Ciências da Educação e Ciências Cognitivas: Contributos para uma abordagem
transdisciplinar
1. O campo epistemológico das Ciências da Educação e a investigação em Ciências
Cognitivas
Em primeiro lugar, importa esclarecer que o campo das Ciências da Educação é,
desde a sua origem, pela sua própria natureza, complexidade, abrangência e
importância dos fenómenos que trata e das questões com que se confronta, um
campo de cruzamento natural de diferentes disciplinas e metodologias. O estudo
sobre a educação dos seres humanos é um campo atravessado, desde sempre, por
perplexidades e tensões, assim como por uma multiplicidade de pontos de vista
que o tornam uma área em permanente construção e reconstrução. Dentro deste
campo, a dimensão prática da acção humana cruza-se e confronta-se com a
reflexão sobre os meios e fins da educação, a partir da e sobre a própria acção
educativa.
Entende-se que a complexidade dos fenómenos humanos a que chamamos educação tem
múltiplas dimensões e pode, por isso, ser tratada a partir múltiplos pontos de
vista, para além das diferentes organizações epistemológicas e estratificação
dos saberes vigentes (Morin, 1999). O que dá unidade, coerência e razão de ser
à existência de um campo de conhecimento designado como Ciências da Educação e
de uma área de conhecimento chamada teoria da educação é a sua estruturação em
torno de grandes eixos e questões fundamentais (García Carrasco, 2007; Vazquéz,
2003), a partir das quais se deve estruturar a investigação nesse campo de
conhecimento. Neste sentido, o campo epistemológico da educação seria, como
refere Roldão (2005, p. 15):
( ) uma ciência ou campo científico em construção ' Educação '
definido epistemologicamente pela natureza educacional das suas
questões, mobilizador de outros campos para a clarificação dessas
questões, e praticando metodologias e conceptualizações não apenas
importadas das Ciências Sociais, mas cada vez mais específicas face à
natureza do campo epistemológico, que assim se irá consolidando e
unificando transversalmente as suas múltiplas vertentes ( ).
Enquanto realidade em construção, o campo educativo deve abrir-se à reflexão
sobre questões e conhecimentos emergentes noutros campos de investigação.
Poderá, desta forma, complementar e (re)orientar os temas, problemas e
perspectivas que enquadram o seu âmbito científico, tendo em conta que o
fenómeno educativo é multidimensional e complexo, e que o campo epistemológico
das Ciências da Educação está sujeito à problematização tanto interna como
externa.
As Ciências Cognitivas constituem um campo pluridisciplinar, onde convergem
distintas aproximações ao estudo da cognição. O estudo sobre a cognição pode
ser agrupado em diferentes categorias que correspondem a domínios de
investigação dentro das Ciências Cognitivas e que incluem: a percepção, a
memória, a aprendizagem, a linguagem, a inteligência, o raciocínio, a
consciência, os processos de atenção, a criatividade, o desenvolvimento, a
acção e seus mecanismos, as emoções. Actualmente, as Ciências Cognitivas
englobam um conjunto de pesquisas que se relacionam com diferentes disciplinas:
a Psicologia Cognitiva, a Inteligência Artificial, as Neurociências, a
Linguística, a Filosofia da Mente e, mais recentemente, a Antropologia
Cognitiva e a Sociologia Cognitiva, a Biologia Evolutiva (Dortier, 2003),
fundadas numa abordagem pluridisciplinar da cognição e seus mecanismos.
Entende-se por Ciências Cognitivas, não só as abordagens relacionadas com o
chamado cognitivismo clássico1, que entendem a mente como um processador de
informação, mas também outras abordagens científicas que assumem uma
perspectiva mais integradora da cognição, como as Neurociências Cognitivas
(Damásio, 2001; Gazzaniga, 2004) ou a Biologia Evolutiva (Lewontin, 1998).
A relação intrínseca entre cognição e aprendizagem ' a cognição subjaz à
aprendizagem, tal como a aprendizagem é susceptível de modificar as estruturas
cognitivas ' torna, desde logo, patente a proximidade dos dois campos
epistemológicos e as intersecções entre eles. Existe, desde sensivelmente
meados do século passado, um reconhecimento progressivo da importância da
investigação em Ciências Cognitivas no campo da educação, tanto pela
incorporação desses conhecimentos e teorias no discurso e práticas educativas,
como pelo surgimento de propostas de promoção cognitiva (programas de a
pensar' e de aprender a aprender') implementadas no campo educativo e que têm
como base os conhecimentos e teorias originários do campo das Ciências
Cognitivas. No entanto, essa influência tem-se reflectido apenas de forma
parcial, e por vezes contraditória (Davis, Sumara, & Luce-Kapler, 2008), no
campo da educação. Tem estado relacionada essencialmente com os contributos da
Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia Cognitiva (Cruz & Fonseca,
2002) e tem-se centrado fundamentalmente em abordagens relacionadas com a
teoria do processamento da informação (processos cognitivos e metacognitivos) e
em aproximações desenvolvimentalistas ao estudo da cognição.
