Vinho: práticas, elogios, cultos e representações em questão na sociedade
portuguesa
Vinhos: práticas, elogios, cultos e representações em questão na sociedade
portuguesa
A importância do vinho na vida dos homens, nas sociedades e na vida em
sociedade, tem atravessado os tempos, a maior ou menor velocidade, consoante o
curso do dinamismo social.1
Abordar o vinho implica, por conseguinte, abordar as suas práticas
correspondentes as práticas vínicas que se vêm alicerçando ao longo dos
tempos, muito embora os usos que delas se façam sejam passíveis de evidenciar
tendências diferentes consoante trajectórias sociais, representações
construídas e apropriações inerentes. Daqui derivam quer cultos e elogios, quer
proibições e punições em torno do consumo de um bem que, para além de
económico, se tornou social. É esta vertente que neste momento mais tem
canalizado o nosso olhar sociológico. Por inerência, importam-nos
particularmente rituais, especificidades e artes a ele associados, porque de
uma obra de arte iremos tratar.
Não será traçada aqui, no entanto, uma retrospectiva da história da feitura dos
vinhos nem do seu percurso económico/comercial; iremos, sim, abordar aspectos
sociais inerentes à prática vínica. E porque o campo vínico é vasto, sentimos
necessidade de o delimitar. Nasce assim uma incidência particular no vinho do
Porto ao longo desta breve apresentação.
Um recuo no tempo e um esboço de mudança
O vinho do Porto é por si só um bem que se tornou cultural em Portugal. Fazendo
parte da nossa história, atravessou-a e irradiou-se para o exterior,
nomeadamente através do papel destacado da Inglaterra, em primeira instância.
Por conseguinte, é inegável o seu contributo a nível económico. Desta feita,
dir-se-ia que o vinho do Porto é um braço significativo não só da história
geral de Portugal, mas especificamente da sua história económica e mesmo da
história sociocultural, apesar de ter integrado um consumo de mais elevado
quantitativo no exterior do que no próprio país de origem,2 facto que se
reflecte a vários níveis. Convém lembrar, por exemplo, que, se todo o português
sabe que o vinho do Porto é um vinho de origem portuguesa, já não é do
conhecimento geral a importância da Região Demarcada do Douro para a sua
produção, resultando daqui um vinho cuja denominação é de origem controlada. De
igual forma, se genericamente se pode falar em "reconhecimento" da
qualidade e originalidade do vinho do Porto, apenas particularmente esse
reconhecimento social que lhe é inerente coincide com um
"conhecimento" real, factual, que se estende a marcas e tipos de
vinhos do Porto, harmonizações, contextos, enfim, a famílias desses vinhos.
Com isto queremos fazer referência quer a um certo hermetismo para o qual foi
empurrado o conhecimento-consumo de determinados tipos de vinho do Porto, quer
uma quase banalização relativamente ao consumo de outros tipos de vinho do
Porto. Entre uma e outra situação constata-se, até uma época recente, um maior
consumo no exterior do que em Portugal, único país de origem legítima para
produção do Vinho do Porto. Neste contexto, vale a pena lembrar o facto de o
vinho do Porto ter sido mais procurado, mais conhecido e mais consumido em
alguns países do estrangeiro, em anos que recuam, no mínimo, ao início do
século, nomeadamente em Inglaterra, país onde "se bebe em muito maior
escala e ( ) de muito melhor quilate que no país de origem".3 Note-se, a
este propósito, o facto de, então, o português beber essencialmente vinho
económico; o bom vinho, o mais dispendioso e de melhor qualidade era, por
excelência, voltado para o mercado externo.
