Redução de riscos, estilos de vida junkie e controlo social
A passagem dum fenómeno natural a procura voluntária de estados alternativos
de humor, de percepção, de consciência e de comportamento ao estado de
objecto de práticas discursivas e interventivas tem-se revelado um processo
historico-social longo e carregado de contradições. Bastariam exercícios
simples, como, por exemplo, o de definir droga, o de distinguir as legais das
ilegais ou o de estabelecer os critérios de um consumo problemático, para dar
conta da dificuldade dos consensos, num campo repleto de infiltrações
ideológicas, de intervenções políticas e de interesses corporativos. É por isso
que, quando um especialista é chamado a falar de drogas para um público
alargado, começa geralmente o seu discurso com uma frase que é um misto de
tique verbal e de pedido de desculpa: Estamos perante um fenómeno muito
difícil, multifactorial e complexo.
Perante este estado difuso de consciência científica em que nos coloca a série
heterogénea de fenómenos a que chamamos a droga surpreende a clareza com que
os discursos da redução de riscos definem esta política interventiva, o modo
aparentemente consensual com que lhe traçam as justificações e as origens, o
tom pragmático com que descrevem programas de acção. É como se uma súbita
clareza de espírito tivesse enfim condições para se estabelecer, depois da
desorientação técnico-interventiva provocada pelos anos loucos daacid trip, que
nos tinham feito confundir droga com loucura, depois ainda dos anos cannabicos,
que associaram juventude a perigosidade e a uma aparência de ruína da ordem
escolar, depois finalmente, dos anos da heroína, que colocaram as drogas no
epicentro de todas as problemáticas ameaçadoras da ordem social. Com efeito,
uma ortopedia moral do apelo urgente à intervenção conviveu mal com a
necessidade de pensar em razão o fenómeno da psicoactividade e a redução de
riscos parece a primeira política interventiva que aceita um convívio com a sua
lógica profunda.
Neste artigo abordaremos, de início, a definição e a justificação da redução de
riscos, situar-lhe-emos a origem e a chegada a Portugal, para em seguida
desconfirmarmos a clareza conceptual e interventiva trazida pela redução de
riscos ao debate sobre o objecto droga. Procuraremos demonstrar o seu carácter
de disciplina normalizadora das desordens sanitária e securitária e o conjunto
de contradições em que se movimenta não fugindo, deste modo, ao carácter
impensado de todas as práticas sociais, cujo labor profundo age à revelia da
sua racionalidade discursiva.
Redução de riscos: definição e condições de possibilidade
A redução de riscos é uma política social que visa diminuir, atenuar ou
controlar os efeitos negativos do consumo de drogas, que se traduzem em
problemas na esfera social ou na perspectiva individual do consumidor
(Newcombe, 1995; O'Hare, 1995). As principais características de um programa de
redução de riscos têm a ver com o fácil acesso para a população consumidora
(daí a criação de unidades de apoio móveis), e com a operacionalização de
estratégias que contribuam para a melhoria das condições de vida dos
toxicodependentes.
O conceito de redução de riscos começou a adquirir alguma visibilidade no final
da década de 80, no entanto, a sua difusão e implementação foi bastante
progressiva, assumindo diferentes contornos nos vários países. Basta um breve
olhar pela literatura para se tornar saliente um forte consenso relativamente
às principais razões apontadas para justificar o aparecimento deste tipo de
estratégias: por um lado, a questão sanitária, devido à crescente propagação de
hepatites víricas e da sida; por outro, a constatação do fracasso das terapias
tradicionais (Petisco, 2001; Marlatt, 1998; Newcombe, 1995; O'Hare, 1995). Os
primeiros programas formais de redução de riscos desenvolvem-se na Holanda e no
Reino Unido. Nestes países este tipo de medidas encontrou um contexto
histórico, político e cultural favorável à sua implementação, inclusivamente
algumas estratégias faziam já parte do sistema assistencial por exemplo, a
prescrição médica de heroína em Liverpool data de 1920.
