Setor público e identidades profissionais em educação de infância:
transformações e permanências na última década
1. Introdução
A sociedade portuguesa faz hoje mais exigências à educação e particularmente à
educação pré-escolar, considerada pela OCDE (2000, p. 202) "um alicerce vital
de aprendizagem ao longo da vida [por se referir a uma fase de desenvolvimento
fundamental] no sucesso posterior do indivíduo e da sociedade".
Em Portugal, a educação pré-escolar possui uma cobertura global de cerca de
70%, que é assegurada em igual medida pelo setor público e pelo setor privado
(Marta & Lopes, 2008). O caráter público ou privado da educação não se
relaciona apenas e diretamente com a denominação das suas estruturas concretas,
pois, na sua dinâmica, como defende Nóvoa (2002), existem escolas públicas mais
privadas do que as privadas e escolas privadas mais públicas do que as
públicas. No entanto, no que diz respeito à educação pré-escolar, se tivermos
em conta a história e a inserção de cada um dos seus setores, é possível
considerar que a um esteja subjacente a filosofia de "serviço público" e a
outro a de "serviço para clientes", mesmo tendo em consideração que uma grande
parte das instituições privadas está sob a tutela pedagógica do Ministério da
Educação (ME) atribuída pela Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (Lei n.º 5/97,
de 10 de fevereiro).
Como se diz no relatório já referido da OCDE (2000, p. 200), a "rede de
estabelecimentos da solidariedade está melhor adaptada para apoiar as
necessidades das famílias do que para desenvolver os aspectos educativos
[enquanto que] na rede pública tende a acontecer o inverso". Neste sentido vão
os resultados do estudo de Marta (2003), que realçam que as instituições
privadas (Instituições Privadas de Solidariedade Social - IPSS), mesmo sujeitas
às mesmas regulamentações das públicas, refletem um tipo de organização
diferente, que se repercute de forma clara na construção da identidade
profissional dos seus educadores.
Com efeito, como afirmam Estêvão e Afonso (1991, p. 155), o contexto
organizacional parece interferir na construção da identidade profissional dos
educadores, através dos "processos de socialização profissional e de construção
das identidades sociais ligadas aos locais de trabalho". No estudo de Marta
(2003), já mencionado, a identidade dos educadores do setor público diferencia-
se bem da dos do setor privado. Trata-se de uma identidade que emergiu no pós
25 de Abril de 1974, que relaciona a atividade educativa com a construção da
profissão e que se define como uma identidade de projeto, referido ao contexto
social e comunitário, e se realiza num trabalho educativo centrado em
metodologias ativas e participativas.
Dado que o fortalecimento da dimensão formativa e desenvolvimental é um dos
grandes desafios que hoje se colocam à educação pré-escolar, seria desejável
que a identidade referida se generalizasse aos educadores de toda a educação
pré-escolar, sobretudo se quisermos que ela seja "a primeira etapa da educação
básica no processo de educação ao longo da vida" (Lei n.º 5/97). Também o
relatório da OCDE (2000) evidencia a educação de infância como uma questão de
interesse público, devido à organização da sociedade, à evolução do papel da
mulher no mundo do trabalho e à consciencialização política dos seus direitos.
No entanto, apesar da existência de um movimento que insiste em alertar para a
importância de se dar prioridade à educação pré-escolar tendo em vista uma
"cultura de iniciativa, de responsabilidade e de cidadania activa" (Portugal,
2007, p. 1), atualmente, as políticas educativas parecem tender a responder
mais aos grandes interesses económicos do que à importância da formação
integral dos cidadãos. Com efeito, como afirma Estêvão (2004, p. 101), embora
os discursos da autonomia, que acompanham as políticas ditas de
descentralização, possam veicular valores ligados à justiça, "nada garante que
a própria descentralização não seja assumida como um princípio
institucionalizador do mercado dentro da lógica neoliberal ou como uma técnica
de gestão atenta aos interesses dos cidadãos consumidores".
Foi neste contexto que nos pareceu crucial, com vista a esclarecer
progressivamente o lugar da educação pré-escolar na construção de uma narrativa
coerente da educação pública, indagar sobre o impacto das experiências de
trabalho no setor público na construção de identidades profissionais de
educadores de infância. Para o fazermos, tivemos em conta os resultados de uma
pesquisa que desenvolvemos em 2002, onde, através do estudo de percursos de
educadores de infância apenas no setor público (11 sujeitos) e apenas no setor
privado (11 sujeitos) ' "percursos puros" ', foi possível identificar
identidades típicas de cada um dos setores e dar conta das suas diferenças.
Como já apontámos, a identidade típica do setor público surgia com contornos
muito próximos do que o discurso da educação pública reivindica para os
educadores. Procurámos então conhecer, num estudo desenvolvido em 2009, que
tipo de impacto tinham as experiências de trabalho no setor público na
construção das identidades dos educadores, estudando, com o mesmo quadro
teórico-metodológico, "percursos mistos", ou seja, com experiências de trabalho
no setor público e no setor privado. Simultaneamente, tínhamos ainda a
oportunidade de indagar sobre as transformações verificadas nas identidades dos
educadores de infância em consequência das mudanças organizativas e de carreira
entretanto ocorridas.