Em 1935, escrevia Valente-Perfeito: "Nos países produtores de vinhos de
mundial renome, na França, em Espanha, na Alemanha, os melhores vinhos ( ) são
justamente apreciados e amplamente consumidos pelos naturais desses países,
ciosos das suas próprias riquezas. No nosso (Portugal), doloroso é confessá-lo,
contam-se quasi pelos dedos os verdadeiros apreciadores e entendedores do vinho
do Porto. " E mais à frente acrescentava a propósito do consumo em
Portugal: "País essencialmente vinícola, produtor dos dois melhores vinhos
licorosos que a Terra cria, e possuidor duma incomparável gama de vinhos de
consumo ( ), Portugal oferece o triste espectáculo de ser o mais pobre
consumidor das suas próprias riquezas."4
Não obstante esta situação, é inegável, sempre o foi, o valor altamente
simbólico de que goza o vinho do Porto, funcionando em primeiríssima instância
como uma espécie de carta de apresentação ou mesmo como bilhete de identidade
do país de que é originário. Pese embora o registo declinante da exportação do
vinho do Porto,5 este funciona ainda hoje como um símbolo verdadeiramente
representativo de Portugal, enquanto país de origem. Mais do que exportar-se o
produto, exporta-se a fama deste produto, cujo prestígio do bom nome é já por
si uma porta aberta ao reconhecimento do vinho, do Porto, de Portugal. Trata-
se, enfim, de uma garantia identitária onde espaço e cultura se dão as mãos
para valorizar um país expandindo a sua imagem de pequeno rectângulo à beira-
mar plantado. No dizer de François Guichard, e através duma "estratégia de
comunicação geral, ( ) da mensagem Vinho do Porto = Portugal' foi natural
passar à valorização da mensagem complementar, Portugal = país do Vinho do
Porto', sobretudo a partir dos anos cinquenta".6
Actualmente é mesmo visível uma mudança significativa no que respeita ao
consumo interno deste produto: Portugal é hoje o terceiro mercado a nível de
consumo de vinho do Porto quer em termos globais, quer em termos das categorias
especiais. Trata-se, por conseguinte, de uma situação nova e inesperada se se
recuar algumas décadas, dado assistir-se à qualificação dos consumos no país,
isto é, à valorização da qualidade e categoria do vinho do Porto escolhido para
consumo.
Práticas e representações sociais em torno do consumo do vinho do Porto
É ponto assente que a sociedade portuguesa em geral tem vindo a ser palco de
mudanças a nível socioeconómico, cultural e político nas últimas décadas, com
particular intensidade a partir de 1974. Essas mudanças, generalizadas, de
certa forma paulatinas mas não lineares, têm tocado o quotidiano dos
indivíduos, sendo passíveis de constatação quer através da evolução de
representações, quer através da observação das práticas desenvolvidas pelos
agentes sociais nas últimas décadas na sociedade portuguesa. Neste contexto de
mudança, ganharia interesse então questionar-se o consumo do vinho do Porto em
Portugal, que, num contexto alcoólico mais geral, não é o que mais se destaca.
Tratar-se-ia, certamente, de uma situação com tendência a mudar, não fosse a
invasão quase violenta de bebidas destiladas cerveja, gim, uísque e vodca,
maioritariamente que com ou sem mistura vão funcionando a priori como
iniciadores extrafamiliares, e como pilares sociais a posteriori, em locais
públicos, onde a extroversão inerente à bebida se coaduna com a extroversão
proporcionada pela ocasião e pelo contexto. Esta situação, especialmente
visível nas franjas adolescentes e pós-adolescentes, liga-se à sua tendência
para consolidar suas práticas de consumo em torno de bebidas que não funcionam
tanto como marcadores sociais de base classista, mas muito mais como marcadores
identitários duma fase de vida onde, de forma provisória e parcial, se atenuam
distinções de contornos classistas. A ascensão socioeconómica de que são alvo,
nos dias de hoje, adultos jovens terá decerto algum tipo de ligação a esta nova
vivência, que não raro vai sendo preparada ainda nos bancos da escola.7 Veja-
se, por exemplo, e é este que mais nos interessa, o caso dos estudantes
universitários, porquanto privilegia simbolicamente o vinho do Porto, que
actualmente se encontra integrado nas praxes académicas da Invicta. É assim
que, na semana dos festejos da recepção do caloiro, se destaca uma tarde que
poderá ser entendida como o primeiro momento (extrafamiliar) com carácter
ritualista, para iniciação ao vinho do Porto. Nessa tarde, o programa destina-
se à visita das caves do vinho do Porto (nomeadamente às da zona ribeirinha), e
à prova do vinho do Porto note-se que o objectivo da visita é precisamente a
prova. Numa outra tarde, os "doutores" conduzem os caloiros para a
Praça da República, onde, perante a estátua do deus Baco, os estudantes são
"convidados" a adorá-lo. Este programa, já oficializado da praxe
académica, aparece interligado à adoração do Deus Baco e constitui por si só um
autêntico ritual de iniciação. Toda a praxe é uma iniciação à vida de
estudante, por conseguinte inicia-se o estudante ao gosto que é ele próprio
socialmente construído 8 e ao consumo de álcool que, a posteriori, se focaliza
essencialmente na cerveja e no vinho carrascão, não se sedimentando a iniciação
na prática circunscrita ao vinho do Porto. "A pressão para beber é tão
grande que chega a ser difícil gerir este aspecto por parte daqueles que aderem
à praxe mas não se identificam com o consumo alcoólico. Isso é tanto pior