Na Holanda, este movimento foi muito estimulado pelos próprios consumidores
(logo no início dos anos 80) e apoiado pelo governo. A distribuição de
seringas, por exemplo, hoje uma das principais medidas (senão mesmo a
principal) para reduzir o contágio por HIV, foi impulsionada por uma
organização de consumidores a Junkiebond.Em Portugal, a expressão que este
tipo de programas adquiriu, no seio das estratégias de intervenção na
toxicodependência, constituiu um processo lento, feito de avanços e recuos,
polémicas e múltiplas resoluções de conselho de ministros. Só muito
recentemente as políticas de redução de riscos foram aceites e oficializadas.
Até meados dos anos 90 a sua visibilidade era praticamente nula (Maia Costa,
2001b), em virtude do carácter fragmentário, quase clandestino que caracterizou
a implementação no terreno de medidas como a distribuição de seringas, ou os
programas de substituição por metadona.1 Aceitá-las implicava questionar a
ideologia sociedade livre de drogas e, mais concretamente todo o Plano
Nacional de Luta contra a Droga, até aí em vigor. Contudo, esta resistência
política altera-se, pelo menos aparentemente, de tal forma que se passa de uma
situação de quase inexistência deste tipo de programas (ao contrário do que se
verificava, como vimos, noutros países), para um quadro em que aparecem quase
sob a forma de boom.
O dec.-lei 183/2001 de Junho (que aprova o regime geral das políticas de
redução de danos) é bem demonstrativo da multiplicação de propostas e
estratégias e do refinamento das mesmas, sob a égide do pragmatismo e do
humanitarismo. Neste documento estão presentes estes dois princípios
orientadores: do que se trata é de, em certas situações limite, prescindir da
abstinência como objectivo imediato e necessário, por forma a assegurar uma
intervenção quando o consumo de drogas se apresenta como um dado incontornável.
E se essa intervenção é inspirada por uma atitude eminentemente pragmática, não
é menos verdade que responde também à preocupação ética de respeitar e promover
os direitos dos toxicodependentes.
Contudo, minimizar danos ou reduzir riscos parece-nos entrar em contradição com
as políticas proibicionistas. A própria lei, que no campo das drogas não se tem
mostrado muito sensível às contradições entre as suas prescrições e o
desenrolar dos factos, parece desta vez ter sido sensível ao paradoxo, propondo
a descriminalização do consumo.
2 As sucessivas adaptações que os mercados das drogas foramfazendo, como
resposta às políticas criminais fortemente repressivas, conduziram à criação de
condições de apresentação e circulação dos produtos e a técnicas de consumo que
são, no seu conjunto, muito mais portadoras de risco para os utilizadores do
que a substância psicotrópica em si (Blanken e outros, 2000; Fernandes, 1998;
Dorn, 1995). O desenvolvimento de políticas de redução de riscos é, deste modo,
inseparável do estatuto de ilegalidade que relegou as drogas para as margens do
sistema sociocultural, fazendo-as retornar ao seu centro como um problema: de
marginalidade, de estigmatização, de perigosidade. A redução de riscos é, pois,
uma política cujo plano profundo se liga, como veremos a partir de agora, às
condições do estilo de vida junkie.
Ojunkie: falência dos auto e dos heterocontrolos
Aredução de riscos nasceu quando uma figura das drogas o junkie introduziu
uma novidade na sucessão das figuras que até aí tinham protagonizado o fenómeno
droga: é ele o primeiro a não conseguir ter estratégias espontâneas de controlo
de riscos e danos. É, também, o primeiro a demonstrar o falhanço das terapias
tradicionais. Falência, pois, a propósito da figura do junkie, dos auto e dos
hetero- controlos.
Como pode o conjunto dos nossos trabalhos etnográficos caracterizar a figura do
junkie, de modo a tornar inteligível o nosso argumento de que foi a sua radical
forma de estar, tanto com as drogas duras, como com as instituições
terapêuticas, que criou condições para a mudança que hoje é interpretada pela
redução de riscos?
