Alimentação familiar: os fabulosos odores, (dis)sabores e saúde
O que não é útil à colmeia também o não é à abelha.
(Marco Aurélio)
O que supõe a arte culinária? O conhecimento das ervas, dos frutos,
dos bálsamos, e das especiarias e de tudo que se trata e é doce nos
campos e nos bosques.
(John Ruskin 1819-1900)
Introdução
Desde tempos imemoriais que existem três realidades humanas universais: a
nutrição, a alimentação e a família, materialidades estas deveras intricadas.
Em matéria nutritiva e alimentar, se naturalmente os humanos se nutriam do que
lhes dava a natureza para poderem sobreviver, o Homo sapiens é um animal
omnívoro que deverá pensar e seleccionar a sua nutrição. Paulatinamente,
tornando-se criador de cultura, passa a descobrir meios, técnicas, utensílios e
saberes para cozinhar os elementos nutritivos, forjando, assim, vários
artefactos culinários. Daí que a nutrição seja um acto eminentemente biológico,
ao passo que a alimentação é, por excelência, um facto social que, ao longo dos
tempos, nas diversas sociedades e culturas, não tem deixado de se transformar e
até refinar, quer pela culinária em si, quer pela dimensão familiar, social e
simbólica que encerra.
Compreende-se, então, que o homem, sendo omnívoro, tenha de procurar a
diversidade na sua alimentação. Esta necessidade de ordem biológica criou mesmo
duas ciências: a dietética e a nutrição. Nas sociedades da ultramodernidade
(Balandier, 1988), nos países ricos, a obsessão da saúde, mas também da magreza
e da forma a qualquer preço, está na base de uma nova psicopatologia. As
sociedades desenvolvidas vivem um paradoxo curioso. Por um lado, são
apaixonadas e seduzidas pela(s) cozinha(s) e, por outro, vivem obcecadas pelos
regimes e os efeitos da obesidade. Cozinha e gastronomia aparecem como duas
irmãs inimigas. A primeira procura o prazer e a segunda o médico, os chás, os
ginásios, os remédios milagrosos para o emagrecimento à força. Por sua vez, a
publicidade anuncia o fim do pecado alimentar e o alvor de uma gulodice sã,
propondo, por exemplo, uma imensa variedade de produtos ligeiros, os lihgt. Ao
mesmo tempo, recorre-se cada vez mais às cirurgias estéticas, às máquinas de
emagrecimento, aos cremes, às obediências dietéticas, inclusive marginais ,
numa sociedade em que a cozinha se opõe ao regime como propósito e como
receita, o prazer se opõe à saúde e à beleza, à gastronomia e à boa
alimentação. A superinformação dietético-médica cria frequentemente muita
confusão sobre os riscos que os comedores podem correr. Esquecer a manteiga
para descobrir a margarina magra, trocar a charcutaria pelo peixe, deixar de
pôr açúcar no café para o substituir por outros adoçantes, não comer gorduras
saturadas, todo um conjunto de comportamentos ditados pelos mass media ou
interpretados em função de hábitos anteriores.
No mesmo sentido actua a família, na medida em que é a primeira instância a
ocupar-se da alimentação dos seus elementos e a contribuir para forjar os
gostos, os olfactos e os comportamentos alimentares. Em matéria de cozinha, se
os sentidos antecedem os saberes, ao contrário, também não os excluem. Contudo,
estão mais presentes nas culturas, com particular destaque para as cozinhas
mais refinadas. As nossas percepções transformam-se, de facto, em função de
critérios que decorrem tanto das determinações económicas e sociais como das
culturas familiares e da história das mentalidades.
Não há criança com boa saúde se não for bem alimentada, acarinhada, cuidada,
vestida, se não puder dormir em boas condições, brincar e ser seguida por um
médico, normalmente por iniciativa da família. Contudo, a importância desta
intervenção só começou a ser posta em relevo no século XIX, por intervenção do
movimento higienista e de outros filantropos, procurando fazer da família,
designadamente da mulher, a principal parceira dos médicos, ocupando-se
cuidadosamente das tarefas domésticas, designadamente da higiene, da
alimentação e do cuidar em sentido lato. Fazendo-o, estava a contribuir para o
combate às doenças que grassavam na época, designadamente as de carácter
infecto-contagioso e, ao invés, para a melhoria da saúde dos seus membros em
particular e da sociedade em geral. Aliás, tendo presente o percurso sócio-
histórico da medicina, podemos dizer que as mulheres foram as primeiras a
praticá-la, recorrendo aos usos e benefícios de raízes, plantas, unguentos,
xaropes, confecção de pomadas, emplastros, ligaduras Assim, foram forjando um
verdadeiro património de saberes medicinais transmitidos e reinventados de
geração em geração, alguns dos quais chegando aos nossos dias e alargando-se
com a intensidade das relações entre culturas diversificadas, podendo
contribuir para a prevenção da doença ou melhoria da saúde.