Neste artigo, apresenta-se a pesquisa realizada em 2009 e os seus resultados.
Estes resultados são comparados com os resultados do estudo de 2002 e as
diferenças são analisadas e interpretadas em função do objetivo que nos
orienta. Começamos por referir-nos ao quadro teórico e à metodologia utilizada.
2. Identidade profissional, construção de identidades e seus contextos
Sendo nosso intuito estudar o impacto dos contextos de trabalho na construção
da identidade dos profissionais, interessam-nos, teoricamente, abordagens que
dão conta do caráter interativo, ecológico e situado dessa construção, e ainda
perspetivas sobre as organizações escolares.
Ao elaborar a sua teoria sociológica da identidade, Claude Dubar (1997)
distingue as teorias funcionalistas, nas quais se defende que a identidade se
estabelece precocemente como resultado de uma socialização entendida como
interiorização do social, e as teorias da construção social da realidade, nas
quais a identidade é um processo contínuo, ou seja, uma construção, que decorre
das interações dos indivíduos com os contextos socialmente estruturados.
Situando-se nesta perspetiva, e sustentando-se no pensamento de Georges Herbert
Mead (1962), Jean Piaget (1977a, 1977b, 1985) e Jürgen Habermas (1987, 1989),
entre outros, Claude Dubar (1997, p. 110) sublinha que "não se faz a identidade
das pessoas sem elas e [que] não se pode dispensar os outros para forjar a sua
própria identidade". Com efeito, a construção da identidade profissional é
definida por Claude Dubar (1997) como uma dupla transação, ou seja, convocando
duas transações em simultâneo: uma transação interna e uma transação externa. A
transação interna (subjetiva ou biográfica) estabelece-se, no indivíduo, entre
a necessidade de salvaguardar uma parte das suas identificações anteriores
(identidades herdadas) e o desejo de construir para si novas identidades no
futuro (identidades visadas); a transação externa (objetiva ou relacional)
estabelece-se entre o indivíduo e o ambiente, as instituições ou outros com os
quais entra em interação. Entre as duas transações pode existir encontro ou
desencontro. Em caso de desencontro, os indivíduos tendem a adotar estratégias
de acomodação ' de ajustamento das suas identidades visadas às identidades no
momento possíveis, no contexto ' ou de assimilação ' de ajustamento das
identidades no momento possíveis, no contexto, às suas identidades visadas. A
identidade constrói-se, portanto, como processo de adaptação de si em função
das identidades presentes nos contextos e/ou de adaptação dos contextos pelas
identidades das pessoas que neles vivem. Daí que a construção de identidade
possa resultar em simultâneo na formação (ou confirmação) das pessoas e na
transformação (ou reprodução) dos contextos.
Numa abordagem sócio-crítica das organizações escolares, diz Estêvão (2004) que
é nos "mundos de vida" e na sua natureza sistémica que os indivíduos coordenam
as suas acções, pelas interações que estabelecem entre si. Tendo por foco de
análise as políticas de autonomia, Estêvão (2004) identifica quatro tipos de
"mundos": o mundo mercantil, o mundo cívico, o mundo industrial e o mundo
doméstico. O mundo mercantil rege-se pelo imperativo da concorrência, o mundo
cívico é regulado pelo imperativo da solidariedade e da cidadania, o mundo
industrial orienta-se pelo imperativo da eficácia, e o mundo doméstico é
associado ao imperativo do amor à criança, da confiança e da proximidade.
Segundo o autor (ibid.), as escolas, públicas ou privadas, devem ser vistas
como espaços de vários "mundos", na medida em que a lei aplicada a todos poderá
ser interpretada e vivida de formas diferentes, originando diversas maneiras de
ser e de estar na profissão/na escola.
Assim, no caso da educação de infância em geral e na atual conjuntura, em
termos de hipótese, o mundo doméstico estaria patente no modo como os
educadores, no seu trabalho, se referenciam ao amor às crianças e na
importância que atribuem ao seu desenvolvimento e ao contexto comunitário e
familiar. As lógicas do serviço público, entretanto, enfatizariam a
racionalidade cívica, realçando a promoção da igualdade, a cidadania e o
interesse geral orientado para o "ethos de serviço público"; as lógicas
privadas, apelando à eficácia, à eficiência e ao máximo rendimento direcionado
para o "ethos do serviço ao cliente" (ibid.), enfatizariam o mundo mercantil.
Contudo, devido à (re)organização estrutural e/ou pedagógica ocorrida nos
setores público e privado e dados os discursos da mercadorização se fazerem
sentir em geral, e não apenas no setor privado, poderemos encontrar em cada
setor racionalidades inscritas em diversos mundos.
