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EuPTHUHu0873-65292001000200003

EuPTHUHu0873-65292001000200003

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6529
ano2001
Issue0002
Article number00003

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Velhice, solidariedades familiares e política social: itinerário de pesquisa em torno do aumento da esperança de vida

Nos dias que correm é impreterível reflectir, de modo mais insistente, sobre os impactes do envelhecimento demográfico das populações e sobre as profundas mudanças que, simultaneamente, têm vindo a ocorrer nas sociedades industriais modernas, como é a nossa. Estas têm sido de tal forma rápidas e, em muitos casos, inesperadas, que necessitamos de permanente pesquisa e discussão. O debate profícua fonte de inspiração é, neste caso, essencial, na medida em que estudiosos e políticos se confrontam, muitas vezes, com diferentes modos de explicação do mundo. Os primeiros procuram interpretar os factos a partir de causas gerais sem nunca se misturarem com os assuntos em questão. Os segundos, que vivem por entre o descosido dos factos jornalísticos e a parcialidade dos acontecimentos em que estão envolvidos, tendem, geralmente, a reduzir a explicação global à singularidade da parcela do conhecimento que detêm. A definição de políticas de velhice, a partir de uma formulação mais rigorosa e objectiva dos problemas do envelhecimento e da análise exaustiva da diversidade de realidades sociais, poderá proporcionar as correcções necessárias para que as futuras gerações de idosos possam vir a viver melhor do que as que as antecederam.

O problema social que representa a velhice nas sociedades modernas é um exemplo paradigmático da forma como certas perspectivas, científicas e não científicas, podem contribuir para o deformar através da difusão de ideias e representações construídas do que é a velhice. As "pessoas idosas" enquanto estereótipo socialmente produzido e facilmente reconhecível enquadram uma categoria de indivíduos, cujas propriedades, relativamente homogéneas, são normalmente identificadas com isolamento, solidão, doença, pobreza e mesmo exclusão social. Nesta perspectiva comum, as pessoas idosas são consideradas como indivíduos isolados, permanecendo oculta a dimensão familiar da identidade, da existência. A lógica repousa na percepção da pessoa idosa enquanto agente de acção social apartado dos laços sociais inerentes à instituição familiar a que pertence e no quadro das relações tradicionais de amizade e de vizinhança. Esta avaliação, que decorre da posição que os agentes sociais ocupam relativamente às situações problemáticas porque existem situações problemáticas de isolamento, solidão, doença e carências afectivas e materiais , impõe-se com maior visibilidade social e, desse modo, adquire as condições para se apresentar como propriedade comum e dominante da categoria dos indivíduos denominados idosos.

Em grande parte, tal facto deve-se a erros de perspectiva. Uma das formas de os ultrapassar é colocarmo-nos de modo diferente e, através de outros pontos de vista, observarmos a realidade com outros contornos, a partir de outras configurações.

É esse o itinerário que pretendo aqui prosseguir.

Abordagem crítica da análise demográfica do envelhecimento O primeiro dos pontos de vista é o que proporciona a perspectiva científica da demografia sobre o envelhecimento das populações, um ponto de partida essencial para a formulação problemática da velhice na actualidade. É do conhecimento geral que o envelhecimento das populações, que se processa a um ritmo acelerado, tem tendência a acentuar-se, não no topo, com o aumento dos mais velhos, mas também na base, com a redução dos mais novos. Esta "involução demográfica" enquadra-se na tendência dominante da dinâmica das populações dos países desenvolvidos e, a seu tempo, da população mundial.

Um tal processo representou uma verdadeira revolução demográfica com efeitos no equilíbrio proporcional dos grupos etários. A tendência, que se tem manifestado de forma crescente, é para um desequilíbrio considerável entre as gerações, ou seja, o aumento dos mais velhos é relativamente empolado pela redução dos mais novos, contribuindo, desse modo, para o agravamento do desequilíbrio intergeracional.

Ao longo deste século fomos passando de um sistema demográfico tradicional para um sistema demográfico moderno, período ao longo do qual a mortalidade desceu a níveis nunca antes registados e o declínio da fecundidade ultrapassa os cenários mais pessimistas das projecções demográficas. O excessivo declínio da fecundidade, que ocorre em alguns países europeus os países de sul da Europa, Alemanha e Áustria , é preocupante em relação ao equilíbrio futuro das gerações. casos, como o das populações italiana e espanhola, onde a fecundidade desceu para, aproximadamente, uma criança por mulher, ou seja, metade do necessário à renovação das gerações.1 A redução crescente dos nascimentos equivale à redução das proporções de jovens, enquanto o aumento relativo dos restantes grupos etários irá, a médio prazo, afectar de novo o equilíbrio intergeracional pela correspondente redução dos jovens adultos e dos adultos activos. Este segundo impacte do declínio da fecundidade, ao contrário do primeiro, que proporcionou a redução dos encargos públicos com a educação, interfere directamente nos fluxos das quotizações da população que contribui para o sistema. São mais inactivos a receber e menos activos a quotizar-se, estes tendo que contribuir com uma parcela maior dos seus rendimentos para garantir o funcionamento do sistema.

