Género e música electrónica de dança: experiências, percursos e retratos de
mulheres clubbers
Considerações iniciais: a fala do clubbing
O objectivo principal do presente trabalho consiste em colocar à discussão uma
abordagem analítica com potencial heurístico para compreender os processos de
construção identitária de género no domínio das (sub)culturas juvenis ligadas à
participação nas festas de música electrónica.[1] Como se torna inexequível
abranger todos os subgéneros que medram neste efervescente mundo da música
electrónica, optámos por testar a nossa proposta de modelo apenas em alguns
desses subgéneros musicais, nomeadamente o drum'n'bass, o trance e o techno. A
sua escolha pretende realçar a importância do estudo das feminilidades e
relações de género em fracções subculturais preferencialmente underground e
relativamente desconhecidas. Logo aqui o house (mais comercial e hegemónico)
ficou de parte. O drum'n'bass, por seu lado, tornou-se como que uma escolha
óbvia, devido à sua importância na região do Porto: apesar de ser uma fracção
subcultural underground, tem uma grande incidência nesta área metropolitana (em
sentido lato), proliferando as festas e consolidando públicos frequentes há
quase uma década. O techno e o trance, apesar de menos visíveis
territorialmente, têm vindo a ganhar, igualmente, um importante destaque em
agendas e espaços culturais alternativos. De qualquer forma, convém referir
que a constante emergência de subgéneros (e de subsubgéneros) nos levou a ter a
conta a fluidez de fronteiras e as demarcações, por vezes difusas e instáveis,
entre os diferentes mundos ou cenas. Além do mais, como adiante se verá,
muitas das mulheres observadas apresentam trajectos erráticos e algo nómadas.
Desta forma, ainda que em segundo plano, o próprio house acabará por ser
analisado, embora sem a mesma densidade e a um nível mais indirecto.
Em termos metodológicos, a pesquisa sustenta-se na etnografia, embora sem a
componente da observação participante, dada a duração limitada do projecto (um
ano). Desta forma, seguindo os princípios de um trabalho de campo
territorialmente delimitado e obedecendo ao cariz relacional do próprio objecto
de estudo, bem como ao papel activo do investigador no terreno, adoptamos um
procedimento abdutivo. Se é verdade que a função de comando da teoria, quando
utilizada em moldes que a sua metáfora militar sustenta, pode contribuir para
uma negação da própria realidade, não é menos verdadeiro, assim o defendemos,
que a exposição passiva aos princípios da grounded theory transporta riscos de
alguma ingenuidade empirista e, pior ainda, de um certo resvalar neo-romântico
para os imprevistos da pesquisa, sendo que esses imprevistos apenas podem ser
entendidos como tal dentro de um quadro de inteligibilidade previamente
construído. Em suma: renunciamos a arquitecturas teóricas impossíveis de
falsificação, na terminologia popperiana, bem como a corpus blindados de
conceitos (substantivos e adjectivos) e de hipóteses teóricas. Antes os
entendemos como matrizes de enquadramento, suficientemente plásticas para
exercitarem o perpétuo movimento entre dedução e indução, bem como a constante
reconstrução da teoria (Burawoy, 2005).
Por outro lado, a abertura ao eclectismo que o trabalho etnográfico exige
levou-nos a aplicar uma panóplia de procedimentos técnicos: incursões e viagens
nas festas dos vários subgéneros, com o accionamento de observação directa
metódica não interferente, observação directa metódica e sistemática, conversas
informais (sem deixar de se ter em conta os documentos produzidos pelas
organizações que nutrem tais eventos) e, principalmente, entrevistas a mulheres
clubbers (múltiplas sessões, entrevistas das mais abertas e quase informais às
semidirectivas, focalizadas quer nos percursos das mulheres pré e extra-
clubbing, quer nas suas experiências e trajectórias no clubbing). Foram
realizadas vinte e uma sessões de entrevista a dezasseis (16) mulheres
clubbers, perfazendo um total de 32h51m de entrevistas gravadas (excluindo
entrevistas exploratórias).
O aprofundamento da análise de algumas das entrevistas incitou-nos à construção
de retratos sociológicos, inspirados em Bernard Lahire (2002), baseados em
registos de cariz biográfico, dando conta, em simultâneo, quer das grandes
regularidades sociológicas presentes nos percursos e opções dos entrevistados,
quer das contratendências, contradições e excepções correlativas à regra
sociológica. Como fazê-lo? Por um lado, reconstruindo as disposições sociais a
partir da realidade empírica (sem as deduzir automaticamente das posições
sociais), detectando a variação ou a não variação dos comportamentos e atitudes
tendo em conta os contextos sociais, dos mais estruturais aos cenários de
interacção, o que permite não só compreender as propriedades sociais dos
contextos (contextos em si, práticas e relações que neles se estabelecem) como,
sempre que possível, estabelecer a génese das orientações para a acção através
da reconstituição da singularidade dos percursos.
As festas de música electrónica formam os cenários de interacção onde tais
processos de relações de género e de construção identitária se manifestam. A
pesquisa ancora-se em contextos festivos localizados principalmente na Área
Metropolitana do Porto, com excepção do subgénero do trance: pelas
características voláteis das suas festas, o horizonte geográfico dilata-se um
pouco, abrangendo alguns pontos fora do Grande Porto, embora sempre localizados
no Norte e, com menos incidência, na Região Centro.
Finalmente, o trabalho etnográfico obriga-nos a uma particular atenção aos
contributos das teorias auxiliares de pesquisa (Blalock, 1970), uma vez que
ganham relevo as questões resultantes das relações sociais de observação e da
intersubjectividade socializada consubstancial ao interhabitus de observadores
e observados (Pinto, 2000).
Apesar das suas limitações a este nível, teria sido útil, com outra
temporalidade na duração da pesquisa, o recurso a metodologias e técnicas
quantitativas que permitissem obter dados extensivos, em particular sobre as
classes sociais de pertença e de origem das frequentadoras de cada fracção
subcultural. Tal contribuiria para se confirmarem (ou não) regularidades (e a
partir daí isomorfismos ou homologias) nas características sociais dos
frequentadores de cada fracção (sub)cultural.
