Stresse ocupacional em forças de segurança: Um estudo comparativo
Stresse ocupacional em forças de segurança: Um estudo comparativo
Helena Gonçalo (*), A. Rui Gomes (**), Fernando Barbosa (*), Jorge Afonso (**)
O domínio do stresse tem vindo a receber cada vez maior importância, não apenas
junto do público em geral, mas também da comunidade científica (Cooper, Dewe,
& O'Driscoll, 2001). Muito embora este fenómeno possa surgir a partir
de situações vulgares do quotidiano, é cada vez mais aceite a ideia de que o
stresse tende a tornar-se mais significativo quando associado ao trabalho
(Gomes, 2006a). Desta forma, tem-se procurado investigar as principais causas e
consequências do stresse ocupacional bem como as relações estabelecidas com
variáveis individuais (ex.: personalidade, estilos de "coping",
etc.) e laborais (ex.: satisfação, comprometimento e eficácia organizacional,
etc.). Com efeito, o stresse profissional pode levar a sérios custos no plano
pessoal, familiar, social e organizacional, representado exemplos deste último
caso o absentismo, a produtividade reduzida, os acidentes de trabalho e as
despesas médicas (Cartwright & Cooper, 1997). Adicionalmente, um aspecto
preocupante relaciona-se com o facto das mudanças verificadas no mercado de
trabalho apontarem para um progressivo crescimento das fontes de tensão
profissionais, manifestadas pela crescente sobrecarga de trabalho associada à
precariedade das contratações e à redução das regalias dos trabalhadores
(Maslach & Leiter, 1997; Serra, 1999).
No caso das forças de segurança, existem indicações sobre a relação entre os
sintomas de stresse e o contexto profissional fazendo, por isso, sentido
avaliar a sua prevalência e características específicas (Jex & Crossley,
2005; Malach-Pines & Keinan, 2006; Moon & Maxwell, 2004). Alguns
autores vão ainda mais longe, ao apontarem a actividade destes profissionais
como uma das mais stressantes do mundo (Dantzer, 1987; Selye, 1984). Para tal,
contribui o facto das suas funções incluírem, para além das fontes de pressão
de outras ocupações (e.g., trabalho por turnos, o excesso de horas de trabalho,
etc.), uma área de tensão específica à sua actividade: o risco de vida para o
próprio e para os outros. Com efeito, a literatura tem referenciado, como um
dos principais factores de stresse associados à natureza das tarefas das forças
de segurança pública, a exposição a situações potencialmente traumáticas e
emocionalmente exigentes como, por exemplo, os casos de violência e confronto
físico, o testemunho de acidentes, os incidentes com armas, a presença em
tribunais e o contacto diário com os cidadãos (Afonso & Gomes, 2009; Burke
& Mikkelsen, 2006; Kohan & Mazmanian, 2003; Kop, Euwema, &
Schaufeli, 1999).
Ainda assim, de acordo com Malach-Pines e Keinan (2006), são os factores
organizacionais que os profissionais das forças de segurança pública mais
referem como indutores de pressão. Entre eles, podemos destacar a estrutura
organizacional militarista, hierárquica e altamente burocrática da força
policial, a falta de apoio por parte das chefias e da administração e as poucas
oportunidades de progressão na carreira.
Para além destes stressores intrínsecos à profissão e organizacionais, existem
ainda alguns factores externos que tornam o trabalho das forças de segurança
pública especialmente exigente, como sejam, os conflitos entre as exigências
laborais e familiares, a atitude negativa e de desconfiança da comunidade e dos
meios de comunicação social e um sistema judicial punitivo perspectivado como
tolerante para com os criminosos (Malach-Pines & Keinan, 2006; Thompson,
Kirk, & Brown, 2005).
Ao nível do contexto prisional, também existem indicações sobre o facto de
representar um local onde os factores geradores de stresse e
"burnout" (esgotamento) abundam (Garland, 2004; Gonçalves &
Neves, 2005; Gonçalves & Vieira, 2005; Moon & Maxwell, 2004; Morgan,
Van Haveren, & Pearson, 2002; Schaufeli & Peeters, 2000; Shelby,
Stoddart, & Taylor, 2001).
