Parentalidade social, fratrias e relações intergeracionais nas recomposições
familiares
As desuniões instauram uma pluralidade de trajectórias, tanto familiares como
individuais, que são parte integrante de um processo mais vasto de sequências e
de transições familiares que, cada vez mais, desembocam nas configurações
familiares recompostas. Neste sentido, as famílias recompostas são famílias de
transição.
O debate em torno da fileira teórica das interações entre os vários
protagonistas das recomposições familiares centrou-se, nos últimos tempos, na
procura de respostas às seguintes questões: qual a natureza dos laços
estabelecidos entre os membros destas configurações recompostas? Poderão os
padrastos, em certos casos, substituir o pai biológico ausente? Se não o
fizerem, qual é o seu lugar? Que papel na educação, na socialização e no
sustento económico dos seus enteado(a)s podem ou devem representar os
padrastos? Qual a natureza do laço entre padrastos e enteados? Quem é o
verdadeiro pai da criança? O pai biológico ou o pai social?
É certo que a ausência de enquadramento jurídico para estas famílias poderá
levantar alguns problemas na sua organização, no entanto, mais importante do
que isso são talvez as questões relacionadas com a divisão dos papéis. Não se
trata aqui da divisão clássica entre pai e mãe, mas entre os protagonistas
masculinos envolvidos no processo de recomposição: o pai biológico e o novo
companheiro da mãe. À parentalidade biológica vem somar-se a parentalidade
social (Segalen, 1999: 209).
O significado social da relação entre padrastos e enteados adquiriu relevância
nos dias de hoje, porque os pais biológicos, em média, têm um contacto limitado
com os seus filhos após uma separação (Seltzer e Blianchi, 1988; Seltzer, 1991;
1994). Os laços entre o pai biológico e as crianças fragilizam-se quando o
vínculo conjugal se quebra porventura devido ao significado do papel de
paternidade (Singly, 2000).1 No entanto, seja qual for a razão, esta
fragilidade das relações entre pais divorciados e filhos não deixa de ser
verdadeiramente inquietante.
Na verdade, a identidade do homem/pai estrutura-se muito mais pelo projecto
profissional, remetendo para segundo plano o projecto de parentalidade, do que
a identidade da mulher/mãe. Daí que os homens desenvolvam menos competência
relacional e tenham pouca disponibilidade para as crianças quando vivem com a
mãe dos seus filhos; é claro que, depois da separação, esses laços entre o pai
e as suas crianças se podem tornar ainda mais ténues (Cadolle, 2000). Talvez
nem pais nem padrastos saibam exactamente o que é a parentalidade, e talvez
essa incerteza os fragilize a ambos, remetendo todo o poder para a mãe. A
mulher sempre desempenhou um papel maternal em seu nome e em nome do casal, ao
passo que o homem tem mais dificuldade em dissociar a identidade paternal da
conjugal, o que pode justificar o facto de os homens perderem muitas vezes o
contacto com os seus filhos biológicos após um divórcio ou separação, e
reconstituírem uma vida familiar com outras crianças (Cutsem, 2004).
Mesmo assim, é certo que o pai, apesar de nem sempre ser uma evidência, não se
escolhe. Ele existe simplesmente, o seu lugar e o seu papel raramente são
postos em causa, até mesmo quando é acusado de destituição paternal. Ao
contrário, o padrasto não é um parente das crianças, mas invade-lhes o
quotidiano, entra-lhes em casa, muitas vezes sem pedir autorização, ocupa um
lugar privilegiado no quarto da mãe e, por tudo isso, tem de provar com o tempo
que é capaz de ser qualquer coisa no meio entre parente e estranho ou um
parente estranho(Beer, 1988) um amigo, um cúmplice, um outsider íntimo
(Papernow, 1993). E quem sabe com algum tempo, imaginação, jeito e paciência
um segundo pai ou um quase-pai.2 Tudo indica que o papel de padrasto, sendo
um papel de composição, se constrói com vontade e no tempo, e cuja legitimidade
se conquista continuamente (Théry, 1995).
Pais e padrastos, numa configuração familiar recomposta, não devem ser pensados
em separado. Porque só através da relação das crianças com os seus pais, elas
poderão reconhecer no padrasto alguém que pode partilhar com eles a sua
educação (idem).
Na verdade, o padrasto não entra na família por causa das crianças, mas por
causa de um adulto (neste caso a mãe) e, para além disso, numa fase de reforço
dos laços entre a mãe guardiã e os filhos. Ou seja, as mães sozinhas e os seus
filhos criam um novo sistema familiar, e é precisamente neste sistema em que se
partilha uma história, se intensificam relações e se restabelecem regras, que
chega o padrasto (Cherlin e Furstenberg Jr., 1994).
Em todo o caso, a chegada do novo companheiro da mãe também pode representar um
reforço no orçamento da nova família, e consequentemente um aumento da
estabilidade económica e da qualidade de vida do agregado familiar (Morgan,
1991).
Se nos casos de viuvez (mais raros nos dias de hoje) o padrasto vem preencher
um lugar que ficou vazio, as situações de separação e de divórcio fazem dele
um actor suplementar do dado familiar (Le Gall e Martin, 1991: 62).
De qualquer modo, o problema relacionado com a incorporação do padrasto na
constelação familiar não diz apenas respeito à sua posição institucional, na
medida em que se trata de um problema de papel, e os mecanismos de legitimação
desse mesmo papel passam pelas interacções entre as crianças, a mãe e o pai
biológico. E, por essa razão, cada um destes actores pode entravar ou favorecer
a forma como se institucionaliza este papel consoante o modelo de família ao
qual ele se refere (Le Gall e Martin, 1991: 65). Assim, as relações entre
padrastos e enteados estão muito dependentes da experiência de vida de todos os
protagonistas da rede familiar, e inscrevem-se numa história que os dois pais
biológicos, em parte, já escreveram (Cadolle, 2000: 78).
Apesar da notória sobrerrepresentação das famílias de padrastos,3 ou seja, das
famílias estruturalmente compostas por uma mãe (que tem a guarda dos filhos),
pelo(a)s seus(suas) filho(a)s e por um padrasto (que pode também ser pai
guardião ou não), os cientistas sociais, com particular destaque para os norte-
americanos, sempre descuraram a importância da construção social de um modelo
de papel de padrasto que muitas vezes é o substituto do pai das crianças da sua
mulher (Coleman e Ganong, 1990). E, no entanto, as pesquisas sobre este tipo
estrutural de configuração familiar raramente ficam indiferentes à influência,
tanto positiva como negativa, da figura do padrasto na estabilidade social,
emocional, intelectual dos seus enteados, já para não falar dos aspectos
económicos (Hetherington, 1987; Coleman e Ganong, 1990). É certo que esta
influência pode variar consoante o sexo, a idade e a atitude das crianças, a
duração da recomposição, o investimento pessoal do padrasto (Bray, 1988; Théry,
1998), mas também com a posição que este ocupa na estrutura de classes. Isto é,
como refere Didier Le Gall, a construção social da relação entre padrastos e
enteado(a)s, para além de ser um processo, inscreve-se nas relações sociais
de sexo e de classe (1992: 2). Trata-se da complexidade inerente à vida nas
famílias recompostas, e que passa essencialmente por este plano da afirmação da
parentalidade social (Coleman e Ganong, 1990; Papernow, 1993; Cherlin e
Furstenberg Jr., 1994).
Tudo indica que o facto de o padrasto ser ignorado pelo direito o envolve numa
trama de ambiguidades reforçadas pela acentuada valorização das conexões
biológicas entre pais e filhos nas sociedades ocidentais. Ele pode aparecer aos
olhos de muitos como um potencial usurpador da verdadeira filiação a
filiação através do sangue (Théry, 1995: 97). Muito embora a figura do pai
autoritário tenha perdido legitimidade social, a questão da autoridade ainda
representa a linha de clivagementre o pai biológico e o padrasto, e quando o
pai não está presente é a mãe que assume essa função de autoridade (Singly,
2000: 267).
Com efeito, independentemente da estrutura familiar, é a mãe que toma as
decisões relativas a cada um dos filhos, porque de facto é ela que conhece os
gostos, os horários, as ocupações de cada um dos filhos, muito mais que o pai.
E, para além disso, é ela que está presente na maior parte do tempo e em todas
as situações; porque o tempo que as mães e os pais dedicam aos seus filhos é
realmente diferente.
