Textos e contextos educativos que promovem aprendizagem: optimização de um
modelo de prática pedagógica
Pedagogic practice; Students learning; Social contexts
Textes éducatifs et contextes favorisant l'apprentissage — Optimisation d'un
modèle de pratique pédagogique
Résumé
Tout du long de vingt ans d' investigation, on a cherché des réponses pour le
problème d' améliorer l' apprentissage des élèves, particulièrement de ceux qui
ne sont pas favorisés, sans amoindrir le niveau d'exigence conceptuel. L'
investigation s' a fait ressortir en plusieurs contextes: contextes d'
apprentissage dans la famille et dans l' école, contextes de formation de
professeurs et contextes d' élaboration (de construction ) de programmes et de
manuels scolaires. De façon à guider l' investigation et a faire l' analyse des
résultats, nous avons construit des modèles spécifiques. Les rapprochements
successives on conduit à un modèle qui conceptualise une pratique pédagogique
qu' on dirait avoir le potenciel pour amener les élèves jusqu' au succès
scolaire, amoindrissant le fosse parmis les élèves socialement différentiés.
Les études ont eu comme encadrement conceptuel essentiel la théorie du discours
pedagogique de Bernstein. Dans cet article on veut présenter le modèle et faire
la description de ses caractéristiques, faire voir les façons comme il a été
usité et discuter son efficace. Un nouveau modèle théorique, dérivé de cet
efficace, serra épreuvé dans une investigation à l' avenir.
Mots-clé
Pratique pédagogique; Apprentissage des élèves; Contextes sociaux
Introdução
O trabalho de investigação que o Grupo ESSA (Estudos Sociológicos da Sala de
Aula) vem desenvolvendo há mais de vinte anos tem procurado encontrar respostas
para o importante problema de melhorar a aprendizagem dos alunos,
particularmente dos desfavorecidos, sem baixar o nível de exigência conceptual.
A investigação tem-se focado em contextos de aprendizagem da família e da
escola, em contextos de formação de professores e ainda em contextos de
construção de currículos e programas (ex. Afonso, Morais & Neves 2002;
Afonso, Neves & Morais, 2005; Morais & Neves, 2003; Morais & Neves,
2005; Neves & Morais, 2001; Neves & Morais, 2005; Pires, Morais &
Neves, 2004). A aprendizagem dos alunos tem sido estudada ao longo de todo o
sistema educativo, desde o jardim-de-infância ao ensino superior, e tem-se,
fundamentalmente, centrado na educação científica. Têm sido construídos
diversos modelos para dirigir a investigação e também para analisar os
resultados obtidos. Ao longo de todo o processo de investigação, chegou-se à
conceptualização de um modelo de prática pedagógica da escola que parece ter o
potencial para levar os alunos ao sucesso, diminuindo o fosso entre alunos de
origens sociais diferenciadas.
Embora a investigação que tem vindo a ser desenvolvida tenha em conta
perspectivas das áreas da epistemologia e da psicologia, é a teoria do discurso
pedagógico de Bernstein (1990, 2000) que tem fornecido a principal estrutura
conceptual dos estudos efectuados. O seu poder de descrição, explicação,
diagnóstico, previsão e transferência tem permitido realizar investigação mais
rigorosa, no sentido de produzir novo conhecimento na área da educação.
Este artigo tem os seguintes objectivos: (a) apresentar o modelo de prática
pedagógica da escola e descrever as suas características; (b) mostrar de que
forma o modelo tem sido usado em contexto escolar; (c) explicar de que modo o
modelo pode ser estendido a contextos de formação de professores e de
construção de currículos e programas; e (d) discutir a optimização do modelo.
Modelo de prática pedagógica da escola
O diagrama apresentado na Figura 1 mostra as principais características do
modelo de prática pedagógica que resultou da investigação realizada.
Figura 1 - Relações entre as características da prática pedagógica e o
desenvolvimento científico
As principais características sociológicas da modalidade de prática pedagógica
que têm mostrado ser fundamentais para a aprendizagem científica de todos os
alunos são as seguintes:
– Distinção clara entre sujeitos com estatutos distintos — Classificação forte
na relação professor-aluno.