O junkie caracteriza-se por organizar toda a sua vida em função da sequência
compra-chuta-curte-ressaca-compra.Quando compra só pensa em chutar, quando
regressa do chuto só pensa em chutar, para isso tem de comprar e quando
consegue comprar só pensa em chutar. Tudo o que faz é em função disso, todas as
suas interacções também. O seu dia-a-dia, quando não fica em casa com o
sofrimento da abstinência ou com a aquietação de estar bem (quando tem pó), é
uma sucessão de encontros, pequenas viagens (às zonas quentes), táxis,
seringas, chinesas As suas relações sociais são normalmente fragmentárias,
são instrumentais: ocorrem por causa do pó. Fora do pó, a vida é um longo
momento em que se desmultiplicam estratégias (interactivas e económicas) para
arranjar pó. Fora do pó só há pó. Com o pó também eis o desígnio
junkie,dimensão refinada da toxicodependência. ( ) O junkieé, pois, aquele cujo
acto foi invadido pelo pó, passando de sujeito que dispunha de si a indivíduo
determinado rigidamente pelo químico (Fernandes, 1998). Uma das
particularidades que nos parece central nesta figura é a sua já longa
estabilidade, que contrasta com a fugacidade de outros tipos de relacionamentos
com drogas anteriores a si.
Falência dos autocontrolos
A falência dos autocontrolos, fazendo do junkie uma figura com o destino à
mercê de circunstâncias que tenta agarrar e sempre lhe fogem, não radica no
interior do seu espaço psicológico, não é, portanto, redutível a uma
psicopatologia da adição, contada a partir dos estados borderline, das
alexitimias, ou doutras entidades clínicas que lhe explicassem o agir. A
falência dos autocontrolos é, tão-somente, o corolário do labor construtivo do
problema da droga que, estigmatizando os estados psicoactivos alcançados
através de substâncias arbitrariamente definidas como ilegais, relegou os seus
utilizadores para um limbo social onde se amalgamam a doença, a delinquência e
a perigosidade. A falência do autocontrolo é a consequência natural de
trajectórias de vida em que tudo o que toca às drogas é ditado de fora, através
das representações hegemónicas e da actuação dos poderes de esconjuração da
droga.
O junkie não consegue gerir o limite. Nem sequer parece conhecê-lo bem:
enquanto há dinheiro, consome. Daí que o único limitador seja o factor
económico. E atribui sempre a estímulos externos tanto o consumir como o
conseguir deixar a droga. São típicas as frases Não fui eu, foi a droga,
Quando dei por mim . Enquanto, parece-nos, nas outras figuras das drogas
havia um controlo interno da relação psicotrópica que permitia gerir os
consumos. A redução de riscos como dispositivo assistencial só se torna
necessária quando tal gestão deixa de estar internalizada.
O junkie tem grande dificuldade em reconhecer que está a ficar dependente;
identifica mal os primeiros sinais de abstinência: pensa que está e não está,
pensa que não está e já está O junkie não gosta de drogas que proporcionem
experiências psiconáuticas. A cabeça foge-lhe e ele está mais interessado na
ligação do efeito ao seu registo corporal daí o risco e o dano serem
sobretudo vividos ao nível do corpo.
O junkie: sozinho com a sua seringa, já afastado, por degradação relacional,
dos locais onde antes consumia, tem como habitat para o chuto a cidade em
declínio lugares em ruína, como pavilhões industriais abandonados, casas
devolutas ou em construção e terrenos ocos. As condições de consumo são duras,
desconfortáveis e marcadas pelo receio tanto da insalubridade dos locais e dos
companheiros de destino, como pelo receio da polícia. Noutro trabalho
verificáramos já que também a população, ao ter receio do drogado, o tem em
primeiro lugar por razões sanitárias ele contribui para a degradação
ecológica do bairro, cujo ícone mais forte são as seringas espalhadas ao acaso
(Fernandes e Neves, 1997 e 1999).
Na evolução das figuras que têm protagonizado a história natural do fenómeno
droga, o junkie, tal como o temos caracterizado, é a primeira que se acha
incapaz de regular os seus consumos ou de minimizar os efeitos de possíveis
ciclos pessoais de dependência.3 Logo, é algo que tem de lhe vir de fora:
aceitou-se já que talvez nunca deixe de ser junkie e ao mesmo tempo oferece-se-
lhe um conjunto de serviços para aquilo que é incapaz de fazer sozinho: reduzir
riscos.