Segundo previsões médias das Nações Unidas, até 2050, os países da Europa do sul, com a excepção de Portugal, deverão apresentar as mais altas proporções de pessoas com 65 e mais anos (Desesquelles, 1998). Esta evolução pode ser avaliada a partir dos seguintes exemplos: a Suécia, que tem uma estrutura etária bastante envelhecida 17,3% de pessoas acima dos 65 anos , em 2050 aumentará essa proporção para 22,4%. Por seu lado, a Itália e a Espanha que, em 1995, partem com níveis de 15% e 16%, atingirão 35,7% e 34,6%, respectivamente, em 2050. O acentuado desequilíbrio dos países do sul deve-se aos baixos níveis atingidos pela fecundidade no presente, apesar de a construção dos cenários publicados pelas Nações Unidas se basear na hipótese positiva da subida da fecundidade até ao nível de substituição das gerações. Entre os países desenvolvidos, a Itália, a Espanha, o Japão e a Grécia virão a ser, provavelmente, as nações mais velhas, com proporções de idosos acima dos 30%.

Segundo as mesmas fontes, em alguns destes países, a população com mais de 85 anos aumentará para mais do dobro, no mesmo período (FNUAP, 1998).

Em suma, no que respeita aos comportamentos demográficos relativos à natalidade, mortalidade e movimentos migratórios, as sociedades tradicionais e as sociedades modernas representam "tipos ideais"contrapostos, isto é, elevados níveis de mortalidade e de natalidade e estruturas demográficas jovens, opõem-se hoje a baixos níveis de mortalidade e natalidade e estruturas demográficas envelhecidas. Foi especialmente ao longo das últimas quatro décadas que os progressos foram mais espectaculares e que estas distinções se acentuaram. As probabilidades de morte na infância e na adolescência baixaram a ponto de se tornarem imperceptíveis pela estatística. A mortalidade concentra- se agora nas idades avançadas. Uma tal evolução contribui duplamente para empolar o envelhecimento: mais gente a sobreviver e aumentou o termo final de vida média.

O envelhecimento demográfico é também a característica dominante da população portuguesa. Uma avaliação numérica deste processo pode ser retirada das seguintes comparações: em 1900, apenas 5,7% da população total tinha mais de 65 anos. Em 1950 esta proporção aumentou ligeiramente para 7% e presentemente a proporção praticamente duplicou para 14%. Esta diferença, proporcional do início para o final do século, representa, em termos absolutos, que o número de homens cuja idade ultrapassa os 65 anos foi multiplicado por 4,5 e o das mulheres por 5,0. Por cada 100 homens desta idade, em 1900, encontramos 455, em 1999. Do mesmo modo, a cada 100 mulheres, nessa data, correspondem agora 500 (Fernandes, 1997).

É a probabilidade de poder sobreviver por mais tempo que faz aumentar o número dos idosos em termos absolutos. As mulheres sobrevivem mais do que os homens e esse facto faz com que a velhice seja essencialmente uma velhice no feminino.

Em 1998, 17,3% das mulheres tinham mais de 65 anos e apenas 12,9% dos homens tinha ultrapassado esta idade. E, se considerarmos a relação entre os grupos etários nos extremos da pirâmide etária, jovens e idosos, constatamos que por cada 100 jovens do sexo feminino existem 109 mulheres com mais de 65 anos (INE, 1999).

Estamos perante transformações estruturais que, quando associadas às mudanças de comportamento face à nupcialidade e à família, conduzem a configurações familiares bem distintas das que encontramos no passado. As trajectórias de vida mais longas e as perturbações das idades da vida afectam não as consciências individuais como o modo como os indivíduos se relacionam na teia das relações estritas do seio familiar. As idades e os ciclos de vida sofrem perturbações que põem em causa o nosso conhecimento construído e a forma como ele interfere nas estratégias individuais e colectivas face à velhice e ao envelhecimento.