Mais concretamente, a literatura tem vindo a realçar pelo menos quatro domínios
de pressão laboral. Desde logo, o próprio clima de trabalho, uma vez que este
assume características únicas, combinando a necessidade de rotina e
"monotonia" nas actividades diárias com a possibilidade de
hostilidade e violência por parte dos reclusos (Hernández-Martín, Fernández-
Calvo, Ramos, & Contador, 2006). Por outro lado, estes profissionais vêem-
se confrontados com conflitos entre os seus papéis laborais, já que devem
ocupar-se de tarefas de custódia, vigilância e retenção, em simultâneo com a
sua função de educação e socialização dos reclusos (Cantissano & Dominguez,
2005; Lopez-Coira, 1992; Schaufeli & Peeters, 2000). Num outro sentido, as
características ambientais dos locais de trabalho (e.g., sobrelotação, ruído,
ambiente pouco arejado, etc.) também contribuem para a sensação de se estar num
local pouco aprazível e desumanizado (Silva & Gonçalves, 1999). Finalmente,
as atitudes negativas da comunidade e da comunicação social face ao estatuto do
profissional de guarda prisional parecem constituir um factor importante na
vivência laboral negativa destes trabalhadores (Keinan & Malach-Pines,
2007).
Como resultado da exposição a estas potenciais áreas de stresse, tanto por
parte dos profissionais de segurança pública como do sistema prisional, podem
ser identificadas reacções de índole física (e.g., doenças cardio-vasculares,
problemas de estômago, doenças psicossomáticas, níveis elevados de cortisol,
colesterol e pressão sanguínea), psicológica (e.g., cinismo, raiva,
indiferença, baixa satisfação laboral, desordens de ajustamento e de stresse
pós-traumático) e comportamental (e.g., declínio da qualidade no desempenho
profissional, agressividade, absentismo, abuso de drogas e, mesmo, tentativas
de suicídio) (Abdollahi, 2002; Carlier, Lamberts, & Gersons, 2000; Keinan
& Malach-Pines, 2007; Pines & Keinan, 2005; Stephens, Long, &
Flett, 1999; Violanti et al., 2006). A título ilustrativo, Chambel e Oliveira-
Cruz (2008), num estudo com militares portugueses inseridos numa missão de paz,
observaram que a ausência de reciprocidade entre aquilo que estes profissionais
esperam do seu trabalho e aquilo que lhes é fornecido pela organização militar
tem efeitos negativos a vários níveis, desde o bem-estar pessoal, o
desenvolvimento do "burnout" e a diminuição dos sentimentos de
"engagement" (comprometimento). Na prática, estes dados alertam-nos
para a importância da manutenção dos "contratos psicológicos"
estabelecidos entre o indivíduo e a sua organização, sob pena de comprometer os
sentimentos de reciprocidade entre as duas partes.
Apesar da importância que o tema do stresse ocupacional assume nas forças de
segurança, tanto para o indivíduo em particular como para a sociedade em geral,
verifica-se ainda uma significativa insuficiência de trabalhos centrados nesta
população (Neveu, 2007). A título de exemplo, Shaufeli e Enzemann (1998)
encaram com surpresa o reduzido número de investigações sobre o
"burnout" em forças policiais, já que esta síndrome se assume como
uma das variáveis psicológicas mais associadas aos problemas no trabalho.
Neste sentido, este trabalho analisa a problemática do stresse ocupacional em
duas forças de segurança (prisional e pública) procurando oferecer algumas
indicações sobre as diferenças no exercício destas actividades do ponto de
vista do stresse ocupacional. Tal como refere Brough (2004), assiste-se a uma
escassez de investigações que comparem o bem-estar de profissionais de
diferentes ocupações altamente stressantes (como as forças policiais). A maior
utilidade deste tipo de trabalhos residirá na análise do efeito do stresse de
acordo com o contexto específico de exercício laboral.
Apesar de podermos encontrar algumas indicações acerca das diferenças nos
níveis de stresse em ambas as profissões (Keinan & Maslach-Pines, 2007),
não existem dados suficientes na literatura que nos permitam formular hipóteses
que sustentem adequadamente estas diferenças e que esclareçam a importância dos
aspectos pessoais e profissionais na experiência de stresse. Neste sentido,
optámos neste estudo por analisar de um modo descritivo, correlacional e
comparativo a natureza das funções exercidas pelos profissionais de segurança
pública e prisional.
Os trabalhos de campo foram realizados separadamente nas duas amostras de
participantes, em períodos temporais semelhantes (mesmo ano civil), efectuando-
se a junção dos dados de ambos os estudos para efeitos deste trabalho.