À sensação de incapacidade de controlar os consumos (o limitador é apenas a
quantidade de dinheiro), acresce o facto de ser o primeiro a assimilar à sua
auto-percepção o discurso oficial da insuportabilidade do síndrome de
abstinência, da inexorabilidade da trajectória toxicodependente ou da
incapacidade de sair sozinho (Romaní, Pallarés e Díaz, 2001; Fernandes, 1998).
E isto faz dele o primeiro cliente drug que adere à proposta do sistema
sanitário ao longo da história das dependências conquanto este não lhe
proponha, simplesmente, o drug-free, como o não propõe a redução de riscos.
Falência dos heterocontrolos
A evolução legislativa em Portugal, desde o 420/70 ao recente dec. lei de Junho
de 2001, que regulamenta a redução de riscos e despenaliza o consumo, é bem
demonstrativa da ambivalência moral na concepção do toxicodependente, ora
submetendo-o ao determinismo da delinquência, ora ao da doença (Maia Costa,
2001a).4 Se a ganza ou o ácido das culturas juvenis foram fugazes, se a
cannabis das escolas secundárias nunca tomou proporções alarmantes, não sendo
mais do que o terreno da intervenção soft dos técnicos da prevenção e da
moralização das comissões de pais, já a escalada da heroína e as novas
associações produzidas pelo junkie (delinquência urbana, insegurança,
arrumadores, errância, mercados em bairros, saturação prisional, sem-abrigo,
infectocontagiosas, novas formas de pobreza ) põem radicalmente em causa um
dispositivo assistencial exclusivamente montado sobre a ideia clínica. Mesmo
esta, resistindo muito tempo a ser avaliada, não conseguia conviver eficazmente
com os seus clientes, raramente abstinentes em terapias que exigiam o drug-
free, faltosos, drop-outers e sempre a recair. Os especialistas, independentes
do sistema assistencial, foram, entretanto, chamando a atenção para a fraca
capacidade de atracção das estruturas de tratamento face a junkies com estilos
de vida muito longe da lógica institucional que lhes é proposta.
Se o drogado fosse um delinquente, como queria certa filosofia legislativa, o
que a prisão conseguiu fazer com ele demonstra bem o fracasso deste tipo de
heterocontrolo. Quanto ao que ele conseguiu fazer da prisão, eis algo que
importa contar um dia em pormenor e que daria, se Foucault fosse vivo, um
Vigiar e Punir II só que em vez de ser sobre a constituição da prisão seria
sobre a sua desagregação
Se o drogado fosse um doente, como quer certo articulado legislativo e é o
caso do mais recente que agora torna oficial a redução de riscos estaríamos
também perante a falência dum heterocontrolo montado em torno de concepções
psicopatológicas e clínicas. Cândido da Agra demonstrou-o já há bastante tempo
na sua análise genealoógico-arqueológica do dispositivo da droga, estávamos
ainda em Portugal em plena expansão optimista dos centros de tratamento (Agra,
1986). Eis um doente que exige outro tipo de assistência e enquanto ninguém
sabe bem qual é, porque não se sabe que doença é, a quem tem trocam-se-lhe as
seringas, dá-se-lhe um canto para chutar, substitui-se-lhe uma droga por outra,
substitui-se-lhe uma droga pela mesma, mas tomada noutro sítio e noutra dosagem
e mais limpa, reconhece-se-lhe o direito ao grupo de auto-ajuda, ao sindicato
junkie, vai-se ter com ele, já que ele não vem ter connosco, despe-se a bata e
anda-se de carrinha por becos e subúrbios, rastreia-se e encaminha-se,
recomenda-se à polícia que não reprima e seja de proximidade. É tudo isto a
redução de danos. E muito mais do que isto é tudo o que se fizer que caiba
dentro dos princípios do pragmatismo e do humanitarismo.
A redução de riscos é, pois, uma macro-estratégia feita duma multiplicidade de
micro-estratégias que visam uma nova regulamentação, simultaneamente, sanitária
e securitária. Philippe Bourgois demonstrou num trabalho recente o papel
desempenhado pela metadona enquanto estratégia de biopoder, no actual diagrama
disciplinar de controlo das desordens (Bourgois, 2000). E nós próprios
(Fernandes, 1999) referimos já o papel de pacificador social do programa de
distribuição de heroína na Suíça, cujo impacto na redução da criminalidade e do
sentimento de insegurança está solidamente documentado pelo Departamento de
Criminologia da Universidade de Lausane.