– Selecção e sequência de conhecimento, competências e actividades controladas
pelo professor — Enquadramento forte da selecção e da sequência,
particularmente ao macro nível.
– Tempo de aquisição controlado pelos alunos — Enquadramento fraco ao nível da
ritmagem.
– Explicitação clara do texto legítimo a ser adquirido no contexto da sala de
aula — Enquadramento forte ao nível dos critérios de avaliação.
– Relações abertas de comunicação entre o professor e os alunos e entre os
próprios alunos — Fraco enquadramento ao nível das regras hierárquicas.
– Interrelação entre os diversos conhecimentos, de uma dada disciplina, a serem
aprendidos pelos alunos — Classificação fraca ao nível da
intradisciplinaridade.
– Esbatimento das fronteiras entre os espaços professor-aluno e aluno-aluno —
Classificação fraca entre espaços.
Além destas características, os estudos têm também sugerido a importância, para
a aprendizagem dos alunos, da relação do seu conhecimento e das suas
experiências com o conhecimento a ser adquirido, tendo o último maior estatuto,
isto é, de uma relação escola-comunidade caracterizada por forte classificação
e fraco enquadramento.
De acordo com a investigação realizada, estas características podem conduzir os
alunos a um desenvolvimento científico elevado em termos de conhecimento e
competências. Contudo, tal desenvolvimento só poderá ocorrer se os professores
possuírem um elevado nível de conhecimento e competências científicas, o que
significa que não há metodologias óptimas que possam compensar uma proficiência
científica pobre.
Esta investigação iniciou-se com um estudo que foi planificado com o objectivo
de comparar o efeito de três práticas pedagógicas distintas na aprendizagem
científica dos alunos. Duas das práticas correspondiam, em termos gerais, aos
dois extremos do processo de ensino-aprendizagem — modelo tradicional, de
classificações e enquadramentos gerais fortes, e modelo progressista, de
classificações e enquadramentos gerais fracos; a terceira prática situava-se no
meio em termos das relações de poder e de controlo entre o professor e os
alunos (Morais, Neves, Medeiros, Peneda, Fontinhas & Antunes, 1993). Ao
longo deste estudo foi-se tendo a percepção de que uma prática pedagógica que
produziria efeitos positivos, em termos da aprendizagem dos alunos, seria uma
prática em que quer o professor quer os alunos teriam o controlo de acordo com
características específicas da prática e em que o poder seria detido pelo
professor. Por exemplo, já era claro na altura que os critérios de avaliação
deveriam ser explícitos (forte enquadramento) e que as regras hierárquicas
deveriam ser reguladas por um fraco enquadramento, isto é, já era claro que uma
característica do modelo tradicional e uma característica do modelo
progressista deveriam estar conjuntamente presentes na mesma prática. Começou-
se então a desenvolver estudos que recorressem a práticas pedagógicas mistas,
experimentando várias combinações das diferentes características que definem os
contextos organizacional e interaccional da sala de aula (ex. Neves &
Morais, 2001; Pires, Morais & Neves, 2004; Rocha & Morais, 1999). Estes
estudos focaram-se em diversas amostras de diversos níveis de escolaridade e
usaram uma variedade de metodologias que, no conjunto, constituíam uma
abordagem metodológica mista (Morais & Neves, 2007). Ao longo deste
processo de investigação foi possível chegar à conceptualização de uma prática
pedagógica mista com as características indicadas anteriormente.
O modelo em acção
Nesta secção do artigo, pretende-se mostrar de que modo o modelo tem funcionado
nos estudos desenvolvidos. Seleccionou-se, como exemplo, um estudo que foi
realizado ao nível do primeiro ciclo do ensino básico e no qual foram
implementadas, na área das ciências, duas práticas pedagógicas distintas, por
dois professores de duas escolas, numa amostra total de 26 crianças (Morais,
Neves, Silva & Deus, 2005; Silva, Morais & Neves, 2005). Elaborou-se um
livro de actividades, com guia para o professor, que foi fornecido aos
professores de modo a ajudá-los a conduzir as crianças a adquirir conhecimento
("o crescimento dos seres vivos") e a desenvolver competências
investigativas. Subjacente a estas actividades estava o modelo de prática
pedagógica mista derivado de estudos anteriores.