Ambos os estudos procuraram seguir, do ponto de vista conceptual e
metodológico, as indicações de Hart, Wearing, e Headey (1995) ao sugerirem que
o problema do stresse ocupacional nas forças de segurança será melhor
compreendido se forem tidas em consideração variáveis de cariz individual,
laboral e organizacional. Desta forma, procurámos abordar o tema do stresse
ocupacional de uma forma abrangente, incluindo a relação com variáveis
psicológicas (e.g., "burnout", satisfação com a vida), ocupacionais
(e.g., satisfação profissional) e organizacionais (e.g., comprometimento
relativamente ao local de trabalho). Assim sendo, o trabalho levado a cabo
pretendeu atingir os seguintes objectivos:
a) Examinar a frequência e prevalência de variáveis psicológicas, ocupacionais
e organizacionais associadas ao exercício profissional dos participantes (e.g.,
nível global de stresse, "burnout", satisfação profissional e
desejo de abandonar a profissão);
b) Analisar as associações entre as variáveis em estudo;
c) Observar as diferenças entre os grupos de profissionais a exercerem em
contexto prisional e público em termos das variáveis psicológicas avaliadas; e
d) Identificar a importância de variáveis pessoais e profissionais na distinção
da experiência profissional em ambas as forças de segurança.
MÉTODO
Amostra
Nas forças de segurança pública participaram 95 profissionais, enquanto que nas
forças de segurança prisional foram incluídos 237 profissionais. Todos os
participantes exerciam as suas funções na zona Norte do país. As principais
características pessoais e profissionais de ambas as amostras são descritas no
Quadro 1.
Instrumentos e medidas
Foi administrado a todos os profissionais um conjunto de instrumentos
destinados a obter informações acerca das variáveis em análise neste estudo.
Questionário demográfico.Este instrumento, para além de obter informações
acerca do sexo, idade, estado civil e número de filhos, recolheu dados
relativamente à formação académica, bem como às características e condições
gerais de trabalho (e.g., contexto de acção, categoria profissional, funções
desempenhadas, experiência profissional e horas de trabalho por semana);
QUADRO 1
Características pessoais e profissionais da amostra (N=332)
Nível Global de Stresse(NGS). Trata-se de uma medida desenvolvida a partir dos
trabalhos originais de Kyriacou e Sutcliffe (1978). O instrumento é
representado por um único item, avaliando a percepção dos participantes face ao
nível geral de stresse que sentem na sua actividade profissional (Gomes, Melo,
& Cruz, 2000). A escala de resposta é de cinco pontos, desde o zero (Nenhum
stresse) até ao quatro (Elevado stresse), dando-nos indicações acerca do modo
como cada profissional percepciona a sua actividade laboral;
Inventário de "Burnout" de Maslach - Versão Geral(IBM-VG).
Trata-se da versão traduzida e adaptada por Gomes (2007) a partir dos trabalhos
originais de Maslach, Jackson, e Leiter (1996) e Schaufeli, Leiter, Maslach, e
Jackson (1996). Este instrumento foi desenvolvido com o objectivo de avaliar os
níveis de "burnout" evidenciados por trabalhadores não incluídos
nas tradicionais profissões de ajuda da área da saúde. Assim sendo, o IBM-VG é
um instrumento de auto-registo acerca dos sentimentos relacionados com o
trabalho, distribuindo-se por três dimensões: (i) exaustão emocional: analisa
os sentimentos de sobrecarga e exaustão emocional devido às exigências do
trabalho (e.g., sensação de esgotamento com o trabalho);
(ii) cinismo: pretende medir as respostas de indiferença e as atitudes de
distanciamento relativamente ao trabalho (e.g., dúvidas acerca da importância e
interesse da profissão) e (iii) eficácia profissional: usada para avaliar as
expectativas de eficácia dos profissionais relativamente ao trabalho (e.g.,
sentimentos positivos acerca da capacidade pessoal para resolver os problemas).
O inventário é constituído por 16 afirmações, distribuídas pelas três
subescalas referidas, sendo os itens respondidos numa escala tipo
"Likert" de sete pontos (0=Nunca; 6=Todos os dias). A pontuação é
obtida através da soma dos itens de cada dimensão, dividindo-se depois o valor
encontrado pelo número de itens que constituem cada subescala. Assim, os
resultados totais podem variar entre um mínimo de zero e um máximo de seis. O
valor máximo reflecte elevados índices de exaustão emocional, cinismo e
eficácia profissional. A interpretação dos resultados deve ser efectuada de um
modo parcial, em cada subescala, sendo estas consideradas isoladamente e não
através de uma combinação dos valores num único valor/factor global (Maslach,
Jackson, & Leiter, 1996). Neste sentido, elevados níveis de
"burnout" estão associados a maiores "scores" de
exaustão emocional e cinismo, mas também a baixos "scores" de
eficácia profissional. Mais à frente neste trabalho, apresentamos os critérios
de cálculo dos valores de "burnout" em cada uma das três dimensões;
Escala de Comprometimento Organizacional(ECO). Este instrumento foi traduzido e
adaptado por Gomes (2006b) a partir dos trabalhos originais de Mowday, Steers,
e Porter (1979). A escala visa avaliar os sentimentos, atitudes e valores
positivos assumidos pelos profissionais relativamente ao seu local de trabalho
(e.g., sentimento de orgulho por fazer parte da organização em causa,
disponibilidade para fazer sacrifícios pessoais em nome da organização, etc.).