A recente evolução das investigações em Ciências Cognitivas, através da
incorporação de novos campos científicos, assim como os novos conhecimentos
sobre o cérebro e sobre o desenvolvimento emergentes das Neurociências
Cognitivas e da Biologia Evolutiva, tem contribuído para um novo entendimento
da cognição e seus mecanismos. Considera-se que estes conhecimentos têm
importantes implicações para a compreensão dos processos de aprendizagem e dos
factores que influenciam o desenvolvimento cognitivo dos indivíduos, na medida
em que contribuem para a compreensão da complexidade do pensamento. Essas
implicações devem ser integradas no âmbito do discurso sobre a educação e nas
práticas educativas. Eles podem contribuir para uma perspectiva mais
integradora da cognição e da aprendizagem e, como tal, devem ser enquadrados no
âmbito da reflexão sobre a educação.
2.Educação, cognição e complexidade
O paradigma da complexidade tem emergido, nas últimas décadas, como referente
da reflexão e investigação quer no âmbito das Ciências Naturais quer no das
Ciências Sociais e Humanas2. Em termos epistemológicos, o debate sobre a
complexidade tem evidenciado a necessidade de novas ferramentas de compreensão
do mundo, do fenómeno educativo e do sujeito a educar, que possibilitem uma
aproximação sistémica ao estudo da educação3. A inadequação das práticas
educativas relativamente à dinâmica da cognição humana (Dumont, Istance, &
Benavides, 2010), dos currículos relativamente à actualidade, à representação e
à organização das disciplinas (Osberg, Biesta, & Cilliers, 2008), o
fracasso das estruturas escolares no que se refere à sua adaptação à crescente
diversidade das populações que servem e à dinâmica dos seus contextos (Bruer,
1997), assim como as questões relacionadas com a formação, prática e
desenvolvimento profissional dos professores (Roldão, 2007; Flores & Day,
2006), demonstram, como referem Jörg, Davis, e Nickmans (2007), que os
paradigmas vigentes em educação se baseiam num pensamento linear e têm
negligenciado a complexidade inerente à realidade educativa. Nesta medida, têm
sido incapazes de oferecer um entendimento em profundidade desta realidade.
São, por isso, necessárias abordagens que consigam dar conta da complexidade
inerente aos processos educativos, centrando-se na sua natureza transfenomenal
(Davis, 2008) e assentes no exercício da transdisciplinaridade4 e da trans ou
interdiscursividade5, que se traduzam em novas formas de investigação, novos
conceitos e novas práticas de avaliação. O pensamento que toma como referência
a complexidade centra-se nesta transfenomenalidade entendida como a forma como
determinados fenómenos emanam de outros fenómenos e, por sua vez, se desdobram
eles próprios noutros fenómenos.
No âmbito da educação, a relevância da teoria da complexidade resulta da
possibilidade que representa para a superação de algumas metáforas mecanicistas
dominantes e da sua substituição por teorias mais orgânicas que permitam, entre
outros aspectos, uma nova compreensão e explicação dos processos e mecanismos
de aprendizagem e de funcionamento e desenvolvimento cognitivo (Gonçalves,
2008). A complexidade permitiria superar a ideia tradicional de causalidade e
dispensar as abordagens mecanicistas na medida em que representa um movimento
transdisciplinar que assenta no reconhecimento da inutilidade destas abordagens
para a compreensão e previsão de fenómenos como a evolução dos ecossistemas, o
funcionamento e desenvolvimento do cérebro ou os fenómenos sociais em larga
escala.
