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EuPTHUHu0873-65292002000200005

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variedadeEu
ano2002
fonteScielo

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Casar pelo civil ou na igreja

Introdução A relevância dos fenómenos que constituímos em objecto de estudo histórico ou sociológico reside na sua significação para nós e para os que neles participaram ou participam (Santos Silva, 1988: 63).

A relevância dos indicadores demográficos para o estudo das dinâmicas sociais é incontestável, mas tal como qualquer outro fenómeno, carece de significado, quer para o investigador quer para os actores que constituem a população em estudo.

A quantificação dos fenómenos constitui um importante suporte para o estudo das dinâmicas sociais, em particular no domínio da família. Através de diferentes indicadores demográficos podemos mapear alguns aspectos que contribuem para a caracterização da família, realidade que se revela em mudança permanente. No entanto, urge explicar esses valores quantificados, procurando o sentido que os actores atribuem a esses fenómenos e as práticas que deles decorrem, ou seja, que considerar, para um mesmo objecto de estudo, a existência de sentidos diferentes atribuídos por actores diferentes, vivendo em contextos sociais diversificados. Ao mesmo tempo, podemos também encontrar o mesmo sentido, atribuído a realidades aparentemente diferentes.

Não basta quantificar os fenómenos sociais, mesmo que esses números pareçam conferir uma maior cientificidade às análises daí decorrentes. É pela interligação entre os números e as representações que têm os indivíduos dos fenómenos, associadas às práticas concretas, que é possível relativizar os valores de uma taxa ou de um qualquer indicador demográfico.

Neste texto, é nossa intenção analisar o fenómeno da nupcialidade, em particular nos Açores, levados pela curiosidade de entender o peso relativo dos casamentos não católicos, que em 1998 atingia os 62% do total dos casamentos celebrados.

Pretende-se chamar a atenção para a importância da construção sociológica e antropológica de alguns indicadores demográficos, nem sempre capazes de expressar a realidade mutável que pretendem quantificar. por isso que manter uma reflexão permanente sobre alguns indicadores, de modo a poder corrigi-los e assim adequá-los às características das populações que quantificam. Podemos, a título de exemplo, referir a situação das uniões de facto colocadas em paralelo com o casamento legal, desconhecendo-se o verdadeiro estado civil dos indivíduos em causa; a união de facto não é um estado civil, mas um tipo de conjugalidade. Outro exemplo é o das famílias recompostas, dificilmente identificáveis através dos indicadores existentes.

A desconstrução de alguns indicadores demográficos e a consequente reflexão que tal facto proporciona, poderá constituir um campo fértil de trabalho interdisciplinar.

Ao analisar uma situação concreta, a nupcialidade nos Açores, pretendemos, antes de mais, situar alguns contextos que a enformam, como sejam, a prática religiosa e a conjugalidade actual.

A nupcialidade em Portugal Torna-se hoje evidente que a nupcialidade não é sinónimo de conjugalidade, ou seja, a diminuição da taxa de nupcialidade não significa que os indivíduos solteiros, divorciados ou viúvos não vivam em conjugalidade, havendo outras formas de entrada na vida conjugal que não apenas o casamento formal. A progressiva diminuição da taxa de nupcialidade não pode deixar de ser lida em paralelo com o aumento relativo da média de idade no casamento, pois tal facto parece indiciar, por um lado, um adiamento da formalização do laço conjugal e, por outro, a emergência de uma coabitação juvenil no período que antecede o casamento. A situação de união de facto é também um fenómeno cada vez mais presente na sociedade portuguesa, apesar de esta se distanciar dos valores que caracterizam as sociedades europeias, em particular as do norte da Europa.