Foi construído um instrumento para ser utilizado na caracterização das práticas
pedagógicas dos professores (Silva, Morais & Neves, 2003). Esse instrumento
continha, para as várias características da prática pedagógica, nos contextos
instrucional e regulador, indicadores através dos quais a prática podia ser
caracterizada em escalas de quatro graus de classificação e enquadramento.
Mostra-se, em anexo, como exemplo, a parte do instrumento que se refere aos
critérios de avaliação e à intra-disciplinaridade. Com base nesse instrumento,
analisaram-se as transcrições dos registos áudio e vídeo do processo de ensino-
aprendizagem que teve lugar nas duas escolas. A caracterização das duas
práticas pedagógicas está apresentada na Tabela I.
Tabela I - Caracterização de duas práticas pedagógicas no 1º ciclo do ensino
básico
Os dados apresentados na tabela evidenciam diferenças entre as práticas dos
dois professores. O professor da escola Arco-Íris implementou uma prática que
está de acordo com o modelo de prática mista que havia sido proposto, enquanto
a professora da escola Tulipa implementou uma prática que se distancia desse
modelo. Se nos concentrarmos em duas características específicas da prática —
critérios de avaliação e intra-disciplinaridade — pode dizer-se que o professor
da escola Arco-Íris tornou os critérios de avaliação muito explícitos quer ao
macro quer ao micro nível (enquadramento muito forte: E++) e estabeleceu
relações fortes de intra-disciplinaridade entre os diferentes conhecimentos
(classificação muito fraca: C--); pelo contrário, a professora da escola Tulipa
deixou os critérios de avaliação implícitos aos dois níveis (enquadramento
fraco: E-) e estabeleceu relações fracas entre os diferentes conhecimentos
(classificação forte C+). A observação da tabela no seu conjunto mostra que
este padrão de diferença entre os dois professores se mantém, em geral, para
todas as características da prática pedagógica.
Os excertos que se seguem ilustram alguns valores de classificação e
enquadramento, atribuídos às práticas pedagógicas dos dois professores, no que
diz respeito às duas características referidas e quando se considera o
indicador construção de sínteses.
Excertos
[...] Se os pintainhos não tivessem tido alimento tinham crescido? [discussão
com as crianças] Então cresceram [os seres vivos] em quaisquer condições?
[discussão com as crianças] Não. Não crescem. Precisam de condições especiais
para crescer, ou seja, as plantas precisam de água, os animais precisam de
comida....alimento, então não crescem em quaisquer condições [...]. Professor
da Escola Arco-Íris
A professora lê as frases do livro de actividades:
[...] ao longo do ano observámos mudanças em sementes, no pinto, nos bichos-da-
seda e, claro, no teu próprio corpo. Verificámos que mudaram, ,está bem?[...]
cresceram, cresceram. Então vamos escrever cresceram aí no primeiro espaço. Vá!
Já escreveram?
Aprendemos então que quando as coisas crescem estão...vivas, então escrevam
vivas... já está? Professora da Escola Tulipa
O primeiro excerto evidencia a existência de relações intra-disciplinares muito
fortes (C--), já que são integrados conceitos distintos do tema em estudo
("crescimento dos seres vivos"), e critérios de avaliação explícitos
(E++), já que a síntese é clara e construída com as crianças. O segundo excerto
evidencia relações intra-disciplinares fracas (C+), já que apenas factos
distintos do tema são relacionados, e critérios de avaliação implícitos (E-),
já que a professora diz às crianças o que devem escrever sem explicar o
respectivo significado.