quanto mais masculinizadas são as faculdades, como é o caso de
engenharia", diz-nos uma licenciada, remetendo as suas ainda recentes
lembranças para um tempo académico bem vivido. Como nota de curiosidade, veja-
se o que nos diz a Lei da Praxe a propósito: "Nenhum aluno pode ser
apanhado fora de telha depois das 21 horas, senão é praxado; a não ser que
esteja sob a protecção do deus Baco, ou seja, esteja alcoolizado."9
Apesar dos salpicos iniciadores que aqui e ali se vão verificando, com carácter
mais ou menos oficializado, continua-se a assistir a uma situação em que o
vinho do Porto se vê empurrado para um contexto mais privado, onde um consumo
bem localizado no tempo festas natalícias, pascais, aniversários, e similares
tem raízes prioritárias numa celebração com um tipo de vinho do Porto cuja
qualidade se fica essencialmente pela média. Ou, ainda a este propósito,
assiste-se dentro de portas, ao endeusamento do vinho do Porto através de uma
garrafa supostamente de elevada qualidade, por inerência aos largos anos a
"apanhar pó" na prateleira à espera do Dia D: para ser encetada a
pretexto de alguma comemoração especial, ou para ser herdada, e assim continuar
o seu percurso estacionário no espaço e virtualmente dinâmico no tempo. Por
outras palavras, é tido como verdadeiro pelo senso comum que o vinho do Porto é
tanto melhor quanto mais velho for, contribuindo para que se tracem cenários
perfeitamente reais, e os quais todos conhecemos pelo menos um ou dois casos,
em que as famílias "guardam" uma determinada garrafa de vinho do
Porto de média qualidade nem sempre tratando-se de um vintage10 "à
espera" que ele envelheça na própria garrafa, e na prateleira do seu
próprio bar, para então, tornada já uma "relíquia", uma "obra de
arte" virtual, diríamos, ser aberta no casamento da filha, no baptizado do
neto ou no funeral da sogra. Neste contexto e segundo J. C. Valente-Perfeito,
este axioma nem sempre se aplica, caindo por terra uma boa parte das vezes. É
que nem sempre, segundo o autor, se reúnem as condições óptimas para que isso
aconteça. E as condições óptimas para o processo de maturação do vinho têm a
ver, na sua essência, com a própria estrutura organoléptica do vinho, isto é,
com um equilíbrio perfeito entre os elementos que o constituem, desde a
natureza do solo, clima, cepa, ano de produção entre outros, cuja combinação
implica um determinado sabor e uma determinada cor. Confundir-se a qualidade do
vinho do Porto com a sua idade é, segundo o autor, mero preconceito,
evidenciando uma certa ignorância a respeito, uma vez que há o perigo real do
vinho entrar em decomposição a partir do tempo. "A velhice não constitui,
portanto, para os vinhos como para o homem, índice geral de qualidade", já
que "a idade não corrige o que é mau; melhora o que é bom". Gera-se
assim, uma espécie de confusão vínica que culmina numa forte sensação de perda
quando, na suposta celebração, se constata comemorar-se com zurrapa em vez do
néctar domesticamente "refabricado" por uma espera paciente através
do tempo. Note-se que "se o vinho não fôr origináriamente constituído por
forma a beneficiar da acção do tempo, só será prejudicado pela idade. Por
outras palavras: um mau vinho não só não melhora com a idade, como se torna
pior à medida que os anos vão passando".11Contudo, se "( ) a idade
nem sempre é indício de qualidade no vinho do Porto, não é menos certo que o
processo de evolução do vinho generoso do Douro reclama um período de tempo
mais ou menos longo. O prazo necessário ao seu desenvolvimento é função de
vários factores, tais como teor alcoólico, corpo, ácidos, etc."12
(Re)conhecimentos plurais: simbolismos, apropriações e rituais
Como não poderíamos deixar de referir, o vinho do Porto tem tido um papel
crucial em contextos vários, desde o religioso ao histórico, político e
económico, medicinal, lúdico e social. E porque o seu consumo se reveste de
toda uma prática mais ou menos complexa, consoante variáveis que adiante serão
levadas em consideração, não poderíamos deixar de ter em linha de conta as
simbologias inerentes a esta prática, sobre as quais já fomos levantando o véu
e das quais fazem parte elogios e cultos que se revestem de autênticos rituais
e que compõem uma verdadeira arte. Não obstante evoluções/reconversões
verificadas a nível de escolhas alcoólicas, mormente a forte invasão de bebidas
destiladas, como já foi anteriormente referido brevemente, não deixa de ser
verdade a própria mudança operada a nível do consumo do vinho do Porto entre a
população portuguesa. Como refere António Barreto, "os Portugueses têm
vindo a descobrir o vinho do Porto!".13 É assim que as representações não
só sobre o acto de o beber, como também sobre o saber bebê-lo se apresentam com
um peso simbólico extraordinário, susceptível de fomentar uma espécie de
vontade de adquirir uma competência prática genuína no seu manuseamento, ou,
pelo contrário, um forte apelo à sua ignorância. É no primeiro caso que nos
situaremos, pois é esse o que melhor poderá representar o que chamamos tratar o
vinho do Porto por tu. E, como se pode perceber, há várias formas possíveis de
se tratar por tu o vinho do Porto.14
A forma como os confrades ritualizam a sua ingestão é uma maneira de o tratar
por tu. Em contrapartida, o modo como na taberna do Jaime (Gaia) se bebe o
vinho do Porto ao copo é outra via, inquestionável também, de o tratar por tu.