Em síntese, o conjunto das características com que é socialmente percepcionado
o junkieassocia-o à perigosidade, tanto sanitária como securitária. Figura à
solta num urbano em crise das convivências colectivas, acossaria a cidade e
tornaria o risco mais presente do que nunca o junkie é a figura que
reactualiza hoje essa velha categoria da classe perigosa. Se até agora se
tratava de criminalizar a pobreza, de que a repressão dos mercados das drogas
nos bairros sociais é bem exemplificativa, trata-se, com a redução de riscos,
de normalizar as classes perigosas dando-lhes tudo o que é necessário para
superar o seu estatuto de excluídos sociais eis o que está latente no dec.-
lei 183/2001. O não-dito da redução de riscos dirige-se, precisamente, a este
lado: trata-se de reduzir a ameaça da sua presença, fazendo-o a partir duma
estratégia que, no seu lado visível e manifesto, visa convencer o indivíduo da
necessidade de gerir o seu risco pessoal. O efeito macroscópico desta
estratégia é a pacificação do todo social a domesticação do risco.
A passagem moral (Young, 1971) de delinquente a doente, operada laboriosamente
pelo dispositivo assistencial, traduz-se agora finalmente no dispositivo
jurídico: o drug deixa de ser perseguido criminalmente, mas é ainda censurado
socialmente, entrando na categoria das contra-ordenações Agra tinha-o já dito
no início dos anos 80: o toxicodependente era um mutante bio-psico-social, e os
corpos drogados verdadeiros laboratórios experimentais, tanto farmacológica
como psicológica e socialmente. Ora, eis que um vírus fugiu deste laboratório,
espalhando o contágio e o perigo (a seringa infectada como arma na delinquência
urbana ou no estabelecimento prisional).
A redução de riscos é a estratégia que vem adaptar-se a esta nova perigosidade
do drogado ela é, em primeiro lugar, um expediente de saúde pública. Mas a
sua força actual resulta também do fracasso das terapias drug-free, que cavaram
a sua própria desautorização. Neste cenário de derrocada do tratamento médico
ou psicoterapêutico tradicionais, os técnicos que sempre tiveram uma posição
crítica face a eles ganham novo alento e o dispositivo atribui-lhes hoje
papéis reforçados. É bem o caso da actual aceitação do espírito
interdisciplinar nas equipas de intervenção, da nova centralidade de papéis até
agora secundários (o enfermeiro) ou mesmo inexistentes (o animador
sociocultural, o interventor em equipas de rua).
Paradoxos da redução de riscos
Como toda e qualquer estratégia disciplinar, também a redução de riscos encerra
paradoxos: se por um lado procura transformar profundamente a presença e o
estatuto dos indivíduos dependentes de drogas, por outro lado assenta numa
espécie de resignação perante o seu destino. Esta nova política corresponde a
uma pacificação que os interventores das drogas realizam: uma espécie de trégua
que propõem ao drug, deixando de lhe exigir abstinência (no tratamento),
deixando de lhe pregar moral (na prevenção). O comportamento drug passa a ser
uma coisa-assim-mesmo, naturalizada, aceite e evidente, de tão difundida.
Mas, à força de aceitarmos um comportamento, naturalizando o que até aí era
transgressão e problema, podemos também desmobilizar os esforços da sua
compreensão profunda. Explicar então o quê? O que fica ainda para o trabalho de
desocultação dos contornos do fenómeno psicoactivo? Assim como as
benzodiazepinas, os neurolépticos e os antidepressivos calaram a necessidade de
explicar em profundidade o sofrimento mental porque a química o silenciou,
embora não o expulsasse5 também a metadona e as instituições de baixo limiar
silenciaram o drug: convivem com o seu destino como algo que precisa de banho,
roupa lavada e ateliês de ocupação de tantos e tão longos dias de desocupação
mas e o que moveu tais trajectórias? Para onde vão tais destinos? Eis ao que a
redução de riscos não responde. Qual é a sua vontade de articulação com a
vontade de saber científica? Estamos perante novo paradoxo: se por um lado,
naturalizando o comportamento drug, o banaliza, produzindo-lhe um silêncio
feito da sua omnipresença, por outro, cria excelentes condições para o reforço
de saberes que, até agora, têm tido um estatuto pouco mais do que marginal no
campo das drogas. Com efeito, o contacto directo com os contextos de expressão
do fenómeno através, por exemplo, de equipas de rua, promove o acesso às
práticas sociais e às cosmovisões locais dos actores.