A este propósito exercem também uma influência decisiva as grandes
transformações económicas, políticas e societais, permitindo uma melhoria das
condições de existência dos indivíduos e das famílias, o que contribui
enormemente para a diminuição das designadas doenças de carência (Drulhe,
1996). Com efeito, à medida que as pessoas e as famílias vão tendo
possibilidade de responder às suas necessidades alimentares, tanto em termos de
qualidade como de quantidade, vão modificando e reforçando o seu sistema
imunitário, oferecendo, deste modo, mais capacidade de resistir às doenças ou
de se curar quando estas sobrevêm. Este fenómeno, acontecendo ainda antes dos
resultados terapêuticos, devidos sobretudo às descobertas de Pasteur e de Koch
(Fassin, 1996), é ainda bem visível nos nossos dias.[1] Basta termos presentes
as pessoas e famílias que vivem em extrema pobreza, mesmo no meio das
sociedades da abundância, e os países menos desenvolvidos ou em vias de
desenvolvimento, cuja esperança de vida ronda os 40 anos (Guiné-Bissau,
Moçambique ). Inversamente, nos países ricos atingindo já cerca de 79,8, 80,6 e
81,9 anos, caso da França e Canadá, Suíça e Japão, respectivamente, pesem
embora as profundas desigualdades sociais decorrentes da pertença social. Para
milhões de pessoas, comer ou não para matar a fome ou comer também por excesso
de prazer torna-se um problema patológico.
O que se impõe é que os omnívoros, condicionados por dificuldades alimentares
de carência ou de excesso, possam encontrar novas formas de vida harmoniosa,
procurando modificar as respectivas condições de existência e aceder a novos
regimes alimentares, proporcionando boa saúde e, por conseguinte, menos
patologias que podem ter muito que ver com a alimentação ingerida. Entre
prazeres, angústias, odores e (dis)sabores sobretudo em termos de saúde ,
reprodução social das condições sociais de existência, mormente para os pobres,
transformações familiares, profissionais, sociais, políticas, industriais e
comerciais, a modificação dos regimes alimentares prepara-nos, decerto, novos
perfis alimentares e sensoriais.
Na verdade, o comer do século XXI, pesem embora as gritantes desigualdades
sociais, tanto ao nível nacional como internacional em que para muitos a
saúde é poder sobreviver e comer para a preservar, perfila-se algo diferente,
ainda que se procurem recuperar e valorizar certos regimes e pratos
tradicionais alimentares, frequentemente, até, com muitas doses de sincretismo,
aliando o tradicional ao moderno extremamente contemporâneo e recorrendo cada
vez mais à designada cozinha exótica. A estes aspectos não são alheios os
fenómenos de pluriculturalidade e até de interculturalidade em acção através do
mundo, embora em certas sociedades mais intensos do que noutras.
Será, ainda, oportuno sublinhar a ligação que existe entre nutrição,
alimentação e saúde. Durante vários séculos e também na actualidade, para
populações obcecadas pelo medo da fome, a boa alimentação é aqui associada a
boa saúde. De resto, durante muito tempo a alimentação e a higiene eram os
principais tratamentos assegurados aos doentes nos hospitais (Lebrun, 1975). A
reviravolta que se deu, sobretudo desde o surgimento das sociedades da
abundância, é radical. Durante séculos são a falta de nutrição, a fome, a
penúria que são associadas à doença, designadamente às epidemias. De há cerca
de 50 anos para cá, é o excesso de alimentação que se vem tornando responsável
por muitas patologias degenerativas, mesmo em idades precoces.
A tudo isto não é alheio o contributo da família, na medida em que também se
tem deixado embalar pelos incentivos da sociedade do consumo em matéria
alimentar, o que não deixa de ter, também, que ver com as grandes
transformações familiares, profissionais, económicas, sociais e culturais. São
estes aspectos que nos propomos abordar neste trabalho, mais de carácter
reflexivo, socorrendo-nos embora de elementos retirados de investigações
realizadas anteriormente.