Para além destas preocupações epistemológicas, com pertinentes declinações
heurísticas, foi nossa intenção dar azo à imaginação sociológica, através da
construção de um modelo que pudesse, eventualmente, ser usado em contextos de
pesquisa diversos. Assim, a moldura conceptual apresentada resulta
particularmente de uma revisão da literatura produzida em torno de conceitos
como subculturas, pós-subculturas e culturas club, dando uma atenção
primordial ao lugar que as identidades e relações de género adquirem neste pano
de fundo teórico-empírico. Apesar de não serem aí apresentados explicitamente
os dados que têm resultado do trabalho de campo, a verdade é que eles são
omnipresentes na produção e discussão do modelo proposto, fazendo jus ao
vaivém teoria-empiria. Este processo dialéctico é imprescindível em qualquer
estudo social, mas adquire ainda maior pertinência no caso das investigações
qualitativas, onde as observações e as conceptualizações possuem uma relação
mais íntima.
Assim, desejamos tornar possível a apreensão sociológica das complexas
intersecções que se estabelecem entre as variáveis género, etnicidade e classe
social, e a estrutura interna das (sub)culturas club. O processo de
estruturação interna das (sub)culturas é equacionado de forma relacional: para
destrinçá-lo há que ter em conta os papéis subculturais desempenhados (nas
esferas da produção e do consumo), os mecanismos de segmentação interna e as
estruturas de acumulação de capital subcultural. Consideraremos, ainda, a
influência de outras esferas mais abrangentes na estruturação das identidades e
relações de género no clubbing e, consequentemente, na configuração das
(sub)culturas em questão (destacamos as esferas da família, da escola, do
trabalho e do lazer). Apesar de se tratar de um quadro que está a ser aplicado
ao mundo das festas de música electrónica em contextos sociais específicos,
esperamos que possa ser, também, um ponto de partida para analisar as
identidades e as relações de género em outras (sub)culturas.
Pretende-se, pois, compreender a experiência das mulheres no clubbing, focando
as implicações desta prática social em termos de vivências do controlo social,
de autonomia, da sexualidade, do uso de drogas e do risco (especialmente
situações de risco relacionadas com violência, sexualidade e consumo de
drogas).
Todavia, sublinhamos que o risco é pensado como um factor que pode funcionar
tanto negativa como positivamente em termos das vivências das mulheres
clubbers. Rejeitamos, a priori, qualquer tentação moralista, no que ao risco
diz respeito. As festas de música electrónica são relatadas, frequentemente,
como espaços de liberdade, de aventura, de prazer. No clubbing, mulheres e
homens podem reproduzir as relações sociais regulares de poder entre géneros.
Da mesma maneira, homens e mulheres podem encontrar nas festas espaços
alternativos de construção identitária e de relacionamento inter e
intragéneros, estribados em pressupostos marginais de acumulação de capital
social.
Num ou noutro cenário, não prescindimos do intuito de resgatar umafala do
clubbing que, sendo internamente organizada por vivências e quotidianos que se
cristalizam, situacionalmente, em representações traduzidas por expressões,
signos e códigos, podem, pela análisepropriamente sociológica,desocultar
significados, estabelecer novas relações e tornar visível o que (apesar dos
avanços registados na dilatação das lógicas da razão crítica universal e
abstracta, de raiz iluminista, pelo cruzamento com as políticas da diferença)
permanece, tantas vezes, no domínio do não-dito, do interdito ou do
insignificante.
Sistematizando, procurámos relacionar os seguintes eixos de análise (ver figura
1).
Figura 1 Modelo para a análise das construções identitárias de género nas
(sub)culturas club
Eixo de análise 1: estudo das construções de género implicadas nas estruturas
internas das (fracções das) (sub)culturas club e transpostas em papéis e
expectativas inerentes, de um modo implícito ou explícito, às próprias
(sub)culturas. Tal será concretizado através da análise dos discursos e das
descrições feitas pelas entrevistadas, complementadas pelos dados recolhidos
através das incursões etnográficas.
Eixo de análise 2: observação dos processos através dos quais as identidades e
disposições de género pré-clubbing de longo curso (em intersecção com as
outras variáveis estruturais, como a classe e a etnicidade), interiorizadas por
cada uma das mulheres clubbersentrevistadas, mediam a interiorização e
efectivação (performativa)das identidades e disposições de género
subculturais e respectivos papéis. É essencial considerar-se aqui a
socialização de género das mulheres, no âmbito das suas trajectórias pré-
clubbing, nomeadamente na relação com as esferas da família, escola e trabalho.
Para tal, procura-se captar, através das entrevistas semidirectivas em
profundidade, as narrativas das mulheres sobre si mesmas (consciência
discursiva), cruzadas com elementos biográficos relevantes.
É de salientar a importância heurística da teoria disposicional (Lahire, 2001;
2004; 2005; 2006), na qual são relevantes as noções de pluralidade
disposicional e de transferibilidade das disposições de género entre contextos
de acção (vigília versussonolência das disposições). Na verdade, importa estar
atento à possibilidade de surgimento de homologias e continuidades, bem como
de rupturas e descontinuidades entre elementos identitários e disposições de
género pré e extra-(sub)culturais versus (sub)culturais , bem como de
dilemas disposicionais e identitários.
Eixo de análise 3: descortinar qual a significância que têm nas vidas das
mulheres os modos específicos da sua participação nas (sub)culturas club.
Recorrendo novamente à teoria da prática, importa saber se existirão
disposições significativas ao nível do género, forjadas pela socialização club-
(sub)cultural das mulheres, que são activadas (e por isso consequentes) em
contextos de acção no plano extra-clubbing. Até que ponto constituirão, de
facto, as fracções do clubbing, nos contextos observados, um espaço
privilegiado de experimentação de novas feminilidades e de resistência e/ou
desafio face às feminilidades tradicionais, como sugere Pini (2001)? Em que
medida tais contextos e práticas culturais se constituem como espaços e formas
de empoderamento ou des-empoderamento das mulheres?
No presente artigo, sem descurarmos a íntima conexão entre as três dimensões,
desenvolveremos mais detalhadamente o terceiro eixo a partir dos percursos de
mulheres clubbers resgatados nose pelos retratos (sociológicos) de dezdas
entrevistadas (três frequentadoras da fracção techno, três da fracção
drum'n'bass e quatro da fracção trance quadro 1). As reflexões que em seguida
se apresentam resultam ainda das incursões etnográficas aos quadros de
interacção (cenas) dos três subgéneros apontados.
Quadro 1 Retratos sociológicos
Hibridismo e pendularidade entre fracções e cenas club-(sub)culturais: um
traço pós-subcultural com marcas estruturais? Algumas reflexões
Como contraponto e tensão face às homologias, é de salientar a existência de
um certo grau de fluidez e de hibridismo, traço pós-subcultural que se
concretiza através de migrações e de movimentos pendulares entre fracções club-
(sub)culturais e respectivas cenas por parte dos frequentadores.