Está, deste modo, aberto um canal de comunicação entre uma antropologia e uma
etnografia das drogas e as práticas interventivas, que requisitam àquelas um
saber-fazer de terreno e uma compreensão dos sistemas de vida nos quais querem
inscrever o seu acto de ajuda.
A redução de riscos, ponto de convergência
A redução de riscos é o ponto onde convergem dois sectores até aí divergentes
no interior do dispositivo da droga: o sector tradicional e o sector dos
interventores adeptos da mudança. Converge também para ela um novo protagonismo
do toxicodependente, que consegue impor a sua adição mais como um estilo de
vida do que como uma doença.
O sector tradicional
Este sector tinha como protagonistas os gestores do tratamento (direcções
clínicas, médicos e psicólogos), com equipas fortemente hierarquizadas em torno
da cúpula médica, com uma concepção da intervenção inflexível e paralisada em
torno do drug free. Podemos detectar uma variedade de sinais particulares desta
postura em Portugal: a desvalorização sistemática de modalidades alternativas
de abordagem do problema, a secundarização da prevenção, a inexistência prática
de reinserção, a intervenção concebida como técnica de gabinete, no confronto
entre o terapeuta e o toxicodependente, ou a resistência mesmo a crítica
feroz às terapias de substituição por metadona, quase residuais em Portugal
até aos anos 90.
Interventores adeptos da mudança
À escala de cada país, a mudança reflecte-se nas políticas de gestão do
problema da droga, mas a sua base profunda é a mudança de concepções sobre a
toxicodependência, bem como a mudança no olhar sobre as responsabilidades e
direitos do toxicodependente. Há vários factores precipitantes desta mudança: a
diversificação do tipo de técnicos a intervir na toxicodependência, o que
obriga o sector médico-psicológico tradicional a negociar as suas concepções
hegemónicas; o falhanço generalizado das terapias drug-free e a pouca
capacidade de atracção do dispositivo em relação a uma série de
toxicodependentes;as doenças infectocontagiosas relacionadas com as drogas.
Sobretudo este último factor obrigou a um olhar sobre o fenómeno que fosse
capaz de ir para além da terapia de gabinete, ao encontro dos estilos e das
práticas drug que estavam na base do problema epidémico. Isto cria, como já
vimos atrás, condições de reflexão para os olhares socioantropológico, da saúde
pública e dos próprios toxicodependentes, o que tem como exemplo extremo a
formação de colectivos de utilizadores que se reclamam de poder negocial na
definição das políticas.
Toxicodependência como estilo de vida
A diversificação das respostas que têm vindo a ser desenvolvidas testemunha uma
deslocação do toxicodependente do seu estatuto de doente para o de actor dum
estilo de vida. Grupos de auto-ajuda, centros de dia, casas de acolhimento
temporário, casas de injecção assistida, ou pontos de troca de seringas,
distribuição de metadona e mesmo de heroína, não põem já em causa a
toxicodependência enquanto sintoma ou estado psicopatológico, mas encaram-na
como um elemento dum conjunto de hábitos adquiridos por sujeitos dum grupo
social a partir das suas condições materiais e ideológicas de existência
(Romani, Pallarés e Díaz, 2001). Nas trajectórias típicas do estilo de vida
junkie, aparece como etapa central a vivência da adição como insustentável e as
múltiplas tentativas para deixar a substância. Converte-se, assim, de objecto
de cura em protagonista dum direito na sociedade do politicamente correcto
respeito pelas minorias: lésbicas, gays, minorias étnicas, agarrados Enfim,
numa sociedade que consagra o direito ao consumo e estimula à assunção das
individualidades mais radicais, consagra-se o direito do toxicodependente à sua
peculiar forma de vida e ao consumo do que mais gosta.