Odores e sabores: necessidades e tentações alimentares
O alho está para a saúde como o perfume para a rosa.
(Provérbio provençal)
Procurar identificar um alimento ou uma bebida é fazer intervir três tipos de
critérios. Em primeiro lugar aparecem as características nutricionais, com as
suas contribuições em glícidos, proteínas, lípidos, sais minerais, sobre as
quais se podem fixar normas e até legislar. A seguir aparecem os valores
higiénicos do alimento, para poder ser portador de saúde, não conter germes,
elementos minerais ou produtos de síntese nocivos. Enfim, a terceira que, sendo
velha como o mundo, não é de somenos importância, prende-se com o prazer
proporcionado pelo alimento, isto é, os efeitos psicossensoriais variáveis em
função de um indivíduo, uma família, um contexto social, uma dada situação
particular. Importa sublinhar que o gosto se encontra na encruzilhada destas
três dimensões e é apenas quando têm idêntico peso que o alimento é o melhor.
Actualmente, até em virtude de excessos alimentares lesivos para a saúde, os
poderes públicos procuram privilegiar os comportamentos por medida e quantidade
em detrimento do aspecto plástico; a estética do alimento, em definitivo, no
respeitante a cada um de nós, é a recordação da emoção, da sensibilidade
desencadeada pelo alimento.
Não menos importante é o facto de os alimentos nos falarem e ninguém fica
insensível a este aspecto. Alguns dizem-nos mais do que outros. Quem não
recorda com saudade este ou aquele alimento cozinhado pela mãe, a avó, na terra
onde nasceu, passou a infância e a juventude, partilhado neste ou naquele
acontecimento festivo ou época do ano? Que o digam, sobretudo, os migrantes
internacionais! Veja-se também como se valoriza cada vez mais a gastronomia
regional e tradicional. Em contrapartida, há também a repulsa deste ou daquele
alimento pelas mais variadas razões, inclusive de associação com recordações
menos boas.
Tudo isto tem muito que ver com o nosso sistema sensorial, ele mesmo objecto de
várias socializações, reenviando-nos para múltiplas experiências e memórias. É
inegável que os nossos sentidos intervêm numa série de reconhecimentos. Os
olhos, por exemplo, em fracções de segundo exercem uma importante tarefa de
descodificação. Permitem-nos saber se nos encontramos diante de um elemento
(des)conhecido, detectar o seu estado sólido, líquido, viscoso, etc. A forma do
alimento, a sua cor são um manancial de informações sobre o seu sabor, mas
também sobre as suas qualidades higiénicas. Mas, se o corpo não ressente o
sabor que o olhar tinha augurado, isso significa que o alimento não está
ajustado. Aliás, é uma das ratoeiras na qual as sociedades de consumo nos podem
fazer cair, apresentando embalagens ou publicidades que nos seduzem, jogando
sobre os valores estéticos e afectivos, reenviando à natureza ou à família.
Importa sublinhar, também, a influência do olfacto para detectar certas
situações que nos rodeiam. Os odores põem-nos em alerta acerca de vários tipos
de situações. Com eles trabalhamos por analogia. Tal odor faz-nos pensar em tal
pessoa, coisa, aspecto, prato culinário, idade da vida, ambiente pestilento ou
agradável É um dos sentidos bastante activos em articulação com os sabores,
uma vez que o gosto resulta do conjunto destes dois sentidos (Corbin, 1982).
Cada espécie animal, indivíduo, cultura ou microcultura, fase do ano, clima,
floresta, aldeia, cidade, mercado, cozinha tem o seu próprio odor. Outro tanto
se poderá dizer de cada parte orgânica do corpo. Será oportuno sublinhar que
cada ser humano, sendo irrepetível, tem o seu gosto, a sua estrutura, a sua
forma interior e exterior, o seu odor, o seu peso e a sua maneira de crescer.
Da infância à velhice, o ser humano, segue um itinerário olfactivo que o
conduz do leite azedo do bebé ao azedo menos ácido, mais suave da senilidade
(idem, 44-45). Entre os dois termos, há diferentes etapas e circunstâncias da
vida que conferem determinados odores.