Caminhamos seguramente para uma sociedade diferente da que conhecemos até agora e onde os padrões institucionais de actuação terão que se adequar às mudanças indeléveis proporcionadas pela revolução silenciosa do sistema demográfico. Mas serão os indicadores que utilizamos adequados para avaliar a evolução das estruturas demográficas e o peso do envelhecimento das populações? Até que ponto o limiar instituído e consensual a partir do qual construímos a categoria dos idosos, os 60 ou 65 anos, se adequa às características das sociedades modernas? A definição destas categorias decorre directamente da determinação oficial da idade de acesso à reforma, que é o resultado de processos históricos que envolvem conflitos entre o estado, as instâncias empregadoras e as organizações sindicais, representantes dos trabalhadores.

Estas categorias oficiais, conhecidas e reconhecidas, conferem legitimidade às imagens e representações tradicionais de velhice construídas ainda num passado recente, onde indivíduos de 60 ou 65 anos teriam provavelmente alcançado a "idade da velhice". Os estudos demográficos sobre o envelhecimento, ao utilizarem indicadores construídos a partir da definição de um limiar fixo da categoria dos idosos, colaboram na promoção e no reforço do fenómeno do envelhecimento como tendência que se pretende exactamente contrariar. Os estudos demográficos, enquanto trabalhos científicos validados com a chancela das instituições académicas, apresentam cenários, construídos com o rigor dos modelos matemáticos, mas onde o futuro se projecta comprometido com a evolução das estruturas demográficas que, perante um envelhecimento inelutável e a impossibilidade de alterar o peso relativo das pessoas idosas, nos lançam na resignação e no pessimismo.

Eis-me chegada a uma questão fundamental: até que ponto, por trás da continuidade enganosa das categorias estatísticas não se encontra uma realidade que mudou? Até que ponto a idade da velhice não foi afastada do limiar socialmente instituído e remetida para mais tarde? Os dados da demografia e os conhecimentos médicos dão-nos elementos suficientes para o afirmar positivamente. Os aumentos progressivos da esperança de vida à nascença, que, em Portugal, em 1998, atingiu 71 anos para os homens e 79 anos para as mulheres (INE, 1999), representam conquistas substanciais que se traduzem em probabilidades de sobrevivência elevadas. Do conjunto dos indivíduos nascidos no mesmo ano, 75% dos homens e 89% das mulheres chegam a completar os 65 anos. Em 1960, apenas 60% dos homens e 73% das mulheres atingiam este patamar etário.2 Nos nossos dias, ao atingir os 65 anos, as mulheres têm ainda a probabilidade de vir a viver por mais 18 anos e os homens por mais 15 anos. As diferenças acentuam-se quando consideramos o sexagésimo aniversário e comparamos os dados mais recentes com um período mais longínquo (figura_1). Em 1930, cerca de metade das mulheres (55,7%) e dos homens (47,8%) chegavam a completar os 60 anos. Em 1991 é quase a totalidade dos indivíduos que pertencem à mesma geração (91% das mulheres e 81% dos homens) que completam o sexagésimo aniversário.

Figura 1Proporção de sobreviventes ao sexagésimo aniversário, segundo o sexo, de 1930 a 1991

Estamos então em condições de afirmar que os sexagenários de hoje, que dispõem de maiores probabilidades de sobrevivência, têm mais saúde, mais meios económicos, culturais e sociais, maior difusão de infra-estruturas de apoio médico-sanitário e diversidade de terapêuticas médicas. Em consequência de todos estes factores, dispõem de mais anos para viver. Dispõem também de um capital de informação incomparável, que deverá ter maior impacte nas gerações mais jovens. Poderemos afirmar que, a manterem-se as mesmas condições, as gerações futuras virão a estar mais bem apetrechadas para superar algumas das dificuldades encontradas pelas actuais gerações que, em alguns importantes aspectos como a conquista do direito a uma pensão de reforma , superaram as que as antecederam.

"Velhos reformados" ou "velhos" e "reformados"? Coloca-se-nos aqui uma nova questão: o que é então ser velho nas sociedades modernas? A velhice, como categoria social, pode dizer-se que ficou institucionalmente fechada nas fronteiras de um limiar de idade fixo, cujo acesso é reforçado pela detenção de uma pensão de reforma. Esta definição institucional não tem sido adaptada às transformações sociodemográficas mais recentes, e tem mesmo vindo a ser reforçada com a institucionalização das pré-reformas. Ao passar à categoria de reformado, o "jovem velho" encontra as condições para adquirir as propriedades que são socialmente imputadas à velhice. Perde o estatuto social atribuído a partir do trabalho profissional a reforma é também uma forma de exclusão social e adquire o estatuto desvalorizado de "reformado".