Portugal, apesar de forma mais lenta, parece acompanhar o fenómeno de modernização da família (Almeida e outros, 1998: 51), mas distingue-se pela sua elevada taxa de nupcialidade, por uma taxa mais baixa de nascimentos fora do casamento e por uma taxa de divórcio modesta, comparada com as da Europa do norte (mas alta no contexto da Europa do sul). Estes são alguns dos traços ainda presentes na estrutura da sociedade portuguesa, que em muito contribuem para que se possa falar de uma importância da dimensão formal e familialista da instituição família em Portugal. no entanto que relativizar este processo de modernização, tendo em conta as diferenças entre as regiões portuguesas, nomeadamente entre o sul e o norte do país. Segundo o texto colectivo publicado em Portugal, que Modernidade, afirma-se que o Norte ainda mantém uma forte percentagem de casamentos católicos, uma maior presença de famílias complexas, uma maior dimensão média da família, bem como uma menor percentagem de nados- vivos fora do casamento. Ao contrário, o Sul evidencia uma maior importância exclusiva do casamento civil, associada a uma dimensão mais reduzida dos grupos domésticos e a um maior número de nados-vivos fora do casamento. ainda que distinguir ao nível regional a grande Lisboa, que se destaca do resto do país.

Quanto às regiões autónomas, o padrão registado aproxima-se do norte do país, sendo de destacar as elevadas taxas de nupcialidade e de natalidade, a par dos outros indicadores referidos.

Para além destes traços, importa referir, no caso dos Açores, a média de idade da mulher, mais baixa do que no todo nacional, quer no casamento quer no nascimento do primeiro filho, associada ainda a uma elevada percentagem de mulheres sem actividade económica.

A compreensão do fenómeno casamento enquanto instituição implica considerar o contexto sociocultural em que ocorre e não podemos entender os indicadores demográficos, que enformam esta realidade casamento, sem procurar o sentido que lhe é atribuído e que, em parte, justifica as práticas sociais daí decorrentes.

No caso concreto dos Açores e face à dimensão tradicional que ainda hoje caracteriza a dinâmica familiar nas ilhas é, no mínimo, estranho que o casamento civil tenha uma tal importância.

Comecemos por analisar a importância do factor religião, nos Açores.

A religião e a prática religiosa.

Segundo os resultados publicados nos censos de 61, 81 e 91, em termos da população que se considera católica, a região dos Açores possui os valores mais significativos, na ordem dos 90%, valor que apenas registamos em Portugal na década de 60 e que contrasta de forma clara com a realidade de Lisboa (69,4%, em 1991).

Confrontando estes resultados com os do inquérito Famílias no Portugal contemporâneo, coordenado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS) e pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) (1999) 1 (ver figura_1), ou do inquérito sobre Atitudes e práticas religiosas dos portugueses (2000),2 no âmbito do Inquérito permanente às atitudes sociais dos portugueses, verificamos a importância da religião católica e a prática religiosa, pouco significativa na região de Lisboa, quando comparada com a média nacional.

A população das inquiridas dos Açores não se assume em maior percentagem como católica como, para além disso, autoconsidera-se praticante em muito maior número do que as mulheres lisboetas. Este facto é significativo não de uma crença mas, sobretudo, de uma prática de culto religioso, porventura um indicador mais fiável da relação dos indivíduos com um determinado credo.

O casamento religioso em Portugal Apesar de podermos registar alguma dissociação entre a realidade do casamento religioso e a prática religiosa, a escolha do rito católico pode ser considerada um indicador da variação dessa prática religiosa (católica) no todo nacional.

Historicamente, o casamento foi considerado um sacramento indissolúvel no direito canónico depois de instituído como tal pelo papa Alexandre III, no século XII (Lebrun, 1989: 20). A partir dessa legislação canónica, começou a ser exigida a publicação dos conhecidos banhos que, anunciando a futura união, permitiam a denúncia de eventuais impedimentos. Ao mesmo tempo passou a exigir- se quer a presença de um cura da paróquia em que habitasse um dos cônjuges, quer a presença de testemunhas (Lebrun, 1989: 21). Esta lei vigorou até 1911 e era a única lei oficial que regulamentava a celebração do matrimónio.