O nível organizacional, enquanto espaço da transação relacional, tem
especificidades, mas deve ser visto na interação que estabelece com os níveis
individual e interpessoal ou de pequeno grupo, por um lado, e com o nível
societal, por outro. Com efeito, como defende Lopes (2009) pretendendo
sublinhar como os modelos culturais e as políticas educativas podem exercer
influência nos processos de construção da identidade, a identidade dos
educadores é, em termos estruturais e dinâmicos, um constructo ecológico, isto
é, a sua compreensão requer a convocação de todo o cenário de desenvolvimento
(Bronfenbrenner, 1979), constituído por vários níveis, simultaneamente
interdependentes e com especificidades. Segundo a mesma autora, a identidade
profissional dos educadores é simultaneamente individual e coletiva (Lopes,
2008). Ao nível individual ela "é uma das identidades sociais da pessoa,
dependente da identidade pessoal como um todo" e das identidades coletivas
possíveis para o grupo profissional presentes na cultura, e que se traduzem,
localmente, em "sistemas de ação e interpretação [dos] atores em interação
social" (ibid., p. 3). Por isso, "em cada desempenho coletivo estão presentes
as identidades individuais, assim como em cada desempenho individual estão
presentes as identidades coletivas e as demais dimensões da identidade
individual (ibid., p. 3).
Na linha interacionista simbólica que inspira estas perspetivas sobre a
identidade profissional dos educadores e a sua construção, o Self tem uma
origem social (forja-se na interação) e é plural (Hewitt, 1991). A identidade
pessoal corresponde, neste quadro, a uma organização típica e relativamente
durável (mas mutável) das diversas identidades sociais da pessoa (mãe, filha,
amiga, militante política, educadora, etc.). A identidade profissional é uma
dessas identidades sociais da pessoa, que adquire saliência no quadro
profissional (informado pelos modelos culturais nesse campo de atividade), mas
sempre relacionada com as restantes. Por isso, a identidade social ou
psicossocial exprime, como dizem Zavalloni e Louis-Guérin (1984, p. 17), "a
interação entre os componentes sociais e pessoais da identidade".
Fortemente influenciada pela teoria das representações sociais de Serge
Moscovici (1969), com quem trabalhou, Zavalloni (1979) considera a identidade
social uma estrutura cognitiva ligada ao pensamento representacional, cujo
conteúdo e dinâmica emergem da biografia pessoal e da história social.
Partilhando com Moscovici (1969) a ideia (entre outras) de que as
representações sociais são formas de pensamento individual partilhadas por
grupos (partilha que os define), Marisa Zavalloni (Zavalloni & Louis-
Guérin, 1984) criou um método ' o "método da contextualização representacional"
' para aceder à identidade social através das representações dos indivíduos
sobre a sua pertença a grupos sociais.
3. O Método da Contextualização Representacional
A abordagem ego-ecológica de Marisa Zavalloni (Zavalloni & Louis-Guérin,
1984), porque toma como ponto de partida as diversas pertenças dos indivíduos e
o seu posicionamento nelas, permite-nos atingir a identidade profissional dos
grupos e pessoas. O foco de análise é a interação entre as dimensões pessoais
(intrapsíquicas) e as dimensões coletivas (interpsíquicas) de uma identidade; a
identidade pessoal possui recordações e imagens de uma história pessoal ligada
a uma história coletiva e, por sua vez, a identidade coletiva orienta e
participa diretamente na formação da identidade pessoal, produzindo condições
para a transformação de conhecimentos e juízos privados sobre si, o outro e a
sociedade (por exemplo, o 25 de Abril e a posterior criação dos Cursos de
Educação de Infância nas Escolas do Magistério, que deu novas possibilidades de
escolha às educadoras de infância).
Zavalloni e Louis-Guérin (1984) consideram existir um "lugar" no indivíduo onde
se realizam as interações indivíduo-meio ' o Meio Interior Operatório (MIO) ',
sendo possível, por isso, estudar a construção da realidade social através da
consciência individual. A identidade psicossocial ' expressiva dessas
interações ' é constituída por relações mais ou menos estabilizadas entre
representações de si, do outro e da sociedade. O Método da Contextualização
Representacional (MCR) permite aceder a essas representações. Trata-se de um
método ideográfico e compreensivo que visa descobrir os princípios gerais a
partir de estruturas psicológicas individuais. O seu foco é a identidade
psicossocial ou Meio Interior Operatório (MIO) e o seu procedimento consiste,
em termos genéricos, em recodificar as pertenças sociais objetivas, ligando-as
às representações de si, dos outros e da sociedade.
O método ' correspondente ao processo de recodificação ' tem duas etapas e
desenvolve-se em três fases. Numa primeira etapa, os inquiridos preenchem um
inventário ("inventário de identidade psicossocial") e, numa segunda etapa, são
entrevistados a partir das suas respostas. O preenchimento do inventário
permite-nos aceder aos grupos de pertença objetivos, tal como nomeados pelos
sujeitos (por exemplo, para a pertença ocupacional, os educadores tanto podem
escrever que são educadores de infância, apenas, ou que são educadores de
infância do setor público ou, ainda, que são educadores de infância do jardim X
ou Y). Para cada grupo de pertença, distingue-se depois entre as condições
"nós" e "eles/as" (por exemplo, "nós, os educadores de infância, somos " e
"eles, os educadores de infância, são "); para cada uma destas condições, os
inquiridos devem escrever palavras ou pequenas frases caracterizadoras (as
"unidades representacionais" ' UR). Por exemplo, "nós, as educadoras de
infância, somos criativas, ativas, comprometidas" e "elas, as educadoras de
infância, são pouco lutadoras, dedicadas, dependentes".