De forma a avaliar o efeito das duas práticas na aprendizagem das crianças,
utilizou-se o conceito de código de Bernstein. A aprendizagem foi, assim,
apreciada em função da orientação específica de codificação (OEC) das crianças
para o contexto específico da compreensão de conceitos, isto é, foi apreciada a
sua posse de regras de reconhecimento e de realização para aquele contexto. Com
este objectivo, aplicou-se uma entrevista semi-estruturada às crianças, antes e
depois do processo de aprendizagem, e para a qual se construiu um guião
específico. A Figura 2 apresenta os resultados da entrevista, quando se
consideram três níveis de desempenho das crianças, em termos de OEC, e a
composição social das escolas. Os resultados evidenciam diferenças importantes
entre os dois grupos de crianças. A evolução das crianças da Escola Arco-Íris
foi maior do que a evolução das crianças da Escola Tulipa, sendo essa diferença
uma consequência da evolução diferencial das crianças da classe trabalhadora
das duas escolas. Este resultado é particularmente relevante uma vez que
estudos anteriores (e.g. Domingos, 1987) têm mostrado que as crianças da classe
trabalhadora estão em dupla desvantagem quando aprendem em escolas da classe
trabalhadora, como é o caso da Escola Arco-Íris.
Figura 2 - Evolução da orientação específica de codificação nas duas escolas
É claro, a partir dos resultados, que o professor que desenvolveu uma prática
pedagógica mais próxima do modelo que tem vindo a ser referido levou as suas
crianças a atingir um grau mais elevado de literacia científica quando
comparado com a professora cuja prática pedagógica se distanciou desse modelo.
Os resultados obtidos mostram ainda que a prática pedagógica pode ultrapassar o
efeito da classe social, o que constitui uma conclusão de particular
importância em termos do papel que a escola pode ter no esbatimento das
diferenças entre grupos sociais.
O reduzido tamanho da amostra deste estudo podia levar-nos a pensar que estas
conclusões não são válidas. Contudo, o facto destes resultados confirmarem
resultados de estudos anteriores desenvolvidos com amostras diversas de níveis
escolares diversos aumenta o grau de validade dos estudos como um todo. É
importante notar que este tipo de estudos requer profundidade e rigor a todos
os níveis da investigação, algo que não é possível conseguir com grandes
amostras.
Embora o modelo de prática pedagógica a que se chegou tenha mostrado ser eficaz
em aumentar o nível de competências e conhecimentos científicos dos alunos e em
diminuir o fosso entre alunos de origens sociais diferenciadas, a investigação
desenvolvida também tem fornecido informação para afirmar que se poderá ir mais
longe. Tratar-se-á deste assunto na última secção do artigo.
Extensão do modelo a outros contextos educacionais
Nesta secção descrevem-se dois estudos, um deles semelhante ao estudo que se
acabou de descrever, mas desenvolvido ao nível do ensino superior e o outro
focado no contexto de currículos e programas. Com o primeiro estudo pretende-se
mostrar de que forma o modelo pode ser aplicado a níveis distintos de
escolaridade e com o segundo estudo mostrar a sua aplicação a contextos
diferentes dos contextos de ensino-aprendizagem.
O modelo num contexto de ensino superior
O estudo desenvolvido no contexto do ensino superior focou-se na disciplina de
Didáctica das Ciências em licenciaturas de educação científica (Santos, 2007).
Pretendia-se ver em que medida o modelo de prática pedagógica a que se tinha
chegado, através de investigação nos níveis mais baixos de escolaridade,
poderia funcionar no ensino superior, no sentido de promover a aprendizagem de
alunos universitários. Estudaram-se duas práticas pedagógicas desenvolvidas por
duas professoras em duas turmas distintas e analisou-se a aprendizagem dos
alunos através da sua orientação específica de codificação para conhecimentos
seleccionados da disciplina. Construiu-se, também neste caso, um instrumento
para caracterizar a prática pedagógica que é paralelo ao instrumento do estudo
anteriormente descrito (ver anexo), embora adaptado ao novo contexto (Santos
& Morais, 2006).
Os excertos que se seguem foram extraídos das transcrições das aulas e referem-
se ao indicador construção de sínteses da regra discursiva critérios de
avaliação.
Excertos
E++ [...] fazer a síntese daquilo que andámos a trabalhar durante estas três
aulas [...] o que é que a gente poderia dizer que aprendeu? [a professora
discute com os alunos todos os pontos relevantes e termina com uma conclusão
estruturada, escrita num acetato]: "A ciência, enquanto corpo organizado
de conhecimentos em constante evolução, é o resultado de um processo dinâmico
de resolução de problemas, que envolve um conjunto não linear de etapas
interligadas em que o trabalho laboratorial desempenha um papel crucial".
