As tecnologias de governo do eu e a escola (1974-1991)
Neste artigo analisam-se algumas tecnologias políticas e pedagógicas que
permitem à educação funcionar como uma disciplina ética, por intermédio da qual
cada indivíduo da geração mais nova se converte ele próprio em sujeito
reflexivo de acção moral. Não se trata de fazer uma sociologia das prescrições
morais mas de captar as práticas de relação com o self. O que nos interessa na
construção das subjectividades são as técnicas utilizadas pelos indivíduos na
sua reflexão sobre si e sobre a sua acção, como se conhecem a si próprios e se
auto-examinam, enfim, como se perfilam a si mesmos como objectos de melhoria e
decifração. As técnicas de si são práticas de reflexão voluntárias, através das
quais os alunos, mas também os professores, se procuram transformar a si
próprios, fixar-se regras de conduta e modificar-se na sua singular forma de
ser. Trata-se do principal dispositivo de autogoverno dos indivíduos, que se
exerce continuamente sem necessidade que haja quem governe directamente a
conduta de cada um. À governamentalidade é-lhe suficiente que haja quem se
sinta governado e, portanto, aja como se se governasse a si próprio. O que não
se coaduna com o apoucamento das subjectividades, mas, contrariamente, exige
uma particular forma na sua construção.
Foucault estudou estas tecnologias de subjectivação nos três volumes da
História da Sexualidade, referindo-se a quatro dimensões das artes de viver,
como eram designadas no século XVIII. Este esquema pode ser adaptado com
vantagem à apreciação sumária das práticas de criação de novas subjectividades
surgidas no sistema educativo português e bem representadas pela imagem do
aluno autónomo, responsável, participativo e automotivado.
A primeira dimensão destas práticas consiste na especificação da parcela de si
que é relevante para o julgamento ético pessoal. Qual é a matéria principal da
conduta que deve ser sujeita ao julgamento ético? Naturalmente que a resposta a
esta pergunta tem sofrido variações históricas importantes. O escrutínio que
cada um realiza em relação a si próprio pode ter a sexualidade, a alimentação,
as intenções ou o carácter como critérios de relevância principais. No caso em
apreço, a substância ética é formada pela auto-realização do aluno.
Estabelecer uma relação apropriada entre aspirações e expectativas, e a auto-
realização de ambas, parece ser a matéria por excelência das práticas éticas.
A segunda dimensão diz respeito às práticas do self propriamente ditas. A
ascesis define as formas de elaboração do trabalho ético que cada um efectua
na busca do seu eu verdadeiro. Assim, se considerarmos o exercício escolar como
o espaço-tempo por excelência do trabalho de ascese escolar, verificamos que
este pode ser praticado segundo regimes bastante diferentes, que podem assumir
a forma de conhecimento de si, de cuidado de si ou de domínio de si:
- o conhecimento de sidiz respeito às actividades de autoclarificação, que
assentam no imperativo de reconhecimento próprio: reflexão sobre a acção e na
acção, interpretação cuidadosa do significado pessoal dado aos conteúdos
escolares, apreciação da evolução escolar na forma de auto-avaliação;
- o domínio de si pode ser praticado por intermédio de um controlo regular da
conduta do aluno, pelos seus próprios meios ou com a ajuda de terceiros, à qual
se aplica um conjunto de operações que visam um certo estado de
aperfeiçoamento, de realização ou de sabedoria na utilização das tecnologias
intelectuais como a escrita, a leitura, a memorização, o cálculo, a
interpretação e por diante;
- o cuidado de si refere-se, entre outras coisas, ao que Marcel Mauss (1979)
designava por técnicas do corpo e Elias (1939, 1989) por condutas
corporais. Embora, no primeiro caso, o termo contemple, sobretudo, a clássica
descrição dos usos diferenciais do corpo, enquanto instrumento técnico, em
função das culturas, não prescinde também, necessariamente, dos códigos
explícitos que, mais tarde, Elias descreveria com tanta mestria a partir da
análise da etiqueta e dos manuais de civilidade.
Em qualquer dos casos, tanto as técnicas do corpo quanto as condutas corporais
dependem de um específico regime corporal baseado nas formas como os indivíduos
monitorizam as funções e acções corporais. Sobre este tema são especialmente
estimulantes as investigações antropológicas e históricas de P. Brown (1989) e
M. Mauss (1979). Nelas se demonstra como nem todas as capacidades humanas são
sujeitas, em todas as épocas e culturas, à problematização moral introspectiva,
ou, demonstrando a tese a contrario, que o alvo de tais problematizações está
sujeito a mutações históricas de grande alcance.
É particularmente esclarecedora a hipótese enunciada por Brown (1989: 178-186),
segundo a qual o facto de o ocidente moderno ter eleito a introspecção da
conduta sexual como alvo de controlo dos desejos humanos e de elevação
espiritual, em vez do vegetarianismo ou das dietas, se ter devido mais a uma
contingência histórica do que à descoberta de uma qualquer parcela, consciente
ou inconsciente, do self,que apenas por intermédio da conduta sexual moderada
se revelaria. O estudo detalhado que o autor faz da espiritualidade do
cristianismo primitivo revela que a eleição da conduta sexual como objecto
primeiro da vigilância moral, emerge num contexto de práticas ascéticas muito
específicas de virgindade e abstinência que não são gerais, e muito menos
esgotam as diferentes tecnologias de procura da santidade. Que se trata de um
particularismo histórico, que acabou por se transformar num substracto do self
moderno, por força dos desenvolvimentos posteriores e especialmente dos
decorrentes de Freud, é sublinhado pela comparação que Brown faz com outras
práticas virtuosas, como as propostas por Plotino, para quem a atracção
corporal generalizada por carne vermelha constituía a sua principal preocupação
ética.
A terceira dimensão é caracterizada por aquilo a que Foucault chama o modo de
subjectivação, isto é, os caminhos que levam a reconhecer uma obrigação moral.
Esta assumiu diferentes formas nas sociedades pré-modernas e modernas: leis
divinas e códigos morais, num caso, e melhoria da qualidade de vida ou
libertação das potencialidades individuais, noutro caso. De qualquer modo, a
equação que orienta os modos de sujeição coloca o pensamento moderno em
dualidade: de um lado, o pensamento sobre as normas sociais, do outro, o
pensamento sobre a autenticidade das opções individuais. A diferença
fundamental entre normas sociais e opções individuais é de escala. Como sucede
com a nova cartografia do sistema educativo, as normas tentam cobrir grandes
territórios e populações, sem atender aos detalhes, enquanto as opções atendem
à variabilidade dos pequenos territórios e à indeterminação da curta duração. É
neste hiato que se formam novos cenários para a prática ética do aluno autónomo
e motivado. Os cenários de formação do aluno autónomo têm características
pastorais e destinam-se à melhoria das capacidades individuais. Sem pretensão
de exaustividade, podemos distinguir dois cenários principais onde têm lugar
tais operações: na subjectivação do trabalho escolar e na terapeutização da
comunicação.
A quarta dimensão incide no que Foucault designa por teleologia do sujeito
moral. Para que uma acção seja ética ela não se resume a práticas pontuais e
parcelares, integrando-se num modo de ser a que o sujeito aspira por via da
acção moral. É nesta dimensão que aparece mais nitidamente a distinção entre
uma história da moralidade e a análise da ascese. Enquanto a primeira estuda em
que medida as acções de certos grupos e indivíduos estão em conformidade com os
preceitos e com os códigos de conduta, a segunda preocupa-se antes do mais com
aquilo que permite a cada um e a todos manter o domínio de si e das suas
condutas. Não que os códigos não tenham um papel na determinação do modelo de
sujeito escolhido. O ascetismo do homem puritano do século XVII pouco tem a ver
com a ascese do homem contemporâneo, e isto por força, também, do código de
moral vigente em cada período. Mas deve manter-se no método de análise a
distinção entre os elementos que correspondem à regra e os elementos que
correspondem ao esforço realizado para procurar transmitir e aperfeiçoar as
práticas de si que podem, ou não, conduzir ao estado moral socialmente
pretendido. Dito de outro modo, a condição de cidadão cumpridor das leis e
participativo tem no estado e nos seus códigos o quadro de referência, mas é
nas tecnologias do desenvolvimento pessoal e social, na busca incessante do seu
próprio caminho e opções que se constrói a subjectividade do aluno, futuro
cidadão.
