoal). Alguns estudos mostram que os protestos
colectivos estão mais relacionados com os sentimentos de privação fraterna
(e.g., Dion, 1986; Guimond & Dubé-Simard, 1983) e que a privação
egoístaprediz os comportamentos auto-dirigidos. Segundo Foster e Matheson
(1995), para que os desfavorecidos se empenhem em acções colectivas (e, neste
caso, sejam defensores da acção positiva), o ideal é que sintam privação
relativa dupla(e.g., uma mulher perceber que, como todas as mulheres, também é
discriminada).
O problema frequente é que, perante situações de discriminação, os
desfavorecidos parecem insensíveis ao facto, aceitando a sua condição não
protestam, nem recorrem a acções para a melhorar (Clayton & Crosby, 1992).
Num estudo, em que Crosby (1982) procurava perceber porque razão as mulheres,
perante uma situação de discriminação salarial, estavam preocupadas com a
posição de trabalho das mulheres em geral, mas pessoalmente manifestavam uma
satisfação semelhante à dos homens, a autora verificou que isso acontecia
porque as mulheres não se comparavam com eles, mas com mulheres em piores
condições do que as delas. O facto de se centrarem no seu grupo de pertença
favorecia a negação da discriminação pessoal, resultando num sentimento de
satisfação individual. Este paradoxo que Crosby designou "efeito de
negação da discriminação pessoal"tem sido repetidamente evidenciado
(Clayton & Crosby, 2000), sendo também denominado de "minimização da
discriminação pessoal" (Roux, Perrin, Modak, & Voutat 1999) e
"discrepância entre discriminação pessoal/grupal" (ver Taylor,
Wright, Moghadam, & Lalonde, 1990).
As explicações para este fenómeno têm-se centrando em factores de ordem
cognitiva(e.g., nas dificuldades que as pessoas têm em obter e processar a
informação que lhes permita perceber a discriminação) e motivacional(Crosby
& Clayton, 2001).A motivaçãopara os desfavorecidos negarem a discriminação
pessoal seria um mecanismo de auto-protecção (Crocker & Major 1989), uma
estratégia de copingligada ao controlo pessoal (Roux et al., 1999; Ruggiero
& Taylor, 1997) e à defesa de uma auto-estima positiva (Crosby &
Clayton, 2001), porque reconhecer a discriminação e a injustiça, admitindo a
vulnerabilidade, pode ter custos psicológicos (Branscombe & Ellemers, 1998;
Ruggiero & Taylor, 1997).
Embora, a curto prazo, possa ser uma boa estratégia usada pelos desfavorecidos,
também constitui um obstáculo à mudança social (Taylor & McKirnan, 1984),
visto que é através de comparações negativas que o sentimento de privação pode
emergir (Roux et al., 1999), levando-os, consequentemente, a envolver-se em
acções colectivas que conduzam à mudança social.
Há outros factores que podem influenciar a tolerância das pessoas
discriminadas. Por exemplo, Crosby (1984) sugere que a discrepância da
negaçãopode ser percebida como um sintoma da necessidade que as pessoas têm
para acreditar que o mundo é justo (e.g., Lerner, 1980). Jost e colaboradores
(e.g., Jost & Banaji, 1994; Jost et al., 2004) mostraram que as pessoas
estão motivadas para perceber o status quocomo bom, justo, legítimo e
desejável. Ora, se estes processos, crenças e ideologias podem ter
consequências positivas em vários contextos, também é verdade que podem
conduzir à inacção, contribuindo para manutenção e a legitimação do status quo
(Jost & Major, 2001).
Torna-se agora mais fácil perceber porque é que, muitas vezes, os membros dos
grupos minoritários (Clayton & Tangri, 1989) e as mulheres (Tougas &
Beaton, 1992) resistem às medidas destinadas a melhorar as suas condições,
parecendo dever-se amplamente ao enorme fosso que há entre a desvantagem real
em que se encontram e a privação por ele(a)s percebida (Clayton & Crosby,
1992). Neste contexto, Twiss, Tabb, e Crosby (1989) defendem que, apesar da sua
resistência às medidas, estas são necessárias como mecanismos de mudança.
CONCLUSÃO
Neste artigo, procuramos perceber as principais razões da controvérsia
existente no debate sobre as medidas de acção positiva, de acordo com a
literatura, dando particular destaque à percepção de justiça e ao género.
Após termos enumerado diversos factores psicossociológicos, identificados na
literatura (e.g., atitudes, crenças, valores, ideologias e percepções de
justiça), que podem contribuir para explicar esta controvérsia, propusemos,
como contributo para este debate, aprofundar a relevância do papel da ideologia
de género na percepção da justiça (mais concretamente, da justiça distributiva,
procedimentale da privação relativa). Esta articulação, que procurou esclarecer
alguns dos argumentos regularmente usados pelos detractores das medidas de
acção positiva, como é o caso do argumento do mérito, revelou-se bastante
pertinente, sobretudo para a compreensão da controvérsia sobre as quotas
baseadas no sexo e destinadas a promover a igualdade entre mulheres e homens no
contexto político (Santos, 2004; Santos & Amâncio, 2007).
Tanto os julgamentos sobre a justiça das quotas baseadas no sexo, como os
julgamentos sobre o mérito, não parecem ser neutros, mas antes estar
relacionados com factores, como a ideologia de género (e.g., Santos, 2004;
Santos & Amâncio, 2007). De facto, pensamos ter mostrado que, para além de
uma genderizaçãoda esfera política (que continua mais associada ao estereótipo
masculino), também parece haver uma genderizaçãodo mérito (que surge mais
associado ao estereótipo masculino neste contexto) e da justiça, resultando
numa posição desfavorável às mulheres.
Este artigo procurou trazer um contributo para a compreensão da controvérsia
sobre as quotas na política, ao demonstrar que ela assenta na ausência de
consciência sobre os factores sociais que contribuem para o posicionamento de
homens e mulheres na sociedade e que o (re)conhecimento destes factores é uma
condição essencial para a mudança das atitudes face às quotas e para a
desmistificação do "mérito", enquanto valor social ou atributo
pessoal, e o seu reposicionamento ao nível de juízo social.