[...] esta é a ideia mais geral [...] há outras pequenas ideias que fomos
construindo a pouco e pouco [...]
(sínteses claras, construídas com os alunos e registadas).
E+ [...] podemos dizer como síntese das três aulas que [...] [a professora
apresenta a conclusão escrita num acetato]: "O grau de complexidade dos
conhecimentos científicos e metacientíficos e das competências cognitivas, bem
como o grau de relação intradisciplinar entre os conhecimentos científicos
traduzem o nível de exigência conceptual do ensino/aprendizagem, sendo este
nível tanto mais elevado quanto maior for o grau de complexidade dos
conhecimentos e das competências e o grau de relação intradisciplinar".
[...] ao planificarmos o ensino/aprendizagem com base nos conteúdos e nos
objectivos tínhamos de ter em atenção que há vários graus de complexidade e que
o ensino não se deve cingir aos de baixo nível de complexidade
(sínteses claras, construídas pela professora e registadas).
E- [...] O que é que nós queremos ensinar aos nossos alunos? [...] (os alunos
começam a arrumar os seus materiais, sem tomarem quaisquer notas do que a
professora está a dizer) É a linguagem das competências que eu quero que
aprendam aqui. São competências dessas que vocês disseram aqui que nós vamos
ter que desenvolver nos nossos alunos. Tem a ver com raciocínio, tem a ver com
atitudes, tem a ver com mobilização do conhecimento científico, tem a ver com
os processos da ciência, é isso tudo
(sínteses nada claras, construídas pela professora e não registadas).
Estes excertos evidenciam também graus distintos de intradisciplinaridade. O
primeiro e o segundo excertos podem ser classificados com grau C-, já que
correspondem a sínteses que fazem uma relação entre diversos conceitos de um
determinado tema em estudo. O terceiro excerto pode ser classificado como C++,
uma vez que corresponde a uma síntese que apresenta conhecimento factual de um
determinado tema.
Por limitações de espaço, os resultados que se referem à caracterização da
prática e à orientação específica de codificação dos alunos não serão
apresentados neste artigo.
O modelo num contexto de currículos e programas
Um dos estudos desenvolvidos neste contexto centrou-se na actual reforma
educativa do ensino básico (Ferreira, 2007) e é parte de uma investigação mais
ampla que pretendia analisar os processos de recontextualização que ocorrem no
campo de recontextualização oficial e entre este campo e o campo de
recontextualização pedagógica. A análise que se apresenta foca-se nos
currículos e programas, enquanto textos produzidos no campo de
recontextualização oficial, particularmente nos dois principais documentos
curriculares — Competências Essenciais e Orientações Curriculares. As análises
centraram-se no tema "Sustentabilidade da Terra" da disciplina de
Ciências Naturais e incidiram em aspectos específicos relacionados com o que e
com o como dos processos educativos: construção da ciência; nível de exigência
conceptual; intradisciplinaridade e critérios de avaliação (quanto à relação
Ministério da Educação-professores). Para cada um destes aspectos foram
construídos instrumentos organizados de forma a contemplar as quatro secções
principais dos programas (Conhecimentos, Finalidades, Orientações Metodológicas
e Avaliação), e que continham, para cada secção, quatro escalas de
classificação e/ou de enquadramento e respectivos descritivos (ex. Alves,
Calado, Ferreira, Morais & Neves, 2006; Ferreira, Alves, Calado, Morais
& Neves, 2006). A análise exigiu que o texto dos dois documentos
curriculares fosse dividido em unidades de análise, que foram constituídas por
excertos do texto com um dado significado semântico.
A Tabela II mostra, para a Secção Finalidades, o instrumento de análise das
relações intra-disciplinares. Seguem-se exemplos de excertos (unidades de
análise) dos documentos analisados que ilustram diferentes graus de
classificação quanto à relação intra-disciplinar.
Tabela II - Relações intradisciplinares nos programas de Ciências Naturais –
Secção do instrumento
Excertos
Intradisciplinaridade
C++ Recomenda-se que nesta temática os alunos compreendam a existência de
diferentes tipos de águas e a relação com a sua utilização para fins diversos.