Apesar do reconhecimento generalizado das diferenças entre os papéis do pai
biológico e do padrasto, muito pouco se tem avançado na reconceptualização
deste último papel (Mason e outros, 2002). No entanto, cabe perguntar aqui:
têm os pais biológicos um modelo de papel para seguir? Como constroem a sua
identidade de pais? Por oposição ao modelo de referência dos seus pais ou
seguindo esse mesmo modelo?
Segundo os resultados de uma pesquisa conduzida por Kerry Daly, os seus
entrevistados (pais de crianças pequenas) confrontavam-se não apenas com a
ausência de um modelo, mas com o facto de as mudanças sociais e culturais os
pressionarem, por um lado, a serem pais diferentes dos seus pais, mas, por
outro, a desempenharem o papel mais tradicional de principais provedores de
rendimentos para a família (1995: 40).
A proposta de Cherlin e de Furstenberg Jr. (1994) é elucidativa do trabalho que
deve ser desenvolvido para que alguém seja considerado um parente de sangue ou
por afinidade. Mesmo reconhecendo a existência de laços de sangue, isso não faz
necessariamente as pessoas pensarem-se entre si como parentes ou familiares, na
medida em que a ausência de qualquer tipo de relacionamento pode significar,
por exemplo, que um parente de sangue não seja considerado como fazendo parte
da família.4 E os autores continuam: se entre pais e filhos esta questão não se
coloca (ou não se deveria colocar), uma vez que o relacionamento acontece de
forma relativamente automática, ou pelo menos não é pensado, o mesmo não se
passa com as relações entre padrastos e enteados, em que quase nada resulta de
forma automática, bem pelo contrário, nada é deixado ao acaso, tudo é negociado
e planeado.
5
Trata-se, evidentemente de padrastos do recasamento, em busca de um papel para
desempenhar, no meio dos dois pais biológicos com participação activa na vida
das crianças. Porém, em muitos casos são padrastos que partilham o dia-a-dia
com as crianças, e essa partilha do quotidiano é sem dúvida o chão de onde
brota a verdadeira parentalidade (seja biológica ou social). Porque, quanto à
figura do pai, a paternidade biológica mesmo reforçada juridicamente já não é
suficiente para, só por si, justificar a ocupação do lugar de pai, e, por isso,
a paternidade social pode ocupar um lugar de destaque nas recomposições
familiares. Contudo, a situação desejável seria, por exemplo, a proposta de
Irène Théry sobre uma pluriparentalidade ordenada que distingue claramente
os pais dos padrastos, reconhece-os a uns e a outros, abrindo assim as
fronteiras da família (1995: 102).
À semelhança da proposta de Andrew Cherlin (1978) acerca de o recasamento ser
uma instituição incompleta, também se pode retirar a mesma conclusão sobre o
papel de padrasto é institucionalmente incompleto (Cherlin e Furstenberg
Jr., 1994: 367). A este respeito, os autores consideram que o facto de não
existir um nome para designar o padrasto (para além de padrasto) e de
habitualmente as crianças usarem o seu primeiro nome, sugere que o padrasto não
é um estranho nem um parente, mas alguém que está no meio (idem: 368).
Ainda assim, apesar das ausências significativas de nomes para certas formas de
parentesco relacionadas com a trama de relacionamentos que recobrem as famílias
recompostas, nem todas as pesquisas desenhadas sob o modelo de Cherlin têm
provado que a ausência de normas institucionalizadas seja a causa de todos os
males nestas famílias (MacDonald e DeMaris, 1995: 397). Bem pelo contrário, o
facto de essas normas não existirem também pode ser benéfico para a vida nas
famílias recompostas, na medida em que existe mais liberdade e maior
flexibilidade para se pensar essas relações. Mesmo assim, na maior parte dos
casos muitos casais com enteados entram no recasamento com expectativas muito
elevadas, subestimando a complexidade destas configurações, e rapidamente ficam
desapontados (Papernow, 1993). Parece, contudo, que estamos a alcançar um
relativo consenso quando se diz que os padrastos ou madrastas são, na maior
parte das vezes, chamados pelos seus nomes próprios. Ora, o chamar alguém pelo
nome já é sinónimo de proximidade, de reconhecimento mútuo, cumplicidade, de
liberdade e, por outro lado, exclui a noção de qualquer tipo de hierarquia,
poder e autoridade (Cutsem, 2004). No fundo, todos estes esforços se traduzem
na recusa de decalcar o papel de padrasto do parental, na medida em que esta
relação entre padrastos e enteados não é fundada na ordem do nascimento mas
na ordem do social. A partir do momento em que o casamento, nas sociedades
ocidentais, já não constitui o garante do sistema da parentalidade, é, então,
chegada a altura de repensar o significado do biológico e reconstruir a
representação dos fundamentos complexos da parentalidade (biológica e social)
(Théry e Dhavernas, 1993).
Padrastos no quotidiano: lógicas e ambiguidades na construção social de um
papel em aberto
Ser padrasto implica construir e reconstruir no tempo um modo de ser e de
estar que não colida com os outros actores mãe, pais biológicos e crianças
cujos papéis sempre estiveram socialmente definidos e inscritos numa história
familiar que já está em parte escrita.
É uma evidência que não existe um manual de instruções que oriente a
construção social do papel de padrasto, mas também não existe para os pais
biológicos. No entanto, dada a ausência de qualquer tipo de instância de
legitimação das práticas de parentalidade social, somos quase tentados a dizer
que os padrastos, por via dos divórcios, não têm existência real nas sociedades
ocidentais, ou seja, a sua figura só está prevista para os casos de morte do
pai biológico e, então, aí sim, o padrasto desempenha o verdadeiro papel de
pai.
A insistência na fragilização deste papel, pela não existência de normas
sociais que o regulem,6 só pode ser encarada pelo facto de ele não se inscrever
na ordem do nascimento, da natureza, do biológico, mas na ordem do social
exclusivamente. A força do primado do biológico na filiação é indiscutível nas
sociedades contemporâneas; no entanto, em simultâneo, assiste-se ao surgimento
de um número crescente de famílias que integram padrastos, madrastas e
enteados, isto é, nos dias de hoje, a parentalidade biológica coexiste, cada
vez mais, com a parentalidade social. E as famílias recompostas incorporam
essas duas formas de parentalidade.
De qualquer modo, o padrasto é também aquilo que os outros protagonistas do
processo de recomposição permitem que ele seja, isto é, a legitimação do seu
papel passa pelas interacções entre mães, pais biológicos e crianças, e pelas
suas representações acerca do modelo de família que querem construir. E, neste
sentido, o grau de ambiguidade deste papel está também muito associado às
expectativas do pai biológico dos seus enteados, isto é, alguns pais esperam
que o padrasto assuma integralmente as responsabilidades parentais; e outros
não desejam nem esperam que o padrasto assuma tais responsabilidades; outros
ainda não se importam que o padrasto praticamente os substitua, desde que as
linhas de orientação educativa sejam coincidentes com as suas.
7
Neste último sentido, pode-se falar de padrastos-aliados dos pais biológicos
(Marsiglio, 2004).
Em suma: as modalidades quanto ao exercício do papel de padrasto são muito
condicionadas pelas figuras parentais que vivem fora do agregado doméstico
recomposto (Cherlin e Furstenberg Jr., 1994).
A ambiguidade do papel de padrasto não será, para Lawrence Kurdek e Mark Fine,
a única variável independente a introduzir um clima de conflito ou de
insatisfação no quotidiano das famílias recompostas. Do mesmo modo, uma
perspectiva excessivamente optimista e alguns mitos acerca da vida nestas
configurações familiares explicam um maior ou menor grau de satisfação no
interior das famílias de padrastos. Para estes autores, as mulheres são mais
optimistas acerca da relação entre os seus filhos e o seu actual marido do que
os próprios padrastos; e o facto de se acreditar que as famílias recompostas
são equivalentes às famílias de pais biológicos, que todos se vão ajustar e
amar uns aos outros rapidamente, são indícios de dificuldade na resolução de
conflitos e de certos problemas de comunicação (1991: 566).
No processo de construção social do papel deste actor suplementar da
recomposição, intervêm igualmente as próprias características estruturais do
seu lugar de classe, na medida em que este lugar do padrasto se inscreve
precisamente nas relações de sexo e de classe (Le Gall, 1992).