Neste artigo abordaremos apenas as duas últimas dimensões: modo de
subjectivação e teleologia do sujeito moral.1
Modo de subjectivação
A subjectivação do trabalho escolar envolve a saturação do corpo do futuro
diplomado do ensino secundário com signos contraditórios: por um lado,
sensações, emoções, desejos e aspirações; por outro, cálculo, optimização de
objectivos e racionalidade de meios. A transformação do trabalho escolar em uma
matéria de realização pessoal e identidade psíquica surge associada ao cálculo
dos benefícios económicos ou de influência social futuros. A emergência de um
discurso sobre o papel da confiança nas possibilidades e capacidades próprias
no desenvolvimento sociomoral tivera já um ponto de inserção importante nos
relatórios de avaliação do ensino secundário unificado (ESU), mas é no Perfil
Cultural Desejável do Diplomado do Ensino Secundário (ME, 1988) que atinge
cumes de teorização e articulação entre diferentes saberes, com a consolidação
definitiva do conceito de autonomia. Enquanto nos relatórios do Projecto de
Avaliação do Ensino Secundário Unificado (PAESU) (GEP, 1979, 1980a-1980f,
1981a-1981g) esta constituía uma probabilidade, no perfil desejável apresenta-
se como um atributo inato. A autonomia é definida a partir de dois critérios:
-critério moral, sustentado na teoria do desenvolvimento sociomoral de R. Kegan
(1982);
-critério de motivação, necessidade de sucesso e espírito empreendedor,
ancorado nas teorias de McClelland (1961).
No primeiro caso, a autonomia é designada na negativa, por aquilo que não deve
ser: Esta autonomia que se opõe tanto à dependência como à desconfiança de si
e timidez (ME, 1988: 49). O estado de autonomia requer, portanto, competências
de interacção e relacionamento social que devem ser promovidas nas práticas
pedagógicas. No segundo caso, a autonomia é estabelecida positivamente e tem
evidentes pressupostos e repercussões na racionalidade económica: estar
disposto para lançar as bases do seu próprio posto de trabalho se essa for a
melhor via de realizar os seus valores e interesses (idem, ibidem); planear
as suas actividades a longo e médio prazo de modo a que possa estabelecer
prioridade de objectivos e racionalidade de meios (idem: 57).
No seu conjunto, esta dupla definição de autonomia coincide com o perfil do
individualismo possessivo que alguns autores anglo-saxónicos tomam como tipo-
ideal das sociedades liberais de matriz protestante: uma visão ontológica dos
indivíduos enquanto origem e guardiões das suas próprias capacidades. O
quadro 1 resume algumas das capacidades e traços inerentes ao futuro diplomado
do ensino secundário, bem como as práticas pedagógicas destinadas a promovê-
los.
Um rápido exame do quadro_1 torna evidente que os comportamentos e atitudes que
a escola se propõe desenvolver mantêm uma relação funcional entre os indivíduos
e a estrutura social. A participação e a educação para a cidadania sobressaem,
mas a relação com a estrutura económica está também presente noutras passagens:
exigindo a sobrevivência (do país) uma resposta de desenvolvimento, de
modernização e um espírito de inovação e criatividade, há que compreender que
estamos num momento de viragem. Isso deve ser tido em conta ao traçarmos o
perfil do jovem saído do 12.º ano da escolaridade. Jovem que não continuará a
ser protegido por uma instância pública, distante e omnipresente (guarda-chuva
para as incapacidades), uma vez que irá deparar com a concorrência dos
compatriotas e dos outros cidadãos europeus (idem:42).
O traço comum dos discursos psicologizantes sobre as capacidades intrínsecas ao
desenvolvimento individual sublinha a ideia de que a sociedade é melhorada pelo
esforço de cada um dos seus membros, em ordem à melhoria das suas posições e
destinos, através da participação política, do trabalho árduo e produtivo e do
espírito empreendedor. Esta gramática das formas de vida autónoma é
inteiramente consistente com a visão liberal democrática da sociedade e do
indivíduo, segundo a qual a capacidade de adaptação e de ser um agente de
mudança, num mundo em constante mutação, faz parte da própria realização
individual. O aluno autónomo é, antes do mais, aquele que se sente realizado na
profissão futura, suficientemente flexível para se adaptar às mudanças
tecnológicas e motivado para continuar a sua formação ao longo da vida (idem:
65).
A equação tailorista da produção de massa, assente na correspondência entre
posto de trabalho e destrezas necessárias para o seu desempenho, é substituída
pelas referências pós-fordistas da especialização flexível, da democratização
do trabalho e da previsível nova divisão internacional do trabalho. As
homologias entre os novos regimes de acumulação pós-fordistas e as propostas de
perfil são evidentes e muito directas. Utilizando como referência o quadro
síntese dos regimes de acumulação alternativos ao fordismo, proposto por Boyer
(1992: 28), podemos ter uma primeira aproximação a tais homologias. Lado a lado
apresentamos (no quadro_2) as consequências previsíveis de cada regime de
acumulação nas respectivas habilitações, no âmbito de uma nova organização
industrial, e os traços homólogos previstos no relatório sobre o Perfil
Desejável do Futuro Diplomado do Ensino Secundário.2
O que sobressai no quadro_2 é a imagem do futuro produtor cindida dentro de si
mesma: por um lado, os que seguirão uma formação profissional, orientada para o
trabalho manual pouco qualificado; por outro lado, os que seguirão uma formação
geral, longa, orientada para o trabalho mais qualificado. Tal dicotomia está,
no entanto, destinada à intercomunicação e reprodução permanente por via de uma
correcção das tendências que a radicalizam. No passado a dicotomia correspondia
a fileiras separadas de ensino o liceu e a escola técnica, industrial e
comercial. Agora, a decisão é remetida para as capacidades individuais, para a
motivação e para a realização pessoal, isto é, para o mérito de cada um. É o
nível de autonomia, de auto-estima e de auto-realização que decidirá o destino
de cada um. As propostas de correcção de tendências negativas na sociedade
portuguesa apenas confirmam a continuidade futura da dicotomia, porque esta
está inscrita no mais fundo das capacidades próprias de cada um:
quanto a este aspecto convém corrigir duas tendências na sociedade portuguesa:
a tendência para a especialização precoce, quer dos que trabalham manualmente,
quer dos que prosseguem os estudos, deixando os primeiros sem capacidades de
reciclagem e modernização, e deixando os segundos sem capacidade de emprego
imediato ou facilidade na aplicação concreta de conhecimentos abstractos
adquiridos; a tendência para a especialização precoce e rígida nalgumas áreas
do saber, atrofiando assim importantes dimensões humanas (ME, 1988: 63).
Deste modo se confirma duplamente a dicotomia educação-trabalho. Em primeiro
lugar, porque a tentativa de articular no mesmo plano de estudos conhecimentos
canónicos e conhecimentos práticos apoia-se no pressuposto de que pode existir
uma relação sequencial entre educação e trabalho. Tal relação acredita na
possibilidade de fazer corresponder estavelmente os fluxos de titulação com a
oferta de empregos. Ora, se alguma coisa ficou demonstrado nos anos que o
perfil desejável analisa, foi a desconexão estrutural entre a produção de
qualificações pelo sistema de educação e as qualificações requeridas pelo
sistema produtivo (Santos, 1994; Correia, 1997). Em segundo lugar, e
contribuindo também para esta desconexão, a acelerada transformação dos
processos produtivos e de serviços faz com que a educação seja um processo
tendencialmente simultâneo aos processos produtivos. Ora, a descoincidência
entre os tempos da formação e os tempos da sua aplicação é cada vez maior, por
força do prolongamento da escolaridade e do efeito de parqueamento originado
pelo aumento do desemprego juvenil. Daí que as propostas de reforma surgidas
nos anos oitenta, não podendo descuidar a resposta à procura social de
educação, por evidentes motivos de legitimação, e não conseguindo produzir
perfis profissionais adequados, por notória improbabilidade de o sistema
produtivo estabilizar as suas necessidades, optem por desvalorizar os conteúdos
e sobrevalorizar a autonomia do aluno. Esta passa a constituir o substituto
funcional de uma relação educação-trabalho desejada mas improvável.
Porém, a autonomia, como entidade ontológica global, não circula apenas no
espaço público da escola, contendo outras esferas, públicas umas, privadas
outras: relações com os pais, sexualidade, regime alimentar, estilos de vida e
de apresentação, emoções, medos, relações amorosas, desejos e por diante.
Constitui-se assim uma linha bissectriz entre o público, o doméstico e o
privado, onde é possível pôr em contacto aspirações sociopolíticas tradicionais
do sistema estatal de ensino com desejos e frustrações, até então do domínio
privado, no processo de afirmação e realização pessoal. Nestas esferas de
governo da autonomia actuam, entretanto, outros especialistas: psiquiatras,
terapeutas da família, médicos e psicólogos. No mesmo lance de dados, a
autonomia do aluno garante a criação de um nódulo onde se encontram discursos
até então desconectados.