As variações olfactivas dos seres vivos resultam da composição dos humores, do
funcionamento dos órgãos e da intensidade da depuração. Tudo o que pode exercer
uma acção sobre um destes elementos engendra uma modificação do odor emanado
pelo indivíduo. O clima, as estações e o espaço em que se vive, os alimentos
que se comem, as paixões consentidas, o tipo de trabalho que se exerce, a terra
que se remove, o ar que respiramos modificam diferentemente os humores
inspirados e os odores exalados.
Podemos falar, ainda, dos odores identificadores; tal é, por exemplo, o caso do
que emana das diferentes culinárias em diferentes cidades e culturas que,
aliás, numa situação de globalização, é o que mais contribui para marcar a
diferença e até a originalidade. Por exemplo, apesar de uma maior
internacionalização de algumas culturas culinárias, os odores que se respiram
em Lisboa, Londres, Estado Unidos, Frankfurt, Rio de Janeiro não são, de modo
algum, idênticos aos que se inalam em Istambul ou em Nova Deli. Em contextos
migratórios internacionais, por vezes, esta dimensão tem uma dupla vertente. É
valorizada para os que partilham a mesma cultura culinária e pode ser objecto
de estigmatização ou alguma amargura para os autóctones, como acontece, por
exemplo, com os portugueses na Alemanha e em França, quando decidem assar
sardinhas no prédio onde vivem nas cidades. O que mais me custa suportar aqui
no prédio, com os portugueses, é o cheiro das sardinhas assadas e o dos molhos
de cebola e tomate com os espanhóis. São odores insuportáveis (mulher
francesa, 46 anos, arquitecta, em Leandro, 1995). Bourre (1990: 123), ao
referir-se aos cheiros, afirma: Curioso privilégio, a memória dos odores
resiste muito mais às provas do tempo do que a das cores; ao passo que a
associação dos odores com o seu nome é mais fraca que a do nome das cores.
Tal pode acontecer, ainda, com uma pessoa ou grupo que exalam cheiros
incomodativos para os que têm outras pertenças sociais e culturais, e que até
podem ter, apenas, que ver com as suas condições sociais de existência.[2] Por
outro lado, há o facto de uma possível familiarização com determinados odores
fazer com que pessoas nestas situações nem sequer se apercebam dos mesmos,
contrariamente a outras que lhes são estranhas. Daí que estes, sendo do domínio
do biológico, tenham de ser simultaneamente concebidos numa perspectiva social
dinâmica, adaptativa e de coexistência.
Os odores são ainda algo que nos aviva a memória e acentua a saudade: certos
cheiros da Primavera na terra em que se nasceu quando se está longe, o pão
cozido no forno de lenha, o bolo de mel, o folar, o bolo de noiva, as broas,
feitas pela mãe, a tia ou a avó, têm uma significação ímpar. Os odores têm uma
importância fundamental ao nível dos imaginários e das relações sociais e ainda
mais em sociedades que se querem assépticas. Basta pensar na quantidade de
anti-sépticos, postos à disposição dos consumidores para eliminarem os maus
cheiros e, ao invés, fazerem circular o espírito vital balsâmico. A promoção
terapêutica dos aromas, fundamentada na sua volatilidade e poder de penetração,
conforta uma tradição antiga: a que incitava Hipócrates a querer banir a peste
através dos odores (ibidem).
Mas não é menos verdade que os odores podem ter uma influência importante na
prevenção das doenças e na qualidade dos alimentos, na medida em que servem de
advertência ou afastamento das pessoas deste ou daquele local devido ao cheiro
pestilento ou similar. A vigilância olfactiva não serve apenas para detectar a
ameaça ou o risco de infecção. É escuta permanente de uma dissolução dos seres
e do próprio. O odor está, assim, associado e implicado no são, no podre e no
doentio, o que muito contribuiu para ordenar as condutas higienistas até às
descobertas de Pasteur.
Por conseguinte, é sabido que o cheiro antecipa a ameaça e permite apreender a
distância entre putrefacção e a presença da sujidade. Assume, deste modo, a
repulsão de tudo o que se degrada e o que é fugaz, assinalando e detectando os
perigos que se escondem na atmosfera e, contrariamente, as qualidades do ar.
Por sua vez, a promoção da purificação do ar, evitando entre muitas doenças as
alergias, assegura o privilégio da vigilância inquieta, funcionando como uma
sentinela de alerta. O odor determina, ainda, a separação do espaço imposto
pela química moderna.