A primeira fase é coincidente com o preenchimento do inventário, a partir do
qual conhecemos a identidade social objetiva dos indivíduos e as suas diversas
pertenças (ou ecologia social), mas também os mecanismos de exclusão e inclusão
(nomeadamente através das respostas às condições "nós" e "eles"), as UR que
lhes correspondem e as respetivas "propriedades elementares" ' aplicação ou não
a si e seu caráter positivo ou negativo ', pois os respondentes devem anotar no
inventário se a UR se lhes aplica ou não, e se tem, para eles, uma ressonância
afetiva positiva, negativa ou neutra.
Na segunda fase, já através de entrevista (cf. Zavalloni & Louis-Guérin,
1984), procura-se aceder à significação das "unidades representacionais" a três
níveis. O primeiro diz respeito à identidade social subjetiva (ou microcosmos
social), a que se acede através da recodificação dos grupos de pertença (A quem
se refere exatamente? Que imagens lhe vêm ao espírito quando pensam neles/
nelas?). O segundo incide na distribuição de todas as UR no espaço elementar da
identidade (Fig. 1), espaço criado por quatro quadrantes resultantes da
interseção ortogonal de dois eixos: o da afetividade (positivo/negativo ou bom/
mau) e o da identidade (identificação/oposição ou Self/Outro). Desta forma, é
possível conhecer a relação entre a identidade pessoal e a identidade do grupo.
Num terceiro nível, procura-se saber se o significado de uma UR que se aplica a
si e ao grupo tem o mesmo significado nos dois casos, especificando-se
semelhanças e diferenças.
Figura 1
O espaço elementar da identidade
A última fase diz respeito à configuração conceptual e emocional inerente ao
"meio interior operatório" e visa um aprofundamento exaustivo da identidade
psicossocial do indivíduo.
No nosso estudo, usámos uma versão adaptada de Zavalloni e Louis-Guérin (1984)
e de outras adaptações anteriores do mesmo (Marta, 2003). O inventário de
identidade psicossocial que utilizámos é constituído por grupos de pertença e
"conceitos" (espaços semânticos no sentido que têm no Diferencial Semântico de
Osgood, Suci e Tannenbaum, 1957). Os grupos de pertença considerados foram:
"ocupação", "colegas do agrupamento de escolas/instituição", "educador do setor
(público/privado)". Os conceitos considerados: "1.º setor de trabalho", "2.º
setor de trabalho", "as reformas educativas" e "agrupamentos de escola/
instituição". No caso dos conceitos, as condições "Nós" e "Eles" foram
substituídas pelas condições "O melhor de " e "O pior de ".
4. Características dos inquiridos
Em 2009 participaram no estudo 36 educadores de infância, na sua maioria com
percursos mistos. No Quadro 1 caracterizam-se os inquiridos em algumas
variáveis relevantes.
Quadro 1
Caracterização dos sujeitos inquiridos
Interessa desde já realçar que, neste estudo, os educadores do setor privado
possuem idades bastante mais baixas (entre 26 e 29 anos) do que os do estudo
realizado em 2002, onde as idades se situavam no intervalo 28-39. Trata-se,
portanto, de uma população jovem, com um tempo de serviço entre os 6 e os 9
anos. As idades dos educadores do setor público situam-se no intervalo 37-54
(no estudo de 2002 situavam-se no intervalo 32-43), a que corresponde um tempo
de serviço entre os 16 e os 33 anos1. Os respondentes dos dois setores surgem,
pois, mais distintos do que no estudo de 2002. Aparentemente, a população do
setor público surge mais velha e a do setor privado mais nova, parecendo
existirem agora diferenças de geração entre os educadores do setor privado e os
do setor público. O setor privado parece ter sido a porta de entrada na
profissão para a maioria dos educadores inquiridos.
5. Apresentação de resultados e discussão
Neste ponto apresentamos os resultados do estudo realizado em 2009, comparando-
os com os do estudo de 2002 e interpretando convergências e divergências à luz
do objetivo perseguido.
5.1. Aspetos comuns aos educadores dos dois setores
Os dados recolhidos no estudo de 2002 e no estudo de 2009 indicam a existência
de um núcleo comum e específico nos profissionais de ambos os sectores, que
resulta da dupla transação identitária. Indicam também a existência de
especificidades dos setores, público e privado, que têm subjacentes a sua
história, as suas políticas e as interações (pessoais, interpessoais e
simbólicas) que cada educador estabelece com a sua profissão, com as
comunidades com que trabalha e com o seu grupo de pares. Os educadores de ambos
os sectores, e nos dois estudos, atribuem muita importância ao desenvolvimento
da criança ' que ocupa o lugar central na sua identidade profissional. É em
torno das crianças que se estabelecem as ligações entre os diversos
intervenientes no processo educativo (onde se incluem as famílias e a
comunidade).