O segundo elemento da homologia entre o pós-fordismo e o perfil do futuro
diplomado diz respeito à simultaneidade dos operadores linguísticos utilizados
num e noutro caso: flexibilidade, adaptabilidade e realização são traços que
definem as capacidades e disposições a desenvolver pela escola e que coincidem
com os novos contextos de trabalho. A competência em destrezas específicas de
trabalho dá lugar a uma fórmula bem mais exigente, que podemos expressar,
adaptando uma outra inscrita num relatório da OIT (1986), do seguinte modo:
Adapto-me + percebo + sou capaz + realizo-me = capacidade para o trabalho3
O terceiro aspecto da homologia está directamente relacionado com a lógica da
autonomia. A autonomia não é uma finalidade a obter no final de um determinado
percurso; também não é um instrumento destinado a garantir certos efeitos e
aquisições; é uma capacidade prévia que todos têm e que pode ser potenciada por
uma adequada prática pedagógica, ou retraída por uma pedagogia desadequada. Não
por acaso, o perfil do aluno autónomo é desenhado a partir dos métodos, mais do
que dos conteúdos; da forma, mais do que da substância:
ensinar a procurar e analisar a informação deve ser a preocupação dominante de
todos os professores. Tal competência é com efeito mais importante que a
absorção de qualquer conhecimento que depressa pode ser desactualizado (ME,
1988: 69).
O aluno passa a ser o conteúdo-forma, coincidindo, aliás, com o lugar-comum
pedocêntrico, segundo o qual o aluno deve estar no centro dos processos de
aprendizagem e da escola. É neste contexto que as noções e as tecnologias do
aprender a aprender e do aprender a estudar cumprem o seu papel disciplinador.
O ressurgimento da subjectividade no contexto escolar não pode ser encarado
como um fenómeno separado de outros contextos, em especial dos novos contextos
de trabalho, reais ou imaginários. Os novos procedimentos de uma pedagogia do
concreto, centrada na resolução de problemas ou na pedagogia do projecto, dão
uma nítida prioridade aos mecanismos operatórios sobre os saberes. Estes são
considerados na sua precariedade de saberes provisórios e efémeros. As
situações de trabalho escolar propostas visam a formação geral da pessoa e não
a formação para um posto de trabalho: formação na tomada de decisões, formação
no trabalho de equipa e na colaboração, desenvolvimento das capacidades de
adaptação, desenvolvimento das relações humanas e de camaradagem. Deste ponto
de vista, as tecnologias pedagógicas propostas apresentam uma adequação
funcional bastante evidente com as novas representações de um mercado de
trabalho em que os perfis profissionais estão em constante mutação. Uma
socialização escolar não-profissionalizante, centrada na inovação, na ambição
pessoal e numa atitude positiva perante o trabalho intenso e em equipa seria
uma matriz essencial às exigências actuais dos processos produtivos (Santos,
1994: 172).
A pedagogia do concreto e a atenção dada aos saberes quentes das práticas de si
e de si com os outros não são uma invenção contemporânea ou uma novidade
completa. Os antigos princípios comunitários parecem presidir ao perfil
proposto. Confiança, proximidade entre os seres, calor afectivo, globalidade do
ser põem em primeiro plano a inserção futura no meio ou na comunidade. Seria no
entanto inexacto ver nestas reflexões, sobre o valor da subjectividade
individual, apenas a manutenção de uma velha tradição pedocêntrica rousseauiana
(Mónica, 1997). E, certamente, mais anacrónico seria presumir que estas
problematizações teriam alguma continuidade com as chamadas pedagogias não-
directivas que, em Portugal, nunca tiveram mais que ténues manifestações. Pelo
contrário, é num ambiente de neodirectivismo e de racionalização do acto
pedagógico, por força da presença hegemónica da pedagogia por objectivos, que a
subjectivação deve ser analisada. É certo que não se deve desconhecer o que
pode haver de continuidade e de reactivação discursiva. O discurso pedagógico
sempre primou por esse movimento de vai-vém entre fórmulas cuidadosamente
mantidas e a sua reactivação, anos passados, em contexto político-institucional
muito diverso e com objectivos completamente díspares. Tudo se passa como se a
pedagogia tivesse escassos recursos intelectuais à sua disposição, que não lhe
permitissem fazer mais do que misturar, em proporções diversas, discursos e
instituições anteriormente formalizadas. No entanto, há muitos modos de à
geração actual fazer regressar textos passados: o divulgador que cita, o
historiador que interpreta e reconstrói, o crítico que desconstrói, o senso
comum que se apropria e renova, os especialistas que problematizam. O que
significa que o texto original nunca é reproduzido nas condições iniciais da
sua produção. Neste caso, uma parcela do discurso rousseauiano e dos seus
divulgadores funciona como um depósito de formas e conteúdos dispersos,
tornando-o ambíguo pela sua simplicidade e opaco pelo excesso de visibilidade.
A sua actualização é, simultaneamente, uma nova estratificação que o integra em
outros conjuntos discursivos. A esta operação damos o nome de deslocamento, e
consiste esta em reactivar enunciados antigos, reconhecíveis pelo communis
sensus do auditório electivo, em contextos institucionais contemporâneos. Neste
deslocamento constituem-se novas regularidades e dispersões, isto é, novos
relacionamentos de força que determinam regras singulares e, portanto,
modificações no diagrama final das forças. As modificações não dependem de um
novo significado que é aposto pelo presente ao significado original,
verdadeiro, do enunciado. Os discursos não são meros sistemas de significados,
porque fazem, eles próprios, parte de dispositivos técnicos e práticas que dão
um lugar e um estatuto aos que o fazem, de tal modo que aquele apenas se torna
inteligível em relação ao conjunto de conexões técnicas e discursivas que o
compõem. Daí que o deslocamento não seja discernível por uma exegese
hermenêutica que tende a conferir à origem um valor absoluto. Teremos então que
captar o ponto de encontro das séries discursivas e verificar como se
actualizam, se remodelam e se redistribuem.
Feito este ponto de ordem, continuemos a discussão. As diferenças sociais são
remetidas à sua ínfima expressão individual, reduzidos que são os mecanismos de
poder derivados da exploração a intrigantes, porque desconhecidos (por
qualquer motivo), meios de atingir níveis saudáveis de autonomia. O redactor
do relatório sobre o perfil desejável descreve do seguinte modo as
contradições básicas da sociedade:
o desenvolvimento do indivíduo projecta-se sempre na sociedade que ele forma.
Em sociedades em que grande parte das pessoas atingiu níveis saudáveis de
autonomia e integração, as relações humanas, legais e económicas são
caracterizadas por um sentido profundo de democracia, liberdade, justiça e
colaboração. Em contraposição, sociedades em que, por qualquer motivo, grande
parte dos indivíduos não atingiu níveis saudáveis de autonomia, são sociedades
em que tanto na vida civil como religiosa e económica, dominam as relações de
dependência, exploração e opressão. Os poucos que exploram os muitos não
atingiram a verdadeira autonomia, fazendo lembrar crianças que ainda julgam que
o mundo anda à volta delas. Os muitos que se deixam explorar ou que se
habituaram à dependência, perderam o estatuto de adulto, e portanto a
capacidade criadora e a motivação de progredir (ME, 1988: 40-41).
Nesta apresentação simplificada e vulgar das teorias do desenvolvimento
sociomoral, a democracia, a justiça e a liberdade são concebidas de forma
normativa. Os antagonismos sociais são explicados a partir de um sujeito
unitário, abstracto, que foge ao estado de autonomia. A multiplicidade de
posições do sujeito é vertida num conceito racionalista de um indivíduo
homogéneo, anulando assim, num lance único, a variabilidade das suas
identidades e a diversidade das relações de subordinação que o podem afectar.
Os sistemas educativos estatais não se limitam a formar o cidadão autónomo e
responsável, entidade universal e abstracta que legitima a lealdade de cada um
para com o estado. Pelo contrário, formam subjectividades diferenciadas segundo
o género, a classe e a etnia (Green, 1994): o trabalhador diligente e dócil, o
profissional conhecedor e independente, o contribuinte complacente, o soldado
honrado, o pai prudente e moderado, a boa mãe consciente dos deveres
domésticos, o empresário racional e eficaz, o imigrante integrado e aceite.
Quais os códigos de conduta e de conhecimento que sustentam estes perfis
normativos? A que tipo de valorização ética estão associados? Os princípios de
justiça em que se fundam são universais? Como podemos apreender esta
multiplicidade de relações de subordinação que podem afectar os indivíduos se
os encararmos como entidades homogéneas? Contrariamente a esta sugestão,
fundada nos pressupostos do liberalismo político e económico e em alguns
modelos normativos de desenvolvimento sociomoral, parece-nos decisivo sublinhar
a heterogeneidade e especificidade de modelos que assistem a práticas sociais
diversas e a contextos estruturais não homólogos. A unificação das práticas de
subjectividade deve antes ser entendida como um esforço de certos programas
políticos e científicos; não como o esultado inevitável da natureza ou da
cultura humanas.