Outro aspecto fundamental para compreender o papel do padrasto diz respeito ao
tempo: desde logo ao tempo passado, na medida em que as famílias recompostas
são herdeiras de um passado, ou seja, de uniões anteriores, que condicionam
as relações entre os vários actores da recomposição. Por exemplo, se o pai
biológico das crianças estiver muito presente nas suas vidas, o padrasto vê a
sua acção de educador relativamente limitada. Por outro lado, o sentido das
relações constrói-se no tempo (Segalen, 1999: 125), ou seja, a legitimidade do
papel de padrasto a seguir a um divórcio ou separação, porque é um papel mais
adicional do que de substituição (Duberman, 1975: 51), conquista-se
continuamente.8
Se o processo de recomposição familiar se instaura diferenciadamente consoante
as condições materiais de existência das famílias, o mesmo se passa com a
construção social do papel de padrasto.
É certo que o processo de construção social do papel de padrasto ou de madrasta
apenas tem lugar a partir do momento em que um pai ou uma mãe com a guarda dos
filhos decide casar ou coabitar com um homem ou uma mulher que pode ter ou não
crianças de uma união anterior. Isto é, este papel só pode ser apreendido a
partir do momento em que se torna inteligível (Le Gall e Martin, 1995: 204).
Contudo, ao privilegiar a designação de Didier Le Gall (1992) padrastos no
quotidiano , destaca-se a situação dominante: mãe guardiã com filhos e o
padrasto que mantém uma relação de proximidade com essas crianças.
Habitualmente as relações de parentalidade social à distância são mais
protagonizadas pelas mulheres, ou seja, pelas madrastas.
Para além de um conjunto integrado de três factores ligados entre si, e
directamente relacionados com o processo de recomposição familiar o meio
social, a representação da família e o tipo de relações após o divórcio , que
nos remetem agora para lógicas diferenciadas de construção social do papel do
padrasto, torna-se também importante ter em conta outras variáveis, tais como:
a passagem do tempo, a atitude do pai não guardião, a idade dos enteados na
altura dos primeiros confrontos, o clima relacional e a diferença de idades
entre meios-irmãos. Também neste plano das relações entre padrastos e enteados
são de assinalar as duas lógicas identificadas nos processos de recomposição
familiar: substituição e perenidade.9
Assim, nos meios mais desfavorecidos impõe-se a lógica da substituição devido
ao facto de os divórcios serem bastante conflituosos e as relações entre os ex-
cônjuges não se manterem para além da separação, influenciando também os
contactos entre o pai biológico e os filhos, isto é, confundindo-se o vínculo
de parentalidade com o laço conjugal. Nos casos mais extremos, o pai desaparece
deixando o seu lugar vazio, que é de imediato ocupado pelo padrasto. Em
contraponto, os padrastos, que regulam a construção do seu papel pela lógica da
perenidade (papel de composição), tentam a todo o custo inventar um modelo
inédito sem invadir os papéis pré-estabelecidos. E, para além disso, o espaço
familiar é estruturado em forma de rede onde as crianças são incentivadas a
circular pelas várias casas, alargando assim a trama de relacionamentos
familiares (Le Gall, 1992).
Por outro lado, e independentemente dos tipos de modelo de padrasto, a vinda de
uma nova criança favorece a integração dos padrastos no quotidiano. Tudo se
passa como se a parentalidade (serem pais em conjunto) tivesse um efeito
directo sobre a relação entre padrasto ou madrasta e enteado(a)s(Le Gall e
Martin, 1995: 209). E, para além disso, esta criança da recomposição constitui
um poderoso factor de institucionalização das famílias recompostas (Le Gall,
1996: 142).
Importa referir aqui, ainda que de forma breve, duas pesquisas realizadas por
dois sociólogos franceses Thierry Blöss e Sylvie Cadolle acerca da
construção sociobiográfica da parentalidade (a primeira) e das trajectórias de
vida dos pais biológicos e dos padrastos (a segunda). Estes dois trabalhos têm
em comum, para além de muitas outras questões, o facto de terem feito uma
aproximação às duas lógicas acima enunciadas.
Thierry Blöss interroga-se acerca da especificidade educativa das famílias
recompostas e confirma, através dos discursos dos entrevistados (mães guardiãs
e padrastos), a existência de duas lógicas de recomposição socialmente
distintas, que desembocam em dois modos diferenciados de relações educativas;
daí, o autor falar em lógicas educativas de recomposição.10 Na primeira, a
família é construída sobre a integração parental do padrasto e sobre uma nova
entidade doméstica, isto é: a paternidade social que o padrasto pouco
escolarizado exerce sobre os enteados confere-lhe alguma autoridade no plano
educativo, dentro dos limites aceites pela mãe guardiã. Aqui, o casal parental
sobrepõe-se ao conjugal, a família recomposta é a verdadeira família da
criança; no entanto, esta influência dos laços entre padrastos e enteados não é
suficiente para substituir o pai biológico.
Na segunda lógica de recomposição protagonizada por padrastos mais
escolarizados, a relação conjugal não se confunde com a parental, o divórcio
não afectou a família de origem a verdadeira família da criança e o pai
biológico e a mãe mantêm um acordo de cooperação activa (1996: 150-151).
Interessante nesta proposta de Blöss é a sobreposição das lógicas educativas de
recomposição com os modelos de casal. Nomeadamente, é o novo casal conjugal que
assume a educação da criança, no primeiro caso; e, no segundo, é o casal
parental que é mantido (pai e mãe biológicos) para assumir essa
responsabilidade. Neste sentido, e como diz Irène Théry no prefácio da obra
deste sociólogo ao contrário de uma ideia muito divulgada, Blöss sublinha a
interdependência entre o conjugal e o parental, e nessa relação de dependência
será o conjugal que comanda o jogo (idem: 13-14).
Para além disso, quaisquer que sejam as lógicas educativas de recomposição, o
investimento educativo parental resulta de um processo desigual de divisão
sexual (idem: 152). Isto significa, segundo o autor, que a mãe guardiã é o
pivô de todas estas interacções, é ela que no seu triplo estatuto de ex-
mulher, nova esposa ou companheira, e mãe das crianças está no centro de
todas as redefinições e legitimações de papéis. O autor refere-se mesmo a essa
relação como o casal mãe-filho. Trata-se de um poder feminino e maternal que
leva Irène Théry a questionar: será este tipo de casal o coração intocável,
sagrado, sacralizado do sistema complexo de interacção das relações conjugais e
das relações parentais no seio de uma família recomposta? (idem: 14)
A socióloga Sylvie Cadolle privilegia a dimensão temporal no estudo das
sucessivas transições biográficas. Num primeiro momento analisa em que medida o
peso do passado determina o papel, o lugar e os sentimentos de cada um na
família recomposta. Isto é, parte da hipótese de que mesmo antes da separação
dos pais, a forma como se estruturam as relações com as crianças na primeira
família já condiciona, em parte, não só a organização pós-divórcio bem como o
lugar que poderá tomar ou não o padrasto na nova família.
Em seguida, a autora dá a palavra aos jovens, que na recomposição familiar têm
uma dupla identidade filhos e enteados para falarem acerca de uma
recomposição que por vezes lhes causa angústias e conflitos, como, por exemplo,
o facto de terem de partilhar a intimidade com os padrastos que eles não
escolheram. No fundo, Cadolle procura saber de que modo interferem os
sentimentos e os papéis nos percursos biográficos de cada um. Também aqui se
identifica uma pluralidade de interpretações acerca do papel de padrasto e
como, no meio da confusão das normas, cada um inventa este papel.
Por fim, através das respostas obtidas nas entrevistas11 torna-se claro para a
autora, o seguinte: os padrastos raramente ocupam o papel do pai biológico (a
recomposição tende a fazer-se por adição e não por substituição); no centro do
sistema familiar encontra-se a mãe (nova matricentralidade); a relação entre a
mãe e as crianças é decisiva para o relacionamento entre padrastos e enteados.
Todavia, para a autora esta matricentralidade não é apanágio das famílias
recompostas. Primeiro, porque ela já existe na maioria das famílias
monoparentais e, depois, porque este poder no feminino já acontecia na família
de origem antes da separação dos pais devido à força da divisão de papéis de
género, relativamente atenuada depois da entrada das mulheres no mercado de
trabalho (2000: 37-38).