A formalização da ciência da complexidade como campo do saber resulta da
constatação de que os investigadores nas várias disciplinas foram desenvolvendo
métodos e explicações que se focavam, não em relações lineares, mas em
processos simultaneamente imprevisíveis e padronizados (Jörg et al., 2007). No
centro das suas preocupações está a natureza complexa, multidimensional, auto-
organizativa e auto-transformativa de determinados fenómenos, entre eles o
fenómeno educativo. Os fenómenos complexos são espontâneos, imprevisíveis,
irredutíveis, contextuais. São sistemas adaptativos ' daí a afirmação de que
são sistemas que aprendem ', e evolutivos, o que os torna irredutíveis a
explicações mecanicistas (Lewontin, 1998). No quadro desta perspectiva, saber,
aprender e ensinar são fenómenos complexos.
No âmbito educativo, a perspectiva da complexidade abre novas possibilidades à
compreensão do fenómeno educativo e do sujeito a educar, na medida em que abre
a investigação em educação à imprevisibilidade, instabilidade e à possibilidade
que caracteriza e emerge da realidade educativa nas suas múltiplas dimensões e
processos, oferecendo novos conceitos e instrumentos para uma abordagem mais
compreensiva do campo educativo. Tal como a complexidade, também a educação se
centra nos mecanismos e processos da transformação complexa, na mudança e na
necessidade de adaptação de fenómenos sistémicos, sujeitos à auto-regulação e à
emergência. A teoria da complexidade pode contribuir para que educadores e
investigadores possam alcançar uma melhor compreensão do modo como se pode
intervir de forma efectiva e deliberada num campo que, pela sua natureza, nem
sempre responde de forma previsível, de forma a explorar novas possibilidades
ou possibilidades emergentes, para além das existentes. Neste sentido, deve
centrar-se nos elementos e condições dinâmicas que possibilitam a emergência de
determinadas abordagens e aproximações ao objecto de estudo desenvolvendo novas
possibilidades interpretativas e práticas (Vázquez, 1996).
3. Abordagens emergentes no campo das Ciências Cognitivas e das Ciências da
Educação
Situando-se no âmbito deste quadro teórico de referência, a perspectiva que se
defende inscreve-se em dois eixos de análise que se cruzam e que estruturam a
perspectiva epistemológica que aqui se propõe.
Em primeiro lugar, os progressos feitos nas últimas décadas no campo das
Ciências Cognitivas sobre o entendimento do funcionamento do cérebro humano. A
investigação em Inteligência Artificial, em Biologia Evolutiva e em
Neurociências Cognitivas gerou um novo modelo cognitivo, o qual reconhece a
complexidade dos mecanismos de funcionamento e desenvolvimento cognitivo, assim
como a existência de diferentes dimensões cognitivas, que têm sido
tradicionalmente ignorados ou desvalorizados tanto na investigação científica
como na prática educativa. Alguns destes mecanismos são as emoções e os
sentimentos (Damásio, 2001) e os aspectos biológicos e sociais da cognição
(Maturana, Lópes, Pérez, & Santos, 2003; Varela, Thompson, & Rosh,
1997). Das investigações nestes domínios, emerge a evidência da complexidade e
plasticidade do cérebro e seu funcionamento, tanto em termos evolutivos
relacionados com a espécie, como em termos do desenvolvimento de cada indivíduo
ao longo da vida. Entende-se o cérebro como um órgão dinâmico capaz de aprender
e mudar ao longo de toda a vida. Ao mesmo tempo, dados relevantes de
investigações recentes mostram que a aprendizagem e os processos educativos
formais podem modificar a organização funcional e estrutural do cérebro
(Castro-Caldas, 1998), revelando a importância das experiências e oportunidades
de aprendizagem para o seu desenvolvimento. Estes dados fornecidos pela
investigação científica estão no centro do interesse crescente e na base de
experiências recentes de colaboração entre Ciências Cognitivas e Ciências da
Educação, especialmente no que diz respeito às Neurociências Cognitivas, assim
como no interesse da comunidade científica na exploração das possibilidades de
tal colaboração. São exemplo deste interesse iniciativas de distintas
organizações como o projecto CERI da OCDE, a Harvard Graduate School of
Education, o Learning Lab Denmark, entre outros, que têm desenvolvido esforços
no sentido de criar pontes entre as disciplinas, promover investigação aplicada
à educação e formar professores nestes domínios. Também têm surgido algumas
publicações que revelam a mesma preocupação e que pretendem tornar a
investigação científica disponível para o público em geral e para os educadores
em particular, como é o caso das publicações da OCDE no âmbito do referido
projecto (OCDE, 2002, 2007) ou de publicações de autores como Utah Frith e
Susan Blackmore (2007), ou Brent Davis (2008, 2004), entre outros.