Mas a "idade da velhice" (Bourdelais, 1993), essa tem ultrapassado os limiares convencionais e avançado ao sabor das flutuações do alongamento da vida.3 A idade de ser velho, a idade em que se começam a perder capacidades essenciais e se regista uma deterioração do estado geral de saúde surge mais tarde, sem que institucionalmente se tenham alterado os limiares convencionados mais de um século. O alongamento da vida, que continua a fazer-se de modo mais atenuado, tem repercussões no próprio conceito de velhice. Os ganhos em tempo de vida reportam-se sobre a fase final do ciclo de vida.

Recentemente, alguns estudos levados a cabo nesta matéria têm-se debruçado sobre a esperança de vida com e sem incapacidade.4 O objectivo consiste em avaliar as conquistas quantitativas em anos de vida com saúde, ou seja, sem contrair incapacidades. Os resultados apontam para diferenças importantes entre homens e mulheres. Os primeiros, cujo limiar de esperança de vida à nascença é inferior ao das mulheres, usufruem de mais elevada esperança de vida sem incapacidade.

Estamos próximos de um limiar difícil de ultrapassar e a consciência desse facto tem orientado as investigações para os aspectos diferenciais do aumento da esperança de vida em todas as idades, consoante as categorias socioprofissionais e as condições gerais de existência.

Num estudo realizado no Canadá, em 1978, foi possível relacionar a esperança de vida, com e sem incapacidade, com o rendimento (Robine, 1997). Os investigadores puderam observar que, nos escalões mais baixos do rendimento, a esperança de vida sem incapacidade ficava pelos 50 anos, enquanto nos mais elevados subia até aos 64 anos. Quanto à esperança de vida à nascença, os primeiros sobrevivem até aos 67 anos e os segundos até aos 73 anos. São diferenças significativas que remetem para a complexidade das estruturas sociais onde os recursos económicos e culturais se distribuem de forma desigual colocando os indivíduos em diferentes posições face à velhice e face à morte.

A característica generalizante dos indicadores demográficos como é o da esperança de vida à nascença , cujos valores médios têm sofrido grandes alterações, como temos vindo a referir, esconde diferenças e variações bastante maiores quando avaliados no interior das categorias socioprofissionais. As variações médias que apresentámos são ainda assim suficientes para nos levar a questionar a pertinência do limiar de idade fixo, os 65 anos, base da definição de uma categoria estatística de organização da informação, por sua vez reconhecida como categoria social, a das "pessoas idosas".

A "idade da reforma", que coincide com a definição institucional da velhice, os 65 anos na maior parte dos países europeus, tem sido objecto de grandes debates políticos entre as organizações sindicais de trabalhadores e os governos responsáveis pelos sistemas de segurança social, nomeadamente no que concerne ao eminente desequilíbrio entre quotizantes e beneficiários e à necessidade de o minimizar adiando a idade limite de reforma.

De facto, a idade da reforma tem sido antecipada com a cessação precoce de actividade através, entre outras medidas, da atribuição de pré-reformas. Estas têm representado um poderoso instrumento manipulado pelas empresas para alcançarem reduções nos encargos com o pessoal e promoverem a renovação das competências dos trabalhadores ajustadas às exigências dos mercados. Para a aceitação destas medidas têm contribuído as orientações levadas a cabo pelos sindicatos que, de modo geral, procuram antecipar o momento de os trabalhadores acederem a um "salário sem trabalho". Mas também para o beneficiário, o trabalhador, a reforma representa uma espécie de prémio conquistado com os anos que trabalhou. No caso dos trabalhadores mais jovens, ou menos idosos, com menos tempo de trabalho acumulado, a negociação, mediatizada pela atribuição de uma indemnização monetária, é normalmente o mecanismo eficaz para a passagem à reforma.

A idade da reforma e a idade da velhice deixaram de ser coincidentes apesar de a reforma, na sua génese, estar indissociavelmente incorporada à velhice enquanto fase da vida onde se manifestava incapacidade para o trabalho. Velhice e reforma dissociaram-se e passaram a representar duas dimensões da realidade, duas realidades distintas onde ainda restam algumas homologias e, por vezes, coincidências. Esta segmentação vem, de resto, pôr em causa alguns dos pressupostos iniciais que fundamentavam a legitimidade da reforma face à velhice. Em primeiro lugar, o pressuposto da solidariedade social, princípio universal que sustenta o funcionamento das sociais-democracias e o alargamento dos direitos sociais no estado-providência. Este é um dos princípios em que assentam os sistemas de segurança social, assim como os objectivos e as finalidades que fundamentaram o surgimento das primeiras pensões. A antecipação da reforma para idades que rondam os 50 anos encaminha para situações de dependência e, de certa forma, exclusão social, indivíduosfisicamente aptos a desenvolver uma actividade, que passam a usufruir, por bastante tempo, dos benefícios de um salário sem trabalho, cujo pagamento é garantido pelas quotizações dos trabalhadores no activo. Neste novo cenário, deparamos com a existência de uma "idade nova" (Gaullier, 1988), ou seja, uma nova fase do ciclo de vida, situada entre o fim do trabalho e a velhice propriamente dita.