A mais recente das pesquisas (Lobo, 2007) a tomar as recomposições familiares
enquanto objecto de análise sociológica, num cenário de temporalidades e de
transições, identificou, do mesmo modo, dois tipos de dinâmicas de recomposição
integração e exclusão , aglutinadoras tanto de referenciais teóricos como de
procedimentos operatórios dos trabalhos dos autores anteriormente mencionados,
mas também outros factores intervenientes no processo de recomposição com
implicações directas na construção social do papel de padrasto. Observar a
interdependência entre classes sociais e dinâmicas de recomposição familiar
correspondia à hipótese principal que norteou a investigação e, de facto, foi
possível associar as dinâmicas de integração aos sectores mais escolarizados
profissionais intelectuais e científicos, técnicos de nível intermédio , e as
dinâmicas de exclusão aos empregados executantes, trabalhadores independentes e
operários especializados.
Particularmente significativa foi a confirmação da sobreposição das dinâmicas
de recomposição familiar determinadas pelos dois eixos de conjugalidade e
parentalidade. O mesmo se pode dizer da importância da ocorrência e duração dos
primeiros casamentos no processo de recomposição familiar (o peso do passado);
da centralidade da figura da mãe nestas configurações familiares recompostas,
pois são elas que gerem a coexistência entre parentalidade social e biológica
nestas famílias; e, não menos importante, a relação entre a experiência
anterior à recomposição da parentalidade biológica e o tipo de interacções
entre padrastos e enteados que, com o tempo, se vão reconfigurando e
consolidando.
Crianças e jovens das famílias recompostas: passados atribulados, presentes
negociados, futuros erráticos
Ao passar em revista algumas das principais pesquisas, tanto europeias como
norte-americanas, sobre as famílias recompostas torna-se evidente que as
crianças constituem o elemento central destas configurações familiares. A
própria definição de família recomposta difundida pelos cientistas sociais
inclui os adultos e as crianças de relações anteriores. Aliás, sem crianças não
existem famílias recompostas. Elas circulam nos vários grupos domésticos,
ligando-os entre si e alargando a constelação recomposta um pouco à semelhança
da família tradicional.12 Se bem que o grupo doméstico recomposto corresponda
àquele em que a criança vive com o pai ou com a mãe que ficou com a sua guarda
e o respectivo cônjuge, contudo há outro grupo doméstico: aquele que a criança
visita, mas que não tem de ser forçosamente recomposto. Só o será se lá viverem
crianças de casamentos anteriores.
Um outro factor que indicia essa relevância é precisamente o caso de as
tipologias apresentadas sobre estas configurações familiares tomarem, para além
do segundo casamento, as crianças como principal critério de classificação da
família nesta categoria: o casal tem crianças apenas dos casamentos anteriores
ou também do actual? Todas as crianças (dos vários casamentos dos pais) vivem
no mesmo grupo doméstico? Ou há crianças de casamentos anteriores que visitam
um dos grupos domésticos?
Ainda assim, e apesar desta centralidade, nem sempre as crianças têm sido o
objecto de reflexão por excelência dos trabalhos realizados por cientistas
sociais acerca das famílias recompostas e, muito menos, se têm analisado estas
famílias do ponto de vista das crianças ou dos jovens.
13
Veja-se, por exemplo, que a maioria das pesquisas que envolve crianças destas
configurações familiares se debruça quase sempre sobre as relações entre os
padrastos ou as madrastas e as crianças e, raramente, sobre estas e os
padrastos ou madrastas (Ganong e Coleman, 1994). São conhecidas algumas vozes
críticas, pelo lado da sociologia da infância, referindo que os investigadores
tendem a olhar para as crianças como os adultos de amanhã, e não como crianças
vivendo as suas vidas aqui e agora (Ritala-Koskinen, 1997: 137-138).14 Na
verdade, as principais pesquisas acerca das famílias recompostas, assim como de
qualquer outro tipo de estrutura familiar, são maioritariamente orientadas para
os adultos e ancoradas na ideologia da família nuclear. É particularmente
interessante a sugestão de Ritala-Koskinen de que as perspectivas das crianças
podem abrir novos ângulos de pesquisa sobre as constelações familiares
recompostas (idem: 149).
Porque é notória a escassez de pesquisas que tenham dado a palavra às crianças
ou aos jovens adolescentes sobre as suas experiências de vida nas famílias
recompostas, vale a pena destacar, ainda que de forma breve, os trabalhos de
Penny Gross (1986), Irene Levin (1994) (citados em Ritala-Koskinen) e de Aino
Ritala-Koskinen (1997), sobre a maneira como as crianças destas configurações
definem a sua família, e como percepcionam as suas relações com os outros
membros do agregado doméstico recomposto.15
Tendo por base os resultados alcançados na sua pesquisa, Penny Gross (1986)
propôs a seguinte tipologia: 1) retenção as crianças contam os dois pais
biológicos como fazendo parte da sua família, mas não o seu padrasto ou
madrasta; 2) substituição as crianças excluem da família pelo menos um pai
biológico e incluem pelo menos o padrasto ou a madrasta; 3) redução as
crianças incluem na família menos pessoas do que os dois pais biológicos; 4)
aumento crianças incluem na família ambos os pais biológicos e pelo menos o
padrasto ou a madrasta. Trata-se, apesar de tudo, de uma tipologia estática, na
opinião de Ritala-Koskinen, em que a família é confinada a um certo tipo de
fronteiras que, no fundo, coincide com a família nuclear (citado em Ritala-
Koskinen, 1997: 145-146).
Quanto a Irene Levin (1994), ao considerar na sua investigação uma dimensão
sobre a forma como as crianças olham e definem a sua família, também elaborou
uma tipologia tendo por base o grupo doméstico ou a casa a que as crianças
dizem pertencer e dividindo-as do seguinte modo: 1) crianças para quem a sua
casa é tanto a do pai como a da mãe: 2) crianças que dizem pertencerem à casa
do pai ou à da mãe; 3) e crianças que não identificam nem a casa da mãe nem a
casa do pai como sendo sua (idem: 146).
Na opinião de Ritala-Koskinen, tomar como único indicador a questão quem são
os membros de uma família? pode-se revelar problemático para um entendimento
mais profundo do grau de afinidade entre os membros mais próximos daquela.
Verifica-se, nomeadamente, que os parceiros dos pais biológicos que vivem na
mesma casa com as crianças, mas que não são considerados por elas como
pertencendo à sua família, podem ser adultos de uma extrema importância na vida
quotidiana desses jovens ou crianças. Vejam-se os resultados identificados na
sua investigação:16 para as crianças, o facto de viverem na mesma casa com
outras pessoas não significa automaticamente que elas façam parte da sua
família, na medida em que para estas crianças a família pode estar para além do
grupo doméstico recomposto. Portanto, os novos membros do grupo doméstico
recomposto (padrasto ou madrasta) não representam necessariamente para a
criança a sua família; o simples facto de as crianças referirem o padrasto
como membro da sua família não explica a natureza dessa relação, isto é, esse
relacionamento entre padrasto e enteados não se explica por via do parentesco
mas pela amizade (idem: 149).
As várias definições apresentadas pelas crianças acerca das suas famílias e das
relações mais próximas entre os seus elementos são um sinal claro da
necessidade de se analisarem as famílias recompostas através de uma abordagem
diferente da que é tradicionalmente sugerida nas pesquisas sobre a família.
Trata-se, em suma, de clarificar uma questão importante: para um entendimento
mais profícuo das famílias recompostas torna-se inevitável adoptar perspectivas
novas (Ritala-Koskinen, 1997), particularmente no que toca às relações de
parentesco.
A produção empírica norte-americana (1950-2000)
Vale a pena, por isso, retomar aqui a produção norte-americana sobre um dos
temas mais populares nas investigações dos cientistas sociais os efeitos do
recasamento de um ou de ambos os pais biológicos nas crianças e nos jovens
adolescentes. Trata-se de um tema incontornável quando deambulamos pelo
manancial de pesquisas empíricas, realizadas entre 1956 e 2000, acerca do
recasamento e das famílias recompostas.
Duma maneira geral, e à semelhança do que se constatou quanto às pesquisas
sobre o recasamento e as famílias recompostas, a maioria destes trabalhos
accionou o modelo de comparação (deficit-comparison) entre as crianças das
famílias recompostas (particularmente as famílias de padrastos) ou das
monoparentais, e as crianças das famílias nucleares.