Em segundo lugar, no campo da teoria da educação destaca-se a orientação
progressiva no sentido de um entendimento mais integrador do sujeito da
educação (Bernal, 2002, 2005; García Carrasco, 2007) e da problemática
relacionada com o desenvolvimento das suas capacidades que acentua cada vez
mais a forte base biológica desta ciência, entendida como ciência da
aprendizagem. Estas perspectivas têm-se preocupado em incorporar as contínuas
descobertas no campo das investigações sobre o cérebro reescrevendo e
(re)situando algumas das teorias do desenvolvimento e da aprendizagem que
tradicionalmente estavam na sua base, introduzindo o conceito de complexidade
aplicado à perspectiva sobre o funcionamento do cérebro humano, a cultura e a
educação (Asensio, 1997), daí resultando enfoques inovadores que permitem um
tratamento das questões transversais que atravessam a educação e que fundam a
pedagogia como ciência complexa (Vázquez, 1996; Colom, 2000; Jörg et al.,
2007).
No âmbito de investigação desenvolvida anteriormente, sobre modelos da cognição
dominantes no domínio da intervenção cognitiva (Gonçalves, 2008), a necessidade
de incluir os novos conhecimentos sobre o cérebro e sobre o funcionamento e
desenvolvimento cognitivos tornou-se evidente, no sentido de encontrar teorias
mais compreensivas, capazes de dar conta da complexidade do fenómeno da
cognição e dos processos de aprendizagem que possam estar na base de propostas
de intervenção mais eficazes. No nosso país, destacam-se as lacunas existentes
neste domínio pela ausência de abordagens inter ou transdisciplinares sobre
estas questões e da sua inclusão na agenda das prioridades ao nível da
investigação em educação, assim como no âmbito da formação de professores, tal
como se refere no estudo do CNE intitulado "A educação das crianças dos 0 aos
12 anos" (CNE, 2008, p. 26):
Muitas práticas pedagógicas não têm incorporado aquilo que a
investigação nos diz acerca das crianças: a sua enorme capacidade
para aprender, em áreas e domínios vastos (sociais, emocionais,
cognitivos, linguísticos, motores, etc.); a assumpção de que a
aprendizagem assenta em domínios sociais, afectivos e experienciais;
a importância das interacções com famílias, entre crianças, entre
educadores/professores; as janelas de oportunidade que existem para
certo tipo de aprendizagens durante os primeiros anos
(desenvolvimento comunicacional, competências sociais e de cidadania
activa, curiosidade acerca do mundo, organização ).
Os conhecimentos já existentes sobre o cérebro humano e seu funcionamento abrem
um novo universo de possibilidades no entendimento do sujeito, da cognição e da
educação. A interrogação sobre a dimensão e a natureza dessas possibilidades
corresponde, em larga medida, à questão expressa por Malabou (2004, p. 135):
"Que novos horizontes abrem então os novos cérebros, os novos teóricos do
cérebro?", principalmente no que se refere a um novo entendimento do sujeito da
educação. Este sujeito ' que é plástico6 e multidimensional7 ' é complexo.
Se o sujeito a educar é um sujeito bio-psico-social, as Ciências da Educação
não devem ignorar nenhuma das suas dimensões. A formação do sujeito integrado
(por oposição ao sujeito cindido da modernidade) não pode ser efectiva sem um
claro conhecimento e investimento no desenvolvimento de todas estas dimensões.
Entende-se que estes factos justificam uma abordagem como a que aqui se propõe.
4. A relação entre Ciências da Educação e Ciências Cognitivas
Considera-se, então, que o surgimento de um novo campo do saber constituído
pelas Ciências da Educação e as Ciências Cognitivas está relacionado com: a) a
emergência de um sujeito entendido como plástico e multidimensional; b) as
novas perspectivas sobre a cognição entendida como situada' e corporificada,
em que os aspectos emocionais, sociais e biológicos representam um papel
determinante; c) a necessidade de incorporar uma teoria da mudança que permita
lidar com as múltiplas questões e problemas com que se confronta a prática
pedagógica, que tornam necessários novos paradigmas de investigação e novas
formas de colaboração que ultrapassem as barreiras entre os saberes.