Como se pode perceber, ambas são formas legítimas de manusear o Vinho do Porto
porquanto, e apenas, contextualizadas. Ambas revelam uma apropriação do
produto, um à-vontade e uma certa perícia que vai desde a forma como se verte
Vinho do Porto no cálice/copo à forma como ele desliza do cálice/copo para o
corpo. É aqui que tem cabimento repescarem-se dois conceitos já apresentados no
início: conhecimento versus reconhecimento. Se por conhecimento se entende uma
apropriação directa, um acto real do próprio, já o reconhecimento tem implícito
apenas um conhecimento por interposta pessoa, grupo ou meio social, isto é, um
conhecimento não do próprio, mas através de outrem, apesar de reconhecido
simbolicamente como legítimo pelo próprio.15 Assim, sem que se conheça de
facto, reconhece-se que o vinho do Porto X16 é de elevadíssima qualidade, por
exemplo; assim como, sem a necessidade da prova, reconhece-se que quanto mais
caro melhor será o vinho do Porto. Vemos assim incontestável uma dupla ideia: o
tempo e o preço do produto aqui em questão, nos seus valores mais elevados,
funcionam como garantias "reconhecidas" (mesmo quando nem sempre
conhecidas) da sua boa qualidade e de se estar perante uma obra de arte. Para
esta situação, não será, decerto, indiferente o contributo de outros factores
dos quais a raridade do produto é apenas um exemplo. O caso do Noval Nacional
pode ilustrar esta situação dado que a raridade do produto é, ela própria,
factor de (re)conhecimento qualitativo. A avaliação feita por revistas
especializadas, como Wine and SpiritsouWine Spectatortem como consequência
quase imediata o esgotamento dos stocks altamente pontuados como foram os casos
do Fonseca 94e Taylor's 94,tendo sido, nesta última revista, atribuídos 100
pontos a cada um (o máximo de pontos possíveis). Hoje em dia, assiste-se assim
a uma avaliação da qualidade em torno do vinho do Porto cuja pontuação elevada
pelos círculos da especialidade, bem como a sua relativa raridade, contribuiu
fortemente para uma requalificação do seu consumo em termos de obra de arte.
Isto traduz-se, por sua vez, numa melhor posição do próprio mercado português
no que respeita ao consumo do vinho do Porto, como já referimos anteriormente.
Voltando, então, à especificidade de contextos diferentes, o que acontece nos
dois acima apresentados confrarias versus taberna do Jaime e equivalentes é
um perfeito conhecimento interno a cada um e um desconhecimento, relativo ou
absoluto, em contexto alheio, que se reflecte no próprio gosto. Isto é tanto
mais verdade quanto estivermos perante rituais apreendidos por interiorizações
automáticas, transformadas em competências práticas que fazem render no momento
certo e no sítio certo, e que desfavorecem e estigmatizam em contexto de
acolhimento inadequado. Por exemplo, o uso do recipiente errado para receber o
néctar divino é socialmente penalizado em contexto social de rigor. Há, também
a este nível, todo um ritual que ou é transmitido oralmente via socialização na
família onde a aprendizagem informal é garantida pela interiorização dos
aspectos parcelares inerentes à prática global e exteriorizada por automatismos
que se tornam imediatos,17 ou, na sua ausência, a apreensão destas práticas é
adquirida através duma educação formal, para a qual contribuem, crescentemente
nos dias de hoje, a difusão dos meios de cultura enológica (sendo a literatura
especializada apenas um deles) com função, entre outras, de educar a clientela
virtual de forma a que as raízes criadas pelo uso repetido fidelize essa mesma
clientela, que é nova enquanto tal, à prática proposta. Forçoso será ter em
linha de conta a "explosão das classes médias nos países industrializados
e dos grupos sociais dirigentes (que) criou novos clientes" para o vinho
do Porto, "vinho com tradições seculares, supostamente símbolo de bom
gosto aristocrata. A sede de status e de consideração social também se mata com
vinho do Porto!"18 Não se confunda, no entanto, fidelização a esta prática
motivada, não raro, por desejos de ascensão social, de concretização real ou
virtual com fidelização de clientela a uma determinada marca ou a um
determinado vinho do Porto. Não seria, no entanto, pertinente enveredarmos por
aí neste tipo de apresentação.