(Orientações Curriculares, p. 28)
C- Compreensão de que a dinâmica dos ecossistemas resulta de uma
interdependência entre seres vivos, materiais e processos. (Competências
Essenciais, p. 142)
C-- Outro aspecto a salientar tem a ver com a articulação dos temas. Com a
sequência sugerida pretende-se que, após terem compreendido conceitos
relacionados com a estrutura e funcionamento do sistema Terra, os alunos sejam
capazes de os aplicar em situações que contemplam a intervenção humana na Terra
[...] visando a sustentabilidade na Terra. (Competências Essenciais, pp.
134–135)
A Tabela III mostra, para a secção Orientações Metodológicas, o instrumento de
análise dos critérios de avaliação, relacionado com o conhecimento
"dimensão sociológica externa da construção da ciência". Seguem-se
exemplos de unidades de análise dos documentos curriculares que ilustram
diferentes graus de enquadramento quanto aos critérios de avaliação.
Tabela III - Critérios de avaliação para o conhecimento “dimensão sociológica
externa da ciência” presente nos programas de Ciências Naturais – Secção do
instrumento
Excertos
Critérios de Avaliação
E- A este nível sugere-se a discussão de problemáticas reais, como por exemplo
os acidentes em centrais nucleares, a adição de chumbo à gasolina [...]. Estas
problemáticas poderão constituir oportunidade para discussão sobre questões de
natureza social e ética que permitam aos alunos momentos de reflexão a
propósito dos prós e contras de algumas inovações científicas para o indivíduo,
para a sociedade e para o ambiente [não são fornecidas explicações adicionais]
(Orientações Curriculares, p. 30).
E-- É recomendada a realização de visitas de estudo a unidades industriais
existentes na região e a correspondente análise dos custos, benefícios e riscos
sociais e ambientais associados à actividade industrial [não são fornecidas
explicações adicionais] (Orientações Curriculares, p. 28).
Nos documentos curriculares analisados não estavam presentes unidades de
análise correspondentes aos graus E++ e E+, o que significa que os critérios de
avaliação nunca eram explícitos.
Os resultados da análise dos dois documentos do currículo (Competências
Essenciais e Orientações Curriculares), quanto às relações de
intradisciplinaridade e aos critérios de avaliação, estão expressos
respectivamente nos gráficos das figuras 3 e 4. Em ambas as figuras, os
resultados estão organizados em função de cada uma das quatro secções dos
documentos e da totalidade das secções.
Figura 3 - Relações intradisciplinares nos programas de Ciências Naturais
Figura 4 - Critérios de avaliação para o conhecimento “dimensão sociológica
externa da ciência” nos programas de Ciências Naturais
Resumidamente, pode-se dizer que, em geral, o valor relativo atribuído às
relações de intradisciplinaridade entre os conhecimentos científicos decresceu
quando se passa do documento Competências Essenciais (CE) para o documento
Orientações Curriculares (OC), o que evidencia uma recontextualização, que tem
lugar dentro do campo de recontextualização oficial, da mensagem contida no
discurso pedagógico oficial. Como consequência, os professores irão receber
duas mensagens diferentes e, se seguirem unicamente as orientações
curriculares, poderão ser levados a dar pouca valorização à
intradisciplinaridade nas suas práticas pedagógicas.
No que se refere aos critérios de avaliação, pode-se dizer, também de forma
resumida, que, mesmo quando a construção da ciência está presente nos
documentos curriculares, como é o caso da dimensão sociológica externa da
ciência, a mensagem sobre o processo de construção da ciência está implícita e,
em muitos casos, totalmente implícita (E--). Como consequência, os professores
poderão ignorá-la ou não serem capazes de a introduzir nas suas práticas
pedagógicas.
Os trabalhos de investigação que foram descritos mostram de que modo é possível
estudar textos e contextos diferenciados utilizando as mesmas relações e
conceitos teóricos. Isto torna possível estabelecer comparações ao longo do
sistema educativo, contribuindo assim para aumentar o nível de conceptualização
das conclusões.