A ténue fronteira que separa o trabalho do não trabalho introduz uma nova problemática social. A generalização de pré-reformas e o desemprego prolongado projectam os indivíduos para as margens de um envelhecimento precoce, de marginalização social. O surgimento gradual de uma nova idade, que se situa entre o fim antecipado do ciclo do trabalho e a velhice, é uma característica nova das sociedades modernas, onde a obsolescência das competências é tanto mais rápida quanto a velocidade da mudança, nomeadamente nos sectores de ponta da economia. O "envelhecimento social", que tende assim a generalizar-se, depende da perda de valor do capital de experiência acumulada, capital esse em franca desvalorização dada a velocidade das transformações. São novas relações que se estabelecem entre trabalho e reforma no final da vida activa. Dois aspectos a considerar: · em primeiro lugar, a forma como o mercado de trabalho e os mecanismos de protecção social interagem, estando estes em franca reestruturação, de modo a regular a saída definitiva do ciclo de actividade e as implicações no tipo e natureza do estatuto social e dos direitos acordados; · em segundo lugar, a forma como estas alterações interferem e determinam a reorganização dos ciclos de vida familiares em ordem à sua adequação às novas realidades (Guillemard,1995).

As novas gerações não percorrem trajectórias de vida mais longas como passaram a estar expostas a maior diversidade de ocorrências sociodemográficas, que contribuem para transformar a trilogia dos ciclos de vida em "idades móveis" e "tempos incertos" (Gaullier, 1988).Esta flexibilidade das idades é, segundo Xavier Gaullier (1999), a evolução inelutável da rigidez actual. A velhice está de tal forma repleta de contradições que não pode permanecer, como se encontra actualmente, dos 50 aos 90 anos. Não pelas consequências no equilíbrio financeiro do sistema de reformas como por motivos de ordem psicológica e social, isto é, os anos vividos a mais não deverão ficar remetidos apenas para o terceiro ciclo de vida. Mas a solução não consiste simplesmente em mudar a idade da reforma para mais tarde, como tem sido sugerido frequentemente. O problema é bem mais profundo e mais geral, e tem a ver com "a localização das riquezas (emprego, tempos livres, formação, salários e rendimentos sociais ) no conjunto do ciclo de vida ( )" (idem: 185). De modo global, a solução do problema remete para uma pluriactividade em todas as idades, isto é, uma flexibilidade geral, imposta ou escolhida.

Desvinculada da idade da reforma, a velhice parece surgir agora, de forma mais nítida, associada às incapacidades físicas, psíquicas e mesmo materiais que surgem nas idades muito avançadas. São os "muito velhos" que absorvem cada vez mais os recursos humanos e materiais disponíveis. O novo risco da velhice, a "dependência", transformou-se, nos últimos anos, no grande debate, no maior desafio. A dimensão dos problemas, a sua grande diversidade e a ocorrência crescente de situações trazem para o fórum da discussão os vários agentes envolvidos, que vão desde as famílias, passando por organizações privadas e, por último, o estado enquanto produtor de políticas e principal instância pública de resolução dos problemas sociais. Trata-se de avaliar custos e encargos e dividir responsabilidades. As reservas de solidariedade familiar e de vizinhança, as instituições que têm surgido ao longo dos últimos anos e no decurso das políticas sociais de velhice lares, centros de dia, apoio domiciliário parecem recursos insuficientes e, em certos casos, mesmo desadequados às exigências e à dimensão do problema. Solidariedades familiares e políticas sociais conjugam esforços de modo a encontrarem as melhores soluções de encargo, porque é disso que se trata, com os custos mais reduzidos para todos os lados.

Família, trocas intergeracionais e solidariedade formal A família é o lugar primordial das trocas intergeracionais. É que as gerações se encontram e interagem de forma intensa. É o lugar do don, da troca, da entreajuda incondicional. As solidariedades familiares são uma fonte inesgotável de entreajuda, apesar de se encontrarem expostas às perturbações sociodemográficas das sociedades modernas. O alongamento da vida e a co- longevidade das gerações que daí resulta, a diminuição da fecundidade e a duração da procriação produziram novas estruturas de parentela e uma nova matriz latente de inter-relações das quais apenas uma parte é efectivamente activada. Aumenta o número de famílias trigeracionais, com desenvolvimento e reforço do topo, chegando a haver mais avós do que netos. Esta estrutura familiar multigeracional implica, não somente uma maior longevidade, mas também fracas distâncias geracionais.