A versão original é constituída por quinze itens sendo, no entanto, possível
utilizar apenas nove itens de modo a extrair o factor original avaliado pelo
instrumento (ver Mowday, Porter, & Steers, 1982). Os itens são respondidos
numa escala tipo "Likert" de cinco pontos (1=Discordo totalmente;
5=Concordo totalmente), extraindo-se um "score" total resultante da
soma das pontuações obtidas, dividindo-se depois o valor encontrado pelo número
de itens da escala;
Escala de Satisfação com a Vida(ESV). Este instrumento foi traduzido e adaptado
por Neto (1993, 1999) a partir dos trabalhos originais de Diener, Emmons,
Larsen, e Griffin (1985). A escala tem por objectivo avaliar a satisfação com a
vida enquanto processo cognitivo (julgamento pessoal acerca da vida),
assumindo-se que é mais relevante solicitar à pessoa uma análise global da sua
vida do que efectuar uma avaliação da satisfação em domínios específicos da
vida. O instrumento é constituído por cinco itens, apresentados num formato
tipo "Likert" de cinco pontos (1=Discordo muito; 5=Concordo muito),
solicitando-se aos indivíduos que avaliem a sua vida em geral (ex.: "as
minhas condições de vida são excelentes"). A pontuação final é calculada
através da soma dos valores obtidos em cada um dos cinco itens;
Escala de Satisfação e Realização(ESR): Este instrumento foi desenvolvido com o
objectivo de avaliar os níveis de satisfação e realização profissional (Gomes,
Melo, & Cruz, 2000) e teve por base instrumentos similares utilizados por
Boice e Myers (1987), Rodolfa e Kraft (1988) e Thoresen, Miller, e Krauskopf
(1989). Para este estudo, foram utilizadas três questões acerca da carreira e
satisfação profissional, nomeadamente: (i) a vontade em optar pelo mesmo
trabalho se os indivíduos tivessem uma nova oportunidade de escolher uma saída
profissional (respostas numa escala dicotómica de "sim" e
"não"); (ii) o nível de satisfação profissional actual; e (iii) o
desejo de abandonar a profissão durante os próximos cinco anos. Estas últimas
duas questões foram apresentadas numa escala tipo "Likert" de seis
pontos (1=Muito Baixo; 6=Muito Alto), significando os valores mais elevados nos
diferentes itens maior satisfação profissional bem como um maior desejo de
abandonar a profissão.
Procedimento
As investigações iniciaram-se com o pedido de autorização aos serviços
responsáveis por ambas as forças de segurança, explicando-se os objectivos do
estudo e os procedimentos a implementar na recolha, tratamento e divulgação dos
dados. Após a anuência daquelas entidades, iniciou-se o trabalho de campo
propriamente dito, contactando-se os responsáveis directos em cada local de
trabalho.
No que diz respeito ao recrutamento dos participantes, o método de recolha de
dados diferiu nos dois estudos de campo. Assim, no caso das forças de segurança
pública a entrega e recolha dos dados foram efectuadas num único momento (em
dia de instrução de modo a não interferir com o desenrolar normal do serviço),
enquanto que no caso das forças de segurança prisional tivemos de adoptar mais
um método de recolha, para além do directo. Assim, alguns participantes não
puderam preencher o questionário no local de trabalho, devido a especificidades
de serviço, levando o protocolo para casa. Após o preenchimento, foi
disponibilizado um local próprio, com uma urna devidamente fechada, para o
depósito do envelope. De qualquer modo, em ambos os casos foram apresentados os
objectivos e implicações dos estudos, assegurando-se a participação voluntária,
o anonimato e a confidencialidade das respostas. Apenas os participantes que
anuíram a estas condições integraram as amostras. Assim sendo, o protocolo que
englobava os instrumentos atrás referidos foi distribuído junto de 95
profissionais de segurança pública, tendo sido recebidos e considerados válidos
para efeitos do presente estudo todos os questionários entregues (retorno de
100%). No caso, das forças de segurança prisional, foram distribuídos 380
protocolos e recolhidos 238, o que perfaz uma taxa de retorno de 62.6%.