É óbvio que não estamos perante os dois únicos contextos possíveis de
acolhimento do vinho do Porto, pois entre um e outro, poderíamos apresentar uma
série de cenários possíveis. Iremos, no entanto, simplificar, ficando-nos
apenas por um vasto, e por conseguinte heterogéneo, contexto. Assim, entre um e
outro iremos abordar agora um contexto trivial, isto é, um contexto de
acolhimento de consumo de vinho do Porto no seio das famílias, no quotidiano.
E, a propósito disto, iremos abordar mudanças, práticas ou simbólicas, reais ou
virtuais.
Não percamos de vista que não nos situamos nos (dis)sabores provocados por um
excesso de álcool que se repercute nas dimensões várias que circunscrevem o
próprio indivíduo, desde a família, o trabalho e o lazer, por exemplo; não
deixa de ser curiosa, no entanto, uma certa contradição, que situaríamos num
campo balizado pela história e pela economia, entre o interesse em fomentar as
vendas e o consumo, por um lado, e as novas exigências legislativas que levam à
execução de fortes sanções em indivíduos que violam a taxa de alcoolemia
permitida por lei, por outro lado. Não é, contudo, este tipo de patamar de
apropriação que nos interessa neste momento.
Alguns cenários do quotidiano
Pelo que foi dito anteriormente pode aceitar-se que o vinho do Porto não é uma
bebida de consumo diário para a grande maioria das famílias portuguesas, nem
uma bebida que combine com espaços amplos e ruidosos como o são, por exemplo,
as discotecas e similares. De acordo com estereótipos dominantes, o vinho do
Porto não combina com um ritmo de vida acelerado; pelo contrário, ter em
atenção a sua vertente de culto, obriga a um cenário de acolhimento intimista,
requintado, distinto e, por conseguinte, coadunado com um determinado estilo de
vida. Há todo um clima emocional transferido para o momento que se deseja de
partilha escolhida, assim como há todo um despojamento de si que inebria o
próprio ambiente com o carácter prioritariamente atribuído ao vinho do Porto:
elegância, calma, requinte e distinção. Neste cenário impera uma determinada
atitude comportamental que se prolonga da compra desse bem ao seu consumo: num
determinado espaço, com determinada companhia, num determinado tempo; referimo-
nos, enfim, a um quadro alimentar específico que torna possível este cenário,
que se pode considerar familiar.19 Note-se que, no seio das famílias, é
precisamente o quadro alimentar, no que respeita à integração do vinho do
Porto, que faz variar os cenários domésticos. É evidente que a relação que as
famílias estabelecem com o vinho do Porto é variável. Tendo em linha de conta a
presença dum contexto de "vivência plural e multifacetada evidenciada nas
práticas, consumos e opções dos indivíduos",20 não é, contudo, impossível
encontrarmos um traço comum que, com maior ou menor rigor, nos permita falar em
grandes tendências. É assim que, se, por um lado, é legítimo falar-se em
democratização do consumo do vinho do Porto é aceitável a existência de uma
garrafa de vinho do Porto na maioria dos lares portugueses, ainda que o seu
consumo se fique, potencialmente por uma ou duas garrafas-ano 21 por outro, há
que não confundir essa democratização, que se traduz num alargamento da
conquista de clientela, com uma clientela especializada, entendida e defensora
do ritual confradiano imputado aos elevados tipos de vinho do Porto, ou, aos do
topo da gama. O que queremos dizer com isto é que, apesar de tudo, o consumo
sistemático e frequente de vinho do Porto nas famílias parece estar ainda longe
de fazer parte da ordem do dia; há mesmo certas reservas em adquirir-se uma
garrafa de vinho do Porto topo de gama para um consumo diário, ou quase, na
generalidade das famílias portuguesas, excluindo alguns círculos perfeitamente
integrados nestes meandros.22
Ainda no que respeita à democratização do vinho do Porto, valeria a pena
referir-se, ainda que brevemente, a grande quantidade de marcas e tipos deste
vinho de gama diversa, nos hipermercados, locais de consumo adequados a um
estilo de vida moderno e urbano, permitindo num curto período de tempo
adquirir-se uma vastíssima gama de produtos diferenciados para o lar. A
aceleração da vida moderna obriga a uma economia de tempo. Por conseguinte,
opta-se, com uma frequência significativa, por se adquirir no mesmo local onde
se compram outros bens domésticos hipermercado , a garrafa de vinho do Porto
que se necessita, seja para consumo próprio, seja para oferta. Aí, ao contrário
do que acontece nas lojas tradicionais para o efeito, que ainda vão
permanecendo nas (grandes) cidades, a escolha é presidida, nas mais das vezes,
por uma autogestão que privilegia essencialmente o preço como garantia da
qualidade, tal como já demos conta anteriormente. Enquanto na loja manda a
tradição, a relação pessoal estabelecida entre vendedor e cliente permite a
simulação de uma intimidade compatível com a intimidade proporcionada por uma