A primeira investigação sociológica a incluir na sua análise as repercussões do
recasamento nos jovens e nas crianças (dando voz aos jovens destas famílias)
foi, precisamente, Remarriage, realizada por Jessie Bernard, nos anos 50.17
Neste trabalho, ao entrevistar cerca de 81 jovens estudantes a viverem com mães
ou pais viúvos, divorciados, recasados ou em situação de monoparentalidade, a
autora concluiu que não se verificavam diferenças significativas quanto à
estabilidade, à auto-suficiência e ao domínio sobre si próprios destes jovens,
em relação aos que viviam com os dois pais biológicos. E para além disso, no
caso do recasamento dos pais, estes jovens revelaram quase sempre uma atitude
positiva para com os seus padrastos ou madrastas (1971 [1956]: 318).
Para o trabalho empírico de maior fôlego sobre este tema, que aparece publicado
em 1962,18 da autoria de Charles E. Bowerman e Donald P. Irish, foram
inquiridas crianças entre os 7 e os 12 anos de idade: umas a viverem com
padrastos, outras com madrastas e ainda outras com os dois pais biológicos. Os
autores pretendiam aferir das diferenças entre a natureza das relações que
estas crianças mantinham com os seus pais biológicos, padrastos e madrastas. E
concluíram o seguinte: os enteados ou as enteadas não tinham tanta proximidade
afectiva com os seus padrastos ou madrastas como tinham as crianças das
famílias nucleares para com os seus pais biológicos; para além disso, sentiam-
se mais rejeitados e discriminados pelos padrastos, mas as coisas pioravam,
sobretudo, quando se tratava das madrastas.19
Ainda nos anos 60, mais precisamente em 1964, surge um outro trabalho, também
comparativo, entre as crianças e adolescentes das famílias recompostas, das
monoparentais e das nucleares, realizado por Lee G. Burchinal. Procurava
identificar pontos discordantes entre as crianças quanto às relações de
sociabilidade na escola, ao número de faltas, ao número de amigos, às atitudes
perante a escola, os professores e as actividades escolares. Quanto aos
resultados: não foram identificadas diferenças significativas entre as atitudes
das crianças pertencentes às várias estruturas familiares (citado em Pasley e
Ihinger-Tallman, 1987: 118).20
Para Pasley e Ihinger-Tallman (1987), à semelhança da década anterior, as 16
pesquisas realizadas por cientistas sociais, nos anos 70, seguiram os mesmos
procedimentos teóricos e metodológicos para identificarem mais ou menos as
mesmas tendências, isto é: a grande maioria dos trabalhos concluiu que as
relações entre os membros das famílias recompostas não diferem do tipo de
relações nas outras configurações familiares.
Um dos primeiros trabalhos de Lucile Duberman (1975), sobre a integração
familiar, as relações entre padrastos e enteados e entre os meios-irmãos
revelou-se uma das poucas excepções à forma dominante de abordagem deste tema,
naquela altura. A autora entrevistou 88 casais recasados entre 1965 e 1968,
explorando variáveis independentes tais como: idades dos pais, nível de
instrução, religião, idade das crianças, local de residência, etc. Os
resultados alcançados foram os seguintes: as relações entre os padrastos e os
enteados, bem como entre os meios-irmãos revelaram-se duma forma geral bastante
positivas.21
Quanto aos anos 80, eles foram igualmente férteis na produção de trabalhos
sobre as famílias recompostas, assim como sobre a vida das crianças nessas
mesmas famílias. Por exemplo, até meados desta década, mais precisamente até
1986, nos EUA, tinham sido realizadas por cientistas sociais norte-americanos
39 pesquisas empíricas sobre este tema (Pasley e Ihinger-Tallman, 1987).22
Utilizando procedimentos variados e analisando populações diferenciadas, as
conclusões convergiram quase sempre no mesmo sentido: as crianças das famílias
monoparentais e recompostas não usufruem de melhor bem-estar, em média, que as
crianças das famílias de dois pais biológicos (Zill, 1988; Brand, Clingempeel e
Bowen-Woodward, 1988; Bray, 1988).
Muitos dos trabalhos que analisaram os efeitos do divórcio nas crianças,
durante esta década, ignoraram as repercussões do recasamento dos pais e, em
contrapartida, os trabalhos sobre o recasamento não contemplaram as transições
anteriores, como o divórcio e a monoparentalidade dos pais biológicos. Sabe-se
que tanto o divórcio como a entrada no recasamento constituem momentos
perturbadores na organização familiar (Hetherington, 1987). Na verdade, são
poucas as pesquisas que acompanham as crianças do divórcio ao recasamento,
passando pela fase da monoparentalidade dos pais (Clingempeel, Brand e Ievoli,
1984; Hetherington, 1987).
No que diz respeito apenas ao recasamento, talvez ele beneficie mais os pais em
termos económicos e de bem-estar afectivo do que as crianças (Pasley e Ihinger-
Tallman, 1987). É certo que o recasamento, como demonstram alguns trabalhos,
pode reintroduzir na vida de muitas mulheres um estatuto económico
relativamente semelhante àquele que tinham no primeiro casamento, e que as
crianças, por um lado, tiram proveito dessa estabilidade económica e afectiva,
mas, por outro, o recasamento também pode significar para elas uma ausência das
vivências quotidianas com os pais biológicos não residentes.
Tudo indica, contudo, que o facto de o padrasto contribuir de forma
significativa para o sustento da família recomposta, em qualquer meio social,
confere-lhe respeitabilidade aos olhos das crianças e dos jovens adolescentes.
Veja-se, por exemplo, o trabalho de Jean Giles-Sims e de Margaret Crosbie-
Burnett (1989) acerca do poder que gozam adolescentes e padrastos nas famílias
recompostas. Uma das hipóteses destes autores traduz-se no seguinte: quanto
maior a contribuição financeira do padrasto para a família, comparando com a da
sua mulher, maior poder este usufrui. Na verdade, segundo estes autores, os
padrastos que suportam economicamente os seus enteados têm maior influência nas
decisões familiares. Por outro lado, nas famílias em que os padrastos
consideram que os seus enteados possuem mais poder do que eles, estes
adolescentes passam mais tempo com os seus pais biológicos. Isto é, quando os
jovens possuem fontes alternativas de financiamento aceitam menos a posição de
poder da mãe e do padrasto.23
Na opinião do sociólogo Frank Furstenberg Jr., os efeitos psicológicos do
recasamento nas crianças tornam-se mais difíceis de avaliar. Apesar do aumento
de pesquisas empíricas sobre a vida das crianças e dos jovens nas famílias
recompostas, isso não significa de modo algum consenso nos resultados quanto às
consequências dos vários momentos de transição nos membros mais novos destas
configurações familiares.24 Verifica-se, nomeadamente, que estes trabalhos
sobre os efeitos a longo prazo do recasamento nas crianças não demonstram com
muita evidência se o recasamento dos pais aumenta o bem-estar psicológico dos
filhos, mesmo que as condições económicas melhorem significativamente (1990:
396). Por exemplo, os jovens do divórcio e do recasamento ou só os do divórcio
parecem ter a mesma inclinação para certos tipos de práticas de conjugalidade
quando crescem: começam a ter relações sexuais mais cedo do que as crianças
das famílias nucleares; saem mais cedo de casa dos pais; coabitam e casam muito
novos; e têm crianças precocemente (Furstenberg, Jr., 1990: 396-397).
Lynn K. White e Alan Booth inquiriram cerca de 1673 indivíduos casados e
recasados de ambos os sexos, em 1980, e voltaram a fazê-lo, em 1983, com o
objectivo de mostrarem que a taxa de divorcialidade nos recasamentos é mais
elevada nos casos mais complexos: ambos os membros do casal recasado foram
casados e ambos têm filhos desse primeiro casamento.25 Os autores concluíram: a
presença de enteados é uma influência desestabilizadora dentro dos
recasamentos, e o factor que mais contribui para o aumento do número de
segundos divórcios. Acontece que, durante os três anos decorridos entre as
entrevistas, cerca de metade (51%) de todos os jovens enteados tinham
abandonado a casa onde viviam, comparando com 35% de jovens a viver com os dois
pais biológicos. Para onde foram estes jovens? Uns foram viver com o outro pai;
outros foram mesmo obrigados a isso; outros foram para colégios ou arranjaram
casa para viver sozinhos ou acompanhados (coabitaram ou casaram) (White e
Booth, 1985: 697). Importa também referir que tanto neste como em outros
estudos são as raparigas que, por volta dos 19 anos, deixam a casa em que vivem
com a mãe e o padrasto para casarem ou irem viver sozinhas (Kiernan, 1992;
Aquilino, 1991). Mesmo assim, outras análises comparativas sobre a relação
entre a presença exclusiva de enteados (sem crianças comuns ao casal recasado)
e o conflito entre o casal apresentam algumas nuances. Por exemplo, Wiliam
MacDonald e Alfred DeMaris (1995), ao analisarem comparativamente o conflito
entre famílias do primeiro, segundo e terceiros casamentos, e só com crianças
biológicas, com crianças biológicas e enteados, e só enteados, concluíram o
seguinte: nos grupos domésticos de casais recasados onde só vivem enteados, o
conflito está mais presente no seu quotidiano que nos grupos domésticos do
primeiro casamento de longa duração; no entanto, o oposto é verdadeiro para os
casamentos de curta duração. Em suma, as famílias com enteados e crianças
biológicas vivem tanto em ambientes de conflito como as famílias só com
crianças biológicas (1995: 397).