Optimização do modelo
Como foi dito anteriormente, o modelo resultou dos muitos estudos que têm vindo
a ser desenvolvidos e, por essa razão, poder-se-á ter alguma confiança nas
conclusões a que se tem chegado. Contudo, considera-se que há necessidade de ir
muito mais além na investigação, de modo a que o modelo a que se chegou alcance
um grau mais elevado de precisão, de modo a aumentar o rigor da investigação
futura e o poder de transferência para a área do desenvolvimento curricular e
para a prática em sala de aula.
Assim, pretende-se, com base no actual modelo, construir um novo modelo teórico
para ser testado em investigação futura. Esse modelo irá conter hipóteses que,
baseadas em resultados anteriores ou teoricamente desenvolvidas, serão focadas
nos pontos fracos do modelo anterior.
Em primeiro lugar, há duas características da prática pedagógica — relação
escola-comunidade e relações interdisciplinares — que necessitam ser estudadas
com maior profundidade. No primeiro caso, tem-se partido sempre do pressuposto
que a classificação entre discursos, isto é, entre o conhecimento da escola e o
conhecimento do dia-a-dia, deve ser muito forte dado que o primeiro deve ter o
maior estatuto. Contudo, entende-se que a aprendizagem dos alunos poderá ser
melhorada quando se deixa entrar, na escola, os seus conhecimentos e
experiências, o que significa defender uma relação de comunicação entre a
escola e a comunidade. A relação escola-comunidade tem, assim, sido
caracterizada não só através da classificação mas também do enquadramento,
embora o enquadramento tenha aqui um significado ambíguo uma vez que não se
refere à relação entre sujeitos. Este aspecto necessita claramente de ser
melhor estudado.
No caso da interdisciplinaridade, tem-se partido sempre do pressuposto
generalizado de que o esbatimento das fronteiras entre disciplinas é favorável
à aprendizagem dos alunos mas, na prática, a investigação tem sido sempre
desenvolvida ou em contextos onde uma dada disciplina de ciências está
institucionalmente separada de outras disciplinas da escola ou em contextos
onde esse isolamento foi intencionalmente criado, como nos casos dos estudos
realizados aos níveis do jardim-de-infância ou do primeiro ciclo do ensino
básico. Estes estudos resultaram da tentativa de levar os professores
envolvidos na investigação a concentrarem-se nas ciências em contextos onde,
tradicionalmente, se atribui baixo estatuto a esta área do conhecimento.
Contudo, em alguns estudos estabeleceu-se alguma relação com outras
disciplinas, como a matemática e o português, o que significa que, quando se
caracterizou a prática pedagógica, foi possível atribuir o valor C- à
interdisciplinaridade, numa escala de quatro graus de classificação entre as
várias disciplinas da escola. Nos estudos desenvolvidos não há evidência de que
este esbatimento das fronteiras entre disciplinas seja favorável à aprendizagem
dos alunos ou, melhor dizendo, não tem sido possível, até ao momento,
identificar esta característica como sendo favorável à aprendizagem dos alunos.
De um ponto de vista teórico, poderia mesmo defender-se o oposto, uma vez que,
sendo os alunos socializados, através de toda a sua vida académica, em
classificações fortes entre diferentes disciplinas, poderão ter maior
dificuldade em aprender todas as disciplinas num contexto de inter-relação.
Dado que a interdisciplinaridade aumenta o nível de abstracção, será também
mais difícil abordá-la enquanto não houver alguma proficiência em áreas
separadas do conhecimento. Para além disso, os alunos desfavorecidos poderão
encontrar particulares dificuldades em aprender em contextos
interdisciplinares, dado que tendem a ser primariamente socializados em
ambientes de fortes classificações. Este aspecto da prática pedagógica
necessita, assim, de mais atenção no futuro.