Em Portugal, o casamento civil obrigatório foi decretado a 25 de Dezembro de 1910, mas foi publicado no código civil de 1911. Segundo este último (art.

3.º, parágrafo 33.º), O estado civil e os respectivos registos são da exclusiva competência da autoridade civil. Em 1940 foi assinada a concordata entre a Santa e o estado, que estabelece um protocolo oficial entre as duas entidades. Com a concordata o casamento católico passou a ser precedido da abertura de uma acta ou de um processo civil com validade de três meses, período durante o qual tem de ocorrer a cerimónia religiosa para que se concretize a mudança de estado civil. Em alguns meios sociais, essa abertura do processo civil é identificada como um casamento, pelo menos na linguagem das pessoas, casei no registo, à civil!. Raul Iturra (1991), num estudo sobre comunidades rurais, refere que, outrora, o desconhecimento da validade deste casamento terá levado alguns indivíduos a casarem pela igreja, mesmo depois de saberem da anulação da acta do casamento. Na actualidade, a igreja não celebra um matrimónio entre solteiros sem que estes apresentem o documento do registo civil de como iniciaram o processo de casamento.

A predominância do vínculo religioso católico não pode ser dissociada desta história jurídica nem da história de Portugal. Se atendermos ao percurso das religiões na sociedade portuguesa, esta sempre manifestou ser favorável a uma afirmação progressiva do catolicismo romano que, ao longo dos séculos, se foi estabelecendo como referencial religioso e cultural sem concorrência. Segundo Helena Vilaça (1997a), dois aspectos fulcrais contribuíram par este processo: 1) a repressão e perseguição dos judeus, iniciada no século XV e reforçada no século seguinte com a Inquisição; 2) a localização geográfica do país: no extremo ocidental da Europa, distanciado ou receptor tardio das mudanças ao nível cultural e das mentalidades que se iam operando no resto do continente, nomeadamente as agitações da reforma.

Assim como predomina a religião católica, predomina a representação de um casamento entendido como vínculo sagrado, decorrente do ritual que o concretiza. O ritual do casamento simboliza, não , a protecção do casal como da sua descendência e, nesse sentido, o casamento assume nos meios tradicionais, em particular na tradição camponesa, um lugar central na organização e na reprodução social, sendo por isso resultante de uma estratégia racional e não apenas a expressão da dos indivíduos envolvidos (Iturra, 1991).

Casar pela igreja poderá significar, não apenas, a expressão da dos nubentes, mas corresponder a um imperativo social de legitimação de uma relação conjugal, sem o que seria difícil a vida económica e social. Associado a este facto, o casamento segundo o rito religioso assume um sentido simbólico de transição, mais do que uma condição jurídica, ou seja, representa um rito de passagem, em alguns casos sinónimo de entrada na vida adulta. Ainda hoje, na sociedade portuguesa, casar representa ainda, para muitos, o sair da casa dos pais e, ao mesmo tempo, o fundar um novo núcleo doméstico num novo espaço.

Para as mulheres, mais do que para os homens, significa o abandono da condição de filha de para assumir a de esposa de . Ao mesmo tempo que simboliza a transição, a união conjugal vivida segundo o ritual religioso mantém intactos, ainda hoje, alguns gestos simbólicos que constroem o sentido da transição e do compromisso inerentes ao casamento: o cortejo nupcial, com um evidente protagonismo da mulher (a noiva), a entrega da mulher pelo pai ou padrinho ao futuro marido; o compromisso público e a troca simbólica das alianças; bem como as práticas associadas ao envolvimento da comunidade, que acolhe os noivos com gestos propiciadores de fertilidade (o arroz e as flores que se atiram à porta dos templos) são elementos considerados, por muitos, como importantes do ponto de vista simbólico, mesmo que a realidade do sacramento e da religiosa possa estar quase ausente. O espaço igreja assume-se nesses casos como um cenário favorável a uma cerimónia carregada de simbolismo.