Todos definem o "ser criativo" como dimensão-chave do exercício da profissão,
enquanto condição de inovação e meio de multiplicar as experiências
quotidianas, de forma a estimular o pensamento divergente. Percebe-se,
entretanto, que o conceito de criatividade não possui o mesmo significado para
todos os inquiridos. Os significados atribuídos ao conceito parecem estar,
implícita ou explicitamente, ligados aos modelos pedagógicos da formação
inicial, da formação complementar, às conceções dos educadores enquanto pessoas
e profissionais e aos contextos de trabalho onde desenvolveram e/ou desenvolvem
a sua ação.
5.2. A identidade social objetiva
A identidade social objetiva refere-se às unidades representacionais (UR)
apresentadas mediante a colocação dos grupos de pertença ou "conceitos" como
estímulos.
No que respeita aos grupos de pertença "ocupação" e "colegas do agrupamento/
instituição", verifica-se existir, em 2009, nos educadores do setor público,
uma maior variabilidade ' relativamente à que é apresentada pelos educadores do
setor privado nos dois estudos. As UR apresentadas pelos educadores do setor
público no estudo de 2009 são: "Educadores de Infância", "Educadores", "Colegas
do Agrupamento", "Professores". No setor privado, a variabilidade resume-se a
duas possibilidades, quer nas respostas à condição "Nós", quer nas respostas à
condição "Eles": "Educadores de Infância" e "Colegas da Instituição".
No grupo de pertença "educador do setor ", todos os educadores respondem de
acordo com o setor em que trabalham no momento e se identificam com ele. No
conceito "1.º setor de trabalho", verifica-se, nos educadores atualmente no
setor público, que 20 tiveram como 1º setor de trabalho o privado e 5 o
público; dos educadores atualmente no privado, 3 referem o público como 1º
setor de trabalho. No conceito "2.º setor de trabalho", as respostas surgem
como o reverso do anterior: 20 inquiridas atualmente no setor público têm o
público como 2º setor de trabalho e 3 atualmente no setor privado têm como 2º
setor de trabalho o privado.
Em síntese, os dados relativos à identidade social objetiva revelam consonância
entre os dois estudos na maioria dos parâmetros, à exceção dos educadores do
setor público no grupo de pertença "ocupação", onde se verifica um aumento de
variabilidade, que poderá dever-se às transformações operadas na inserção dos
jardins de infância públicos com a criação dos Agrupamentos de Escola.
5.3. A identidade social subjetiva: espaço elementar de identidade
A identidade social subjetiva analisa-se a partir da recodificação dos grupos
de pertença e dos "conceitos". Os inquiridos qualificam as UR em termos de
egomorfismo/alomorfismo ' aplicação a si (S) e aplicação ao outro (O) ' e de
ressonâncias afetivas (positivas e negativas), permitindo colocá-las nos quatro
quadrantes do espaço elementar da Identidade (S+, S-, O+ e O-).
Grupo de pertença "ocupação"
O Self dos inquiridos do setor público no que respeita à pertença profissional
(ocupação) apresenta-se com uma vertente positiva e uma vertente negativa. No
pólo positivo, veem-se como "orientadoras do saber e das aprendizagens",
"inovadoras", "investigadoras"; no outro pólo, surgem características muito
negativas que se referem a um grupo de diferenciação: "autoritárias em demasia"
e "distantes". Já o Outro é considerado apenas na sua componente positiva:
"compreensivas", "meigas" e "afáveis". No setor privado, os educadores surgem
com um Self muito valorizado e uma identificação à profissão ligada às
crianças: o ser "criativo" e o ser "carinhosa" são a tónica dominante. Ao Outro
atribuem também características positivas: fazer um trabalho com "simpatia" e
serem "brincalhonas". Nos educadores deste setor parece não existir grupo de
diferenciação.
Tal como no estudo anterior (Marta, 2003), o grupo dos educadores do setor
privado apresenta uma representação da ocupação mais coesa e mais baseada em
aspetos da relação interpessoal. Também como no estudo anterior, a
representação da ocupação dos educadores do setor público é, mais do que no
privado, marcada por uma definição profissional, a qual, também como no estudo
anterior, parece trazer consigo a existência de um grupo de diferenciação, que
possui as características consideradas negativas.
Grupo de pertença "colegas do/a agrupamento/instituição"
As respostas dos educadores no setor público permitem distinguir dois grupos:
um de identificação ' "trabalhadoras" e "originais" ' e um de dissociação '
"passivas" e "reprodutoras". Os educadores no setor privado, em geral,
identificam as colegas como "responsáveis" e "trabalhadoras" no desenvolvimento
do trabalho com as crianças. No entanto, no que concerne a questões
relacionadas com o método de trabalho, a apreciação assume uma perspetiva
negativa e até agressiva: "imaturas" e "individualistas".
Se nos educadores do setor público a diferenciação se relaciona, mais uma vez,
com a visão que têm da profissão e do profissional de educação de infância '
atividade, investimento e inovação ', nos educadores do privado a diferenciação
relaciona-se com o método de trabalho pedagógico (provavelmente atravessado por
questões de idade e experiência). Comparando com o estudo anterior, verifica-se
existir, nos educadores do setor privado, uma mudança de postura. No estudo
anterior, as características distintivas baseavam-se mais nas relações
interpessoais estabelecidas entre os adultos ("conflituosas", "falsas") e menos
nas questões pedagógicas.
