Editorial
Editorial
Fátima Antunes
Fazer da Revista Portuguesa de Educação uma publicação de referência na
comunidade científica lusófona é uma opção editorial consolidada e fundada na
convicção de que essa linha de ação constitui um contributo significativo para
uma cultura científica relevante, plural e de orientação cosmopolita. Nesse
sentido, tem vindo a ser desenvolvido o esforço continuado pela integração da
revista nas mais importantes bases de difusão associadas a comunidades com as
quais Portugal afirma uma identidade histórica de abertura ao mundo como
projeto com sentido de futuro: a lusofonia e os espaços europeu e ibero-
americano. Comunicar investigação científica em português, procurando dialogar
com comunidades de dimensão global, constitui uma orientação de política
editorial e científica realista que igualmente toma a sério a responsabilidade
de construir a relevância do conhecimento para os contextos local e nacional.
Esta é uma opção consolidada pela RPE que este número mais uma vez afirma.
Discutir a docência universitária nas suas dimensões de interface com a
construção de culturas científicas é o desafio que o artigo de Carlinda Leite e
Kátia Ramos trazem a debate; as autoras argumentam que a construção de um
conhecimento pedagógico-didático que sustente a comunicação pedagógica no
ensino superior é suscetível de abrir e consolidar espaços de diálogo entre a
cultura humanística e a cultura científica, favorecendo a
(re)contextualização de saberes e de fazeres. No contexto de uma instituição
que assume como central a missão de criar e comunicar ciência, as autoras
propõem uma leitura científica das situações e argumentam a favor da
construção da sua objectividade também a partir de relações de inter-
subjetividades. Nesta perspectiva, a reflexão sobre a especificidade docente
universitária pode contribuir para superar o "divórcio" entre a cultura
humanística e a cultura científica.
Margarida Marta e Amélia Lopes discutem a questão da influência de experiências
e contextos de trabalho na construção de identidades profissionais a partir de
dois estudos, com educadoras de infância cujos percursos profissionais se
desenvolveram: (i) apenas num dos setores, público ou privado; (ii) mistos. O
intervalo de 7 anos entre as pesquisas permitiu ainda explorar efeitos de
mudanças organizativas e de carreira entretanto ocorridas. Interpretando
convergências e divergências, as autoras debatem efeitos identitários da
integração dos jardins de infância públicos em agrupamentos de escolas e, entre
outras, certas dimensões de identidade subjectiva como a pertença profissional
(ocupação, grupo ). O artigo termina debatendo implicações de políticas
educativas recentes suscetíveis de transformar a educação pré-escolar da rede
pública em organizações com referenciais subordinados à lógica de um serviço
para clientes.
No estudo dos processos de recontextualização na mensagem do currículo, através
da análise de dois manuais, Sílvia Calado e Isabel Pestana Neves argumentam que
há fundamento para levantar questões sobre o nível de aprendizagem científica
num quadro de maior intervenção de autores e professores. Mobilizando o modelo
do discurso pedagógico de Bernstein, as autoras chamam a atenção para a
relevância da formação de professores na construção de capacidades colectivas e
condições institucionais que sustentem processos de flexibilização curricular,
baseados na selecção de atividades em função das especificidades dos alunos,
de modo a que todos os alunos tenham acesso a uma educação que promova uma
alfabetização científica de nível elevado.
Um estudo junto de alunos do 3º ciclo de escolas de Lisboa, com pais ou avós de
origem africana, recolhe as representações desses jovens sobre a sua
aprendizagem da língua de escolarização, apreende como se situam face a tarefas
que lhes são pedidas e que necessidades identificam face ao seu sucesso
escolar. Carolina Gonçalves sublinha que as dificuldades apontadas pelos
estudantes são por si só indícios de uma elevada barreira escolar que tem
impacto na integração social.