Teleologia
A teleologia define o tipo de sujeito que cada um pretende ser por intermédio
da acção moral. Quais os estilos de vida, os modelos e as finalidades que
suportam os ideais sociais? Que regimes de verdade e que códigos de
conhecimento lhes subjazem? Que tipo de valorizações éticas lhes estão
associadas? Estas são algumas das questões que presidem à construção da
subjectividade heterogénea da modernidade tardia. A subjectividade é
heterogénea num duplo sentido: é-o em função dos modelos desencadeados em
diferentes práticas sociais; mas é-o também em função da circulação de cada
indivíduo por contextos que se articulam com formas particulares de lidar com
problemas e soluções para a conduta humana. Os tipos descritos por Rose (1996:
27-28), embora sugestivos, são apenas ilustrativos e não esgotam a
multiplicidade de práticas éticas que a fragmentação crescente da
subjectividade pode conter:
o profissional que exerce uma vocação com sabedoria e imparcialidade; o
combatente corajoso que persegue a honra através do risco calculado do corpo; o
pai responsável que vive uma vida de prudência e moderação; o trabalhador que
aceita docilmente a sua sorte, ancorado na crença na inviolabilidade da
autoridade ou na recompensa numa vida futura; a boa esposa que realiza os seus
deveres domésticos com eficiência e discrição; o indivíduo empreendedor que se
esforça por conseguir desenvolvimentos seculares na qualidade de vida'; o
amante apaixonado competente nas artes do prazer.
A existência destes e de outros ideais-tipo da modernidade tardia confirma a
imagem convencional de uma subjectividade coerente, duradoura e
individualizada. Que assume forma no conceito de identidade pessoal e social
das ciências sociais. Mas, simultaneamente, questiona-a, porque apresenta
formas múltiplas, transitórias e sobrepostas de cada um se apresentar ao mundo,
de tal sorte que o selfdificilmente se mostra compreensível nos termos de um
espaço fechado em cada individualidade.
É esta descoincidência entre fragmentação social do self e procura da
individualidade que abre o caminho às práticas e às conceptualizações que visam
a montagem do sujeito uno. À imagem do problema colocado pela estratificação
orgânica do corpo, que se traduziu na questão como fazer um organismo deste
corpo? , a segmentação do self traduz-se na questão: como fazer uma
subjectividade no interior deste corpo? O individualismo possessivo
corresponde à noção que melhor agrupa todas as teorias e práticas que visam
desenvolver a subjectividade como um dado primordial. A sua pregnância
epistémica é tão extensa que lhe permite pontos de inserção em outras regiões
do discurso. A vulgarização de algumas teorias do desenvolvimento sociomoral,
como as de Keagan (1982) e as de Kohlberg (1981, 1983, 1987), veio permitir o
tratamento da autonomia como um problema técnico que resulta da aprendizagem
diferencial dos sujeitos. Os modelos cognitivistas do desenvolvimento moral,
bem como os modelos da clarificação de valores (Raths, Harmin e Simon, 1966),
introduziram a crítica aos modelos de educação centrados nas virtudes,
salientando o papel central da decisão moral como contexto privilegiado do
exercício da liberdade individual e da autonomia. Durante os anos 60, o
psicólogo Lawrence Kohlberg desenvolve a bem conhecida teoria dos seis estádios
de desenvolvimento cognitivo-moral, com base em estudos empíricos realizados em
contextos culturais diferentes. Aprofundando a lógica dos estádios, o autor
rapidamente conclui que o contexto escolar pode fomentar uma progressão mais
rápida das crianças para estádios mais avançados de raciocínio moral.
Acrescenta assim ao formalismo dos estádios a contingência dos contextos. O
trabalho pedagógico sugerido inicialmente por Kohlberg reflecte a sua
perspectiva cognitivista, contrária à endoutrinação. Daí que o conflito
cognitivo se encontre no núcleo central da sua proposta de acção pedagógica,
reflectindo a crença na hipótese de a passagem para estádios mais avançados de
desenvolvimento se fazer com base na argumentação em torno de conflitos de
valores e dilemas morais. O papel do professor consistiria mesmo em apresentar
dilemas éticos difíceis, ou em introduzir uma perspectiva de solução
alternativa derivada de um juízo moral mais elevado, pondo os alunos em
situação de desequilíbrio que os obrigasse a superar o nível presente de
raciocínio. Seria este tipo de metodologia que impediria a endoutrinação,
porque não se dirigiria à transmissão específica de um conteúdo de valor mas,
antes de tudo, ao estímulo de novas formas de pensar e de julgar.4
Para que uma acção moral se possa inscrever num percurso destinado ao completo
desenvolvimento humano, a psicologia do desenvolvimento cognitivo-moral
procedeu à separação do momento e dos dispositivos da cognição moral
julgamento e raciocínio morais do momento e dos dispositivos da acção moral.
Com esta distinção obtém-se uma formulação conceptual mais adaptada aos
contextos pedagógicos e ainda a possibilidade de cindir em dois a
subjectividade do sujeito moral, assim tornado capaz, não apenas de agir
segundo princípios de justiça, como também de julgar a sua própria acção.5 É
nesta articulação entre o eu que age e o eu que julga o que age que se encontra
o núcleo central das tecnologias do self. E isto porque se apresentam diversas
combinações possíveis entre interior e exterior, entre sujeito e contexto,
entre inteligência e conduta: pode dar-se o caso de o nível de juízo moral
elevado de certos sujeitos não os conduzir a um comportamento moral
correspondente; pode dar-se o caso de as condições de funcionamento da escola
não favorecerem a expressão da justiça aprendida nos dilemas apresentados; pode
também dar-se o caso de os juízos morais exibidos num certo conteúdo não serem
transferíveis para um conteúdo diferente; pode, ainda, acontecer que a conduta
moral exercida num dado contexto político institucional ou organizacional
não se exerça, ou não tenha condições para se exercer, em contexto diverso. Em
qualquer dos casos, é a autonomia do juízo moral dos indivíduos que é
apresentada como reserva última para a resolução destas incongruências. E
quanto mais incongruência existe mais os processos psicológicos internos são
eleitos para as tarefas de descontextualização, devido ao seu grau de
generalidade e desterritorialização.6 Como sublinha Campos (1989: 19):
se os comportamentos e atitudes políticos são prioritariamente atinentes à
educação para a democracia, já os valores e os processos psicológicos são
também relevantes para as outras vertentes da formação pessoal e social.
A questão que esta tecnologia coloca é a de saber como controlar o excesso de
desterritorialização, que é também um excesso de impotência social.
Confirmando, talvez, a eficácia relativa desta forma de socialização para a
autonomia, todos os estudos realizados na década de 80 sobre os valores dos
jovens portugueses confirmam uma maior orientação para os valores pessoais do
que para os sociais. Esta conclusão conduziu mesmo o autor de um dos estudos a
interrogar-se sobre a relação entre autonomia pessoal e autonomia cidadã, nos
seguintes termos:
será que a par do que parece ser a emergência de uma elevada procura de
autonomia pessoal, se regista igualmente o crescer de um sentimento de
impotência, de ausência de controlo sobre os fenómenos sociais e políticos? Se
assim for, compreende-se que percam saliência os valores de igualdade,
solidariedade e intervenção social e que se tornem objecto de valor as
estratégias individuais de resolução dos problemas vividos (Vala, 1986: 26).
Não obstante, a corrente de pensamento do desenvolvimento cognitivo-moral viria
a ter uma grande divulgação no período que precedeu a chamada reforma
curricular e em especial durante as discussões a propósito das disciplinas de
educação cívica e de desenvolvimento pessoal e social dos novos planos
curriculares dos ensinos básico e secundário, aprovados pelo decreto-lei n.º
286/89 de 29 de Agosto. Estas realizaram-se a partir de duas componentes: uma,
política, centrada no conceito de educação cívica; outra, psicológica, centrada
na vertente sociomoral.7No primeiro caso, as referências do debate retomam,
numa forma moderada pela mediação do direito, a querela entre educação
confessional e educação laica, nos termos da qual os planos curriculares dos
ensinos básico e secundário integram ainda o ensino da moral e da religião
católica, a título facultativo, no respeito dos princípios constitucionais da
separação das igrejas e do estado e da não confessionalidade do ensino
público.8
Sem embargo, outro será o nosso ponto de observação, se quisermos perceber de
que modo o estado se propõe refazer e redistribuir as técnicas cristãs de
orientação pastoral para fins laicos e seculares (Hunter, 1996: 149). Dir-se-á
que no interior deste debate um outro veio de problematizações, mais
determinante, fizera o seu caminho entre o período das primeiras iniciativas de
educação cívica, associado à criação do ESU, e a publicação da Lei de Bases do
Sistema Educativo (LBSE). Referimo-nos à passagem de uma orientação colectiva e
normativa de educação cívica dos jovens, para uma orientação individual e
contingencial, logo, vinculada ao valor da responsabilidade. Atentemos no
percurso desta transição.