Grupo de pertença "educador do setor "
Nos educadores do setor público existe um grupo de identificação: "grupo
proactivo", "profissionais de educação". Há características positivas também
relacionadas com a profissão, mas atribuídas ao Outro, tais como "atualizadas"
e "informadas". O grupo de dissociação é qualificado com características
negativas relacionadas, mais uma vez, com a forma de estar na profissão '
"acomodadas", "resistentes à mudança". Estes mesmos inquiridos distinguem dois
grupos ao qualificarem os educadores do privado: um de tipo negativo, mas
ligado à instituição ' "menos autónomas" ' e outro de tipo positivo '
"orientadas", "cumpridoras" e "no setor privado existem excelentes
profissionais".
Os educadores no privado identificam-se com um grupo a que atribuem
características positivas e negativas. As primeiras relacionam-se com a postura
no trabalho ' "empenhadas" e "dinâmicas" ' e as segundas com a "falta de
formação", o não "reconhecimento do seu trabalho" e a "excessiva carga
horária". O grupo de dissociação aparece com características negativas ligadas
à forma como se relacionam no trabalho: "competitivas" e "trabalhadoras
individualistas". Os inquiridos do setor privado atribuem aos educadores do
setor público características positivas, que gostariam de ter ' "informação",
"atentas às novas pedagogias" ', relacionadas com o trabalho realizado com
maior liberdade de escolha. As características menos positivas referem-se à
"burocracia" e ao "trabalharem menos horas diretamente com as crianças".
Comparando com o estudo anterior (Marta, 2003), parece existir uma mudança de
atitude e de perceção que resulta numa aproximação das perspetivas dos dois
grupos. No estudo anterior, os dois setores apareciam como grupos de oposição:
"fechadas" e "pouca consciência profissional" são exemplos de UR usadas pelos
educadores do setor público em relação aos do setor privado; e "autoritárias",
"arrogantes" e "senhoras" são exemplos de UR usadas pelos educadores do setor
privado em relação às educadoras do setor público. O desvanecimento da oposição
pode ser imputado quer ao facto de os percursos serem, na maioria, mistos, quer
às mudanças verificadas nos contextos de trabalho do setor público (com a
integração nos Agrupamentos e o aumento da burocracia e da carga de trabalho).
Pode ainda ser imputado à idade dos educadores do setor privado (potenciais
educadores do setor público?) e às próprias mudanças geracionais (com origem na
cultura, mas também, possivelmente, e entre outros, na formação inicial).
Mas a perceção que os educadores têm de cada setor de trabalho mantém-se
diferente, e a diferença vai no mesmo sentido. Nos educadores atualmente no
setor público, é a visão do educador de infância como profissional que continua
a organizar grande parte das representações. O grupo de dissociação tem
características que põem em causa esse perfil. Os educadores do setor privado
valorizam-se pela forma como desenvolvem o seu trabalho pedagógico com as
crianças, aspeto que é agora (em 2009) o núcleo da definição identitária destes
educadores (antes ocupado pelas relações interpessoais entre pares); o grupo de
dissociação surge apenas em relação a esse núcleo identitário. O setor público
parece continuar a ser atrativo no que respeita à liberdade de opção no
trabalho, mas menos atrativo devido à burocracia.
Conceito "1.º setor de trabalho"
Para a grande maioria dos inquiridos, o privado foi o primeiro setor de
trabalho. Os que atualmente estão no setor público podem agora estabelecer
comparações. Assim, o melhor do "1.º setor de trabalho" refere-se a: "relações
interpessoais", "as primeiras colegas", "as aprendizagens com as colegas", a
"continuidade do grupo de crianças". O pior refere-se ao "ambiente de trabalho,
passível de ser gerador de zunzuns" e a "falta de material".
Os inquiridos de momento no privado salientam como o melhor do seu setor de
trabalho a "equipa educativa" e a "autonomia que temos na sala". Como o pior
destacam o "trabalho excessivo" e a "falta de formação".
Curiosamente, os educadores agora no setor público valorizam no primeiro setor
de trabalho (o privado, na maioria) o mesmo que os educadores do privado
valorizavam no estudo de 2002: as relações interpessoais entre pares. Algo de
semelhante acontece com o que consideram mais negativo. Para os educadores no
setor privado, o primeiro contexto de trabalho é, na maioria, o próprio setor
privado. Mais uma vez se detetam sinais da deslocação identitária já referida
anteriormente: agora é a autonomia no trabalho pedagógico com as crianças o
referente valorizado, e menos as relações interpessoais com as colegas de
trabalho, identificadas por "equipa educativa". Aparentemente, este é agora o
pilar da identidade profissional, lugar que surge como espaço de autonomia e,
portanto, fonte de profissionalização. Esta ênfase dada ao trabalho pedagógico
na sala de aula como espaço de autonomia poderá relacionar-se com o possível
aumento da procura do setor público (dadas as novas condições de acolhimento
nesse setor e as decisões relativas à universalização da educação pré-escolar a
partir dos 5 anos), que levaria as Direções do setor privado a investir mais na
dimensão educativa nos jardins de infância e, portanto, a reconhecer as
educadoras como profissionais. Talvez possamos inferir que as Direções
(re)formularam a sua atitude perante os profissionais, as famílias e as
próprias crianças.