Esta maior sobrevivência das gerações beneficia, no presente, de um aumento da esperança de vida nas idades mais avançadas e de uma fecundidade precoce da geração intercalar. O tempo que as distancia é menor do que virá a ser no futuro e a permanência de quatro gerações em simultâneo repete-se em maior número de casos. No entanto, é agora menos frequente a coabitação dos pais idosos com os seus filhos adultos e, em contrapartida, maior a proporção de idosos que vivem sós.

Em Portugal, segundo os últimos recenseamentos (1981 e 1991), a percentagem de famílias onde não residem idosos baixou de 71% para 69%. Por seu lado, a proporção das famílias com uma pessoa, com idade superior a 65 anos, aumentou de 7% para 8%. Também a percentagem do número de casos em que coabitam dois idosos passou de 6% para 7%. Não são grandes alterações, mas indiciam o sentido da mudança: maior autonomia das pessoas idosas, mas, provavelmente, também maior isolamento face à família.

Quanto a este último aspecto, Portugal é dos países da UE, juntamente com Espanha e Grécia, onde se registam menores proporções de idosos que residem sós, apesar de este indicador ter evoluído de 17,5%, em 1981, para 18,5%, em 1991.5 É um ligeiro aumento que, apesar de revelar uma tendência para subir, como seria de esperar, não altera a posição que Portugal ocupa em relação a outros países da Europa do norte, onde vigoram sistemas de protecção social "maduros", isto é, com uma implantação bastante mais longínqua do que o nosso. A título de exemplo é de referir o caso extremo dos países nórdicos, como a Finlândia e a Dinamarca onde, aproximadamente, 40% dos idosos residem sós.

Pese embora esta avaliação quantitativa, que nos leva a considerar a tendência para uma maior e mais efectiva autonomia das pessoas idosas é importante reforçar o facto de que usufruem hoje de mais meios económicos, culturais e sociais para preservar essa independência , não podemos deixar de avaliar as consequências ao nível das relações entre as gerações. Como se estabelece a solidariedade entre pais, filhos e netos na estrutura das relações baseada num reforço da autonomia dos grupos domésticos? Isto é, como é que a reivindicada autonomia dos membros da família se articula com a solidariedade intergeracional? Sobre esta questão, complexa e de difícil avaliação, convém clarificar previamente o que entendemos por solidariedade e como se materializa ela nas relações que se estabelecem entre as gerações, no espaço reservado da família.

Em primeiro lugar, é necessário referir que as solidariedades intergeracionais, área de conhecimentos que deve a sua relevância aos trabalhos empíricos de Louis Roussel (1976), Agnés Pitrou (1977), Catherine Bonvalet (1991), J.

Kellerhals (1987, 1988), entre outros, vieram restituir a parentela à família.

As investigações mais recentes têm demonstrado que as trocas e os laços que unem os membros da parentela foram sendo, recentemente, redescobertos, após um período em que, de algum modo, estiveram ausentes na maior parte dos trabalhos baseados nas teses de nuclearização da família, isto é, com a suposição de que os laços com a família de origem haviam sido rompidos com a industrialização (Attias-Donfut, 1995). Estes estudos empíricos vieram mostrar até que ponto a ideia da família/grupo doméstico, fechado sobre si próprio, isolado da restante parentela, correspondia mais a uma radicalização excessiva da tese de Parsons sobre a diferenciação social, do que à realidade. Talcott Parsons considerava que os processos de industrialização segmentaram a família, primeiro isolando- a da sua rede de parentesco e reduzindo as dimensões do grupo doméstico a um lar conjugal com um pequeno número de filhos (citado por Segalen, 1999). É ainda o mesmo autor que considera que a mobilidade social, condição e causa do desenvolvimento económico, passava pela ruptura dos laços de parentesco. Apesar de ter influenciado as investigações sobre a família ao longo das décadas de 60 e 70, e de ter contribuído para a difusão de um pressuposto de desaparecimento do parentesco, a teoria parsoniana sobre a família começou a ser posta em causa com o surgimento das investigações empíricas, referidas, sobre as solidariedades familiares, que provaram que as famílias nucleares não estavam isoladas (idem). As famílias modernas organizam-se em torno de laços de parentesco, construindo redes de relações através das quais circulam ajudas, bens e afectos. O conceito de parentesco foi assim restituído aos estudos sobre a família contemporânea.