A redução de riscos é, pois, o lugar da convergência destes três sectores. O
primeiro chega lá por resignação: tal como os polícias perdem na luta contra o
tráfico, também os terapeutas perdem na luta contra esta doença tão peculiar
Os outros dois chegam lá por conquista: duma concepção da toxicodependência e
do toxicodependente, duma concepção de ajuda e do direito a um estilo de vida.
Nota final
Procurámos tornar claro, ao longo deste texto, o papel normalizador da redução
de riscos, inscrevendo-a deste modo no conjunto das estratégias de controlo
social característico das sociedades do capitalismo avançado.
Tem sido salientada por muitos analistas da cultura contemporânea, a perda de
eficácia das estratégias de controlo social clássicas numa sociedade em
profunda transformação, que não responde já aos mecanismos disciplinares que a
modernidade laboriosamente desenvolvera. Ora, a redução de riscos vem instalar-
se precisamente num dos terrenos onde essa crise disciplinar se vem
manifestando: o clínico. Pondo em causa a grelha da psicopatologia convencional
que situava o adicto nas classificações nosográficas, dirige-se aos seus
estilos de vida para, de encontro a essas formas de estar, produzir uma
refinada rede de controlos.
A redução de riscos pode servir-nos, pois, de analisador das modificações da
tecnologia de controlo social, num tempo em que retorna o discurso da anomia e
da desagregação dos equilíbrios colectivos antigos que alimenta a angústia do
vazio das normatividades e da ineficácia dos sistemas de regulação da
desviância.
Notas
1 Em Portugal há um programa de administração de metadona a heroinodependentes
desde o final dos anos 70, no então Centro de Estudos de Profilaxia da Droga do
Norte, hoje CAT da Boavista. Constituía, porém, uma experiência isolada e
fortemente criticada pelo mainstreamdos meios terapêuticos. Cumpre aqui
registar essa experiência, tanto pelo seu pioneirismo como pelo sui generis de
defender o programa de substituição opiácea através dum sofisticado racional
psicanalítico.
2 Continua a deixar por resolver, porém, o como adquirir o produto sem cometer
um ilícito, bem como a possibilidade da distinção entre posse para consumo e
posse para tráfico que, se medida apenas em gramas, conduz a erros de
julgamento grosseiros, responsáveis por prender consumidores que detinham doses
tecnicamente para tráfico e deixam em liberdade traficantes que detinham doses
aparentemente para consumo
3 Numa recente revisão do adquirido por variados trabalhos etnográficos,
Romani, Pallarés e Díaz (2001) salientam as seguintes características do
comportamento do heroinómano, a partir do momento em que reconhece a sua
dependência: a dose , a frequência de consumo assim como a pureza da substância
são muito baixas, pelo que a componente farmacológica não é o elemento
determinante do comportamento; o tempo que decorre desde o início do consumo de
heroína até ao momento em que se reconhece a dependência apresenta uma grande
variabilidade, constatando-se que para os que se iniciaram na década de 70 este
período oscila entre um ano e dois anos. Para os que se iniciaram nos anos 80
este período reduz-se para cerca de quatro meses, apesar da menor dosagem e
pureza da heroína consumida; os junkies dos anos 80 têm tendência a auto-
reconhecer-se como dependentes logo nos primeiros consumos; o síndrome de
abstinência, relatado pela maioria dos consumidores, é relativizado com o
passar do tempo, não respondendo à sintomatologia da dependência física, tem
uma alta componente psicológica relacionada com as expectativas e imagens
interiorizadas a propósito do tal síndrome; a administração endovenosa reforça
o comportamento de dependência e constitui um reforço psicológico na relação
com a heroína.
4 Em 1970, com Marcelo Caetano, ele é ameaçador, anti-social e a sociedade tem
de defender-se: racionalidade da defesa social; em 1976, na fase
revolucionária, reconhece-se que é doente e, a par da repressão ao tráfico,
cria-se o dispositivo preventivo e de tratamento; em 1983, retorna a
perigosidade e o controlo duro, secundarizando-se o plano terapêutico, que
inclui a possibilidade de tratamento compulsivo: Se não te tratas, tratamos
nós de ti (Maia Costa, 2001a).
5 Tomámos esta ideia de Cândido da Agra, escutado por nós repetidamente em
várias comunicações públicas.