Conceito "2.º setor de trabalho"
Para os inquiridos do setor público, o "2.º setor de trabalho" (o público)
corresponde a uma visão mais construtiva e a uma atitude mais desafiante '
"abertura a novas práticas" e "novas experiências". O pior desse setor diz
respeito ao "excessivo número de reuniões" e ao "trabalho burocrático", que
impedem os educadores de refletir mais sobre as suas práticas. De entre os
educadores no momento no setor privado, apenas três têm experiência nos dois
setores (primeiro o público e depois o privado). Falam positivamente deste novo
contexto, realçando a possibilidade de "estabilidade profissional" e de
"aplicar o que aprendi". Ressentem-se da "falta de hora não direta" e de não
"trabalharem menos horas com as crianças" (tendo provavelmente o público por
referência).
Aparentemente, reaparecem no segundo setor as características já identificadas
em cada setor, embora pareça também que as profissionalidades se misturam: as
experiências do privado estão presentes nos educadores no público e as
experiências do público estão presentes nos educadores no privado.
Conceito "as reformas educativas do pré-escolar"
Tendo em conta as reformas educativas dos últimos anos, os inquiridos no setor
público elegem positivamente "a constituição dos agrupamentos" e o "Estatuto da
Carreira Docente". Consideram como o Pior' das reformas o "corte do artigo 185
(dispensa para formação contínua)", "o aumento da idade da reforma" e a
"hierarquia da carreira docente". Se as primeiras dão maior visibilidade à
educação de infância e a aproximam dos professores dos outros graus de ensino,
as segundas podem induzir acomodação e desinvestimento profissional. Os
inquiridos no setor privado privilegiam "a inclusão das crianças com NEE" e a
"valorização da educação pré-escolar". Em contrapartida, não consideram que a
"universalidade da frequência do jardim de infância aos 5 anos" seja uma boa
decisão, receando provavelmente a migração de crianças para jardins de infância
da rede pública.
As reações a estas reformas na condição Pior' parecem depender da identidade
prévia de cada setor, reagindo os do setor público aos perigos de
desprofissionalização e os do setor privado aos perigos do seu próprio
desaparecimento. As reações na condição Melhor' indiciam que os educadores do
setor público consideram positiva para os educadores no setor público a sua
aproximação aos outros níveis de ensino, através dos Agrupamentos. Nos
educadores do setor privado, a condição Melhor' faz emergir de novo a
centralidade da relação pedagógica com as crianças (agora em função das
crianças com NEE); a importância dada à educação pré-escolar é vista como
promessa de melhoria das suas condições de trabalho.
Conceito "o meu/minha agrupamento/instituição"
Os inquiridos no setor público, no que respeita ao seu Agrupamento, colocam na
condição Melhor' a "troca de experiências" e a "(relação) cordial e
diplomática"; na condição Pior' salientam "a falta de articulação entre os
diferentes níveis" e o "pouco poder de decisão". Os inquiridos no setor privado
referem como Melhor' na sua instituição o "bom ambiente de trabalho" e a
"autonomia que temos na sala". Na condição de Pior', os inquiridos referem-se
aos "baixos salários", à "falta de reconhecimento" e à "falta de comunicação
entre educadores e direção".
No estudo anterior, as crianças, a comunidade e o envolvimento em projetos eram
pilares da construção da identidade do educador da rede pública, a que se
aliava a grande margem de liberdade de ação. Para os educadores do setor
público, a inserção em Agrupamentos parece trazer consigo o risco de perda de
autonomia, mas também vantagens em termos de integração no percurso da educação
básica. Para os educadores no setor privado, os problemas apresentados pelas
instituições parecem ser persistentes (por relação com o estudo anterior), à
exceção da "autonomia na sala de aula", que aparece como novidade,
demonstrativa de que algo pode estar a mudar no setor privado.
Conclusões
Foi nosso intuito conhecer que tipo de impacto tinham as experiências de
trabalho no setor público da educação pré-escolar na construção das identidades
dos educadores, comparando resultados de dois estudos realizados em diferentes
momentos ' no início e no final da primeira década do séc. XXI. O estudo,
realizado com educadores a trabalhar no setor privado e no setor público,
permitiu-nos uma aproximação a essa questão através das transformações
verificadas nas identidades dos educadores de infância em consequência das
mudanças organizativas e de carreira entretanto ocorridas. Tornaram-se, assim,
mais visíveis alguns dos fios condutores da construção das identidades
profissionais de educadores de infância do setor público e do setor privado na
primeira década do séc. XXI, marcada por fortes mudanças na educação em geral e
na educação de infância em particular.
Não pretendemos, nesta conclusão, fazer generalizações, mas contribuir, através
dos dados fornecidos, para a elaboração dos modos como os contextos sociais,
políticos e profissionais, e sobretudo as políticas educativas, em geral e para
o ensino pré-escolar em particular, favoreceram ou desfavoreceram a construção
de uma profissão forte e esclarecida e uma educação de qualidade ' que, no caso
do pré-escolar, passa, na base, pela assunção da sua vertente educativa, muito
para além da assistencial.