Por sua vez e com preocupações parcialmente convergentes, Sandra Figueiredo e
Carlos Fernandes Silva analisam o desempenho de sujeitos aprendentes de
Português Língua Segunda, que constituem uma amostra representativa das
populações discentes migrantes em Portugal, em testes de segmentação de
palavras (soletração) e de identificação de pares mínimos. No estudo
apresentado, os autores propõem um programa de avaliação diagnóstica e de
intervenção no ensino e aprendizagem, dirigida especificamente a alunos que
estejam a iniciar o processo de aprendizagem/aquisição de Português Língua
Segunda.
Os dois artigos que se seguem estudam realidades sociohistóricas distintas de
um e outro lados do Atlântico, através de documentos históricos disponíveis,
designadamente jornais, revistas e registos da administração (relatórios, atas
ou normativos). Ademir Santos analisa e discute a utilização do sistema
escolar como estratégia formadora da infância e juventude, visível no modo
como a educação escolar se prestou à construção nacionalista, colaborando na
formação dos cidadãos do Estado Novo no Brasil dos anos 30 e 40. Por seu lado,
António Leonardo, Décio Martins e Carlos Fiolhais analisam o ensino secundário,
com ênfase no estudo das Ciências Físico-Químicas, na Primeira República em
Portugal. A partir de documentos diversos e da análise de literatura
especializada da época, com destaque para a centenária publicação O Instituto,
os autores percorrem e contextualizam iniciativas, medidas de reforma,
preocupações governamentais e debates pedagógicos influentes na organização do
ensino secundário do primeiro quartel do século XX.
Carlos Barrigas e Isabel Fragoso discutem a associação entre desempenho
académico, estatuto socioeconómico, capacidade de raciocínio e maturidade com
base num estudo com 792 alunos, de oito escolas de Lisboa, com idades entre os
6 e os 13 anos e que nunca tinham sido retidos. Para além de ter sido
confirmada a relação entre a primeira e a segunda variáveis, quer a maturidade,
quer a capacidade de raciocínio se mostraram associadas ao desempenho académico
de modos que os autores procuram problematizar e esclarecer.
O artigo de Teresa Gonçalves argumenta em torno de convergências e
interpelações entre as Ciências da Educação e as Ciências Cognitivas. A autora
sugere a relevância de perspectivas de complexidade e de transdisciplinaridade
para explorar possibilidades assim abertas de compreensão do fenómeno
educativo e do sujeito a educar, ao mesmo tempo que chama a atenção para o
perigo de alguma precipitação neste campo e para os riscos de simplificações
redutoras.
O presente número da RPE encerra com as notas de leitura de José António Afonso
em torno da obra Estado, Igreja e Educação. O Mundo Ibero- Americano nos
Séculos XIX e XX, discutindo como paulatina e de modos específicos se
entrecruzam, no quadro de relações de poderes políticos e institucionais de
vulto, a construção sociohistórica da educação e a constituição de diversas
sociedades nacionais nos contextos europeu e sul-americano.
Este trabalho agora entregue nas mãos do leitor percorre um itinerário cujo fio
nos conduz ao início deste editorial: das múltiplas relações entre conhecimento
e docência no ensino universitário e entre identidades profissionais e
contextos de trabalho em educação; das questões em torno da alfabetização
científica para todos à aprendizagem de Português, língua não materna e de
escolarização; da análise sociohistórica quer de utilizações e intervenções
governamentais nos sistemas de ensino ou da construção destes e das sociedades
modernas; da exploração de variáveis associadas ao desempenho académico ao
debate sobre os contornos do domínio científico a que é referenciável, a
investigação aqui publicada em português convoca e afirma um campo de
conhecimento polifacetado e de expressão multicontinental para elucidar
realidades socioeducativas também elas localmente relevantes de um e de outro
lados do oceano.
Centro de Investigação em Educação
Instituto de Educação
Universidade do Minho - Campus de Gualtar
4710 Braga - Portugal
rpe@iep.uminho.pt