As observações apontam para a existência de movimentos migratórios de
frequentadores do trance para o drum'n'bass(Júlia), bem como do house para o
trance (Clara e Teresa) ou para o drum'n'bass. Nestes casos, poderão verificar-
se processos de ressocialização e integração mais ou menos intensos dos novos
frequentadores (fazendo com que a sua proveniência deixe de ser reconhecida
ou, pelo menos, tão reconhecível nos contextos relativos à fracção club-
(sub)cultural de destino). Pelo contrário, certos movimentos migratórios
caracterizar-se-ão pela ausência de integração, sendo determinados
frequentadores vistos como forasteiros ou mesmo intrusos. De igual modo,
podem também ser marcados por um baixo grau de integração (ou uma integração
relativa com vicissitudes), em que se conserva um certo hibridismo (por
exemplo, o reconhecimento, por parte dos frequentadores mais legítimos, dos
'rastas' que vêm do trance, em virtude de estes manterem determinados modos
de apresentação, modos de estar e práticas, característicos da
fracçãoclubbingde onde são provenientes).[2] Este hibridismo nas pertenças
club-(sub)culturais (decididamente com intensidades variáveis relativamente a
cada fracção em jogo) constitui, certamente, um contraponto pós-moderno e pós-
subcultural face às homologias, mas tal não significa um apagamento de marcas
e diferenças sociais, em que são relevantes as variáveis clássicas.
Uma outra dimensão prende-se com os esquemas de percepção e avaliação, uma vez
que as clubbers, quer referindo-se aos membros das outras fracções quando se
situam nos respectivos contextos, quer quando são imigrantes nos contextos
relativos a outras fracções, produzem classificaçõese julgamentos sociais.
Estes processos de categorização e de julgamento geram-se no âmbito intergrupal
(gunas, mitras betinhos, meninos de estudo, rastas, tias), mas
também intragrupal, dadas as segmentações internas. Por exemplo, nas
categorizações internas do trance, surgiu a diferenciação entre o freak e o
beto-freak (DJ Trancer), ou seja, entre aqueles cujo estilo é mais, poderíamos
dizer, autêntico (no sentido de o seu vestuário não implicar gastos
financeiros consideráveis e de tal facto se enquadrar na ideologia oficial,
pelo menos de recusa do consumismo), e os que, pelo contrário, usam vestuário
também associado à fracção e à cena, mas de marcas específicas e comprado em
lojas especializadas e substancialmente mais caro, o que se associa a uma
vertente de comercialismo e de exploração comercial por parte do segmento da
produção desta fracção club-(sub)cultural. O estilo beto-freak associa-se ao
que Teresa (trance) denomina um fashion, que considera estar a emergir
progressivamente no trance (num sentido parecido com o que o termo adquire
relativamente ao house) e que os frequentadores mais autênticos lamentam,
fenómeno que ela considera igualmente preocupante. Estas segmentações
internas e o(s) respectivo(s) (tipos de) capital subcultural em jogo não
são alheias à interferência de factores estruturais e a diferenças na posse de
capitais ao nível extra-(sub)cultural, maxime o económico. Tais elementos
extra-(sub)culturais produzem, pois, disparidades nos modos de relação com a
club-(sub)cultura e a sua apropriação e reconstrução. Existem diferenciações no
modo como o clubbing é vivenciado nas várias fracções club-(sub)culturais e
respectivos contextos e cenas. Dissemelhanças que são percepcionadas e
reconhecidas (sendo assim também construídas) pelos próprios clubbersquando se
observam mutuamente, o que lhes permite reconhecer e classificar imediatamente,
por empatia, a que fracção club-(sub)cultural pertencem.
Todos estes processos de categorização e de julgamento associam-se a marcas
sociais nas interacções concretas, apesar de um primeiro olhar superficial e
distraído sobre a pista de dança, a pouca luz existente e a massa de corpos em
movimento darem a impressão indistinta de homogeneidade, uma espécie de corpo
sem órgãos, onde aparentemente se verificaria uma dissolução de diferenças
sociais.
No entanto, tais processos de categorização e julgamento e respectivas marcas
sociais nas interacções têm implicações que transcendem as meras vivências mais
directamente club-(sub)culturais. Tal é revelado pelo facto de, por exemplo, o
uso dos termos guna, mitra e tia não ser exclusivo de uma classificação
no interior das fracções club-(sub)culturais. Pelo contrário, uma generalização
do uso de tais termos antecede e transcende, mesmo, o seu emprego club-
(sub)cultural. O uso da categoria guna é corrente em certos contextos, pelo
menos na região do Grande Porto, denominando jovens provenientes de bairros
sociais aos quais é associado um determinado estilo de apresentação de si. O
mesmo poderá dizer-se, mutatis mutandis, do emprego da expressão tias da Foz
ou meninos de estudo por frequentadoras de techno.
No interior das cenas e contextos do clubbingexistem, pois, lógicas e
processos de inclusão (por exemplo, as possibilidades de absorção, em maior ou
menor grau, dos trancerspelas cenas drum'n'bass) e de exclusão (dos gunas
nas cenas do drum'n'basse do trance). Todos estes fenómenos reproduzem, em
certa medida, lógicas e processos extra-subculturais mais amplos (associados à
topografia das zonas da cidade, aos bairros sociais, aos problemas de
desemprego, exclusão, tráfico de droga e criminalidade, bem como à decorrente
produção de representações sociais).
Assim, podemos considerar, de certo modo, a existência de algumas homologias
entre processos de inclusão/exclusão club-(sub)culturais, por um lado, e
processos de segmentação e de exclusão social que transcendem as próprias
cenas e contextos do clubbing, por outro. Existem igualmente situações em que
a/o clubberque, mais ou menos frequentemente, vai a festas de outra fracção
club-(sub)cultural não manifesta qualquer intenção de mudar para essa mesma
fracção: é isso o que provavelmente acontece com a maioria dos amantes do
techno que vão a festas de drum'n'bass ou de trance. Sendo vistos como intrusos
ou, pelo menos, como membros não legítimos, eles próprios não se assumem
identitariamente como trancers ou D'n'B'ers. Constatam-se aqui, certamente,
diferenciações nos modos como o clubbing é vivenciado, associadas a diferentes
modos de festejar (Pinto, 2000), sendo estes, sem dúvida, determinados quer
pelas diferenças de género, quer por segmentações associadas à classe e ao meio
social, podendo verificar-se processos de intersecção de intensidade variável
entre ambas as variáveis.