Ainda assim, é preciso não esquecer que um número substancial de crianças
consegue criar laços fortes com os seus padrastos ou madrastas. Também é
verdade que esse estreitar de relações muda segundo o género e a idade das
crianças na altura do divórcio e do recasamento dos pais. Em todo o caso,
algumas investigações dão conta de que mesmo os adolescentes e os jovens
adultos estabelecem relações fortes com os seus padrastos ou madrastas
(Furstenberg Jr., 1990: 397). Para além disso, como refere o sociólogo Frank
Furstenberg Jr., em finais dos anos 80 aumenta o reconhecimento (entre os
americanos) de que as estruturas familiares alternativas podem assegurar às
crianças um ambiente estável. E mesmo os cientistas sociais começaram a
questionar a ideologia dominante que fazia da família nuclear o único tipo de
estrutura familiar onde as crianças eram socializadas de forma apropriada
(1988: 245).
Um objecto de reflexão particularmente interessante nas investigações sobre o
divórcio, o recasamento e as famílias recompostas diz respeito às mudanças nas
relações familiares à medida que cada um destes momentos ocorre (Bohannan,
1970b; Johnson, 1988). Por exemplo, o divórcio habitualmente mutila as
relações entre as crianças e os familiares do pai biológico, provocando um
reforço dos laços matrilineares na estrutura de parentesco. Em contrapartida, o
recasamento dos pais, se ocorrer cedo na vida de uma criança, pode repor os
laços bilaterais característicos do sistema dominante de parentesco nas
sociedades ocidentais. Também neste plano, é de assinalar que o recasamento dos
pais alarga a rede de relacionamentos e se as crianças tiverem, para além dos
pais biológicos, um padrasto e uma madrasta podem beneficiar com a inclusão na
nova família de mais avós, tios e primos (Johnson, 1988).
Como já se referiu, nos anos 90 os cientistas sociais e os clínicos norte-
americanos produziram um número muito considerável de trabalhos sobre o
recasamento e as famílias recompostas. Segundo os levantamentos bibliográficos,
publicou-se mais sobre esse tema, nessa altura, do que durante os anos
anteriores. Aproximadamente um terço destes trabalhos reflectia sobre os
efeitos provocados nas crianças pela vivência quotidiana com um padrasto ou uma
madrasta.26
Em primeiro lugar, a maioria das pesquisas realizada nesta altura analisou o
aproveitamento e o insucesso escolar, o bem-estar e os problemas de
comportamento das crianças e dos jovens que viviam em famílias recompostas. Por
outro lado, e à semelhança de décadas anteriores, estas crianças e as que
viviam em famílias monoparentais eram comparadas com os filhos das famílias
intactas.
Para além de uma variedade de hipóteses relacionadas com o stresse, como por
exemplo a dos efeitos cumulativos, isto é, quanto maior for o número de
transições conjugais dos pais a que as crianças assistam maior a probabilidade
de apresentarem problemas comportamentais, comparativamente com as crianças que
vivem com pais que só se casaram uma única vez (Fine e Kurdek, 1992).
Outro aspecto relacionado com o stresse tem a ver com o conflito. Por um lado,
o conflito entre os pais divorciados e, por outro, o ambiente de conflito
generalizado dentro do grupo doméstico em que vivem as crianças com o padrasto
ou a madrasta. Este clima de conflito permanente potencia, segundo alguns
autores, a saída precoce dos enteados de casa (Kiernan, 1992), e isso explica o
facto de existir uma taxa reduzida de jovens adultos nas famílias recompostas
(Aquilino, 1991). No entanto, sublinhe-se que nem todos os investigadores dão
conta, nas suas pesquisas, de que o conflito esteja mais inscrito no quotidiano
das famílias recompostas do que nas famílias nucleares, e também nem todos
identificam o conflito dentro e fora de casa como o responsável pelos maus
resultados escolares (Hanson, McLanahan e Thomson, 1996).
É claro que as questões económicas ocupam um plano privilegiado nesta discussão
acerca dos problemas que enfrentam as crianças destas configurações familiares.
Segundo a hipótese da privação económica, as crianças que vivem com um padrasto
ou uma madrasta e as que vivem apenas com um dos pais biológicos estão em
desvantagem, no que toca a questões económicas, a residências degradadas, a
bairros perigosos e a escolas inadequadas, do que as crianças que vivem com os
dois pais biológicos (Pong, 1997).
Vale a pena referir ainda, mesmo que de forma muito breve, uma área de
discussão relacionada com as crianças das famílias recompostas, e que se prende
com os riscos de abuso sexual e de violência psicológica a que estas crianças e
jovens podem estar expostos. Mas também sobre este assunto os resultados são
controversos e longe de poderem ser generalizados (Giles-Sims, 1997).
Na verdade, segundo Ganong e Coleman (1994), em 1970, um número razoável de
investigadores traçou um quadro negro sobre os abusos a crianças nas famílias
recompostas, começando pelo levantamento conduzido por Gil (1970),
identificando os padrastos e os pais substitutos como os responsáveis por um
terço dos casos denunciados de abuso sexual de crianças. Uma década depois,
para Finkelhor (1987) o incesto representava uma prática quatro ou cinco vezes
mais comum nestas famílias e, para além disso, as enteadas representavam um
alvo preferencial de abusos sexuais por parte dos amigos dos seus padrastos.
Mais recentemente, Margolin (1992) concluiu que os namorados das mães que são
de facto padrastos se encontravam sobrerrepresentados no relatório de Iowa
sobre abusos a crianças. Agora, do outro lado menos negro para as famílias
recompostas, por exemplo, Gordon e Creighton (1988) chegaram aos seguintes
resultados: 37% das crianças abusadas sexualmente pelos pais biológicos foram
obrigadas a ter relações sexuais com eles, comparando com 21% das vítimas de
pais substitutos (namorados) e apenas 16% das vítimas de padrastos. Malkin e
Lamb (1989) também concluíram no mesmo sentido: os padrastos não representavam
maior perigo para os seus enteados do que os pais biológicos, quanto a abusos
físicos (citados em Ganong e Coleman, 1994: 86-87).
Como vimos, é particularmente difícil retirar conclusões credíveis acerca dos
abusos físicos e psicológicos a que podem estar sujeitas as crianças das
famílias recompostas. Na maior parte das vezes os padrastos e os namorados
sucessivos das mães são confundidos numa mesma categoria; outras vezes com os
padrastos aparecem os tios, os primos, os avós; ou então são remetidos para a
categoria residual outros; e para aumentar a confusão os investigadores
definem de maneiras diferentes o significado de criança abusada. Por fim, a
sobrerrepresentação dos padrastos como os potenciais abusadores dos seus
enteados pode estar relacionada com a maior relutância em denunciar os pais
biológicos como tendo abusado dos seus filhos. Tudo se complica ainda mais se a
família depende economicamente desse pai (Ganong e Coleman, 1994).