Esta dimensão de rito de passagem é hoje cada vez mais relativizada, nomeadamente pela existência de outras formas de entrada na conjugalidade sem ser pelo casamento religioso, como sejam, a coabitação e o rito civil. No entanto Portugal é, no contexto europeu, um dos países onde ainda perdura um modelo tradicional, ou seja, para além do valor elevado da nupcialidade pesam ainda os casamentos religiosos, apesar de ao nível do divórcio os valores serem idênticos à média europeia.3 A coabitação juvenil e as uniões de facto são pouco frequentes e, segundo o estudo aos valores portugueses (Almeida e Guerreiro, 1993: 1), a união sem vínculo formal em Portugal, viver em companheiro,não se associará tanto a um comportamento elitista ou de luxo, típico de certas camadas particularmente favorecidas em matéria de dotes escolares e económicos, mas antes e provavelmente a pressões ditadas pela precariedade desses mesmos recursos. O caso do Alentejo litoral surge destacado na estatística demográfica como uma das regiões onde é maior o número de situações de união de facto (Censos 91).

No estudo às famílias, que temos vindo a referenciar, confirmamos a importância do vínculo conjugal no início da conjugalidade. Trata-se, como o dissemos, de um estudo cuja amostra reúne mulheres entre os 25 e os 49 anos de idade, não podendo por isso ser extrapolado à realidade do país actual.

As mulheres inquiridas em percentagem reduzida começaram a viver em conjugalidade sem casar (ver quadro_2), ou seja, fizeram uma experiência de coabitação sem vínculo. Este facto não se traduziu totalmente em uniões de facto, que, cruzando este início da conjugalidade com o vínculo que vieram a estabelecer, verificamos o número mais reduzido das que nunca chegaram a casar.

Segundo os resultados deste inquérito (ver quadro_3), encontramos uma coabitação sem vínculo conjugal transitória, em particular nos Açores, onde apenas 28,0% (7 mulheres) das que iniciaram a vida conjugal sem casar nunca o chegaram a fazer.4 Em termos da idade média nos diferentes tipos de entrada na conjugalidade, verificamos que, à excepção dos resultados no continente português, a média de idade das mulheres que iniciam a vida conjugal sem casar é ligeiramente superior à do casamento, o que revela serem casais mais velhos que começam a viver juntos, sem terem à partida um projecto de formalização da conjugalidade (ver figura2).

A coabitação sem vínculo conjugal, expressão porventura da vontade individual não sujeita às pressões sociais, parece não representar ainda um modelo com expressão muito significativa em Portugal, quando comparado com a Europa. No entanto, estudos recentes sobre o casamento em Portugal provam uma crescente centralidade das relações afectivas, e a aceitação da procura de caminhos mais individuais (Torres, 2001: 133), como revela o recurso à separação e ao divórcio quando a relação conjugal deixa de realizar o homem e/ou a mulher.

Outro dado importante situa-se ao nível dos nados-vivos fora do casamento, cujo valor percentual tem vindo progressivamente a aumentar em Portugal, em particular na região de Lisboa.

Em 1999, Lisboa ultrapassava a média europeia, apesar de, ao nível do total do país, a percentagem de nados-vivos fora do casamento ser inferior à registada na Europa dos 15.

Este facto pode indiciar uma desvalorização do vínculo conjugal como enquadramento necessário à vinculação materna e/ou paterna.

A formalização do casamento segundo o rito católico ou apenas civil Quando analisamos a distribuição dos casamentos segundo a forma, quer nos Açores, quer em Lisboa e, por comparação, no país (ver figura_3), verificamos, em primeiro lugar, a importância de 1974 na mudança dos comportamentos face ao casamento religioso, indiciando um fenómeno de dessacralização do vínculo conjugal, o que em parte pode ser complementarizado com a taxa de divórcio, que a partir dessa data começou a aumentar.