Aplicando os conceitos de emergência e convergência8, utilizados por Mario
Bunge (2004) para explicitar a necessidade de relação entre os distintos
saberes, à realidade educativa, poder-se-á afirmar que a complexidade da
realidade emergente da educação e do conhecimento do funcionamento cerebral
implica a convergência de distintas disciplinas no sentido de abordar os
problemas emergentes no presente. Reconhecer a natureza sistémica de muitos dos
problemas educativos do nosso tempo implica defender e promover a convergência
de vários saberes na tentativa de explicação e resolução desses mesmos
problemas. No caso concreto da neurociência cognitiva, tomando em consideração
que ela originou alguns conceitos ontológicos chave para o entendimento dos
processos educativos, do sujeito da educação e mesmo das instituições
educativas ' como plasticidade neuronal', base neuronal dos processos
mentais' ou arquitectura integrada em paralelo' ', pode facilmente admitir-se
a necessidade da convergência entre disciplinas que se tem vindo a defender, no
sentido de alcançar um melhor entendimento da realidade emergente.
Entendidas neste contexto, as Ciências da Educação devem depender de muitas
outras disciplinas e interdisciplinas porque: o cérebro é plástico e é capaz de
aprender ao longo de toda a vida; o sujeito que aprende é multidimensional e
complexo; o sujeito tem uma vida mental e está inserido em redes sociais
complexas e mutáveis; os seres humanos ocupam diferentes níveis de organização,
desde físicos a sociais, e por isso não podem ser entendidos apenas num só
nível; as Ciências da Educação necessitam de uma base científica que fundamente
a investigação e suporte a actividade dos professores, as suas técnicas e
estratégias de intervenção; a investigação educativa é transversal e, como tal,
exige um esforço considerável, equipas de trabalho eficientes e resultados
efectivos, que sejam reconhecidos socialmente e apoiados pela administração e
pelos governos.
Apesar de alguns cepticismos existentes relativamente aos contributos e
possibilidades que a investigação científica pode oferecer à teoria da educação
(Bruer, 1995, 1997), existem algumas iniciativas que devem ser tomadas em
consideração. Alguns exemplos são: o reconhecimento crescente, por parte dos
investigadores da área das Ciências da Educação, da importância da investigação
sobre o cérebro nas Neurociências
(OCDE, 2002, 2007; Davis et al., 2008); o crescente interesse dos
neurocientistas na investigação sobre os processos de aprendizagem e na
aplicação das novas descobertas (Peters, 2011); o surgimento recente de
iniciativas, publicações e organizações que trabalham com o objectivo de criar
pontes entre as disciplinas em questão: CERI - OCDE; Cambridge University - UK
(Centre for Neuroscience and Education); Bristol University (Neuro-Educational
Research Network); Harvard Graduate School of Education (Mind, Brain and
Education Program); Transfer Centre for Neuroscience and Learning (Ulm,
Alemanha), entre outros.
O reconhecimento da complexidade da realidade educativa e as profundas
transformações sociais, tecnológicas e políticas verificadas nos últimos anos
mostraram a insuficiência dos paradigmas existentes no campo educativo, na
medida em que a sua base fisicista, ou o seu carácter linear, negligencia a
complexidade inerente à realidade educativa e, por isso, não oferece uma
explicação ou compreensão em profundidade dessa realidade. A dimensão dos
desafios que enfrentam os sistemas educativos actuais, juntamente com os
progressos alcançados por algumas ciências no que diz respeito ao funcionamento
e desenvolvimento do cérebro e aos processos de aprendizagem, evidenciam a
necessidade de uma estreita colaboração entre disciplinas. Essa colaboração
deve estar na base de uma aproximação sistémica às questões educativas e
oferecer os conceitos e ferramentas necessários para empreender as mudanças
educativas pertinentes.
No documento da OCDE Understanding the brain: towards a new learning science,
publicado em 2002, a questão é apresentada da seguinte forma: "Quanto mais
aprendemos sobre o cérebro humano, especialmente no que se refere à infância
(aos primeiros anos), menos confortáveis nos sentimos com o modelo tradicional
de sala de aula e do currículo imposto da educação formal" (OCDE, 2002, p. 14).
A complexidade emergente exige novas instituições, currículos, métodos e
conhecimentos. Como refere o documento em questão, deslindar as complexidades
do cérebro humano, entender a natureza da memória e da inteligência e o que
acontece exactamente quando ocorre a aprendizagem são alguns dos principais
objectivos que podem ser alcançados através da colaboração entre Ciências da
Educação e Ciências Cognitivas. Entende-se, para além disso, que essa
colaboração pode ser fundamental para refundar a prática da educação numa
sólida teoria da aprendizagem: "Nomeadamente podem projectar uma nova luz sobre
velhas questões sobre a aprendizagem humana e sugerir novas formas através das
quais a oferta educativa e a prática de ensinar possam ajudar mais aprendizes
jovens e adultos" (OCDE, 2002, p. 27). Neste sentido, tal colaboração pode
também representar uma oportunidade para reorganizar as instituições educativas
e repensar prioridades de investigação.