prática requintada e interiorizada por um (re)conhecido ritual inerente ao
vinho do Porto. É assim que, nos dias de hoje, a loja tradicional, de
preferência com vendedores antigos e de gestos também tradicionais, e inclusive
a própria garrafeira enquanto loja especializada, cumprem uma função social de
elevado significado: os ensinamentos, a educação, a cultura vínica, que o
vendedor especializado esteja apto a fornecer a um cliente que, por força das
circunstâncias, mormente constrangimentos sociais, tenha necessidade de entrar
a fundo no mundo consumista do vinho do Porto. Quando levado ao pormenor,
assiste-se mesmo a uma quase antepreparação para o ritual que se pretende
conhecer e dominar. Capitalizam-se, então, sempre que possível, conhecimentos
reais sobre as combinações permitidas entre o tipo de vinho do Porto e o local,
a hora, a companhia, etc., isto é, com o quadro alimentar legítimo ou tido como
tal. Neste sentido, considera A. Teixeira Fernandes que "a escolha dos
vinhos e o seu uso obedecem ( ) a um ritual. Cada bebida está sujeita a regras
e a modalidades próprias de utilização. Há momentos adequados, assim como
lugares específicos para ser tomada. Obedecem ainda a rituais próprios. Uma
ordem convencional regula o seu consumo. É não só um consumo cultural, como
ainda um complexo cultural."23 Acresce ainda o facto de que o vinho, e
nomeadamente o do Porto, não é só para se beber paulatinamente, é também para
se cheirar. Assim, quando o recipiente se proporciona, cumprem-se as duas
funções em simultâneo: saboreia-se a bebida e saboreia-se o cheiro. E isto faz
parte de um ritual, conhecido por uns, reconhecido por outros, imitado por
alguns e de todo desconhecido pelos demais. E como tal, uma vez interiorizado,
adquire visibilidade através da prática que não é outra coisa senão uma
exteriorização cultural e também social.
Não deixa de ser interessante verificar-se que o facto de haver vinhos do Porto
cuja abertura da garrafa obriga à sua ingestão total, sob a pena de o alterar,
dadas as suas características organolépticas, não se reflecte num conhecimento
generalizado à população. Antes, pelo contrário, a atitude típica que se
verifica é a de a abertura da garrafa do vinho do Porto não coincidir com o seu
esvaziamento imediato, que se vai alastrando no tempo, podendo ali estar meses
seguidos. Também a trasfega do vinho do Porto da sua garrafa de origem para um
recipiente próprio (o decanter), não é comum para a maioria das famílias.
Estamos perante actos diferenciados, passíveis de se traduzirem em lógicas de
distinção social de uns face aos demais.24
Considerações finais
O escasso espaço de que dispomos é um forte condicionador para a apresentação
de assuntos que ainda gostaríamos de trazer aqui para debate.
Terminaríamos então alertando para um posicionamento etnocentrista e
centralizado num determinado meio social e que legitima como ritual inerente ao
vinho do Porto apenas o que é considerado mais distinto e requintado, que passa
por uma série de passos desde, por exemplo, a observação do produto no
recipiente, cheiro, prova até à ingestão paulatina.25 Entenda-se que a origem
do requinte e da distinção de que se fala situa-se, na sua essência, mais em
rituais do passado vividos pelas antigas franjas das classes superiores. Os
rituais vividos pelas actuais franjas das classes superiores é, em alguns
casos, uma prática recente e apropriada premeditadamente, como recente é, em
muitos casos, a sua ascensão socioeconómica. Isto tem tanto mais significado
quanto mais essa ascensão se pautar pelo patamar económico. Sem ser nossa
intenção neste momento dissertarmos sobre o ritual enquanto conceito, diríamos,
no entanto, que o vinho do Porto contém, pelo menos em embrião, uma série de
rituais possíveis e reais porquanto contextualizados. Note-se que
"ritualizar as coisas significa não só realizá-las em obediência a normas,
mas ainda em dá-las em espectáculo. As classes superiores tendem a encenar o
seu quotidiano existencial em múltiplas modalidades, de que as refeições são um
elemento importante. A liturgia própria do repasto desenvolve nestas classes a
consciência da sua diferença, enquanto mundo à parte. As classes sociais marcam
as suas distâncias e afirmam a sua respeitabilidade mediante a observância de
conveniências, de ritualizações e de cerimoniais."26
Como consideração final, gostaríamos de sublinhar que, para respeitar a
pluralidade e a complexidade das práticas sociais importa ter em linha de conta
a existência de várias legitimidades culturais, próprias de meios sociais
específicos, onde se geram diferentes representações, apropriações e consumos,
sem que nenhum se apresente a priori como o único possível ou desejável. Então,
para o mesmo objecto podem (co)existir normas específicas, diferentes entre si,
e contextualizadas em meios sociais também diferentes. E o vinho do Porto
ilustra bem esta situação.