Nos primórdios da educação cívica, em tempo de democracia, a sua justificação
discursiva insistia na função social e patriótica da escola. Tanto os que
defendiam as disciplinas de educação cívica politécnica e os programas de
introdução à política como os que os atacavam, se reuniam afinal numa
plataforma discursiva comum: a da necessária educação num projecto nacional,
referenciado aos direitos e aos deveres relativamente ao estado e aos restantes
cidadãos, incorporando fortemente os futuros cidadãos na política nacional e
nos projectos estatais.9 Mais tarde, vai transitar-se para uma perspectiva
centrada na educação ética dos indivíduos, de modo a favorecer o exercício por
cada um do autodomínio, disciplina, previsão e autocontrolo. Doravante, não se
trata de cumprir um programa codificado de cidadania, segundo a moldura
constitucional de direitos e deveres, mas de responsabilizar o indivíduo pelas
consequências das suas escolhas. Contrariamente ao que foi referido por alguns
autores, esta mudança não facilitou a distinção entre inculcação de valores
confessionais, proposta pela igreja, e o desenvolvimento da competência do
sistema pessoal para a resolução criativa das tarefas da existência, proposta
pelos autores que, no campo científico, promoveram, no suceder dos anos 80, a
problematização da transmissão neutral de valores.10 Em boa verdade, os anos 80
foram os anos do regresso dos valores no formato de uma renovada articulação
entre o juízo moral das virtudes cristãs universalmente aceites, assentes
agora no consenso da matriz cultural portuguesa, e o encorajamento de uma
ética prática da vida quotidiana. Postas as coisas de uma maneira um pouco
diferente, enquanto, no contexto político da cidadania e no contexto neutral
dos especialistas das ciências psicológicas e pedagógicas, se fazia um percurso
favorável a uma educação para os valores, no âmbito do desenvolvimento
cognitivo-moral de cada indivíduo, no contexto religioso, procurava-se a
actualização dos valores consensualmente aceites, seja na forma universal,
nacional ou comunitária.
Paradoxalmente, é a igreja que ocupa o espaço público da criação de uma
identidade colectiva, de um nós,enquanto o discurso político-científico se
refugia no indivíduo e na sua ética individual. Produz-se assim, mesmo que
temporariamente, um défice de discurso político no domínio público e um excesso
de discurso moral no domínio pessoal. Com efeito, o discurso inscrito no
desenvolvimento cognitivo-moral, para se resguardar da politização excessiva,
recua para uma posição não política de cidadania, filiada numa das
características da concepção política de justiça de Rawls. Se bem que Rawls
apenas seja referido indirectamente,11 dificilmente se pode fugir à influência
da sua concepção política de justiça, porque segundo o enunciado da sua
terceira característica, esta não é formulada em termos de uma doutrina
religiosa, filosófica ou moral, geral ou abrangente, mas antes em termos de
certas ideias intuitivas fundamentais latentes na cultura política pública de
uma sociedade democrática.12 Kohlberg traduz esta concepção para o contexto
escolar e pedagógico nos termos da sua teoria das comunidades justas:
a teoria da comunidade justa postula que todas as crianças mais velhas e os
adolescentes têm duas preocupações ou paixões morais. A primeira é uma paixão
pela justiça, qualquer que seja o estádio de justiça do estudante. A pior coisa
que um estudante pode dizer sobre um professor é que ele é injusto. A segunda é
a paixão da comunidade, do sentido de pertença a um grupo que tem solidariedade
colectiva, solicitude e lealdade. A teoria não postula de forma romântica que
todos os estudantes são sempre ou naturalmente bons e sérios. Postula sim que
os estudantes correspondem usualmente à argumentação justa dos professores,
ainda que estas se situem num nível um pouco acima do seu próprio estádio, num
contexto de reciprocidade e igualdade (Kohlberg, 1987: 336-337).
Desta teoria resulta uma ideia intuitiva fundamental, que estaria inscrita
implicitamente na cultura pública da escola e dos professores: uma visão da
escola e da sociedade como um sistema justo de cooperação entre pessoas livres
e iguais. Uma das questões cruciais que está em jogo neste ponto de vista é a
criação de uma identidade colectiva, de um nós. Kohlberg e os que o seguem
consideram que esta não deve ser pensada na base da endoutrinação de valores
substantivos, mas antes enquanto dispositivo de discussão e deliberação
democráticas ou enquanto desenvolvimento dos processos psicológicos. A
neutralidade da escola e dos professores quanto aos valores estaria garantida
por este abandono da substância em favor do procedimento ou dos processos
psicológicos internos de cada um. No primeiro caso, o estabelecimento da
democracia directa ou participativa fornece a prevalência do direito sobre o
bem. Porém, esta prevalência deriva da existência de uma ideia de bem comum
constituída pelos princípios políticos hegemónicos.13 Nem Kohlberg nem os seus
émulos têm dúvidas de que a ênfase nos procedimentos não anula a necessidade de
excluir algumas concepções de justiça do consenso possível. Porém, uma vez que,
segundo Kohlberg, o movimento para estádios mais avançados de julgamento moral
é natural, quando um ponto de vista é excluído, é-o por necessidade imperativa
do exercício da razão, omitindo as relações de poder do processo de decisão.
Dessa forma, as relações de poder tipicamente escolares são encobertas por um
véu de racionalidade que desqualifica como irrazoáveis e irracionais todas as
posições que se afastam da universalidade normativa, apresentando-as como o
resultado de uma racionalidade puramente deliberativa. O argumento de Mouffe a
propósito da concepção de política de Rawls parece adequar-se perfeitamente ao
funcionamento das comunidades justas de Kohlberg:
parece acreditar que as discordâncias apenas respeitam às questões religiosas e
filosóficas e que, evitando essas questões controversas, é possível alcançar um
consenso quanto às formas como as instituições básicas da sociedade podem ser
organizadas. Está tão confiante em que só existe uma solução para este problema
e em que indivíduos racionais, deliberando dentro dos limites do razoável e
guiados apenas pelo seu proveito racional, escolherão os seus princípios de
justiça que considera que seria suficiente que um único homem calculasse o
interesse próprio racional de todos (Mouffe, 1996: 72).
No segundo caso, a passagem por uma hierarquia necessária de estádios do
desenvolvimento cognitivo-moral fornece a prevalência dos processos
psicológicos internos de cada um sobre a impessoalidade e imparcialidade dos
princípios de justiça universais. É neste pressuposto que Kohlberg tenta trazer
para o campo pedagógico o confronto tradicional entre moral e política, que tem
motivado as reflexões de outros liberais.14 Nos seus termos, Kohlberg propõe
que comecemos por resolver esta contradição no conflito que cada indivíduo em
formação encontra em si mesmo, estabelecendo depois relações entre os valores
morais da comunidade e os valores de cada indivíduo. Para os que advogam a
neutralização da política por intermédio das comunidades, é o seu estatuto
primordial ou pré-político que lhe fornece a capacidade de obter mais
facilmente a convergência relativamente aos ideais morais:
o modelo das comunidades justas utiliza os apelos à justiça e à solidariedade
como forma de suporte a uma comum moralidade. Apela à justiça para desenvolver
um sentido de comunidade e um sentido de solidariedade colectiva, para
desenvolver a justiça de comunidade. Honestidade e respeito entre os estudantes
e entre estes e os professores constrói um sentido de comunidade, o sentido de
pertencer a um grupo digno e bom. Um sentido de solidariedade e de valorização
partilhada do grupo e dos seus objectivos faz sentir aos estudantes a
importância de actuarem justamente. Se os estudantes votarem e fizerem eles
próprios as regras e os regulamentos, sentirão as regras como suas e
identificar-se-ão com elas (Kohlberg, 1987: 337).
Apresentam-se assim os elementos de uma eticopolítica que conjectura a
responsabilização de cada um para consigo próprio e para com os outros. De
qualquer modo, a moral daqui resultante é descontextualizada porque a
incorporação dos valores resultante é um bem pessoal e não social.15 Mas estes
têm de ser trazidos à vida em contextos de vida muito diferentes. Trata-se
então de saber quais os contextos de práticas sociais que formarão as futuras
comunidadesem que os alunos actualizarão este bem pessoal.