Para além disso, no entanto, a multiplicidade de vivências deriva igualmente de
plurais motivações por parte dos frequentadores. Em primeiro lugar, uma razão
bastante prática seria a possibilidade de acederem mais frequentemente a festas
de música electrónica devido à relativa escassez de festas de techno. Segundo
os discursos das frequentadoras do trancee do drum'n'bass,[3] as motivações dos
gunas igualmente práticas, diga-se que os levam a ir a estas festas são
essencialmente três: (1) vender substâncias (ou seja, são
dealersprofissionais), (2) roubar e (3) causar episódios de violência. As
duas primeiras razões seriam claramente económicas, ou seja, a motivação da ida
é para o negócio empregando a expressão usada por Rosa, uma das
frequentadoras das festas techno entrevistadas, que chegou ela própria a ir a
festas (associadas a diferentes fracções) com essa finalidade. Razões, enfim,
que superam claramente uma abordagem pós-moderna fundada no gosto [4] Quer pela
mão dos consumidores, quer dos traficantes e vendedores, os movimentos
migratórios e pendulares podem causar a introdução de novas drogas nas cenas
e contextos relativos a uma dada fracção club-(sub)cultural diferentes das
que inicialmente seriam características de tais fracções, aos níveis
psicocultural e simbólico. Inês e Clara queixam-se do facto de terem surgido
drogas mais químicas nas festas de trance, facto que associam ao maior
comercialismo, à massificação das festas e à consequente entrada de novos tipos
de frequentadores, entre os quais os gunas que vêm do techno(ou mitras,
como lhes chamam no trance). Violeta (drum'n'bass) e Clara (trance) lamentam
que os tempos sejam outros e que já não se sintam confiantes como há alguns
anos, de maneira a pousarem despreocupadamente os seus pertences, durante as
festas, sem receio de serem furtadas. Para Teresa (techno), o presenciamento de
um episódio de esfaqueamento numa festa, bem como o aumento de situações de
roubo e os receios de violação, constituíram factores determinantes do seu
progressivo afastamento das festas. Entretanto, Vanessa (techno) conta como, na
eventualidade de surgirem conflitos, os gunas intimidavam os demais
reivindicando ostensivamente a pertença a um determinado bairro, usando em seu
proveito os estereótipos e representações negativas que sabiam que os outros
tinham a seu respeito.[5] Finalmente, o discurso de DJ Isabel sugere que o
processo relativamente recente de emergência e afirmação de um novo subgénero
musical e respectiva cena club-(sub)cultural (o techno-minimal) constituiria
um processo de distinção social com implicações ao nível de segmentações
sociais no plano extra-clubbing, quando afirma que o techno-minimalé
frequentado por pessoas que gostam de technoe que frequentam tais festas,
embora sem se identificarem com a atmosfera de violência e de elevados consumos
de substâncias atribuída à presença dominante dos gunas.
Género, classe e risco no clubbing
A intersecção entre origens e pertenças sociais pré e extra-clubbing, fracções/
cenas/contextos do clubbinge pertenças de género contribui para uma abordagem
multifacetada das experiências femininas no clubbing. Apalpões (Júlia,
drum'n'bass), roubos e violência parecem ser factores que potenciam o
afastamento das festas (traduzido no espaçamento temporal das incursões) por
parte de algumas das mulheres entrevistadas (nomeadamente, do trancee do
drum'n'bass).
Será que tal significa que, por exemplo, a liberdade e a igualdade entre homem
e mulher no trance elemento tão enfatizado nos discursos de Teresa e de
Clara poderá estar a ser posta em causa em virtude de um aumento da violência
naqueles contextos? Será que essas transformações (ligadas à massificação, ao
comercialismo) estão em vias de produzir um retorno às feminilidades
tradicionais e ao afastamento das mulheres das festas como sugere Romo (2004)?
De facto, várias entrevistadas apontaram factores associados às transformações
acima referidas como razões para frequentarem menos assiduamente as festas, ou
então, para serem muito mais selectivas, optando por eventos mais pequenos,
menos publicitados e de acesso mais restrito. No entanto, dada a segmentação
entre as/os frequentadoras/es mais antigas/os e com mais idade (em cujo grupo
se incluem praticamente todas as entrevistadas) e as/os de faixa etária
inferior sugerida na generalidade dos discursos recolhidos, nada nos garante
que o mesmo aconteça no caso das mulheres clubbersdeste último segmento.[6]
Todavia e talvez algo surpreendentemente dentro dos contextos techno
encontramos, a este nível, uma afirmação respeitante ao desenvolvimento de
estratégias accionadas que lhes permitem lidar com determinados problemas.
Assim, para evitarem quer o controlo social que seria exercido no interior das
festas pelos namorados, companheiros e maridos, quer o surgimento de episódios
de violência cuja causa atribuem essencialmente aos homens , estas
frequentadoras organizavam-se entre si, formando um grupo de oito mulheres, de
forma a irem em conjunto aos eventos. Tal funcionava como um mecanismo de
salvaguarda da sua liberdade e autonomia, face a mecanismos de controlo social
em que se verificava a reprodução dos papéis tradicionais, quando homens
(namorados, companheiros, maridos) lhes procuravam impor limites face a
quantidades de drogas consumidas e horários de saída. Eis aqui marcas de género
claramente resultantes da sua intersecção com implicações de classe e de meio
social que a pista de dança não consegue apagar. Adicionalmente, como vimos,
as mulheres do technotêm, por vezes, papéis activos quer no negócio (a
venderem substâncias, como Maria e Rosa; a roubarem), quer em episódios de
violência (tanto quando fazem filmes [Vanessa] de ciúmes, como quando se
associam a roubos). Nestes casos, haveria mais ou menos explicitamente uma
protecção masculina no seio do grupo do bairro, visível, por exemplo, quando
uma amiga de Vanessa dizia à vítima (que tentava reagir), em tom de ameaça, a
sua proveniência territorial, estratégia usada como forma de intimidação e de
dissuasão de qualquer reacção por parte dos alvos que assaltava, quando ia às
festas p'ra se fazer à vida. Note-se como em tais estratégias existe uma
manipulação de papéis e expectativas de género particularmente notória quando,
nos grupos que nas festas se fazem à videira, como diz Rosa, constituídos por
vários homens e uma ou duas mulheres, estas simulam que a vítima as apalpou
como mecanismo de distracção para se gerar a confusão e propiciar os roubos.