As fratrias recompostas: irmãos, meios-irmãos e quase-irmãos27
Nas famílias recompostas, consoante a história passada de cada um dos elementos
do casal, assim varia o número de crianças existentes. Na fratria recomposta
partilham-se vínculos de aliança e de consanguinidade conforme a filiação de
cada criança. A existência de crianças provenientes de casamentos anteriores
aumenta a complexidade da estrutura dos papéis e das relações familiares nas
configurações recompostas. As famílias recompostas são famílias de geometria
variável, isto é, o número de elementos no grupo doméstico varia quando, por
exemplo, nos fins-de-semana ou nas férias, chegam os filhos biológicos do
padrasto. Ora, é nesta altura, em que todos os irmãos estão juntos, que se
torna necessário da parte dos adultos tempo disponível e tacto para conseguirem
que se estabeleçam relações de irmãos, ou seja, de cumplicidade entre todas as
crianças. É certo que, quando existe pelo menos um jovem adolescente na casa,
ele está muito mais interessado em adquirir a sua autonomia e independência do
que participar activamente na construção do grupo de cúmplices. Outra tarefa
crucial dos pais, mães, madrastas e padrastos destes grupos domésticos é
precisamente o de reconstituir uma memória partilhada e partilhável por todos
os elementos da família recomposta. Isto é, ajudar as crianças a situarem-se na
sua própria história, contando-lhes as histórias passadas duma família que nem
sempre foi a sua, e fazê-las entender que a partir de um certo momento elas são
parte integrante do grupo de actores da história da nova família.
No início dos anos 90, nos EUA, segundo Ganong e Coleman (1994),
aproximadamente 75% de todas as crianças que vivem numa família recomposta têm
pelo menos um irmão ou irmã, e 20% têm um meio-irmão ou meia-irmã. Quanto ao
número dos quase-irmãos é difícil de calcular; porém, cerca de um grupo
doméstico em quinze tem uma estrutura complexa, isto é, ambos os adultos
recasados vivem com crianças dos casamentos anteriores na mesma casa. Em
França, na mesma altura, segundo Catherine Villeneuve-Gokalp (1999), cerca de
22% de crianças francesas vivem com um meio-irmão ou uma meia-irmã, e apenas 2%
de crianças das famílias recompostas vivem na mesma casa com meios-irmãos e
quase-irmãos.
As pesquisas sobre a natureza das relações entre todas as crianças envolvidas
numa constelação familiar deste género (as crianças da mãe guardiã, do padrasto
e de ambos) escasseiam. Assim como também são poucos os trabalhos sobre o
impacto do nascimento de uma nova criança nas relações entre padrastos e
enteados (Ambert, 1986; Santrock e Sitterle, 1987; Ganong e Coleman, 1988;
Steward, 2002; 2005). Ora, o nascimento de um filho do casal recomposto não só
vem alterar de forma significativa toda a estrutura familiar, como tanto os
adultos como as crianças passam a desempenhar novos papéis (o padrasto passa a
pai e as crianças passam a meios-irmãos ou meias-irmãs da mesma criança). Com
este nascimento, o laço biológico que faltava entre alguns elementos da família
é reposto, mas também pode ser o começo de novos problemas (ciúmes,
rivalidades), principalmente para as crianças do primeiro casamento que se vêem
confrontadas com o fim da antiga família. Isto é, com o aparecimento do bebé
chega ao fim, para as outras crianças, o sonho de reunião dos dois pais
biológicos (Cutsem, 2004).
Quando os cientistas sociais se debruçam sobre as relações entre irmãos, meios-
irmãos e quase-irmãos no recasamento, juntam todos no mesmo grupo,
inviabilizando a análise da dinâmica de cada caso em separado. Ao combinar os
vários tipos, torna-se impossível identificar diferenças entre as relações
entre irmãos no recasamento e as relações entre meios-irmãos e quase-irmãos.
Por exemplo, quanto aos irmãos nas famílias recompostas, serão as suas relações
diferentes (mais próximas ou mais intensas) que as dos outros tipos de
estruturas familiares? Que efeitos produzirão as situações de stresse, de
conflito ou de negociação permanente nas relações entre irmãos que vivem com um
padrasto ou uma madrasta?
Os meios-irmãos dividem-se em três grupos: aqueles que nasceram no grupo
doméstico recomposto, isto é, de um casal recasado em que pelo menos um dos
elementos deste casal já tinha filhos de um primeiro casamento; aqueles que
também vivem nesse grupo doméstico recomposto, mas são filhos de apenas um dos
elementos do casal; e os visitantes que também são filhos de um dos membros do
casal mas vivem numa outra casa com um dos pais biológicos.
Numa pesquisa qualitativa realizada por Anne C. Bernstein sobre famílias do
recasamento que se reproduziram, os meios-irmãos dão-se melhor se a diferença
entre as idades for mais acentuada, quando a família já está reunida há algum
tempo e quando os meios-irmãos vivem juntos na mesma casa. Aliás, se os meios-
irmãos vivem juntos a maior parte do tempo, pensam-se a si próprios como irmãos
(Bernstein, 1989; Ganong e Coleman, 1988; 1993). Se as crianças têm pouco
contacto entre elas, a distinção entre meios-irmãos e irmãos é mais comum. No
entanto, a informação sobre os meios-irmãos é escassa para se saber ao certo
quando é que eles funcionam como irmãos ou sob que condições.
Quando nasce uma criança nas famílias recompostas, todos partilham desta
relação biológica que, no fundo, facilita a ligação entre os vários elementos
os membros do casal, os irmãos e entre padrastos e enteados (Ganong e Coleman,
1988; Stewart, 2005).
Mas a vinda de uma nova criança nestes grupos domésticos recompostos será
sempre um factor de coesão e de unidade familiar? Em algumas pesquisas, a
presença de um meio-irmão ou de uma meia-irmã afecta de forma negativa a
relação entre madrastas e enteados (Santrock e Sitterle, 1987), e afecta de
forma positiva a relação entre padrastos e enteados (Ambert, 1986). Em outras,
os resultados são diferentes: o nascimento de uma nova criança afecta
relativamente pouco as relações entre os elementos da família (Ahrons e
Wallisch, 1987), mas reduz o tempo disponível da mãe para dar atenção aos
filhos do primeiro casamento (idem).
A disparidade de resultados prende-se essencialmente com o facto de não terem
sido tomadas em consideração um conjunto de variáveis explicativas sobre os
efeitos do nascimento de uma criança (meio-irmão ou meia-irmã) nas relações
familiares recompostas, tais como a diferença de idades, o género, a duração do
recasamento dos pais.
A existência de quase-irmãos numa família significa que ambos os adultos têm
filhos de casamentos ou relações anteriores, e significa também que, pelo menos
em certas alturas, tudo se passa a dobrar. Se as crianças de um dos lados não
vivem com o casal (os filhos do padrasto podem viver com a mãe), então torna-se
necessário desenvolver todos os esforços para acomodar/integrar essas crianças
quando visitam o grupo doméstico. Quando todas as crianças vivem na mesma casa,
isto é, quando temos relações de irmãos, meios-irmãos e de quase-irmãos no
quotidiano, então as mudanças para organizar a vida familiar são consideráveis
e às vezes tudo se complica bastante. Geralmente na vida das famílias
recompostas a complexidade é sinónimo de aumento de problemas, e as relações
entre os quase-irmãos nas famílias mais complexas não são excepção. Mesmo
assim, segundo Ganong e Coleman, a presença destes irmãos constitui um problema
maior para os pais do que para as crianças (Ganong e Coleman, 1993: 137).
No entanto, para a socióloga Marilyn Ihinger-Tallman, numa família em que os
quase-irmãos tenham contactos frequentes, partilhem experiências, sejam mais ou
menos da mesma idade, do mesmo género, partilhem os mesmos valores, têm todas
as probabilidades de criarem laços fortes entre eles (Pasley e Ihinger-Tallman,
1987: 179).
Contudo, ficam por responder algumas questões: qual é a natureza dos laços
entre os quase-irmãos? Que direitos e deveres têm na constelação familiar? Que
efeitos provocam os quase-irmãos uns nos outros? A existência de meios-irmãos
reforça os laços afectivos na família?
As relações intergeracionais: avós maternos, paternos e sociais
A análise das relações intergeracionais na fase pós-divórcio pode constituir
uma excelente oportunidade para examinar a forma como os papéis dos pais e dos
avós se redefinem. Na família alargada do recasamento, os avós maternos e
paternos têm o seu lugar, assim como, por vezes, os avós sociais, isto é, os
ascendentes directos do eventual novo companheiro da mãe guardiã ou nova
parceira do pai não guardião.