A concretização desta teorização no campo de aplicação pedagógica e curricular,
em Portugal, fornece-nos algumas pistas importantes para responder a esta
pergunta. Desde logo, a Lei de Bases do Sistema Educativo, por influência
directa de alguns especialistas das ciências da educação,16introduz no n.º 2 do
artigo 47.º, os contextos em que a formação pessoal e social se situará: a
educação ecológica, a educação do consumidor, a educação familiar, a educação
sexual, prevenção de acidentes, a educação para a saúde e a educação para a
participação nas instituições, serviços cívicos e outros do mesmo âmbito. Mais
tarde, estes contextos serão encaminhados para diferentes desenhos
curriculares: a Comissão de Reforma do Sistema Educativo propõe que é
necessário reservar uma hora semanal para o desenvolvimento autónomo deste
domínio ou área de formação (CRSE, 1988: 100), embora entenda que deve ser
tratado como um espaço curricular não disciplinar; a igreja católica propõe que
esta área seja obrigatória, disciplinar e alternativa no âmbito da educação
ética; o Conselho Nacional de Educação recomenda também a criação de espaços
curriculares não disciplinares de frequência obrigatória; finalmente, o decreto
da reforma curricular decide-se por uma opção mista de natureza
transdisciplinar quando prevê que todas as componentes curriculares devem
contribuir para a formação pessoal e social e multidisciplinar quando
determina que a área-escola deve incluir obrigatoriamente um programa de
educação cívica.17 Nesta operacionalização da decisão, o que sobressai é a
ambição de tornar transversais a todo o currículo escolar as preocupações de
educação ética e cívica, evitando, contudo, a simples dispersão por conteúdos
disciplinares vários. Mas por um motivo bem diverso das preocupações de
controlo do estado-educador. Enquanto estas se debatiam com a necessidade de
incorporar o futuro cidadão num espaço único de lealdade para com o estado, o
que se prevê agora é a circulação dos indivíduos por uma miríade de espaços
sujeitos a diferentes lealdades.
Talvez se perceba melhor assim por que razão as propostas provenientes dos
especialistas da educação obtiveram tanto apoio tácito. Contrariamente à
estranheza inicial manifestada por um desses especialistas (Bártolo Paiva
Campos), a introdução de uma perspectiva fragmentada da cidadania não encontra
qualquer oposição porque já estava suficientemente estribada nas
problematizações que vinham sendo feitas, quer no interior quer no exterior do
sistema educativo. Estas, como vimos, permitiram que a episteme da escola
ligada à vida fizesse o seu longo percurso que a levou de uma concepção
inicial,18 vinculada ainda ao discurso marxista e a um ponto de vista
estatista, baseado na ligação à produção e na superação da distinção entre
trabalho manual e trabalho intelectual, até à fragmentação da esfera pública da
cidadania dos anos 80, assente na destotalização da sociedade. Esta
destotalização é, antes do mais, o mapeamento da sociedade segundo um espaço
não homogéneo, cindido em diferentes domínios: do ambiente à sexualidade, da
saúde à vida familiar, do consumo à prevenção do risco. Mapeamento conseguido à
custa de um escrutínio público cada vez mais desagregado nas décadas de 70/80
regista-se a proliferação de inquéritos sobre atitudes, valores e sexualidade;
estudos de opinião, de produtos e de mercado; estudos dirigidos a grupos ou a
públicos-alvo como os jovens, as mulheres, os pobres e as minorias étnicas. O
resultado é a produção destas comunidades como realidade social empírica. Num
segundo plano, cada um destes domínios passou a conter ou a assegurar
institucionalmente o aumento das escolhas possíveis. O consumidor tem direito a
aconselhar-se sobre a relação custo-qualidade, os géneros têm direito a uma
opção de orientação sexual, o cliente tem direito à escolha dos serviços, o
votante tem direito a ser sondado sobre a sua opinião entre eleições, o cidadão
prudente tem direito a escolher entre riscos de magnitude diversa, enfim, o
cidadão tem direito a pensar segundo uma microética individualista que o
confina ao âmbito restrito da sua acção. Porém, como sublinha Apel (1984),
raramente esta capacidade microética de pensar tem competência para pensar ou
pedir responsabilidades numa escala global, isto é, a partir de uma macroética.
É neste espaço social do aumento das escolhas sem a correspondente extensão das
capacidades de escolha que se insere o projecto da disciplina de
desenvolvimento pessoal e social. Os especialistas tomam consciência de que
existe um défice de valores e de moral porque, como sublinha Rose (1999: 190-
191):
nesta cultura do self, as técnicas da formação de cidadãos nas escolas ou nas
micropedagogias dos talk shows confessionais e soap operas não são mais
centradas na inculcação de obrigações e morais exteriormente validadas. Elas
orientam-se para as práticas, técnicas e estilos de auto-reflexão e autogestão
necessárias à construção activa de uma vida ética.
É neste contexto que se desenvolve a actualização da velha ambição de os
sistemas educativos resgatarem num indivíduo abstracto a plena apropriação das
suas capacidades próprias.
Na nossa interpretação, a forma utilizada pela LBSE para caracterizar a área da
formação pessoal e social constitui a primeira tentativa para alargar as
tradicionais tecnologias de integração dos jovens nos mitos da cidadania
estatal, com expressão corrente na educação cívica, aos temas da formação para
a construção da sociedade civil, inicialmente representados por um agregado de
instituições cujos membros estão envolvidos em actividades não estatais. Daí a
referência privilegiada a domínios privados, corporativos e quase-públicos, que
vão da família (educação familiar e educação sexual) ao consumo (educação do
consumidor), da preservação do ambiente à prevenção rodoviária, da intervenção
em instituições públicas à intervenção no associativismo não-estatal. A
cidadania deixa de se realizar apenas numa relação directa com o estado ou numa
única esfera pública, estendendo-se agora à produção económica e cultural, à
vida familiar e privada, ao associativismo voluntário e às áreas de risco
social, tais sejam as da saúde, da sexualidade, do trânsito e do ambiente. O
futuro cidadão é cindido em tantos cidadãos-locais quantos os domínios da
subjectividade privilegiados:
- o cidadão-consumidor deve tornar-se num agente activo de regulação e de
estímulo da qualidade;
- o cidadão-produtor deve formar-se enquanto agente activo de inovação e
regeneração industrial;
- o cidadão-prudencial deve consciencializar e prevenir os riscos;
- o cidadão-chefe-de-família deve preparar-se para a vida familiar;
- o cidadão-político deve cumprir as suas obrigações de participação nas
organizações da sociedade civil.
Em síntese, a cidadania deve ser activa e individualista e não passiva e
dependente.
É esta cisão do sujeito em diversas subjectividades que torna imprescindível a
articulação de um espaço vertical disciplinar com um espaço transversal de
natureza transdisciplinar. Tanto um como o outro devem, segundo a CRSE,
procurar o enraizamento e ligação à comunidade. Trata-se de assim criar as
condições para uma nova ficção que recrie e congregue a zona das liberdades
naturais. Esta nova ficção é a comunidade. Em outros países este caminho fez-se
com a teorização de um terceiro espaço entre os aparelhos burocráticos dos
serviços estatais e o mercado livre. O terceiro sector passou a ser apresentado
pelos comunitaristas como a possibilidade de regressar a uma política baseada
numa ordem moral comum. Embora as referências à comunidade tenham ressonâncias
muito diferentes, as práticas que lhes correspondem vão fazendo o seu caminho
unificador: trabalho social voluntário e caritativo; mediadores escolares para
as minorias étnicas; redes de apoio local aos desempregados; participação dos
pais na gestão escolar. A comunidade, nos seus contornos iniciais pouco
definidos, não é um espaço geográfico delimitado nem tão-pouco um espaço
determinado por serviços ou uma certa constituição sociológica. Apresenta-se
antes como um espaço de relações, um campo moral que envolve as pessoas em
interacções duráveis. Etzioni (1997: 127), um comunitarista liberal, define do
seguinte modo este novo campo da governamentalidade:
a comunidade é definida por duas características: primeiro, por uma rede de
relações entre indivíduos, relações que muitas vezes se atravessam e se
reforçam mutuamente e, segundo, pelo grau de comprometimento com um conjunto
de valores, normas e significados partilhados e pela história e identidade
partilhadas numa cultura particular.