Recentemente, numerosos estudos têm revelado a importância e a diversidade das trocas entre pais idosos, os seus filhos adultos e os netos (Attias-Donfut, 1995). As transmissões económicas e monetárias ocorrem, principalmente, em sentido descendente, de avós para netos e de pais idosos para os seus filhos adultos, ainda que os rendimentos dos primeiros sejam, em muitos casos, inferiores. Não sucede o mesmo quanto a serviços prestados, cuja circulação se processa generalizadamente nos dois sentidos. Entre as gerações extremas as trocas são menos frequentes, mas continuam a ser apreciáveis e vão normalmente dos jovens para os mais velhos (Attias-Donfut, 1995).

Mas como se processa este circuito de dádivas e retribuições (o don e o contre- don, na acepção de Marcel Mauss), como são identificados pelos directamente interessados? Segundo Claudine Attias-Donfut (1995), a identificação da presença de um don na relação implica várias operações mentais que remetem para a necessidade de abstrair da relação e referenciá-lo enquanto elemento distinto. Quando as trocas não se inscrevem em rituais simbólicos, como acontece com os presentes de Natal ou de aniversário, mas ocorrem na normalidade da vida quotidiana, a dádiva dificilmente é apercebida igualmente por quem e quem recebe. E mais difícil é esta percepção quando não se trata de dádivas materializadas em objectos mas apenas de uma ajuda ou um pequeno serviço. Para a mesma autora, as pessoas idosas que hoje usufruem uma reforma confortável apoiam material e financeiramente os seus filhos e netos e recebem destes ajudas sob a forma de serviços.

Os tipos de ajuda que se desencadeiam entre os membros da família, quer provenham da geração intermédia para os seus pais idosos, ou dos pais mais velhos para os filhos, têm normalmente origem no reconhecimento de uma necessidade. Esta entreajuda intergeracional tem características multiformes e desiguais ao longo do ciclo de vida familiar. Segundo Claudine Attias-Donfut (1998), seguem as seguintes motivações: · alógica das necessidades: as ajudas são orientadas em direcção aos membros da família que se deparam com dificuldades; · o laço de reciprocidade: as ajudas representam a liquidação de uma dívida resultante de uma dádiva recebida anteriormente; · a complementaridade com as ajudas públicas: as prestações sociais estimulam a entreajuda familiar.

Mas as trocas intergeracionais, fruto da solidariedade familiar, não ocorrem igualmente entre os membros da família. Segundo J. Kellerhals (1988), a densidade média de activação da rede de entreajuda não ultrapassa os 25% dos membros da família e constitui-se como uma espécie de carapaça em torno da família nuclear. Esta rede é estruturada em linha vertical, isto é, entre pais e filhos, situando-se, preferencialmente, na linhagem matrilateral.

Num estudo realizado em Portugal por Paula Martins Gil (1998), sobre o circuito das trocas entre pais idosos, em relação de dependência com instituições, e os seus filhos adultos, é posto a descoberto o predomínio dos afectos e dos bens materiais que circulavam dos pais para os seus filhos adultos e, em sentido contrário, o predomínio de cuidados instrumentais e de acompanhamento, maioritariamente protagonizados pela componente feminina do grupo familiar.

Segundo a autora, esta "presença feminina caracteriza-se por ser muito mais contínua e regular, traduzida por serviços, bens e suportes materiais" (Gil, 1999: 106). Apesar das alterações estruturais dos últimos anos, que colocaram as mulheres na senda da vida pública, elas continuam a garantir o apoio familiar que antes lhes havia sido destinado ao mesmo tempo que concorrem a uma actividade profissional.

As trocas intergeracionais continuam a ser um aspecto primordial das relações familiares nas sociedades modernas e pós-modernas. O conteúdo e a intensidade, o sentido dos fluxos são alguns dos aspectos a considerar na reconstituição das relações entre as gerações. De modo geral, as trocas concretizam-se em torno do domínio afectivo, da ajuda doméstica e financeira, da guarda das crianças e dos cuidados gerais em caso de doença ou incapacidade. "Dá-se" e "recebe-se" tempo de convívio e atenção, serviços de vária ordem e, talvez o que mais facilmente se consegue contabilizar, ajudas financeiras e presentes.

A estrutura das relações familiares tem sido perturbada pelo aumento de rupturas matrimoniais e de novas conjugalidades. Estamos em condições de afirmar que tais alterações produzem descontinuidades, incertezas e indefinições nas idades da vida e nos ciclos de vida familiares. A família, redefinida num enquadramento mais vasto apresenta-se mais facilmente numa grande diversidade de formas de parentesco. As rupturas matrimoniais e as novas conjugalidades vieram criar as condições para uma reestruturação das relações, mais aberta, e com maior peso de imprevisibilidade. Para certas ideologias mais conservadoras, estas transformações representam uma crise da família, de um modelo de família nuclear e monolítica.