Todavia, importa sublinhar que há contradições decorrentes dos odores que têm
que ver com a fugacidade e, mais ainda, as descontinuidades das impressões
olfactivas, incomodando a memorização e a comparação das sensações. Tentar
educar o olfacto é correr um risco de decepção. Desde a Antiguidade, os médicos
insistem no facto de, entre todos os órgãos dos sentidos, o nariz ser o que
está mais próximo do cérebro e, por conseguinte, na opinião de Haller (1769:
33), o que está na origem do sentimento. Daí uma enorme faculdade de
estabelecer uma complexa articulação entre todos os fios nervosos e de uma
extrema delicadeza das sensações olfactivas que, ao contrário da acuidade
propriamente dita, cresce com a inteligência do indivíduo (Corbin, 1982). O
odor precioso das flores parece ser feito para o homem (Haller, 1769: 33).
O olfacto, sentido dos afectos e do mistério, na opinião de Rousseau (1992
{1755]), agita o psiquismo mais profundamente que o ouvido e a vista, e parece
mergulhar nas raízes da vida. Seja como for, o odor consegue forjar a
coexistência do eu e dos outros, o sentido da interioridade e da exterioridade,
muito presente no que eu como e me distingue do outro que come algo bastante
diferente. Que o digam os cheiros que emanam de um prato de bacalhau com
batatas a murro, de um cozido à portuguesa, do frango de churrasco, de uma
sardinhada, de um assado no forno , em vez do fraco odor da fast-food.
Será ainda oportuno sublinhar que o cheiro pode ser considerado uma via
privilegiada do conhecimento do mundo. O olfacto, em articulação com o gosto, é
o que mais engloba a explicação da nossa infância (Corbin, 1982), em que a mãe,
muito mais do que o pai, em virtude da função de dona de casa que lhe era
atribuída, foi enriquecendo o nosso aparelho sensorial originário, e onde a
alimentação, o cheiro desta ou daquela planta, deste ou daquele sabonete,
perfume, desodorizante, desta ou daquela madeira ou móvel com os quais nos
identificamos plenamente, nos impregnam de um habitus que ficará para sempre
gravado na nossa memória. Mas na maioria das vezes odor e gosto funcionam
conjuntamente, segundo o princípio de Brillat-Savarim, considerando que cheiro
e sabor formam um único sentido, em que a boca é o laboratório e o nariz a
chaminé. Há odores que só se saboreiam bem com a boca e o espírito
conjuntamente.
Actualmente, sobretudo nas cidades, os riscos para a saúde não estão apenas na
qualidade do espaço, na altitude, na qualidade dos ventos, mas na camada de ar
e na atmosfera dos corpos. Os perigos, doravante, serão o ar degenerado, a
poluição, a proximidade do nauseabundo, a molécula apodrecida emanada do estado
de putrefacção, o miasma aéreo que perdeu os seus ganchos, as suas amarras,
mas cujo poder dissolvente da matéria viva cresceu consideravelmente; o miasma
cujo poder corruptivo se estende aos vegetais, à fruta, à carne exposta nos
talhos, aos bolos expostos nas vitrinas, aos metais dos móveis, à própria
inspiração e expiração
Normalmente, o odor dos campos e dos seus habitantes difere do das cidades e
dos citadinos. Os odores dos primeiros são considerados menos viciados, o que
alimenta ainda mais o sonho de proximidade com a natureza vegetal, tão em voga
para os urbanos, qual Papalagoui, vivendo fechados nas suas arcas de cimento
armado. Como dizia Haller, em 1769, uma criança criada na selva cheira as
ervas, como o faria uma ovelha, para escolher, através do olfacto, as de que se
quer alimentar. Trazida para a sociedade, acostumada aos vários alimentos,
perde esta faculdade.
Em termos alimentares, o odor malcheiroso está mais afecto à alimentação
carnívora, a que está mais associada ao citadino e ao que vai tendo mais meios
económicos, inclusive no seio da família, ainda que actualmente se valorize
mais a alimentação à base de peixe, legumes e fruta.
Frise-se, ainda, que o cheiro vai refinando progressivamente a atenção perante
os fenómenos sensíveis e a capacidade de cada um analisar todos os sentidos de
per si. Contrariamente a uma ideia herdada e comummente corrente, o olfacto tem
sido mais importante do que a vista, o ouvido ou o tacto. É, com efeito, mais
intimamente implicado na definição do são e do doentio que se quer definir, o
que muito contribuiu para ordenar as condutas higienistas até às descobertas de
Pasteur. Enquanto a clínica nascente privilegia a vista, o ouvido e o tocar, é
ao odor que cabe revelar a fisiologia subterrânea, controlar a modificação dos
humores e acompanhar a ordem da putrefacção, como dizia Gardane (1769).