É nesta linha que a reflexão moral se desenvolve em Portugal no final dos anos
80. Tanto o ministro Roberto Carneiro como os seus dois secretários de estado
da Reforma Educativa, levam a cabo uma verdadeira batalha de restauração e de
regresso aos valores. Mas como fazê-lo sem encorajar uma visão moral única e
assim rejeitar o pluralismo liberal? Como pode educar-se para os valores numa
sociedade multicultural e multiconfessional, sem ferir os pressupostos da
liberdade individual e da autonomia pessoal? A opção não consiste em fazer um
recuo para uma ordem baseada em deveres impostos, mas antes na evocação de
alguns valores nucleares, supostamente partilhados pelos membros de todas as
comunidades.19Para o cumprimento desta tarefa, o discurso político vai procurar
uma dupla aliança com a igreja e com os especialistas. Porque esta moralidade é
considerada um limiar mínimo do discurso público, deixando intocadas as
concepções controversas de felicidade em que cada um se pode empenhar, não se
estranha que o campo político entregue aos especialistas, com cada vez maior
frequência, a tarefa de encontrar uma justificação neutra para a neutralidade
moral do estado. Em Portugal, a introdução de uma ética-política no sistema
educativo está inextricavelmente associada aos especialistas. Contrariamente ao
que tem sido dito, os especialistas têm introduzido frequentemente temas na
agenda política, embora esta colaboração poucas vezes tenha assumido um formato
orgânico sistemático. Na verdade, quer a fragilidade discursiva quer a
fragilidade associativa das ciências da educação não têm permitido a sua
participação regular enquanto comunidade, não obstante o papel determinante
desempenhado por alguns especialistas em momentos fulcrais da reforma
educativa.
É a linguagem do indivíduo empreendedor, com iniciativa e eficácia própria, que
vai cerzir dois universos aparentemente contraditórios. Como faz notar Pedro
d'Orey da Cunha, depois da queda do Muro é possível também chegar a uma
plataforma de estabilidade entre ciência e religião e entre orientações
ideológicas até então irreconciliáveis:
ora, creio que temos hoje em dia na Europa a possibilidade de, embora partindo
de pontos de vista opostos, chegarmos a uma plataforma de estabilidade em que
os que realçavam sobretudo a autonomia, se empenham agora também na
solidariedade; e os que enfatizavam a solidariedade querem recuperar, de braços
abertos, a autonomia ( ) Na linha da abertura à autonomia, significa em
primeiro lugar um muito maior empenho na educação para essa mesma autonomia. Os
métodos de aprendizagem têm de ser dirigidos ao reforço da auto-estima do
aluno, à promoção da sua criatividade, espírito de empreendimento, de
iniciativa, de eficácia própria (Cunha, 1991a: 8-9).
Nas mãos dos especialistas é colocada a tarefa de reconciliar os princípios de
racionalidade do liberalismo: requerendo que os indivíduos se conduzam,
simultaneamente, enquanto sujeitos de liberdade e sujeitos sociais. Estes, ao
tornarem visíveis domínios anteriormente discutidos no terreno da filosofia,
tornam possível imaginar a regulação da existência individual e colectiva
através de um conhecimento que funde valores e virtudes.20 A auto-estima, a
criatividade, o espírito empreendedor e a auto-eficácia passam a estar
associados a tecnologias de diagnóstico psicológico e a racionalidades
pedagógicas que operam as conexões necessárias entre ética e política. Os
alunos ligam-se a um campo social por intermédio de actos de escolha regulados
e não por força do constrangimento ou da obrigação. São as novas categorias
psicológicas que escrutinam o self e a renovada pedagogia da autonomia que
assegura a transferência dos problemas do governo do estado para os indivíduos.
Como faz notar o ministro da educação Roberto Carneiro, na abertura do
seminário sobre Formação Pessoal e Social, organizado em Janeiro de 1991 pelo
IIE:21
este trabalho é de grande dificuldade técnica e científica, pois não se trata
de elaborar programas em moldes tradicionais, como matérias de leccionação, mas
sim percursos de desenvolvimento e de integração. Tais percursos, balizados por
orientações universais e comuns, devem ser delineados e desenvolvidos pelos
próprios alunos, pois pretendem, essencialmente, constituir o campo em que
eles, como pessoas em sociedade, se constroem no seu próprio itinerário de
maturação. Trata-se de libertar e não de constranger; visa-se acolher, com
naturalidade, a diferença e a escolha, ao invés de impor, arrogantemente, o
molde e a marca. Com justeza, encara-se esta vertente essencial da reforma
educativa com critérios de exigência e de qualidade.
Neste parágrafo estão condensadas as três principais formas de conexão entre os
especialistas, psicólogos e educadores, e as novas formas de governo liberal:
racionalidade, autonomia e um novo privatismo. Racionalidade em primeiro lugar:
o exercício da dominação legítima sobre a cidadania exige uma base técnica e
científica. Embora o discurso educativo deste período sublinhe sempre o primado
dos referenciais axiológicos, é na ciência que se procuram os cálculos e as
justificações respectivas. É esta dependência do poder político face a um
conhecimento verdadeiro e a técnicas eficazes que abre um vasto e prometedor
território aos especialistas, quer por intermédio da intervenção individual,
quer das suas organizações corporativas ou, ainda, da tecno-estrutura do
próprio ministério.
No período analisado a autonomia é o tema hegemónico do discurso político,
ético e científico sem distinção ideológica. Esquerda e direita confundem-se
nos seus arroubos autonómicos. O homem liberal a que aspira a formação pessoal
e social deve construir todos os aspectos da sua vida como o resultado de
escolhas entre várias opções. Cada atributo da pessoa deve realizar-se por
intermédio de decisões pessoais e é justificado nos termos das necessidades,
motivações e aspirações do self. As tecnologias propostas pela psicologia
ganham um peso tanto maior quanto mais evidente é o seu envolvimento no
projecto de resgate da personalidade integral do indivíduo.22 Os enunciados são
conhecidos e são um lugar-comum: a tarefa da pedagogia é transformar as
crianças e os jovens em cidadãos modernos e autónomos, motivados e
responsáveis, capazes de resolver problemas em contextos turbulentos e
incertos. Faltando modelos com respostas universais apresenta-se uma nova
tecnologia de controlo social. Em vez da pilotagem directa, a acção à
distância; ao contrário da imposição normativa, a determinação de resultados e
de perfis a obter; em vez da definição de procedimentos estritos de trabalho, a
sugestão de modos de auto-regulação; substituindo o conceito de conhecimento
curricular fixo e estável, o conhecimento plural e contingente; somando-se às
tradicionais competências cognitivas de saber e saber fazer surgem as
competências do saber ser.
O local de exercício do poder desloca-se para a actividade produtiva de cada
sujeito, para as suas capacidades e, em última instância, para a construção da
subjectividade de cada um. Não age tanto pela coacção, constrangimento ou
extracção mas antes pela incitação, indução e produção. Tudo se encaminha para
a formação de sistemas de acção à distância cada vez mais alargados. Quando se
elabora um consenso local, fora das estruturas formais de poder, em que cada um
interpreta os valores de outros na sua própria linguagem, definindo assim um
padrão subjectivo regulador da sua própria conduta, forma-se um sistema de
acção à distância. Estes sistemas de acção constituem novas relações de poder,
não percebidas enquanto tal, porque formalmente distintas e autónomas das
tradicionais fontes de poder.
A problemática da governamentalidade liberal depende da criação de novos
espaços privados, exteriores à moldura formal dos poderes públicos. Os espaços
privilegiados são a família e as organizações. Os objectivos estabelecidos para
o ESU e para o ensino secundário no seu conjunto recuperam grande parte do
discurso psicológico e pedagógico sobre a autonomia, a individualização e a
auto-responsabilidade do aluno. Não se trata de uma novidade mas de uma
remanência das antigas técnicas pastorais de si. O próprio termo
individualização não surgiu evidentemente neste período e assinala mais do que
uma alteração de vocabulário. O uso do termo foi reactivado em relação com
outros fenómenos: o desenvolvimento de domínios de conhecimento diversos, que
vão dos mecanismos psicológicos do eu até às variantes sociais do
comportamento; a elaboração de um conjunto de regras e de normas, parte delas
tradicionais, que se apoiam na escola e na família; mudanças também no modo
como os alunos foram levados a conferir sentido e valor à sua conduta, aos seus
deveres escolares, aos prazeres, aos sentimentos e às sensações. Por isso
devemos evitar o viés de apreciação muito comum quando se opõe autonomia e
poder, subjectividade e cidadania estatal. Consiste este no juízo de valor que
associa à subjectividade e à auto-regulação um valor positivo, como se estas
fossem em si um valor ético e não uma tecnologia de governo como de facto são.
Notas
1 Para uma análise mais aprofundada e detalhada, ver Rui Gomes (2000), em
especial o capítulo V, intitulado As tecnologias do espaço social e da
subjectividade, pp. 330-477.
2 Utilizamos propositadamente a tipologia de Boyer, porque esta problematiza
modelos teóricos alternativos e não analisa realidades empíricas. O perfil
desejável constitui também um modelo de problematização, embora bastante
normativo e prescritivo que, em grande medida, imagina um regime de acumulação
pós-fordista completamente incipiente ou inexistente em Portugal.