Como afirma Vázquez (2003, p. 41), "( ) a teoria da educação há-de constituir-
se como uma das ciências da aprendizagem, com forte base biológica, na qual se
vão incorporando as contínuas descobertas no campo das investigações sobre o
cérebro humano". Esta teoria estará ligada ao surgimento de novas teorias sobre
a aprendizagem humana nas suas distintas fases: infância, adolescência,
maturidade, velhice, e em distintos âmbitos: matemática, literacia, entre
outros (OCDE, 2002, 2007).
4.1. Possibilidades emergentes dessa relação
Entende-se que na base da construção da teoria da educação deve estar a
complexidade da realidade educativa. Reconhecer esta complexidade e pretender
intervir e reflectir sobre ela e a partir dela implica abrir novas vias para o
pensamento, criar novos instrumentos para interpretar o real e integrar novas
linguagens e discursos complementares, mais além de dualismos e reducionismos.
Pensá-la a partir da perspectiva da possibilidade, fundada no campo da
experiência vital dos sujeitos, requer, para além do mais, criar um espaço
epistemológico para o qual possam convergir diferentes contributos e abordagens
e a partir dos quais possam ser pensadas as dramáticas transformações do espaço
social e cultural em que vivem e convivem os sujeitos e no qual ocorrem
evoluções culturais e tecnológicas. A sua lógica, longe de ser linear
(acumulativa) traduz-se num fenómeno exponencial (auto-amplificador), cujo
alcance e consequências não podem ser vistos a partir de perspectivas lineares
ou de instituições formais mal preparadas para lidar com a incerteza e a
imprevisibilidade. Dentro deste marco conceptual, entende-se, com Jörg et al.
(2007), que a relação entre Ciências Cognitivas e Ciências da Educação é de
natureza transdisciplinar e interdiscursiva.
Um sistema complexo pode ser definido como: composto por um grande número de
componentes em interacção (agentes, processos, contextos, etc.); cuja
actividade é não-linear; que é mais do que a soma das componentes individuais;
e que se caracteriza pela auto-organização (Rocha, 1999). Considera-se que
pensar no quadro do paradigma da complexidade implica pensar dentro de uma
dinâmica não-linear e no quadro de relações, sobre estruturas e formas dos
processos, e na estrutura da causalidade ao longo do tempo (epigénese). Neste
sentido, trata-se de uma noção suficientemente abrangente, flexível e
articuladora que gira em torno da tendência humana para pensar sob a forma da
associação, preservando, e não dissecando, a integridade dos fenómenos
estudados ao nível da sua emergência.
Entende-se aqui transdisciplinaridade como unificação através da fusão (Bunge,
2004), e não da redução de diferentes procedimentos, métodos e dados
científicos, o que implica também novas metodologias e novas instituições de
investigação daí a dimensão prática da perspectiva em causa. Este enfoque
funda-se em teorias da complexidade, utiliza instrumentos de pensamento
transdisciplinares e incorpora uma teoria da mudança, para entender a evolução
dos sistemas complexos. Por interdiscursividade entende-se a necessidade de
conjugar diferentes discursos para um melhor entendimento das possibilidades
humanas.
Através desta perspectiva torna-se possível pensar a realidade da aprendizagem
e da educação em termos de espaços de possibilidade, na linha do definido por
García Carrasco (2003), inspirado em Vigotsky, como zona de construção do
sujeito, e de potencialidades de aprendizagem e desenvolvimento para os
aprendizes: "Os complexos e tortuosos caminhos da aprendizagem podem ser
retratados como trajectórias temporais de aprendizagem nesses espaços
transitórios multidimensionais" (Jörg et al., 2007). Trata-se, em suma, de
reinventar e transformar a descrição e explicação do fenómeno da aprendizagem
numa nova e mais rica realidade. Neste sentido, o que se pretende é fundar uma
ciência da aprendizagem mais compreensiva, baseada num novo léxico da
complexidade e que inclua conceitos transversais como interactividade,
conectividade, generatividade, complexidade, entre outros.