RESULTADOS
Antes de realizarmos as análises comparativas entre os grupos profissionais,
testámos a estrutura factorial dos instrumentos, recorrendo a análises de
componentes principais, sem pré-definição do número de factores, através da
rotação ortogonal. De igual modo, observámos os índices de consistência interna
das subescalas ("alpha" de Cronbach). As análises foram efectuadas
separadamente nas duas amostras, testando-se cada um dos instrumentos nos dois
grupos profissionais. De um modo geral, os resultados encontrados reflectiram
as estruturas originais dos instrumentos e os valores de consistência interna
foram muito aceitáveis, situando-se acima do valor de .70 (ver Quadro 2). No
entanto, dois aspectos merecem ser realçados pela negativa. Em primeiro lugar,
a dimensão do cinismo da IBM-VG teve um valor de "alpha"
relativamente baixo na amostra das forças de segurança pública (α=.64) e perdeu
um item em ambas as amostras. De facto, apesar do valor de "alpha"
se encontrar abaixo do valor de.70 recomendado por Nunnally (1978), este
resultado reflecte as mesmas dificuldades enunciadas pelos autores do
instrumento (Maslach, Jackson, & Leiter, 1996) bem como noutros estudos
(ver Leiter & Durup, 1996). Neste sentido, optámos por manter a subescala
nas análises subsequentes deste estudo alertando-se, no entanto, para o valor
verificado. Em segundo lugar, a escala de comprometimento organizacional também
ficou melhor organizada sem um dos itens na amostra de segurança pública. Dado
o facto do valor de "alpha" ser muito aceitável, também optámos por
manter a escala nas análises subsequentes.
Estatísticas descritivas e associações entre as variáveis
Começando pelo "nível global de stresse", encontrámos valores
relativamente próximos entre ambas as amostras quando efectuámos uma junção dos
valores "bastante" e "elevado" da escala
"Likert". Assim, 50% dos profissionais de segurança pública e 59%
dos profissionais de segurança prisional percepcionaram a sua profissão como
muito stressante.
Relativamente aos níveis de esgotamento, utilizámos as indicações sugeridas por
Shirom (1989) para calcular os valores problemáticos em cada uma das três
facetas do "burnout". Neste caso, o autor propõe a utilização dos
valores da escala "Likert" como referência para estabelecer os
"pontos" de corte das três escalas, sugerindo dois critérios de
cálculo alternativos, um menos restritivo (valor igual ou superior à frequência
"algumas vezes por mês" na escala "Likert") e outro
mais conservador (valor igual ou superior à frequência "algumas vezes por
semana" na escala "Likert"). No nosso caso, procurámos
adoptar um critério intermédio que conciliasse estes dois, assumindo-se como
valor de corte a frequência "uma vez por semana" da escala
"Likert" para as dimensões de exaustão emocional e cinismo e
"uma vez por mês" para a dimensão eficácia profissional (recordamos
que nesta última dimensão a leitura dos resultados deve ser efectuada em
sentido inverso, ou seja, valores menos elevados na escala significam menor
sentimento de eficácia profissional). Começando pelos valores encontrados na
dimensão de exaustão emocional, 25.5% (n=60) das forças de segurança prisional
e 11.8% das forças de segurança pública (n=11) apresentaram problemas nesta
dimensão. Por outro lado, 20.9% das forças de segurança prisional (n=49) e 6.5%
das forças de segurança pública (n=6) evidenciaram dificuldades ao nível do
cinismo. Na terceira faceta deste instrumento, 3.4% das forças de segurança
prisional (n=8) e 7.6% das forças de segurança pública (n=7) assumiram baixa
percepção de eficácia profissional. Numa análise conjunta da ocorrência de
"burnout" nas três dimensões avaliadas pelo instrumento, nenhum dos
profissionais a exercer em contextos públicos demonstrou concomitantemente
índices problemáticos nas três facetas, enquanto na amostra dos profissionais
em contextos prisionais apenas um dos participantes reuniu as condições para
"burnout" pleno.
Quanto aos indicadores de satisfação profissional, alguns dados merecem ser
destacados. Em primeiro lugar, registe-se o facto de 47.7% dos profissionais de
segurança prisional e 24.2% dos profissionais de segurança pública afirmarem
que não voltariam a escolher a mesma saída profissional se tivessem uma nova
oportunidade de optar por uma actividade laboral. No que diz respeito à
satisfação profissional, verificou-se que 18.5% dos profissionais de segurança
prisional e 7.4% dos profissionais de segurança pública se mostraram bastante
insatisfeitos com a profissão, enquanto 22.8% dos profissionais de segurança
prisional e 36.9% dos profissionais de segurança pública estão bastante
satisfeitos com a sua actividade (a satisfação moderada é a característica mais
comum dos participantes de ambas as amostras). No caso do desejo de abandonar a
profissão, os valores são muito baixos para a maioria dos indivíduos (54.8% dos
profissionais de segurança prisional e 70.5% dos profissionais de segurança
pública) e muito altos para um menor número de participantes (19.4% dos
profissionais de segurança prisional e 8.5% dos profissionais de segurança
pública).