3 Este relatório da OIT expressa as novas capacidades requeridas pelo trabalho
do seguinte modo: I understand it + I can do it + I care about it = capacity.
4 Não obstante a insistência dos argumentos de Kohlberg contra a endoutrinação,
o sistema dos três níveis de desenvolvimento não é, evidentemente, neutro
quanto aos valores.
5 Kohlberg só consolidou esta distinção no seu aparato teórico a partir do
momento em que se envolveu directamente nas reformas educativas, nos anos 70 e
80.
6 Utilizamos aqui a noção de desterritorialização das subjectividades à maneira
de Deleuze e Guattari (1980, 1997: 166): o que distingue mais essencialmente o
regime significante e o regime subjectivo, assim como as suas respectivas
redundâncias, é o movimento de desterritorialização que eles efectuam ( ) Vimos
que o regime subjectivo procedia de outro modo: justamente porque o signo rompe
a sua relação de signo, e segue uma linha de fuga positiva, alcança uma
desterritorialização absoluta, que se exprime no buraco negro da consciência e
da paixão. Desterritorialização absoluta do cogito. Eis porque a redundância
subjectiva parece implantar-se sobre o significante. Neste sentido, o absoluto
de consciência obtido pela subjectividade é também um absoluto da impotência
social. A subjectivação é essencialmente constituída por processos lineares
finitos porque a consciência é o seu próprio duplo.
7 Ver, a propósito, os textos de dois colóquios realizados em Portugal sobre
este tema: um subordinado ao tema Socialização e Educação para os Valores
Democráticos e os Direitos do Homem; do segundo, intitulado Educação e
Desenvolvimento Pessoal e Social, resultou a publicação de um livro com a quase
totalidade das conferências e comunicações apresentadas: Júlia Formosinho e
outros (1992). Sobre este tema, ver ainda, no contexto da reforma curricular:
CNE (1990), João Fraústo e outros (1987); Pinto Machado e outros (1990). No
contexto académico e de divulgação científica: Júlia Formosinho (1988); Ramiro
Marques (1990); Ramiro Marques (1991).
8 Cf. nº 2 do artigo 47º da Lei de Bases do Sistema Educativo(1986). Em torno
deste artigo geraram-se as mais díspares interpretações, debates e formulações
jurídicas, originando, para além de negociações entre o governo, o presidente
da república (Mário Soares) e a igreja, pareceres do Conselho Nacional de
Educação, da Comissão de Reforma, da igreja católica e de uma comissão
(coordenada por Pinto Machado) constituída por personalidades de diferentes
meios políticos e culturais. Também o Tribunal Constitucional viria a exercer o
seu poder regulador através do acórdão nº 423/87 de 27/10.
9 É certo que os discursos políticos não eram textualmente sobreponíveis, mas
não teremos dúvidas em afirmar que tinham a mesma natureza, não obstante
pugnarem uns pela incorporação em projectos mobilizadores de defesa da
revolução, de cariz mais social, e outros em projectos de dominação
burocrática, de cariz mais político.
10 Esta formulação pertence a Bártolo Paiva Campos que, num dos artigos
publicados sobre a temática da formação pessoal e social, põe a hipótese de
esta designação se prestar a acentuar duas perspectivas que, embora com zonas
sobreponíveis, fazem evoluir a implementação da área em direcções completamente
divergentes e a que, para simplificar, chamarei a educação para os valores' e
o desenvolvimento da competência do sistema pessoal para a resolução criativa
das tarefas da existência'. As forças sociopolíticas que impulsionam a
primeira, até agora as mais fortes, focalizam-se na designação e em todos os
objectivos da Lei que apoiam esta interpretação. As que impulsionam a segunda,
até agora as mais frágeis, estão sempre a chamar a atenção para as componentes
e para as dimensões com elas relacionadas que estão aquém do processo de
interiorização dos valores; sem grande eficácia até agora. (Campos, 1992: 15-
16). Em boa verdade, o facto de a designação formação pessoal e social conter
perspectivas que servem de suporte a forças sociais e políticas diversas,
corresponde a uma relação não necessária entre discursos heterogéneos. É o caso
da relação entre o discurso social-cristão dos valores, o discurso do
desenvolvimento cognitivo-moral da psicologia e o discurso cívico da tradição
republicana. A totalidade que as correlaciona num determinado momento define a
montagem de discursos de proveniência diversa e até contraditória, mas que se
articulam para produzirem uma narrativa única representativa do todo.
11 Com efeito, Kohlberg faz referência em alguns textos à tradição liberal e
racional de Kant, Mill, Dewey e Rawls. É o caso de um artigo de 1975, publicado
na revista Educational Leadership, 33, pp. 46-54, no qual filia a distinção
entre princípios universais de justiça e regras nessa tradição liberal.
12 Utilizamos aqui a tradução de Rawls citada por Chantal Mouffe no seu livro O
Regresso do Político, Lisboa, Gradiva, 1996, p. 70. A citação original
encontra-se no artigo The idea of an overlapping consensus, Oxford Journal of
Legal Studies, 7 (1), 1987, p. 6. E fazêmo-lo porque a análise crítica da
concepção não política de cidadania da teoria de Rawls a que a autora procede
se insere no nosso próprio percurso crítico das teses de Kholberg e dos seus
divulgadores em Portugal.
13 Num artigo já citado, datado de 1978 (Moral education reappraised, The
Humanist, 38, p. 14), Kohlberg estabelece uma forma mais activa de obter
consensos generalizados nas comunidades escolares: Acredito agora que a
educação moral pode assumir a forma de endoutrinação' ou inculcação sem violar
os direitos da criança se houver o reconhecimento explícito de direitos
partilhados por professores e estudantes e enquanto a defesa de certas posições
pelo professor for democrática, ou sujeita aos constrangimentos criados pelo
reconhecimento da participação dos estudantes no processo de produção de regras
e de apresentação de valores. O que Kohlberg tem em mente é a criação de
condições ideais de discussão racional, baseadas em normas amplamente aceites
nas sociedades modernas. Diálogo racional e respeito equitativo seriam as duas
normas capazes de especificar um ponto de vista a partir do qual todos os
membros da escola poderiam examinar a justiça das instituições e das condutas.
14Ver, por todos, Thomas Nagel (1991), Equality and Partiality, Oxford, Oxford
University Press.
15 Utilizamos aqui este conceito com o sentido que lhe é dado por Giddens,
embora procedendo a uma expansão evidente da sua aplicação.
16 Bártolo Paiva Campos, deputado do PRD e membro da subcomissão que negociou e
elaborou a redacção final da Lei de Bases, relata o modo como esta influência
se concretizou (Campos, 1992: 14).
17 Decreto-lei nº 286/89 de 29 de Agosto. Este decreto determina também,
seguindo a posição da igreja católica, que, em alternativa à disciplina de
Desenvolvimento Pessoal e Social, os alunos poderão optar pela disciplina de
Educação Moral e Religiosa Católica (nº 4 do artº 7º), condicionando à
obrigatoriedade da frequência de uma das duas disciplinas (nº 5 do artº 7º), em
clara violação da Constituição.
18 Referimo-nos à disciplina de educação cívica politécnica, do ensino
secundário unificado.
19 O secretário de estado da Reforma Educativa, Pedro d'Orey da Cunha, foi
particularmente prolixo na divulgação desta posição, que anuncia o regresso do
raciocínio moral aplicado ao tratamento das instituições políticas. Para
recuperar o aspecto normativo são introduzidas na discussão política
preocupações morais sobre a autonomia, a solidariedade e a imparcialidade, numa
matriz europeia minimal que, sublinha-se, é a matriz católica (Cunha, 1991a:6-
7).
20 O tema das virtudes é reintroduzido no debate sobre a formação pessoal e
social por intermédio das propostas de Kevin Ryan (1986). Mais uma vez, é Pedro
da Cunha um dos mais constantes divulgadores das suas posições, introduzindo a
diferença entre desenvolvimento cognitivo e formação do carácter. (Ver e. g.
intervenção do secretário de estado da Reforma Educativa na sessão de
encerramento do seminário Formação Pessoal e Social: Oportunidade do Momento
Presente, Lisboa, 23 de Janeiro de 1991, documento policopiado, pp. 7-8).
21 Discurso do ministro da educação, Roberto Carneiro, na abertura do seminário
Formação Pessoal e Social em Debate, Lisboa, 22 de Janeiro de 1991, documento
policopiado, p. 11.
22 É a proposta global de reforma que mais explicitamente sintetiza a
perspectiva da autonomia, vista do ponto de vista dos psicólogos, e o seu
empenhamento no desenvolvimento integral do self (ME, 1988: 124).