As sínteses parciais e sequenciais que fomos realizando permitem-nos afirmar
que a identidade típica dos educadores estudados é ainda expressiva de grandes
diferenças nos princípios por que se rege a educação oferecida em cada setor,
dependente sobretudo de formas organizativas e finalidades distintas. É ao
setor público que mais corresponde o "ethos do serviço público", caracterizado
aqui pela referência à comunidade educativa, regida pela procura de uma maior
proximidade aos agentes e sujeitos educativos, numa vertente que privilegia a
democracia, a participação e a emancipação. É também nos educadores do setor
público (mesmo com percursos mistos) que se continua a encontrar de forma mais
clara uma identidade em que os educadores, não só se reconhecem como
profissionais, como perseguem princípios de educação que vão para além do
caráter mais ou menos agradável das relações estabelecidas. As experiências de
trabalho no setor público parecem, portanto, corresponder à formação desse tipo
de identidade e as identidades dos educadores do setor público aparecem como
uma base importante para a coerência da educação pública.
A integração da educação de infância pública nos Agrupamentos de Escola parece
ter introduzido algumas alterações na identidade dos educadores deste setor, as
quais, por um lado, fazem diminuir (sem eclipsar) a sua dimensão projectual e
reflexiva (em favor da burocratização), mas, por outro, a colocam diretamente
no percurso da educação pública. Enfim, a integração na educação básica coloca
a educação de infância num registo mais burocrático e industrial, mas aumenta a
sua relevância para uma narrativa coerente da educação pública.
Entretanto, embora ao setor privado possa corresponder mais o "ethos do serviço
para clientes", o registo doméstico-cívico parece predominar sobre o
industrial-mercantil da competitividade e do rendimento. Com efeito, não se
encontram, pelo menos através do estudo das identidades dos educadores e com a
metodologia utilizada, sinais claros do mundo mercantil no setor privado, a não
ser no que respeita à competição por públicos próprios, que aumentou com as
transformações operadas no setor público. No entanto, nesse caso, a necessidade
de públicos no setor privado parece contribuir para o alargamento do espaço de
profissionalização dos educadores desse setor, nomeadamente através da
autonomia dos educadores no trabalho pedagógico de sala. A identidade
profissional centrada nas relações interpessoais entre os educadores, como
refúgio contra as prescrições das Direções ou como resposta necessária aos
pais, com vista à manutenção dos empregos, parece dar lugar a uma identidade
com jurisdição profissional própria ' a autonomia no trabalho pedagógico.
As transformações verificadas na educação pré-escolar nos últimos dez anos
traduziram-se, portanto, numa aproximação das identidades dos educadores dos
dois setores. De destacar, neste aspeto, o facto de o aumento (ou o possível
aumento) da procura do setor público provocar no setor privado o
desenvolvimento de lógicas educativas em detrimento das lógicas assistenciais,
criando espaços de profissionalismo aos seus educadores ' aqui entendido na sua
aceção geral de possibilidade de autonomia e decisão em aspetos nucleares da
qualidade da atividade. Com efeito, o estudo indica que a integração da
educação pré-escolar pública no rio da educação básica teve efeitos
profundamente positivos na melhoria da educação de infância em geral, ao
"obrigar" as instituições privadas a fortalecerem a componente educativa da
educação de infância, contribuindo, portanto, para responder ao apelo de
António Nóvoa (2002) quanto à necessidade de construção de uma narrativa
coerente da educação pública. Este resultado é importante também porque
contraria o que tem sido o discurso dominante dos últimos anos sobre a "nova
gestão pública", que considera que a qualidade do setor público, na saúde e na
educação, aumenta pela adoção de esquemas de gestão típicos do setor privado.
Na verdade, uma forte e genuína educação pública parece ser a melhor maneira de
melhorar a qualidade da educação em geral.
Mas os resultados, nas suas nuances, indicam igualmente que poderemos vir a
assistir a um reforço do mundo mercantil na educação de infância, sobretudo se
se concretizar a livre escolha, voltada para responder mais às necessidades dos
grandes interesses económicos do que à importância da formação integral dos
cidadãos. A livre escolha, relacionada também com a postura dos pais e suas
imagens da escola, pode dar origem a escolas elitistas, por um lado, e a
guetos, por outro, gerando desigualdades na distribuição do serviço educativo e
dificuldades na qualidade da educação nas comunidades locais. Nos dias de hoje,
já se assiste a situações problemáticas com as mudanças de endereços para
forjar um lugar num jardim de infância de eleição.
Historicamente, a educação de infância surge para responder aos intentos de uma
classe social com poder económico. Daqui também a importância de se refletir
sobre o perigo de o poder económico transformar a educação pré-escolar da rede
pública em organizações com referenciais subordinados à lógica de um serviço
para clientes, em que o "( )bem comum educativo' para todos é substituído por
bens' diversos, desigualmente acessíveis" (Barroso, 2005, p. 742).