A figura_3 permite-nos verificar a diferença notória entre a realidade do casamento civil e religioso nos Açores e os dados a nível nacional. No caso açoriano, e sobretudo a partir da década de 80, aumenta bruscamente a percentagem de casamentos civis e, em paralelo, diminui a dos casamentos religiosos (representando apenas 28,2% dos casamentos em 1999).

Apesar de, como foi referido, o casamento religioso ser válido perante o estado quando, antes, os cônjuges procederam à abertura de uma acta que é depois encerrada/validada pelo registo do matrimónio numa paróquia, tal facto não impede que possam ser celebrados matrimónios entre indivíduos casados pelo civil.

Por esse facto, os dados da diocese respeitantes ao número de sacramentos do matrimónio celebrados não coincidem em nada com os dados oficiais do casamento católico.

Como podemos constatar pela figura_4, comparando o número de casamentos católicos celebrados nos Açores, segundo os dados da diocese de Angra do Heroísmo, com os dados oficiais registados nas estatísticas demográficas (INE), parece não existir uma alteração tão significativa no número de casamentos católicos.

Confrontando as duas fontes (diocese e estatísticas demográficas) quadro_4,5 podemos concluir da existência de três modos de formalizar o casamento: o casamento religioso, o casamento civil e o duplo casamento, este último englobando uma cerimónia perante um notário, com testemunhas e alteração do estado civil e uma cerimónia religiosa, com padrinhos e celebrado numa igreja perante um sacerdote, por vezes passados um ou dois anos sobre o primeiro.

A realidade do casamento duplo parece escapar ao registo oficial, porque não é interdito o casamento religioso mesmo quando os noivos estão casados oficialmente, e no acto do casamento civil ninguém questiona os nubentes se vão repetir a cerimónia, mesmo a título simbólico, na igreja.

Perante um tal fenómeno, poder-se-ia levantar a hipótese de ser esta uma prática sinónimo de coabitação prévia ao casamento religioso. Não podendo atestar de forma quantificada esta afirmação, podemos contrapor tal hipótese com base no trabalho de campo que temos vindo a realizar, onde é manifesta a importância para os açorianos,6 mesmo quando existe um duplo casamento, de considerar apenas o casamento religioso como sinónimo da formalização do laço conjugal e início da vida em comum.

Uma explicação possível para o fenómeno doduplo casamento

Numa região onde a representação do casamento enquanto ritual continua associada à dimensão sacralizada inerente ao ritual religioso e à prática religiosa dos açorianos, parece-nos ser possível explicar o fenómeno do número de casamentos civis, associado à figura do duplo casamento, através de uma análise das políticas sociais de apoio aos jovens.

O casamento civil poderá representar, na análise que propomos, uma estratégia económica e social, com vista à obtenção de benefícios sociais, nomeadamente ao nível dos empréstimos bancários e dos apoios à habitação jovem promovidos pelo governo regional nos últimos anos.

Se analisarmos os anos em que a curva dos casamentos civis tende a aumentar, encontramos nos mesmos períodos legislação favorável à aquisição de habitação jovem, nomeadamente em 1986, em 1990 e recentemente em 1995. Inicialmente o D- L 328B/86, que por sua vez revoga um anterior (459/83) refere: Manter as condições especiais para jovens no âmbito da política de juventude [D-L 328B/86: 2810 (20)]. Esta bonificação para jovens engloba em particular os agregados familiares que preencham as condições definidas no art.º 8.º (condições de empréstimo) quando a soma das idades do casal não exceda 55 anos ou, tratando-se de pessoa , após a maioridade e não mais de 30 anos.

A legislação de 1986, tal como a anterior de 1983, reforçou a prioridade dos casais, e não dos indivíduos sós, no acesso a esta bonificação. Na instrução do processo deveria constar a certidão do casamento, apesar de no diploma não estar explícito, o certo é que dois indivíduos solteiros não podiam juntar os rendimentos para terem acesso ao crédito bonificado.