Ao que parece, os frequentadores associados ao technoque vão a festas de trance
e de drum'n'bass são sobretudo homens (tal é claro nos discursos de todas as
frequentadoras destas duas fracções entrevistadas). Não deixa de ser
interessante verificar que, aparentemente, as mulheres do technovão muito menos
do que os homens a festas das outras fracções do clubbing aqui estudadas
excepção feita à circulação entre pistas de grandes discotecas ou festivais
onde se realizam, simultaneamente, eventos de vários géneros.
Apesar das dimensões acima referidas, em que se verifica uma afirmação da
autonomia e, inclusivamente, a assunção de posturas activas no desempenho de
papéis tradicionalmente masculinos por parte de mulheres clubbersda fracção
techno(ehouse),[7] constata-se a existência, nessa mesma fracção, de discursos,
[8] inclusivamente referentes a experiências pessoais, que apontam para
situações de elevado risco e de perigo (relativamente às drogas e à
sexualidade): minar as bebidas, aproximações e investidas de homens (os
próprios seguranças e donos de estabelecimentos) em torno de uma mulher que
dança, predadorismo e explícita violência sexual (nomeadamente consubstanciada
através de tentativas de violação). A constatação feita por Ana (techno) de que
geralmente o pecado vem dos grandes, daqueles que têm o poder mostra como
estes fenómenos não estão isentos de implicações extra-clubbing e de
convertibilidade entre capitais (subcultural, económico e social, podendo a
distinção entre subcultural e extra-subcultural fazer mais ou menos sentido
conforme as situações).
O cordão humano (se bem que sem objectivos de socorro humanitário!) formado
pelos seguranças em torno de Rosa (techno), quando esta dançava freneticamente,
absorvida pela música e pelo efeito das rodas, impedindo a passagem aos seus
amigos que a procuravam resgatar, mostra como a dimensão espacial é central às
estratégias dos poderosos. Quando, noutro episódio, dois seguranças a seguiram
à casa de banho, tentando violá-la, o aproveitamento oportuno do momento certo
para a fuga a entrada de duas raparigas revela, por seu lado, a importância
da dimensão temporal para os mais fracos. Os contributos de Certeau são aqui
fortemente heurísticos.
Certas situações, como a minagem, acontecem tanto a homens como a mulheres,
constituindo, mais do que risco, um real perigo com o qual todos os
frequentadores se deparam (especialmente se são iniciados), apesar de o
fenómeno adquirir contornos próprios conforme os géneros. Torna-se igualmente
interessante constatar que Maria genderiza comportamentos (aproveitar-se da
fragilidade do outro, o predadorismo sexual, a minagem, roubar, ser violento)
como masculinos, ao referir-se a mulheres que exteriorizam essas práticas
classificando-as de piores que os homens. Cumulativamente, estas condutas são
atribuídas aos gunas, consequência, afinal, da massificação das próprias
cenas. Assim, surge uma distinção de classe face à proveniência
desqualificada e desqualificante de tais elementos perturbadores. É ainda
especialmente relevante, na tripla intersecção entre género, classe e
segmentação do clubbing underground em fracções, constatar que são as mulheres
do techno (de origens operária e popular e com habitus de classe bem vincados,
com excepção de Ana) as únicas que relatam situações em que foram vítimas de
predadorismo sexual e tentativa de violação. Apesar de minar as águas parecer
constituir-se como um fenómeno transversal aos contextos de todas as fracções
club-(sub)culturais estudadas (sendo, sem dúvida, potencialmente comprometedor
de eventuais possibilidades de empoderamento), a referência a tal prática
surgiu com muito mais frequência e intensidade nos discursos das frequentadoras
de techno do que nos restantes. Tenderão estas mulheres (considerando-se os
contextos clubbing em que se movem) a ser socialmente mais vulneráveis a tais
perigos?
Por outro lado, determinadas vicissitudes do eventual empoderamento das
mulheres especialmente proporcionado pela participação no clubbing são
transversais a todas as fracções club-(sub)culturais: é o caso,
especificamente, da tendência que se verifica, com mais ou menos intensidade,
de serem subsidiárias e dependentes face aos homens na obtenção de drogas.
Possuir drogas e dá-las a outros/as funciona, claramente, nos cenários em
estudo, como uma forma de capital subcultural. Sendo as economias de
distribuição e uso de drogas das fracções club-(sub)culturais analisadas
fortemente marcadas pelas possibilidades de obtenção gratuita de drogas pelas
mulheres, tal parece potenciar consideravelmente as possibilidades de risco, já
que, como diz o ditado, a cavalo dado não se olha o dente. A propósito destas
complexas articulações entre risco, capital subcultural, género e drogas,
emergem elementos que evidenciam quer o facto de que os homens poderão oferecer
drogas como estratégia de engate e com expectativas de obterem o retorno em
termos de gratificação sexual, quer circunstâncias em que as mulheres manipulam
e jogam com tais expectativas (eventualmente induzindo-os em erro), com vista a
maximizarem a obtenção gratuita das substâncias. Não são de negligenciar marcas
estruturais que transcendem o clubbing, em virtude da existência, no âmbito dos
processos descritos, de mecanismos de convertibilidade dos capitais extra-
subculturais em capital subcultural (nomeadamente através da conversão do
capital económico em drogas/capital subcultural). Paradoxalmente, no âmbito de
todos estes processos, surge, inesperadamente, o empreendedorismo de Maria e
Rosa (techno), em que são marcantes as contradições de uma curiosa mistura
entre dependência (face aos homens) e empreendedorismo (em que a dependência se
assume enquanto condição desse mesmo empreendedorismo). O facto de estas
situações terem surgido no techno (entre frequentadoras oriundas de meios
populares), enquanto que, nem no trance nem no drum'n'bass (ao que tudo indica
fracções muito frequentadas pelas classes médias) foram feitas quaisquer
referências a mulheres vendedoras de substâncias (inclusivamente quando o
entrevistador abordava directamente a questão), não deixa de ser interessante.
[9] Talvez entre os factores explicativos da pouca participação das mulheres na
venda de substâncias (será o techno excepcional a este respeito?) esteja a
possibilidade de tal prática ser particularmente mal vista se for levada a cabo
por um elemento feminino, como sugere DJ Trancer (trance) inclusivamente,
haveria dois pesos e duas medidas (duplo padrão de avaliação) no julgamento de
homens e mulheres, deparando-se estas com uma desqualificação social ao serem
equiparadas aos mitras (mas tu agora és mitra?).