Os valores médios e desvio-padrão de todas estas variáveis podem ser
encontrados no Quadro 2.
Por último, as análises das associações existentes entre as variáveis em estudo
foram realizadas através do cálculo dos coeficientes de correlação de Pearson,
descrevendo-se os valores encontrados no Quadro 2. Numa análise global dos
resultados, pode verificar-se uma correspondência entre a
"direcção" das relações obtidas nas variáveis avaliadas em ambas as
amostras. No entanto, a "força" das relações observadas é, em
vários casos, mais evidente na amostra das forças de segurança prisional. De
qualquer modo, as relações entre as variáveis foram no sentido esperado, uma
vez que as facetas mais "indesejáveis" (e.g., nível global de
stresse, exaustão emocional, cinismo e desejo de abandonar a profissão)
associaram-se negativamente às áreas mais "desejáveis" (e.g.,
expectativas de eficácia profissional, comprometimento organizacional,
satisfação com a vida e satisfação profissional). Algumas excepções a este
padrão de resultados foram encontradas na amostra das forças de segurança
pública, devido ao facto de não se terem registado valores significativos em
algumas das associações. Um dos casos mais interessantes prende-se com o facto
do nível global de stresse, exaustão emocional, cinismo, satisfação com a vida
e satisfação profissional não terem assumido qualquer relação com a percepção
de eficácia profissional, sugerindo-se, assim, que esta dimensão foi mais
"sensível" aos aspectos organizacionais do trabalho do que aos
individuais, uma vez que a eficácia se correlacionou positivamente com o
comprometimento organizacional e negativamente com o desejo de abandonar a
profissão.
QUADRO 2
Média, desvio-padrão e correlações entre as variáveis em estudo
Diferenças entre os grupos profissionais nas dimensões avaliadas
Nesta etapa do estudo, efectuámos dois tipos de análises principais. Por um
lado, analisámos a existência de diferenças entre os grupos profissionais nas
variáveis psicológicas avaliadas, utilizando-se análises de variância
univariadas (nos instrumentos unidimensionais) e multivariadas (nos
instrumentos multidimensionais). Por outro lado, dividimos as amostras em
função de algumas características pessoais e profissionais e testámos
separadamente a existência de diferenças entre ambos os grupos, usando-se
análises de variância univariadas. Neste último caso, procurámos sempre obter o
máximo de equivalência nos participantes incluídos nos subgrupos, garantindo-se
valores mínimos aproximados de 30 pessoas em cada comparação realizada. Foi
esta razão que justificou o facto de algumas dimensões, como as diferenças de
sexo, não terem sido objecto de apreciação nas análises que se seguem.
Começando pela comparação entre os dois grupos profissionais em função das
pontuações nos instrumentos de avaliação psicológica, verificou-se a existência
de diferenças significativas em praticamente todas as variáveis (exceptuando o
nível global de stresse) (ver Quadro 3). Assim, no que respeita ao Inventário
de "Burnout" de Maslach, foram encontradas diferenças
significativas entre os grupos [Wilks' Lambda=.94, F(3,324)=7.24,
p<.001], tendo os testes univariados demonstrado que os profissionais em
contexto prisional assumiram maiores níveis de exaustão emocional e cinismo.
Para o comprometimento organizacional e satisfação com a vida, também foram
verificadas diferenças significativas entre os grupos, tendo os testes
univariados evidenciado menores valores nestas duas dimensões nas forças de
segurança prisional. Relativamente às subescalas da ESR, as diferenças foram
significativas entre os grupos [Wilks' Lambda=.95, F(2,322)=8.50,
p<.001]. Os testes univariados apontaram menor satisfação profissional e maior
desejo de abandonar a profissão nas forças de segurança prisional.
QUADRO 3
Média, desvio padrão e valores dos testes univariados nas dimensões em estudo:
Diferenças em função do grupo profissional
Quanto às diferenças em função das características demográficas, foram
definidos os seguintes agrupamentos de comparação: solteiros, casados, até
cinco anos de experiência, mais de cinco anos de experiência, até 45 horas de
trabalho semanais e mais de 45 horas de trabalho semanais. O Quadro 4 indica as
diferenças significativas encontradas em cada um dos grupos de comparação.