Em 1990, por decreto legislativo regional (13/90/A), o apoio ao crédito à habitação é revisto, mantendo-se a filosofia presente na legislação nacional, sendo corrigida a soma das idades do casal, passando de 55 para 60.

Este decreto foi de novo revogado em 1995 (DLR, 14/95/A), tendo sido clarificada a situação dos indivíduos solteiros, passando estes a poderem candidatar-se ao plano de bonificação a título singular ou colectivo ou com outra pessoa, também solteira.

Analisando a curva do registo dos casamentos segundo a forma (ver figura_4), parece-nos lícito afirmar que, até 1990, a legislação a nível regional, favorecendo a aquisição de habitação a casais jovens, contribuiu para um reforço do número de casamentos civis em detrimento dos religiosos, o que se notava em 1986.

Este facto leva-nos a reflectir sobre a importância das políticas sociais na distorção dos fenómenos, nomeadamente na sua quantificação, mesmo que na prática possamos constatar que a realidade não foi tão alterada como os números afirmam, como parece ser o caso do casamento católico (matrimónio).

Tal situação afecta não os valores do casamento civil como, eventualmente, poderá contribuir para o aumento relativo do número de divórcios com duração inferior a dois anos. Referimo-nos aos casais que, ainda num quadro de namoro, formalizaram a união civilmente para efeitos de empréstimo bancário, mas depois verificam não terem projecto de vida comum. Neste contexto, não basta uma ruptura da relação de namoro, mas é necessário um processo de divórcio, com os encargos materiais e simbólicos (psicossociais) daí decorrentes.

Se o aumento do número de casamentos segundo a forma civil reflecte um processo de dessacralização do casamento, que assim deixa, cada vez mais, de ser uma relação para a vida mas um contrato que pode ser terminado a qualquer altura, no caso concreto dos Açores, a estratégia do duplo casamento parece não representar o mesmo fenómeno mas, antes, resulta de um duplo enquadramento: por um lado, económico, favorecendo o acesso aos benefícios das políticas sociais e, por outro, integrado no quadro moral de referência culturalmente aceite. O casamento na igreja continua sendo o verdadeiro casamento ou, se quisermos, o casamento idealizado ou ideal, aquele que determina a passagem do grupo doméstico de orientação para um novo grupo doméstico, o de procriação.

Este aumento significativo do recurso ao crédito à habitação poderá ainda revelar outra dimensão, nomeadamente uma nova forma de solidariedade social, protagonizada pelo estado e não pelas redes tradicionais dos familiares, padrinhos ou outros fianças que permitiam aos casais, sobretudo quando eram oriundos de famílias com algum património económico, obterem apoio na compra ou na construção de casa própria, no início da vida conjugal. Com esta política social, o apoio à compra de casa passou a ser facilitado aos casais com menores recursos. Note-se que a fórmula utilizada para o cálculo do apoio, em termos de subsídio mensal que bonifica a prestação mensal decorrente do empréstimo, é feita com base num factor familiar que tem em linha de conta o número de elementos dependentes do casal, um factor económico, calculado segundo a base do salário mínimo multiplicado por um número de salários definidos pelo governo regional e dividido pelo rendimento bruto mensal e, finalmente, um factor habitacional que tem em conta a área da habitação a adquirir.

Conclusão

Ao longo deste texto procurámos demonstrar como um indicador demográfico deve ser construído com base numa realidade sociológica e cultural. Os conceitos não têm o mesmo sentido em todo o território nacional e as práticas, mesmo as mais objectivas, poderão sempre ocultar procedimentos não abrangidos pelo registo oficial.

Citámos, a título de exemplo, o que se passa com o registo das uniões de facto, ainda hoje entendidas como uma forma de estado civil e não como uma forma de conjugalidade. O mesmo poderá ser dito em relação às famílias recompostas, ainda hoje invisíveis nos registos oficiais.