Existem, neste campo, alguns riscos e obstáculos a ter em conta na construção
de tal teoria. Alguns dos mais relevantes estão relacionados quer com as
condições de emergência da reflexão e da prática da transversalidade no campo
concreto da relação entre Ciências da Educação e Ciências Cognitivas, quer com
a forma como os diferentes discursos e práticas ou modelos de investigação
podem ser conjugados.
Como referido noutro lugar (Gonçalves, 2009), no quadro dessas dificuldades ou
obstáculos, a possibilidade de uma abordagem transdisciplinar dos fenómenos
educativos depende da capacidade de: integrar o novo léxico da complexidade e
criar um léxico comum, definindo e integrando conceitos das diferentes
ciências; estabelecer novas prioridades e instituições de investigação; abrir o
debate a outras disciplinas, distinguir o que está bem estabelecido, o que é
provável e o que constitui um mito sobre o funcionamento do cérebro e os
processos de aprendizagem; promover a aplicação prática do conhecimento
neurocientífico; promover a investigação baseada nos problemas originários da
prática educativa e da pedagogia; estabelecer uma metodologia comum.
Dificuldades de outra natureza estão relacionadas com a defesa da criação de
uma nova ciência da aprendizagem, a qual se considera que é susceptível de
levantar algumas questões que é necessário ter em conta. Tanto os documentos da
OCDE (2002, 2007) que têm vindo a ser referidos, como as perspectivas de Jörg
et al. (2007), relacionam a abordagem transdisciplinar da educação com o
surgimento de uma nova ciência da aprendizagem, mais compreensiva e integradora
dos diferentes contributos disciplinares com ela relacionados. No entanto, nem
sempre a forma como é abordada e apresentada essa nova ciência corresponde a
uma abordagem complexa e sistémica dos fenómenos em causa. Neste sentido, será
necessário chamar a atenção para o perigo de alguma precipitação neste campo e
para os riscos de simplificações redutoras.
Partindo da consciência da complexidade da realidade educativa e da natureza
sistémica do funcionamento cerebral e mental dos indivíduos, considera-se que o
termo transdisciplinaridade', como contraponto do termo mais comum
interdisciplinaridade', representa mais uma refundação ou renovação da teoria
da educação como teoria da complexidade. Como tal, deve ser referida a uma
atitude de investigação entendida como abertura do campo de investigação
educativa a diferentes discursos que permitam e fundamentem cientificamente uma
visão mais integradora do sujeito da educação e que vão progressiva, mas
cautelosamente, contribuindo para pensar os aspectos e dimensões em que essa
colaboração se pode tornar efectiva e frutífera.
A transdisciplinaridade é, neste sentido, entendida como forma de investigação,
que confronta e faz convergir num mesmo projecto diferentes perspectivas e
preocupações disciplinares em função da resposta a questões que são comuns.
Partindo desta perspectiva prática, pode falar-se de uma nova ciência da
aprendizagem que evite alguns riscos de redução, presentes em termos ou
conceitos como brain-based-learning' ou brain-based-education'. Estes termos
podem ser entendidos como mera programação neuronal ou cognitiva e
simplificados e instrumentalizados ' o que parece estar já a acontecer em
alguns casos. Uma perspectiva transdisciplinar da educação, entendida desta
forma, possibilitará e fomentará o surgimento de estudos transdisciplinares e o
seu desenvolvimento e multiplicação no futuro.
5. Conclusões
Um modelo baseado no paradigma da complexidade e no modelo do funcionamento
cerebral, como órgão por excelência da complexidade, recusa necessariamente
perspectivas redutoras sobre a relação entre as ciências e entende a relação
das neurociências com a educação como uma relação bidireccional, que oferece
bases para uma sólida teoria da aprendizagem, organizado em torno de questões
fundamentais e orientado pela e para a prática educativa.
Esta viragem epistemológica representaria a superação de algumas dicotomias que
têm condicionado a reflexão sobre a educação: a dicotomia teoria/prática,
vistas como duas noções antagónicas, e a dicotomia natureza/cultura,
normalmente tematizadas como genética versus formação do comportamento através
das influências do meio. A superação da primeira torna-se, não só possível,
como necessária, na medida em que se entendem como duas formas de prática que
integram, ambas, actividade prática e actividade de reflexão (García Carrasco,
2003). A segunda é superada pelo novo entendimento do sujeito enquanto unidade
psicossomática proporcionado pela decifração do genoma humano (com todas as
suas limitações) e pelo progresso das neurociências.