Finalmente, um elemento infra-estrutural da economia de uso e distribuição de
drogas em todas as fracções de clubbingaqui estudadas (nomeadamente o facto de
serem os homens os detentores das drogas e a tendência das mulheres para serem
colas) tem implicações nos níveis de risco experimentados pelas mulheres
(colas) em função da sua pertença social. No retrato de Violeta, a falta de
capital económico contribui para uma maior predisposição para ser-se cola,
assumindo comportamentos de maior risco (aceitam gratuitamente as substâncias,
dado que é o único modo de as poderem consumir, dada a falta de recursos
financeiros, não se preocupando com a origem das mesmas).
Masculinidades e relações de género
Importa ainda tecer alguns comentários a propósito da questão das
masculinidades e relações de género nas fracções club-(sub)culturais estudadas.
[10] Apesar de a pesquisa ter como objecto de estudo as experiências das
mulheres, o género é eminentemente relacional (interssexual), levando a uma
abordagem das representações femininas das masculinidades, o que constitui,
aliás, uma aliciante dimensão para um aprofundamento futuro.
Parece ser claro que se configura uma relativa oposição entre as masculinidades
que são porventura dominantes, por um lado, no techno e, por outro, no trance.
As masculinidades mais polarizadas ou duras do techno (frequentadores
potencialmente agressivos e eventualmente impositores de um controlo masculino
sobre as mulheres, sem que se negligencie o controlo por vezes cerrado por
parte das próprias mulheres, para além dos eventuais filmes de ciúmes deles e
delas) estão em consonância/homologiacom o estilo relativamente andrógino
em direcção ao masculino do próprio techno. Como descrevem Rosa e Vanessa,
as mulheres vestem despreocupadamente uma t-shirt, calças de ganga, sapatilhas,
sem usarem qualquer maquilhagem. Por outro lado, a forma de masculinidade e os
estilos estão em consonância com as próprias características da música, mais
dura e agressiva, na qual predomina o aspecto rítmico, com batidas muito
fortes e rápidas (ou rapidíssimas), hiperminimalista e em que a dimensão
melódica está praticamente (ou mesmo) ausente (a que se junta o elevadíssimo
volume sonoro).
A agressividade e os episódios de violência (cuja responsabilidade é atribuída,
nos discursos, principalmente mas não exclusivamente, note-se aos homens)
seriam potenciados pelo uso das rodas (ecstasy) cujos efeitos consistem em
maximizar a energia dos movimentos. A dança no techno faz-se, aliás, com
movimentos bastante energéticos. Quanto aos efeitos do ecstasy,para além de
poderem gerar a onda do amor, Maria refere que podem potenciar a violência,
já que aquele que é violento e que só vê violência [ ] acho que ainda fica
pior, mais possuído. Note-se que as festas de technosão frequentemente
marcadas por episódios de violência, possivelmente ligados, em parte, ao
narcotráfico. Curiosamente, no entanto, esta acentuação de uma masculinidade
das classes populares,misturar-se-ia com uma suavizaçãodos seus traços: os
olhares de Topo Giggio de quando ficam mais meiguinhos, muito apaixonados
como elas, aliás , que Rosa atribui aos efeitos das rodas, pois no
estado normal, de certezinha que eles não são assim [11] Enquanto este aspecto
confirmaria a sugestão de McRobbie (1991; 1994; 2004) segundo a qual o ecstasy
suaviza as referidas masculinidades, o anterior levanta interpelações não
negligenciáveis, levando a um questionamento da aplicabilidade e da
universalização não problematizada dessa interpretação.[12] Adicionalmente, o
facto de nas festas de techno(ao contrário, porventura, dos contextos a que
McRobbie se refere) a regra ser a mistura de ecstasycom álcool e outras drogas
(em grandes quantidades) levanta questões adicionais sobre os efeitos daí
decorrentes. Refiram-se, como marcas das relações de género presentes na
fracção e cena techno, o controlo social e a postura possessiva (exercidos
com especial força pelos homens, mas também com franca vitalidade pelas
mulheres descrições dos seus filmes de ciúmes e os episódios de lutas entre
si).
No extremo oposto encontramos as masculinidades do trance, onde se parecem
esbater, até certo ponto, diferenças/desigualdades de género. Teresa e Clara
são bastante assertivas na sua afirmação de que as festas de tranceconstituem
um lugar de igualdade e liberdade para as mulheres. Tal estaria em
homologia mais uma vez com o estilo, também andrógino ou unissexo, mas
desta vez em direcção ao feminino (em certos aspectos como o uso de túnicas,
por exemplo). Um frequentador do techno(homem) caracterizava precisamente as
festas de techno como sendo cenários de violência (onde se juntam, segundo ele,
os maiores bandidos do país), afirmando, depois, que os do trance não fazem
mal a ninguém. A postura dos trancers (pelo menos a sua ideologia e discurso
oficiais) de recusa da violência associa-se a todo um conjunto de outros
elementos ideológicos e respectivas formas de estar, tais como a
espiritualidade, a igualdade, o respeito pelo outro, bem como a preocupação
ecológica e a recusa dos valores consumistas, elementos esses claramente
orientados para constelações pós-materialistas. Como se pôde verificar nos
casos das trancersentrevistadas, existe claramente mais do que uma
significância específica da participação club-(sub)cultural nas suas vidas um
conjunto de consequênciasconcretas dos elementos identitários e disposicionais
gerados no seio desta fracção (sub)cultural que se concretizam nos planos
extra-(sub)culturais (vida familiar e profissional) e respectivos contextos.
Estes elementos ideológicos não se reportam explícita e directamente a
disposições relevantes ao nível do género, mas poderão ser indirecta e
implicitamente consequentes a esse nível, gerando um certo apagamento, ou
pelo menos esbatimento, de determinadas desigualdades de género. Clara, por
exemplo, refere certos comportamentos masculinos de participação na divisão de
tarefas, inclusivamente na prestação de cuidados aos filhos, como sendo mais
predominantes nos casais de trancersdo que na sociedade entendida globalmente.