Assim, começando pelas diferenças entre solteiros, verificou-se que nas forças
de segurança prisional existe maior exaustão, cinismo e desejo de abandonar a
profissão e, inversamente, menor comprometimento e satisfação profissional do
que nos profissionais de segurança pública solteiros. Quanto aos casados, temos
um padrão semelhante de resultados, uma vez que no contexto prisional existe
maior exaustão e cinismo e, pelo contrário, menor comprometimento
organizacional, satisfação com a vida e satisfação profissional.
QUADRO 4
Média, desvio padrão e valores dos testes univariados nas dimensões em estudo:
Diferenças entre subgrupos em função das variáveis demográficas
No que diz respeito às diferenças entre os profissionais que têm até cinco anos
de experiência, observouse que a exaustão, o cinismo e o desejo de abandonar o
emprego é maior nos profissionais de segurança prisional, enquanto que o
comprometimento organizacional é maior nos profissionais de segurança pública.
Para aqueles que têm mais de cinco anos de experiência, verificou-se igualmente
o facto da exaustão emocional ser maior nos profissionais em contexto prisional
bem como o facto destes evidenciarem menor comprometimento, satisfação com a
vida e satisfação profissional.
Por fim, quando se dividiram as amostras de acordo com o número de horas de
trabalho, não se observaram diferenças significativas entre os grupos que
trabalhavam até 45 horas por semana. No entanto, a distinção entre os
profissionais com mais de 45 horas de trabalho já revelou várias diferenças
significativas. Assim, os profissionais de segurança prisional manifestaram
valores mais elevados de exaustão, cinismo e desejo de abandonar a profissão e
valores mais reduzidos de comprometimento organizacional, satisfação com a vida
e satisfação profissional.
DISCUSSÃO
Um dos principais dados a reter nos resultados apresentados prende-se com o
facto dos profissionais das forças de segurança prisional relatarem uma
experiencia profissional mais negativa relativamente aos seus colegas das
forças de segurança pública. De facto, e exceptuando o nível global de stresse
e a dimensão da eficácia profissional do IBM-VG, onde não se registaram
diferenças entre os grupos, verificaram-se, nos restantes domínios em análise,
valores menos positivos nos guardas prisionais, nomeadamente, maior exaustão
emocional, cinismo e desejo de abandonar a profissão e, inversamente, menor
comprometimento organizacional, satisfação com a vida e satisfação
profissional.
Analisando em maior detalhe os resultados, alguns aspectos merecem ser
destacados. Desde logo, a experiência de stresse sugere que a maioria dos
participantes sente níveis muito significativos de pressão e tensão,
comprovando-se assim a relevância de estudar este tema nestas classes
profissionais (frequências a oscilar entre os 50 e os 60%). Estes valores estão
de acordo com os obtidos noutros estudos (Malach-Pines & Keinan, 2006; Moon
& Maxwell, 2004), sendo apenas de destacar o facto de não termos encontrado
diferenças nesta dimensão entre os dois grupos em análise, isto apesar de os
profissionais em contexto prisional percepcionarem níveis mais acentuados de
stresse ocupacional. De facto, Keinan e Malach-Pines (2007) compararam o nível
de stresse em duas amostras de profissionais de segurança e constataram que os
funcionários que trabalhavam em contexto prisional apresentavam valores
significativamente mais elevados de stresse do que os que exerciam em contexto
de segurança pública. No que concerne ao "burnout", o aspecto mais
saliente prende-se com o facto de ser a dimensão de exaustão emocional a mais
elevada em ambas as amostras, seguida do cinismo com valores muito
consideráveis na amostra de profissionais de segurança prisional. Curiosamente,
a faceta da percepção de eficácia profissional parece não acompanhar os
resultados das outras dimensões da escala de "burnout". Este padrão
de resultados foi igualmente relatado por Lee e Ashforth (1993), tendo sido
avançada como hipótese explicadora o facto do trabalho das forças de segurança
ser realizado num clima laboral altamente burocrático, hierárquico e com normas
rígidas, acabando por evitar os sentimentos de ineficácia, devido à diminuição
de expectativas positivas de mudança por parte dos profissionais e à falta de
autonomia e controlo que, apesar de reduzirem os sentimentos de gratificação e
realização pessoal, não parecem implicar uma diminuição no sentimento de
eficácia profissional. Neste sentido, os dados do nosso estudo encontram maior
conformidade na posição que tem vindo a ser assumida por alguns autores sobre o
facto do "burnout" parecer ser melhor entendido pelas dimensões de
exaustão emocional e cinismo (ou despersonalização, consoante as escalas
utilizadas), assumindo as expectativas de eficácia profissional um carácter
independente no entendimento deste fenómeno (Cordes & Dougherty, 1993;
Demerouti, Bakker, Nachreiner, & Schaufeli, 2001). Seja como for, os
valores elevados encontrados nas dimensões de exaustão emocional (ambas as
amostras) e cinismo (no caso dos profissionais de segurança prisional)
confirmam parcialmente outros estudos onde se observaram valores problemáticos
nas três áreas do "burnout" (Cantisano & Domínguez, 2005;
Hernández-Martín et al., 2006; Keinan & Malach-Pines, 2007; Neveu, 2007;
Sotomayor & Pombar, 2005). Já no que diz respeito aos indicadores de
satisfação profissional, um dos aspectos mais significativos prende-se com o
facto de quase metade dos profissionais de segurança prisional manifestarem que
não voltariam a escolher a mesma ocupação se tivessem uma nova oportunidade de
escolher uma saída profissional, existindo também uma percentagem assinalável
de profissionais bastante insatisfeitos com o seu trabalho. Curiosamente, este
padrão de resultados foi também observado noutros estudos realizados com
guardas prisionais (Cantisano & Domínguez, 2005), enquanto que os valores
encontrados nas forças de segurança pública (com maior satisfação profissional
e menor desejo de abandonar a profissão) também foram relatados noutros
trabalhos (ver Maslach-Pines & Keinan, 2006).