Alimentação: realidade e simbolismo
É impossível ao ser humano viver sem imaginário, uma após outra
estratégia de evasão, repetição e até de catarsis.
(L. -V. Thomas, 1988)
Na Antiguidade Grega, os deuses do Olimpo alimentavam-se. Encontramos em Homero
e Hosias uma mesma tradição: os deuses nutrem-se, designadamente, de elementos
comestíveis altamente valorizados, como eram o néctar e a ambrósia. Alimentam-
se do que metaforicamente simboliza fontes de pureza e de imortalidade. No
Canto V da Odisseia de Homero, Ulisses e Calipso almoçam frente a frente.
Chegaram à cavidade da gruta e Ulisses sentou-se no assento de onde se
levantara Hermes; a ninfa colocou perto deles toda a espécie de manjares para
comer e beber tudo aquilo de que se nutrem os homens mortais. Ela própria se
sentou em frente do divino Ulisses, e servas apresentaram-lhe ambrósia e
néctar. Ambos estenderam as mãos para os manjares dispostos diante deles.
(Homero, 1990: 64). Só quando se fartaram de comer e beber, Ulisses seguiu o
seu caminho, não sem algumas advertências da deusa que anteriormente o serviu.
Dumézil no seu Le Festin de l'Immortalité (1924), identifica e comenta vários
mitos acerca das transgressões entre os homens e os deuses no atinente aos
furtos da nutrição e da imortalidade. Todavia, as novas alimentações,
especificamente humanas, integram uma nova dimensão alquímica, tornando-se o
vector e o suporte de uma metamorfose ontológica. Aparece, então, a noção de
intervenção humana, fazendo passar a humanidade de um estado tipicamente
nutritivo para outro alimentar, recorrendo à intervenção de várias técnicas e
artefactos, ainda que artesanais, mas que se foram tornando culturais e
civilizacionais. A fermentação dos alimentos é paradigmática, a este propósito.
A ela estão essencialmente associados o pão e o vinho, símbolos por excelência
da alimentação humana. Têm em comum o facto de se inscreverem num ciclo de
transformação natural interna no seio da terra, sob o efeito do sol, e uma
cocção e maturação, seguida de um trabalho humano, conduzindo-os a uma nova
morte (cozedura, moer do grão, prensagem da uva ), prelúdio de uma ressurreição
definitiva.[3]
Atinge-se, assim, um novo patamar na alimentação humana, contribuindo para
modificar os odores e os sabores através da cozinha da alquimia, que é própria
dos homens. A alimentação passa a ser composta de cereais e vinho, mas
igualmente de azeite, porque também se transforma numa morte fecunda, como o
grão e as uvas. Azeite, farinha, grão, pão, frutos, legumes e peixe
constituíram durante muito tempo a base da alimentação dos povos
mediterrânicos, cozinha a que, actualmente, tanto se faz apelo, associando-a a
uma alimentação saudável nos dias que correm.
Podemos, ainda, fazer apelo à simbologia do mel e dos frutos secos. O primeiro,
tão caro a Virgílio, releva, exactamente, da alquimia e da transubstanciação,
produzidas não pela Natureza ou pelos humanos mas pelo animal: a abelha.
Podemos falar, ainda, da transformação de outro tipo de alimentos, como os
frutos doces: figos, tâmaras, uvas Quer pelo seu sabor açucarado, quer pelo
seu suco e capacidade de se conservarem através da secagem, como pelo contraste
entre a sua doçura e a rudeza do meio em que se desenvolvem (deserto para as
palmeiras-tamareiras) e a dureza da pele, evocam uma espécie de nostalgia do
que representa a dureza e felicidade da vida, de uma Idade de Ouro associada ao
prazer dos deuses, mas que se quer perpetuada neste mundo.