A complexidade sistémica instaura uma série de níveis de análise necessários
para a compreensão do ser humano enquanto sujeito individual, social,
comunicacional e como multidimensional, tanto ao nível bio-psicológico, como
cultural e social, em que é necessário ter em conta as relações entre os
diferentes elementos e níveis do sistema. Ao mesmo tempo, o sujeito como
sujeito da plasticidade, que se constrói com e através da sua história, em
contextos culturais e sociais concretos e segundo uma temporalidade própria,
implica uma teoria da mudança que seja compreensiva relativamente aos processos
de construção do sujeito em todas as suas dimensões, e de acordo com as
variáveis espaço e tempo. A compreensão da trama em que se tece a construção do
sujeito necessita ser entendida, por um lado, nas práticas de uma comunidade e,
por outro, através de comunidades de prática investigadora, ou comunidades de
investigação. Entende-se que a forma como se desenvolverem os trabalhos e como
evoluir este tipo de organizações será decisiva para a investigação
transdisciplinar e definirá o futuro da investigação aplicada no campo das
Ciências Cognitivas e das Ciências da Educação. Permitirá também pensar e
fomentar novas formas de organização e de colaboração.
Promover o desenvolvimento de iniciativas que permitam fomentar o trabalho
colaborativo e criar pontes entre as disciplinas, que funcionem como mecanismos
que permitam avançar no estudo da mente e do cérebro e também da educação,
apresenta-se como uma necessidade. A colaboração poderá ser benéfica tanto para
educadores como para neurocientistas, na medida em que podem explorar novas
perspectivas e alargar o horizonte a partir do qual podem ser colocadas e
respondidas questões importantes sobre a forma como aprendem os seres humanos.
Será importante discutir-se os mecanismos necessários para promover essa
colaboração e definir os âmbitos em que pode vir a ser aplicada proximamente.
Algumas áreas, como a formação de professores (Ansari, Coch, & Smedt,
2011), de investigadores (OCDE, 2007) e o estabelecimento de novas iniciativas
de colaboração, devem ser prioritárias (Gonçalves, 2009). A conjugação de
metodologias diversas e de múltiplos níveis de análise em diferentes contextos
deve ser integrada por numa abordagem compreensiva e transdisciplinar dos
fenómenos em estudo. A discussão sobre as distintas perspectivas metodológicas
e conceptuais implicadas nessa colaboração poderá constituir um importante
instrumento para refinar e redefinir o papel e natureza das ciências no futuro
e determinar a necessidade de uma nova ciência que conjugue as diversas
dimensões e perspectivas.
Recentemente, o desenvolvimento e consolidação de um campo interdisciplinar
designado como "Educational Neuroscience" tem sido reconhecido
progressivamente. Segundo Patten e Campbell (2011), este campo envolve sínteses
de teorias, métodos e técnicas das neurociências, enquanto aplicadas e
enquadradas pela investigação e prática educativas, que inspira e é inspirado
por questões e problemas emanados do contexto educativo. As investigações
desenvolvidas nesta área têm tido aplicações em âmbitos educativos tão diversos
como o ensino da matemática, a literacia, a formação de professores, o design
de ambientes de aprendizagem, entre outros. Existe uma grande diversidade de
investigações e perspectivas neste domínio, assim como de iniciativas
desenvolvidas. No entanto, o objectivo último deste campo de investigação é o
de contribuir para melhorar o ensino e a aprendizagem. Formar uma nova geração
de profissionais e investigadores em educação e reconciliar as novas
descobertas em neurociências com as teorias estabelecidas, seja através da
validação de práticas pedagógicas vigentes ou da promoção de novas práticas,
constitui um desafio que deve conjugar esforços de todas as áreas científicas
envolvidas. Ajudar os professores a tornarem-se conhecedores das questões e
conhecimentos das neurociências e suas implicações nas suas práticas
profissionais, assim como contribuir para que os neurocientistas se
familiarizem com as questões e problemas relacionados com a prática de sala de
aula, são das tarefas mais importantes a desenvolver no futuro.
A Biologia Evolutiva (Lewontin, 1998) e do Conhecimento (Capra, 1998) podem
também representar um contributo importante para repensar as questões
evolutivas relacionadas com a cognição e a aprendizagem, ultrapassando a ideia
tradicional de um desenvolvimento natural', linear e previsível, cuja
influência continua a fazer-se sentir em educação. Estes domínios do saber
configuram abordagens sistémicas e complexas do desenvolvimento fundadas numa
perspectiva da evolução dos sistemas vivos como sistemas complexos, isto é,
auto-organizados, emergentes, abertos em suma, plásticos.