A reflexão sociológica na área da família sobre este novo objecto os avós
tem produzido nos EUA e na Europa um número significativo de estudos sobre as
relações intergeracionais.28
Os avós, se estão muito presentes na vida dos seus netos, podem significar um
pilarde estruturação das suas identidades, e constituir uma fonte de
estabilidade para os seus netos, em qualquer momento da trajectória conjugal
dos seus filhos (Attias-Donfut e Segalen, 2002: 284). Em muitos casos, após uma
separação ou um divórcio em que as crianças ficam a viver com a mãe, as
relações com os avós paternos tendem a enfraquecer (Cherlin e Furstenberg Jr.,
1986), a não ser que o pai biológico mantenha um contacto regular com os seus
filhos. De facto as avós maternas tornam-se mais activas após o divórcio das
suas filhas, o que faz sentido, na medida em que são habitualmente as mães que
ficam com as crianças. Na verdade, para os sociólogos Andrew Cherlin e Frank
Furstenberg Jr., os laços intergeracionais mantêm-se latentes enquanto a
família funciona bem, e emergem como relações fundamentais quando a família
começa a experimentar situações de conflito; por exemplo, as avós maternas são
encaradas como os bombeiros voluntários (Cherlin e Furstenberg Jr., 1986).29
No entanto, grande parte das mães guardiãs esforça-se por preservar os laços
intergeracionais, mantendo as relações com os avós paternos, tios e primos do
lado do pai biológico, porque eles são também a família das suas crianças
(família do divórcio). Alguns estudos indicam que, de facto, se não existir
esta pressão por parte das mães, as relações entre os avós paternos e os seus
netos raramente são tão intensas como habitualmente acontecia antes do divórcio
ou separação dos pais das crianças (Attias-Donfut e Segalen, 2002). Verifica-se
que em muitos casos os avós podem ter uma atitude de rejeição tanto das suas
ex-noras como dos seus ex-genros e até dos netos após a separação dos filhos,
principalmente se tiverem mais netos de outros filhos (Ambert, 1988: 684).
Ainda assim, o divórcio geralmente intensifica as relações entre as crianças e
os familiares da mãe guardiã ou do pai, caso tenha ficado com a sua guarda. Por
exemplo, uma mãe em situação de trabalho precário pode temporariamente ir viver
com os pais, ou os avós ajudarem financeiramente na educação ou alimentação dos
netos.
Com efeito, o recasamento das filhas não altera a ligação entre as avós
maternas e os seus netos, apenas a ajuda monetária diminui quando as filhas
voltam a casar (Cherlin e Furstenberg, 1986).
Quando se trata de avós que se divorciaram e voltaram a casar, outros factores
entram em jogo. No caso de terem tido filhos de ambos os casamentos, estes
avós, em especial os homens, tendem a dar mais atenção aos netos do actual
casamento. Se os filhos dos pais divorciados se tornam pais, as relações
intergeracionais não melhoram, pelo contrário, por vezes agudizam-se e levam à
ruptura das relações entre as várias gerações (Attias-Donfut e Segalen, 2002).
Os dois grandes estudos que foram realizados, nos EUA, sobre as relações entre
os avós e as crianças após um divórcio dos pais, concluíram que os avós têm
relações de maior proximidade com as crianças nas famílias do divórcio. Por
exemplo: 30% das crianças das famílias do divórcio vivem com os avós,
comparando com 1% das crianças das famílias nucleares (Furstenberg Jr.,
1988).30
Segundo os resultados do estudo da Pensilvânia, após um recasamento os avós
sociais (pais do padrasto ou da madrasta) assumem rapidamente o seu papel de
avós na nova família; por seu lado, as crianças não parecem fazer muita
diferença entre avós reais e avós sociais. Muito embora os pais encorajem
as crianças, principalmente quando são pequenas, a assimilarem os novos
elementos da família o mais depressa possível a seguir ao recasamento, na
verdade, para as crianças causa-lhes menos problemas adquirirem outros
familiares do que padrastos (Furstenberg Jr., 1988: 258).
Contudo, nem sempre os resultados das pesquisas vão no mesmo sentido, ou seja,
não é um dado adquirido que os avós sociais sejam uma fonte segura de apoio
para os seus netos-enteados. Por exemplo, segundo dados do National Survey of
Children, apenas 7% dos inquiridos recasados responderam que a geração mais
velha não tinha tido qualquer dificuldade em aceitar os seus netos-enteados
(Furstenberg Jr. e Spanier, 1984). Para os sociólogos Andrew Cherlin e Frank
Furstenberg Jr., quanto mais novas são as crianças quando os pais recasam, mais
os avós sociais dizem sentir que os seus netos-enteados são como os seus
netos biológicos (1994: 368).
Como vimos, são as avós paternas que mantêm com mais frequência os laços com as
suas noras, para não perder o relacionamento com os seus netos.31 Por outro
lado, são também estas avós que alargam com alguma facilidade as suas relações
afectivas às crianças do padrasto ou da madrasta dos seus netos, isto é, aos
seus netos-enteados (Johnson, 1988). Todavia, se o padrasto ou a madrasta
viverem no grupo doméstico recomposto, as relações entre os seus pais (avós
sociais) e as crianças (netos-enteados) intensificam-se.
Sabe-se, através dos resultados de pesquisas (Johnson, 1988: 180), que a
expansão do sistema de parentesco, devido ao divórcio e depois ao recasamento
dos pais biológicos, tem repercussões significativas nos papéis dos avós, e
principalmente das avós paternas. E, para além disso, os avós também mudaram.
Na verdade, nas sociedades ocidentais contemporâneas estes avós foram pais
liberais, e hoje são na sua grande maioria divorciados, viúvos ou já vão no
segundo ou terceiro casamento, o que faz com que as experiências conjugais
sucessivas nas suas trajectórias conjugais os tornem mais flexíveis quanto aos
novos estilos de vida familiares, e aceitem uma definição de família mais
abrangente. Concretamente em França, os avós de hoje foram muitos dos jovens da
geração de 68 que abriram os caminhos para o divórcio, as relações fora do
casamento, a contracepção generalizada, e as suas crianças tornaram-se parte
integrante da nova cultura de intimidade (Attias-Donfut e Segalen, 2002:
283). Por outro lado, a grande maioria das jovens mães não só são
profissionalmente activas, como muitas delas estão empenhadas nas suas
carreiras, e daí serem das que mais beneficiam com a ajuda das suas mães. Tal
tendência reflecte a forte solidariedade intergeracional entre mulheres
empenhadas na ajuda das novas gerações de mulheres que pretendem avançar nas
suas carreiras profissionais (Attias-Donfut e Segalen, 2002: 285).
Um dos factores importantes para as crianças das famílias recompostas é
precisamente o alargamento da rede de familiares (família do recasamento). Isto
é, os parentes são acrescentados ou mudam de lugar quando as crianças passam de
uma família para a seguinte. É certo que não é fácil perceber se as crianças
beneficiam mais ou menos com este alargamento da rede familiar. No entanto, uma
coisa é certa: elas têm mais família em quantidade. Resta saber se terão em
qualidade afectiva.
Particularmente interessante é o facto de o recasamento introduzir, para além
de um padrasto ou de uma madrasta ou de ambos na actual configuração familiar,
outros elementos de ambiguidade (avós) nas relações intergeracionais. Que
direitos e responsabilidades têm e esperam estes avós sociais assumir?32
Sabe-se que existem muitas maneiras de se ser avó e que a liberdade de acção é
grande, na medida em que também para o desempenho deste papel social não
existem normas e o estatuto de avós está apenas directamente relacionado com a
posição que ocupam na ordem das gerações.
Conclusão
Nas recomposições familiares a indefinição ou a ambiguidade das fronteiras, que
delimitam os contornos das famílias, torna o sistema de parentesco mais
flexível, permitindo aos indivíduos liberdade suficiente para determinarem quem
faz ou não parte das suas relações familiares. E esta questão não diz apenas
respeito à ordem do social, isto é, aos padrastos, quase-irmãos ou avós
sociais, mas também se coloca nas relações construídas na ordem do biológico.
Tal flexibilidade também se reflecte nas próprias concepções de família. Por
exemplo, a partir do momento em que as lealdades e as alianças são facilmente
transferidas sem qualquer sanção, tanto os laços biológicos como os laços que
se estabelecem por afinidade podem ir perdendo significado ao longo dos tempos
das conjugalidades sucessivas (casamento, divórcio e recasamento), isto é,
durante o processo de transições familiares. E, neste sentido, talvez seja
tempo de se olhar para os laços de parentesco socialcomo uma alternativa,
credível e de direito, à degradação de muitas situações vividas em famílias
biológicas.