Notas
1 O presente artigo insere-se na fase inicial do projecto de investigação para
doutoramento em Sociologia e constitui uma versão revista da comunicação
apresentada ao I Simpósio da Associação Internacional de História e Civilização
da Vinha e do Vinho, realizado em El Puerto de Santa María, Espanha, de 18 a 20
de Março de 1999.
2 Não iremos tratar aqui da(s) diferença(s) a nível cultural, que, a propósito
do vinho do Porto, existem entre Portugal e Inglaterra. Convém, no entanto, não
esquecer a importância das mesmas, dados os seus reflexos na própria prática em
si, como será o caso, por exemplo, do recipiente para o beber, das combinações
alimentares para o acompanhar e do seu próprio uso, entre outras.
3 J.C. Valente-Perfeito, Arte de Beber o Vinho do Porto, Porto, Instituto do
Vinho do Porto, 1935, p. 13. Sobre este assunto, ver também, do mesmo autor, O
Vinho do Porto... Esse Desconhecido!, Porto, suplemento ao caderno n.º 76,
(Abril 1946) do Instituto do Vinho do Porto, 1946.
4 J. C. Valente-Perfeito, Arte de Beber o Vinho do Porto, cit., respectivamente
pp. 6 e 12.
5 Segundo François Guichard, o seu valor decresce de 37% em 1875, para 35% em
1924, 26% em 1931, 18-19% em 1936-37, 8% em 1946 e 4% em 1956; nos anos 60
decresce ainda para 2-3%. Acrescenta ainda o autor ter-se mantido
"doravante a este modesto nível, apesar de um novo e importante surto
quantitativo das vendas". Cfr. François Guichard, "O Vinho do Porto e
mais alguns: gestão de imagem", in Douro, Estudos e Documentos 3,
Instituto do Vinho do Porto, Universidade do Porto, Universidade de Trás-os-
Montes e Alto Douro, 1997, p. 146. Para informação mais detalhada valeria a
pena consultar-se Conceição Andrade Martins, Memória do Vinho do Porto,
direcção e prefácio de António Barreto, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Lisboa, 1990, onde a autora apresenta o historial inerente
ao comércio externo do vinho do Porto; ver nomeadamente a Primeira Parte, pp.
25-282.
6 François Guichard, "O Vinho do Porto ..." , cit., p. 147.
7 Note-se, a este respeito, a importância de "uma nova população de risco,
composta por médicos, vendedores, advogados, jornalistas, juízes e jovens
universitários que se iniciam descontraidamente na relação com o álcool e
escorregam com uma facilidade assustadora para a dependência", escreve
Martim Avillez Figueiredo, apesar de num outro contexto. Martim Avillez
Figueiredo, "Reportagem alcoolismo vidas na sombra", Grande
Reportagem, nº 96, 2 ª série, Março 1999.
8 Estamos perante uma construção de "gosto de luxo" que é, segundo
Bourdieu, um tipo de gosto próprio "dos indivíduos que são o produto de
condições materiais de existência definidos pela distância à necessidade, pelas
liberdades ou (...) as facilidades que asseguram a posse de um capital".
Opõe-se a este, o "gosto de necessidade", que, segundo o autor é o
tipo de gosto que se ajusta às "necessidades de que eles são
produto". Cfr. P. Bourdieu, La Distinction: Critique sociale du jugement,
Paris, Les Éditions de Minuit, 1972, p. 198.
9 Trata-se de uma lei de transmissão oral, e por conseguinte, não há registos
escritos sobre a mesma. São dignas de interesse as letras das canções
académicas que fazem a apologia do vinho. Por não ser o espaço ideal, inibimo-
nos de as transcrever aqui.
10 O vintage é um tipo de vinho do Porto que, por definição, envelhece na
garrafa. "Vale a pena esperar 10 ou 15 anos sobre a data de engarrafamento
(...)". Na grande maioria dos outros tipos de Vinho do Porto já o mesmo
não acontece. Por exemplo, "nas colheitas: o vinho não melhora as suas
características após o engarrafamento. Pelo contrário, poderá adquirir aromas
estranhos pelo facto de sofrer longos períodos de guarda (...)". O mesmo
acontece para os "vinhos com indicação de idade 10, 20, 30 e mais de 40
anos." "Salvo raras excepções os vinhos brancos não devem ser
envelhecidos na garrafa. Isto mais verdade é no caso dos vinhos secos e extra-
secos, onde se deve preservar uma oxidação indesejável dos aromas", in
Viagem ao Mundo do Vinho do Porto, CD-ROM Interactivo Vinho do Porto, Instituto
do Vinho do Porto, s.d., WWW.ivp.pt.