Enquanto decorria a entrevista com uma outra trancer(Filipa),em sua casa, o
companheiro, a certa altura, trouxe-nos, simpaticamente, um lanche com chá,
compota, manteiga e pão. As masculinidades do trance, no âmbito de uma
problematização que relacione o fenómeno com as actuais questões associadas ao
género, parecem adquirir uma significância sendo este conceito, aliás,
central à análise aqui levada a cabo como novas masculinidades. Será então o
trance um espaço privilegiado de experimentação de novas masculinidades?[13]
As masculinidades do drum'n'bass, poder-se-ia dizer, ficam no meio-termo entre
as outras duas fracções, parecendo haver, relativamente ao segmento dos
frequentadores mais antigos, uma espécie de cavalheirismo e uma certa
apreciação da presença das mulheres (Júlia) nas festas.
Duas dimensões que se intersectam nos processos de construção social do género
e das relações de género nas club-(sub)culturas são, por um lado, as próprias
características de cada uma das fracções/cenas (e respectivas formas de
socialização) e, por outro, as pertenças estruturais pré e extra-clubbingdos
frequentadores (identidades e mecanismos disposicionais pré-clubbing marcados
pelo género e pela classe/meio social). Ao nível das origens e trajectórias pré
e extra-clubbing,as diferenças sociais entre os frequentadores estruturam
díspares percepções de como vivem e concebem os géneros e suas relações. No
entanto, o próprio processo de integração, participação e socialização club-
(sub)cultural poderá gerar novas disposições ou modificar as preexistentes.
Uma magia com marcas sociais
É extremamente interessante o surgimento do termo magia nos discursos das
frequentadoras de techno/house.[14] A magia de que nos falam reporta-se, sem
dúvida, aos outros lugares (elsewheres) e a uma libertação relativa e
temporária face ao quotidiano, com claros contornos pós-modernos. De facto,
quando Rosa e as suas amigas conseguem, com um certo deslumbramento, entrar nas
zonas VIP das festas de house, gera-se a percepção de determinadas
possibilidades de movimento para além dos constrangimentos, fronteiras e
regulações implicadas na existência quotidiana (Pini, 2001). Por outro lado, é
também de notar que aquela magia adquire implicações que constituem um
interessante contraponto ao uso do conceito por Pini,[15] quando esta autora
sugere que, nos contextos clubbinge na pista de dança, as mulheres efectuam uma
resolução mágica das contradições de género marcantes das sociedades
ocidentais contemporâneas. Ou seja, especificamente na zona VIP do house (não
no centro da pista de dança, note-se) haveria até certo ponto uma resolução
mágica temporária, repetimos, e parcial não apenas de contradições de
género, mas certamente de contradições ou diferenças de classe (com o
esbatimento de diferenças e de fronteiras, subversão e mesmo inversão social,
quando peixeiras viram jet-sets e vice-versa), sendo aqui evidente a
intersecção entre género e classe.[16] No entanto, mesmo assim, tal só
funcionava em certos aspectos e até certo ponto. Magia não significa aqui uma
espécie de vazio social, um apagamento de marcas sociais em termos de
implicações estruturais, pois persistem diversos aspectos em que as diferenças
(nas posições) não se desvanecem, antes se reproduzem. Os processos de
conversão dos capitais económico, cultural, social e simbólico em capital
subcultural não deixariam de inscrever certas marcas nas interacções Quando
confrontadas com os sedutores convites feitos pelas tias da Foz (para as
acompanharem aos seus apartamentos onde não lhes faltaria nada), através dos
quais a posse de capitais (económico, social, simbólico e cultural, convertidos
em capital subcultural) seria mais ou menos ostentada, provavelmente Rosa e as
amigas não perderiam jamais a noção de que, no fundo, elas continuavam a ser as
gunas (diferentes dos betinhos, dos meninos de estudo e das tias da Foz
cuja presença identificavam) e de que a todo o momento (se é que não no
exacto momento em que tinham entrado na zona VIP) poderiam ser reconhecidas e,
consequentemente, classificadas como tal. É improvável que determinadas
subtilezas em termos de diferenças nos modos de apresentação e de verbalização,
por exemplo, desaparecessem, mesmo nas situações em que umas que até eram umas
grandes peixeiras [ ] entravam nas festas e pareciam uma grandes jet-sets, as
jet-sets viravam peixeiras, traindo através da hexis a distância face às
performances corporais legítimas.
Concluindo, existem aspectos no fenómeno clubbingem que se verifica uma certa
dissolução de diferenças, um pouco como defendem as abordagens em que se propõe
a noção de corpo sem órgãos, nomeadamente na própria pista, quando uma massa
de pessoas, viradas para o DJ, dança agitadamente. Tais dimensões são
interessantes e sociologicamente relevantes, mas uma abordagem que a elas se
cinja deixa escapar uma significativa parte da realidade. A desorganização e a
abstracção das pessoas enquanto dançam (losing it) (Pini, 2001) não serão assim
tão absolutas, mesmo se, em certos momentos, os clubbersse abstraem e,
ensimesmados, se deixam absorver pela música, perdendo-se na dança. Não é
concebível, pois, a ideia de um vazio social e de total apagamento de marcas
sociais. Mesmo se em certos momentos isso (quase?) acontece, tal não esgota
todas as dimensões que o fenómeno clubbingtem na pista e na cena. Aliás,
mesmo ao colocarmos o enfoque analítico sobre a pista em si que seria o
locus,por excelência, da desorganização , ou seja, sobre os momentos de dança
e de relação com a música, as abordagens pós-modernas deixam escapar, como
pudemos ver nos casos de Júlia (drum'n'bass) e de Filipa (trance) que, apesar
da confusão e desordem, nem todos mantêm as mesmas posturas expressivas: a
prática de ballete de dança contemporânea ao longo da socialização pré-clubbing
(Filipa, Júlia) um capital cultural corporalizado que se manifesta mesmo
inconscientemente gera distinções até no meio da pista, impedindo-nos de
esquecer que a ordem social existe mesmo quando os frequentadores se
abandonam e se deixam transportar pela música e pelo movimento.
É adequado referir novamente Hollands, quando afirma que, se os pós-modernos
não encontram desigualdades ou estratificação nas culturas juvenis, tal se
deve, pelo menos em parte, ao facto de não as procurarem (citado por Carrington
e Wilson, 2004: 77).
Deste modo, constituiu nossa intenção, no âmbito desta investigação, não
construir um quadro teórico fechado, mas antes afiliado e aberto à
complexidade, às contradições e ao hibridismo da própria realidade.
Reflexões finais
Paira, finalmente, a questão de saber em que medida determinadas diferenças nos
modos de participação das mulheres no clubbing,tal como surgem nos estudos de
Hutton e de Pini, por um lado, e como emergem ao longo deste estudo, por outro,
derivam apenas das especificidades das realidades estudadas ou também de
diferenças entre as respectivas abordagens teórico-metodológicas. Parece-nos
que aqueles estudos correm o risco de uma certa margem de idealização do
potencial empoderador da participação das mulheres, uma vez que negligenciam
determinados fenómenos mundanos das vivências comprometidas no clubbing.