Quanto às diferenças entre os subgrupos das duas amostras, constatou-se que as
forças de segurança prisional assumiram, em praticamente todos os casos
analisados, vivências laborais mais negativas. Não deixa de ser significativo
que, independentemente do estado civil, experiência profissional e horário de
trabalho, sejam sempre os guardas prisionais a evidenciarem maior
"burnout" e desejo de abandonar a profissão, em paralelo com menor
comprometimento organizacional, satisfação com a vida e satisfação
profissional. A única excepção a estes resultados prendeu-se com a comparação
entre profissionais a trabalharem até 45 horas semanais, sugerindo, assim, a
importância que esta medida de organização laboral poderá ter no amenizar
destas diferenças tão indesejáveis.
As análises das correlações entre as variáveis em estudo ajudam a explicar
estes resultados. De facto, constatou-se que, no caso dos participantes a
exercerem em contexto prisional, todas as variáveis se correlacionam
significativamente entre si e no sentido esperado, isto é, quanto mais stresse,
exaustão emocional, cinismo e desejo de abandonar o trabalho, menor sentimento
de eficácia profissional, comprometimento organizacional e satisfação com a
vida e com o trabalho. Já no caso das forças de segurança pública, apesar das
associações assumirem este mesmo sentido, verificou-se que nem todas elas
apresentaram valores de relevo estatístico.
A razão de ser do facto das forças de segurança prisional assumirem vivências
pessoais e profissionais mais desfavoráveis tem vindo a ser explorada na
investigação nacional e internacional. De facto, para além dos factores de
risco que tornam estas profissões especialmente susceptíveis ao stresse,
"burnout" e fenómenos associados, Morgan e colaboradores (2002)
afirmam que os funcionários das prisões não têm a preparação adequada ao nível
das estratégias de confronto para lidar com a pressão inerente ao ambiente
prisional e essa pode ser uma das principais razões pelas quais acabam por
lidar pior com este fenómeno.
Em síntese, os resultados deste trabalho apontam claramente a relevância do
stresse profissional nas forças de segurança, sejam elas de carácter público ou
prisional. Fica também evidente que a compreensão deste problema não se deve
focalizar apenas no plano individual, sendo fundamental incluir variáveis
sociais e organizacionais que ajudem a contextualizar as problemáticas
inerentes a estas ocupações. Note-se que uma das implicações práticas deste
estudo é a de que eventuais planos de intervenção destinados à prevenção e/ou
redução do stresse terão que ter em conta o contexto laboral em que esta
actividade se desenvolve e as variáveis pessoais e profissionais dos indivíduos
inseridos em cada uma das forças de segurança.
Relativamente às limitações deste estudo, a generalização dos resultados deve
ser cuidadosa, uma vez que todos os participantes exerciam as suas funções numa
única região do país. Por outro lado, torna-se importante desenvolver
investigações de natureza qualitativa que nos permitam compreender com maior
profundidade as complexidades próprias destas profissões. Finalmente, o
carácter transversal do trabalho realizado não possibilita o estabelecimento de
relações causais entre as variáveis, fazendo, por isso, sentido implementar
estudos de natureza longitudinal. Seja como for, e apesar das limitações
referidas, julgamos que este estudo veio promover um melhor conhecimento sobre
esta realidade, respondendo ao apelo de alguns autores sobre a necessidade de
maior investigação em populações de risco, como é o caso dos profissionais de
segurança (Cooper et al., 2001).