O caso que aqui apresentamos, ou seja, o duplo casamento,sendo porventura mais presente nos Açores, não é exclusivo desta região, podendo também ser registado no continente português, como aliás verificámos no inquérito às famílias no Portugal contemporâneo. Por isso, parece-nos cada vez mais necessária a introdução da coabitação,com ou sem vínculo conjugal, como indicador demográfico que permita quantificar as mudanças que têm vindo a caracterizar a vivência da conjugalidade, nomeadamente na sua fase inicial.

É hoje um dado assumido pelos sociólogos da família que nupcialidade não é idêntica a conjugalidade, e esse facto carece de ser revelado através dos indicadores estatísticos oficiais, porventura presos a um conceito tradicional de família nuclear que se constitui pelo casamento e se desfaz pelo divórcio ou pela viuvez.

Se nos é permitido propor uma estratégia, julgamos fundamental que se faça de modo sistemático uma reflexão sociológica e antropológica aquando da construção dos questionários que servem de base à recolha de dados oficiais, de forma a que estes possam ser, para os investigadores das diferentes ciências sociais que os consultam, retratos, tão fiáveis quanto possível, das populações que quantificam.

Para além desta reflexão sobre os indicadores demográficos deveria ser prática corrente o estudo do impacto de toda a legislação integrada em políticas sociais, algumas das quais, favorecendo determinados grupos, uma vez que poderão contribuir para iludir fenómenos culturais importantes, modificando quer o significado atribuído à realidade, quer o comportamento das populações.

Em alguns casos, poderá mesmo favorecer o aparecimento de estratégias de compromisso que permitem aos indivíduos em causa beneficiar da legislação sem que tal represente modificar comportamentos enraizados e culturalmente significativos.

Ao analisarmos o modo de entrada na conjugalidade nos Açores, em particular através da análise do fenómeno nupcialidade, podemos verificar a importância da prática religiosa e das políticas sociais como factores que condicionam o modo como os indivíduos se apropriam, estrategicamente, dos rituais de transição.

Notas 1 Inquérito Famílias no Portugal contemporâneo (1999), amostras significativas para Lisboa (N=739), Açores (N=712) e Continente (N=1667), a mulheres vivendo em conjugalidade, mães de pelo menos um filho entre os 6 e os 16 anos. A idade das inquiridas oscila entre os 25 e os 49 anos.

2 O inquérito Atitudes e práticas religiosas dos portugueses, coordenado por Manuel Villaverde Cabral, Jorge Vala, José Machado Pais e Alice Ramos, baseia- se numa amostra (continental) de 1201 indivíduos, dos quais 89,6% consideraram professar a religião católica. No entanto, apenas 27,1% referiram frequentar a igreja uma vez por semana, enquanto 46,3% apontam para uma periodicidade inferior ou igual a uma vez por mês. Uma análise desta frequência por região de residência (Nut2) permite concluir que em Lisboa e Vale do Tejo apenas 18,9% se consideram praticantes semanais e 59,5% referem uma vez por mês ou menos. As regiões do continente onde a frequência semanal da igreja é mais elevada são: o norte (39,3%) e o centro (39%).

3 Em 1999, Portugal registava uma taxa de nupcialidade de 6,9, enquanto na Europa dos 15 essa taxa não ultrapassava 5,1. Ao nível da taxa de divórcio, Portugal registou em 1999 o mesmo valor da média europeia, 1,8 (Commission Européenne, 2001).

4 Se tivermos em conta o total da amostra, verificamos que apenas 1% das inquiridas nos Açores vivem, actualmente, em união de facto, sendo maior o valor em Lisboa, onde se regista 4,7%, e no continente com 2,0%.

5 Ver o quadro_4 como uma simulação que parte dos casamentos registados e celebrados em matrimónio no ano de 1995.

6 Transições Familiares e Construção da Identidade das Mulheres, dissertação de doutoramento em fase de conclusão, a defender no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (orientação de Karin Wall).


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