11 J. C. Valente-Perfeito, Arte de Beber o Vinho do Porto, cit., pp. 14-15.
12 J. C. Valente-Perfeito, Arte de Beber o Vinho do Porto, cit., pp. 19-20.
13 António Barreto, "Prefácio", in Conceição Andrade Martins, op
cit., p. 8.
14 Se calhar, com as evoluções linguísticas, nomeadamente em certos círculos
sociais, em vez de nos referirmos a um tratamento por tu deveríamos antes
referirmo-nos a um conhecimento real do vinho do Porto, como o tratar por o
Menino.
15 Vd. Pierre Bourdieu, por exemplo em O Poder Simbólico, Lisboa, Difel, 1989.
16 Não se trata de uma marca de vinho do Porto. Apenas se pretende, com essa
designação (vinho do Porto X), representar um qualquer vinho do Porto tido como
de gama elevada.
17 Pierre Bourdieu, e posteriormente Madureira Pinto inspirado no primeiro,
abordam este mecanismo como a "interiorização da exterioridade", para
referirem precisamente a importância da absorção (aprendizagem) de práticas
exteriores. Ora é inevitável falar-se no seu contrário "exteriorização
do interiorizado" para evidenciar a própria prática em si. Dito por
palavras mais simples: através da socialização aprende-se a fazer
interioriza-se o que é ensinado, o que é visto para a posteriori, se poder
fazer também de igual forma ou de forma semelhante exterioriza-se o que se
havia interiorizado. Cfr. Pierre Bourdieu, La Reproduction, Paris, Les Éditions
de Minuit, 1971; Madureira Pinto, Ideologias: Inventário Crítico dum Conceito,
Lisboa, Presença/GIS, 1987, pp. 108-114.
18 António Barreto, "Prefácio", op cit., pp. 9-10.
19 Por quadro alimentar entendemos, como o próprio nome indica, um vasto quadro
inerente à prática alimentar no seu conjunto, e que integra conjuntamente
"o que se come, onde se come, quando se come, com quem se come, abrangendo
ainda o como se come". Note-se que o "como se come", por si,
compõe o que entendemos por estilo alimentar na medida em que refere "a
maneira (especial) de se alimentar". Assim, o quadro alimentar recobre o
próprio estilo alimentar, que, por ser variável, faz variar o primeiro,
passível de adquirir sinais de distinção. Cfr. D. Magalhães, Diferenciações
Sociais entre Práticas Alimentares, provas de aptidão pedagógica, Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, 1994, p. 12, (policopiado). No sentido em que
a bebida faz parte integrante duma prática alimentar, o quadro alimentar
aplica-se, por direito próprio, ao assunto abordado.
20 D. Magalhães, idem, p.3.
21 Conclusão obtida por um estudo realizado pela APEME (Área de Planeamento e
Estudo de Mercado), e da responsabilidade do Instituto do Vinho do Porto, sobre
"Atitudes, hábitos e comportamentos do consumidor do vinho do Porto",
relatórios de Maio/Junho e Julho de 1994.
22 Gostaríamos de esclarecer não termos ainda procedido a um estudo empírico
sistemático e rigoroso sobre esta matéria. Pelo contrário, algumas constatações
são-no apenas enquanto preliminares, decorrendo quer de entrevistas/conversas
informais, quer de leituras sobre um ou outro tipo de estudo já mais avançado
sobre esta temática.
23 A. Teixeira Fernandes, "Ritualização da comensalidade",Sociologia
Revista da Faculdade de Letras do Porto, 7, 1997, p.26.
24 Podemos encontrar vastos traços teóricos a este propósito em várias análises
bourdianas, cujo tema se tem revelado bastante caro ao autor. Neste contexto,
veja-se, por exemplo, entre outras, a sua obra fundamental: La Distinction,
cit. Estamos perante o que se pode considerar o "desenho espontâneo da
diferença no espaço social", que, ressaltando práticas socioculturais
diferentes, revestem-se simbolicamente do sentido de proximidade versus
distância e vai conferindo demarcações sociais significativas. In D. Magalhães,
Diferenciações Sociais, cit., pp. 9-10.
25 Informações mais pormenorizadas sobre "exigências" sociais a este
nível podem ser encontradas, entre outros, em Ramiro Mourão, A Propósito da
Garrafa e do Copo de Vidro na História do Vinho do Porto, Porto, Livraria
Fernando Machado, 1946.
26 A. Teixeira Fernandes, "Ritualização da comensalidade", cit., pp.
29-30.