A outra área de optimização do modelo refere-se aos indicadores seleccionados
para cada uma das características da prática pedagógica. Os indicadores têm
variado de acordo com o estudo que está a ser desenvolvido. Por exemplo, os
indicadores para a regra discursiva selecção diferem de um contexto de jardim-
de-infância para um contexto de ensino superior. Contudo, alguns indicadores
têm sido comuns a todos os contextos, como é o caso do indicador
"elaboração de sínteses", pois tem-se considerado que eles são
importantes para caracterizar a prática pedagógica presente em qualquer
contexto. Tem-se procurado seleccionar uma amostra de indicadores que sejam
relevantes e representativos de um conjunto vasto de indicadores que podem ser
estabelecidos para caracterizar a prática pedagógica; contudo, essa selecção
necessita ser mais rigorosa. Além disso, pretende-se caminhar no sentido de
reduzir o número de indicadores, tentando encontrar quais deles são
suficientemente poderosos para representar a totalidade de uma dada
característica da prática pedagógica, e tornar mais precisos e concisos os
descritivos referentes aos indicadores mais relevantes. Esta medida será útil
para a investigação futura e, mais importante, ao permitir aumentar o poder de
transferência dos resultados de investigação para a prática educacional,
tornará mais fácil o seu uso pelos professores e por aqueles que se dedicam ao
desenvolvimento curricular. Será também importante descobrir se deverão ser
mantidos, nas análises, indicadores específicos para os macro e micro níveis da
prática pedagógica, ou se os indicadores de um desses níveis poderão ser
tomados como representativos de ambos os níveis. Outro aspecto que necessita
ser mais desenvolvido é a pesquisa de indicadores que possam ser comuns a todas
as características da prática pedagógica, como por exemplo aos critérios de
avaliação e às regras hierárquicas. Isto é algo que se tem tentado fazer, mas
que, até agora, se tem sentido que nem sempre é fácil de atingir.
Outro aspecto importante que se entende dever ser considerado em estudos
futuros refere-se à necessidade de estudar uma característica da prática
pedagógica de cada vez, controlando os valores de todas as outras
características. Isto revela-se particularmente relevante para as
características da prática que têm sido menos estudadas. Por exemplo, se
quisermos descobrir quão importante é a interdisciplinaridade para a
aprendizagem, dever-se-á analisar a influência de diferentes valores desta
característica mantendo os valores das outras características iguais em todas
as turmas da amostra da investigação. Contudo, este procedimento não deverá
interferir com o procedimento mais amplo, referido anteriormente, em que se
começa por construir um modelo e se estuda, depois, como é que ele resulta na
prática.
É importante notar que durante toda a investigação se tornou claro que algumas
características da prática pedagógica estão de tal forma interligadas que os
valores de classificação e/ou enquadramento de uma dada característica podem
determinar os valores de outras. Por exemplo, critérios de avaliação explícitos
(enquadramento muito forte) requerem que os alunos tenham controlo na ritmagem
(enquadramento muito fraco), de forma a que haja tempo para explicitar os
critérios, e requerem que os alunos tenham controlo ao nível das regras
hierárquicas (enquadramento muito fraco), de modo a que os alunos possam
levantar questões livremente e verem as suas dúvidas discutidas.
Um aspecto fundamental, de ordem diferente, que se pretende ter em conta em
investigação futura, está relacionado com a proficiência científica dos
professores em termos de conhecimento e de competências. Os estudos
desenvolvidos têm mostrado que muitos professores não possuem competências e
conhecimento científicos, particularmente os professores do jardim-de-infância
e do primeiro ciclo do ensino básico. De modo a atingir um grau mais elevado de
rigor, quando se estuda o efeito de determinadas práticas pedagógicas, será
necessário impor à investigação o controlo da proficiência científica dos
professores.
Para finalizar, pretende-se deixar claro que não se está à procura de um modelo
que resulte em todas as circunstâncias, ou seja, que resulte em todos os
contextos quaisquer que sejam as condições e sem necessidade de quaisquer
adaptações. Por exemplo, pode-se começar as aulas com um enquadramento muito
forte na selecção e mais tarde, durante o ano, quando os alunos já tiverem
adquirido as regras de reconhecimento e de realização para o contexto
específico daquelas aulas, pode-se então deixá-los ter algum controlo na
selecção de actividades, materiais, etc. Contudo, se se pretende que alguma
aprendizagem tenha lugar, a selecção nunca deve ser regulada por um
enquadramento fraco.
Deve-se ainda enfatizar que tudo na investigação, que tem sido desenvolvida,
indica que há características da prática pedagógica que são indispensáveis para
uma boa aprendizagem e que se deverá trabalhar no sentido de as optimizar.