Procurámos manter uma postura de neutralidade axiológica em relação às
diferentes formas de feminilidade em presença (identidades tradicionais,
modernas e emancipatórias/feministas, pós-feministas ). Não nos parece, por
isso, que estejamos em presença de trajectórias lineares, em que possamos falar
de um absoluto empoderamento ou de total sujeição a uma dominação. Não foi
sem surpresa, por exemplo, a descoberta de que certas feminilidades
tradicionais podem suscitar um empoderamento no clubbing: no caso de Helena e
Cátia (drum'n'bass) e apesar de integradas num grupo ligado à produção e, por
isso, de frequentadores legítimos e detentores de capital subcultural e de
hipness em elevado grau (os namorados são DJ's) os seus traços identitários
de feminilidade tradicional parecem elevar-lhes o estatuto no seio do grupo e
no modo como se representam. Torna-se ainda importante proceder a um
questionamento sobre as feminilidades dominantes em cada contexto de acção, em
cada instância de socialização (família, amigos, trabalho, escola, media) e em
cada trajectória individual, tendo em conta que existe, de forma tensa,
construção, coerção e reprodução social em vários sentidos contraditórios
(jogando a favor ou contra as várias feminilidades concorrentes, como os
retratos evidenciam). É essencial, assim, não simplesmente teorizar de forma
abstracta e, desse modo, supor a presença de determinadas feminilidades, nem
tomar como adquirido o potencial empoderador de um ou outro tipo específico
de feminilidade, mas especificar empiricamente, de um modo localizado e
individualizado, quais as feminilidades em jogo que marcam o percurso e as
experiências das mulheres estudadas, detectando aí de que modo existe ou não
empoderamento ou desempoderamento.
Não deixa de ser relevante explorar as múltiplas dimensões do fenómeno,
evitando cegueiras (parciais) associadas a determinados pontos de vista
soberanos implicitamente assumidos a priori, já que, por definição, tendem a
esquecer-se de interpelar as próprias paixões que lhes dão fundamento.
Recusando a imposição de quadros teóricos totalizantes, torna-se prudente, por
isso, não deixar de reconhecer as contradições, os paradoxos, as várias espadas
de dois gumes e a pluralidade de zonas cinzentas, todas elas intrínsecas à
realidade social.
Urge, então, estar atento aos riscos de universalização subreptícia de um
determinado conceito de mulher clubber e da respectiva experiência e agência
femininas, independentemente de diferenças e segmentações sociais, não só entre
fracções club-(sub)culturais, como também em facticidades anteriores e
exteriores aos contextos do clubbing(e em homologia com a própria segmentação
do clubbing). O que aqui tentámos operacionalizar, nomeadamente a segmentação
precisa de fracções club-(sub)culturais, a consideração da variável classe e
meio social, a par da intersecção entre género, classe e segmentos do
clubbing,permitiu apreender diferentes práticas de mulheres clubbers, impedindo
a ocorrência da generalização implícita e insinuante de um determinado tipo de
experiência feminina. Será que no clubbing de Manchester, por exemplo, não
existirão clivagens importantes aos níveis do género e da classe/meio social (e
respectiva intersecção) entre as fracções club-(sub)culturais que são aí mais
relevantes? No entanto, prudência oblige, convém alertar que, mesmo assim,
neste estudo, a maior parte dos dados derivam do olhar das mulheres
(pertencendo, na sua maioria, ao segmento dos frequentadores mais antigos e com
maior idade). Deste modo, faltaria entrevistar homens,[17] dado o cariz
eminentemente relacional das construções de género, bem como as frequentadoras
(e frequentadores) do segmento da faixa etária inferior. Em contrapartida, tal
significaria alargar demasiado o âmbito do estudo, tendo em conta as suas
opções e consequentes limites, já devidamente explicitados.
A elaboração de retratos, reveladora da complexidade e multiplicidade de
situações associadas à pluralidade de disposições e de elementos identitários,
bem como de desvios face às regularidades sociológicas, estimula uma reflexão a
propósito do uso das variáveis classe social e meio social em pesquisas
qualitativas. Todo o trabalho empírico realizado leva a crer que o uso de
classe social pode ser complementado com o de meio social, exprimindo este,
pela sua intencional latitude, um conjunto de princípios de socialização
multiformes e multilocalizados (com impacto na fabricação de estilos e modos de
vida territorialmente enraizados), actuando, tantas vezes, de forma difusa. No
decorrer das análises apresentadas empregamos (frequentemente de forma
combinada) ambos os conceitos.
Resta uma última reflexão de natureza epistemológica e com implicações ao nível
das relações sociais de observação. Tenderão as mulheres entrevistadas a
assumir um discurso politicamente correcto porque derivado da intenção de
corresponderem a determinadas representações de feminilidade dominante como
sendo aquelas que guiavam o próprio entrevistador? Serão, nesse caso, as
experiências de mulheres aqui captadas e reconstruídas permeadas por um
enviesamento na direcção da vitimização da mulher e marcadas por uma ênfase
exagerada na atribuição aos homens de certos comportamentos?[18] Em caso
afirmativo, é possível que a própria rede de problematizações de partida tenha
sido em parte responsável ou pelo menos pactuante com este eventual viés, ao
assumir o risco como uma das questões centrais. Adicionalmente, o recurso aos
(escassos) contributos existentes para a análise da participação e das
experiências das mulheres no clubbing, nomeadamente os estudos de Thornton
(1996), Pini (2001) e Hutton (2006), realçam essa dimensão: para lá da
conceptualização positiva do risco proposta por Hutton, questões como o
controlo da mulher sobre a sua sexualidade (articulado com o consumo de drogas
e de álcool), bem como o engate e o predadorismo sexual (em que os homens são
sempre referidos como os molestadores ou agressores) assumem particular
relevância. Os autores do presente estudo consideraram que tais questões no
âmbito de uma abordagem em que a problemática do risco é fulcral reflectiriam
os interesses de uma perspectiva feminina e, por isso, atribuíram-lhes um lugar
importante na sua análise. No entanto, certamente que as experiências de
mulheres e os processos de construção das feminilidades aqui apresentadas
estarão longe de esgotar a panóplia de vivências em jogo nas cenas e
contextos de clubbingestudados.