Ao contrário de uma certa visão parcial, partilhada pelos agentes sociais que se ocupam da velhice, a denominada "crise da família" não destruiu o capital de afectividade, fonte de entreajuda entre pais e filhos que se relacionam agora de modo diferente daquele que conhecemos nas sociedades tradicionais. A velhice adquiriu maior visibilidade com o aumento absoluto e relativo do número de idosos e o prolongamento da terceira fase do ciclo de vida. Aumentou também o número e a frequência de casos problemáticos de isolamento e abandono que constituem um campo vasto de intervenção dos agentes sociais. A "culpa da família" é a razão fácil a que se acomoda o agente social para justificar a existência do problema. O sentimento de culpabilização que daí decorre, especialmente para as mulheres, filhas ou noras, sempre potenciais cuidadoras, não é desejável nem profícuo para a resolução do problema. É necessário conhecer melhor os modos de solidariedade, os tipos de entreajuda, as trocas entre as várias gerações, de modo a avaliar as potencialidades das solidariedades familiares.

Em contrapartida, a solidariedade pública, formal, que está na base dos mecanismos de protecção social, confronta-se com dificuldades em responder à intensificação e diversidade dos problemas que decorrem da dependência na velhice. Neste caso, o laço que une as solidariedades familiares e as políticas sociais é evidente. Não existe uma solução única e definitiva dos problemas, e a intervenção profissional dos agentes sociais é diferente das ajudas que podem dispensar as famílias. Não a solidariedade familiar intervém num registo diferente do dos serviços públicos e profissionais, como a entreajuda, movida pelo sentimento de afecto e obrigação, e a acção que desenvolve, é caracterizada por maior flexibilidade e adaptabilidade, ao contrário das intervenções públicas (Martin, 1995).

No cenário de envelhecimento futuro, é importante que as instâncias produtoras de políticas sociais se preparem para as transformações que começaram a ter lugar. Os apoios de tipo social que têm marcado as políticas na maior parte dos países em que foram implementadas, como os centros de dia e os apoios domiciliários, poderão deixar de ser a orientação essencial das políticas nas futuras gerações de idosos. A velhice dependente vai ser o grande desafio no início do milénio. Em contrapartida, as próximas gerações virão mais bem munidas para responder às dificuldades materiais e culturais, com maior sentido de autonomia e uma mais poderosa consciência de cidadania, promotora de maior capacidade de resolução dos problemas individuais e mesmo colectivos.

As políticas sociais vão ainda deparar-se com as dificuldades de gestão social do não trabalho, transferindo para outras áreas alguns dos problemas que eram atribuídos apenas aos idosos e aos deficientes. O desemprego prolongado, associado à saída antecipada do ciclo de vida laboral, origina um mercado potencial de indivíduos carenciados, que irá provavelmente mobilizar grande parte dos recursos sociais que não são absorvidos pelos idosos enquanto potenciais beneficiários. Segundo Robert Castel (1995), a crise de futuro, que se iniciou, é uma crise que vem do centro como uma onda de choque que atravessa a estrutura social. Caminhamos para uma desestabilização dos estáveis, dos trabalhadores qualificados que se podem tornar precários. A fragilidade social, o risco de exclusão, atravessa toda a sociedade, através da perda de centralidade do trabalho e da degradação da condição salarial.

Mais do que o aumento do papel do estado devemos estar, sobretudo, atentos à transformação das modalidades de intervenção. Diria que, num futuro muito próximo, a velhice não vai deixar de ser um problema social, mas ela vai deixar de ser uma propriedade, menos conotada com necessidades materiais e sociais e objecto de políticas sociais específicas, e mais com apoios médico-sociais normalmente bastante sofisticados.

Notas 1    O Índice Sintético de Fecundidade (IST) nestes dois países é de 1, 2 crianças por mulher (Population et Societé, 1999).

2    Apesar de os indicadores mostrarem uma tendência crescente, Portugal, juntamente com a Irlanda, apresentam os valores mais baixos da União Europeia (As Gerações Mais Idosas, INE, série de estudos n.º 83, 1999).

3    Este conceito consiste na determinação de um indicador de idade fundado sobre a probabilidade de sobreviver 5 ou 10 anos. Esta probabilidade é calculada para toda a coorte, isto é, do nascimento até à idade x.

4    Em Portugal apenas foi realizado o estudo publicado em 2000 pelo INE.

5    Em 1991, a Espanha regista 16,6% e a Grécia 17,7% de idosos a residirem sós. Para mais informação consultar As Gerações Mais Idosas, INE, 1999.


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