Há outro tipo de nutrição mais associada aos animais: a nutrição vegetal e o
seu paradigma: a erva fria e húmida, contrariamente aos aromas secos e quentes,
caracteriza-se, frequentemente, pela sua rápida e inevitável putrefacção, que
se acompanha de odores fedorentos. Porém, logo que os humanos foram intervindo
na transformação alimentar dos animais, particularmente consumíveis, visando a
rentabilidade económica, os efeitos nefastos para a saúde humana daí
decorrentes não são os menos negligenciáveis, no que se refere à introdução de
novos elementos, visando a rentabilidade na natureza alimentar de cada ser
vivo: carnívoro e vegetal.[4]
Détienne (1972), fazendo apelo aos rituais nutricionais greco-romanos, retendo
mais concretamente o ritual dos Jardins de Adonis, associa-os a três gamas de
gostos: aos deuses os aromas; aos homens os cereais; aos animais a erva.
Fazendo uma aproximação entre as cozinhas antigas e as modernas,
fundamentalmente encontramos aqui uma preocupação que tem em conta as oposições
e as complementaridades cósmicas e a intervenção humana e social. Estamos,
assim, perante uma dinâmica da alimentação qual transformação ontológica
simbolizada pelos processos de fermentação, a descoberta e introdução de novas
tecnologias e artefactos gustativos e olfactivos, o que faz apelo a um
equilíbrio cósmico, simbólico e material. Trata-se de uma questão de
compreensão e visão do mundo e da vida em sociedade.
De um tal modo de conceber estas realidades, entre a nostalgia da imortalidade
graças à nutrição, a evocação da podridão, como outra componente da dimensão
humana, entre o Cosmo, o Céu e a passagem, os homens inventam e transformam os
seus próprios sistemas alimentares numa perspectiva de necessidade de
sobrevivência e de prazer individual, familiar e social.
A principal ideia que importa sublinhar é que a paleta simultaneamente profunda
e subtil dos gostos e dos sabores aparece como a expressão de uma
multiplicidade que é a própria condição da existência unitária, unitas
multiplex. É através da cozinha que esta complexidade se compreende melhor.
Entre os deuses e os animais, os cheiros exalados pelas plantas aromáticas, a
nutrição selvagem e a alimentação humana, há uma ligação e uma circulação dos
possíveis. O segredo dos odores e sabores alimentares é terem a faculdade de
falarem do corpo à alma e da alma ao corpo, espiritualizar as sensações e as
sensualidades do pensamento. É por tudo isto que a refeição familiar,
designadamente a festiva (Leandro, 1987), e o banquete em geral, que tende a
acompanhar todos os ritos iniciáticos (baptismo, comunhões, entrada na
Universidade, fim de curso, entrada no emprego, casamentos ) e muitos outros
acontecimentos da vida humana e social, têm um lugar tão importante na
generalidade das culturas e sociedades. O banquete é um acontecimento e um
espaço privilegiado para evocar recordações, avivar memórias, isto é, as coisas
do espírito mas também do corpo e das sociabilidades: é necessário apetite para
falar do belo e das boas coisas da vida.
Comemos por necessidade, saboreamos e cheiramos por prazer, sentamo-nos à mesa
para prosseguir uma eterna e infinita procura de sentidos. A partir daqui,
podemos dizer que a alimentação é um artefacto sociocultural (Berthelot, 1990),
pois tem que ver com as combinações das componentes nutritivas, segundo as
culturas, as religiões, as condições sociais de existência, a escassez ou
abundância dos elementos nutritivos, os modos de conservação e comercialização,
os horários de trabalho, entre outros aspectos. Na generalidade dos casos é,
simultaneamente, um acto de necessidade vital e de relação social, revestindo
uma importância decisiva na formação dos gostos alimentares e dos odores.
Fazendo apelo ao imaginário, podemos dizer que se trata de um sistema onde
tudo se mistura e recompõe numa unidade original (Braudel, 1985: 10), devido à
sua capacidade de simbolizar a alteridade e a diferença, a oposição e a
conciliação dos contrários. Uma viagem ao mais profundo dos nossos sistemas
alimentares desperta todas as sensações gustativas, ao mesmo tempo que faz
apelo a todos os recursos físicos e intelectuais, à memória, aos sentidos, aos
músculos, passando pela concentração e pela imaginação. Daí a existência de uma
estreita ligação constitutiva, original e portanto essencial, que une elementos
nutritivos, climas, condições sociais e culturais de existência, saberes,
sabores e odores. Estes elementos são inseparáveis.
Só para dar uma ideia desta complexidade, vale a pena referir o que é
sobejamente conhecido pela ciência (Bourre, 1990), ou seja, todo o ser humano,
sem alguma anomalia, nasce com quatro matrizes gustativas: o doce, o amargo, o
ácido e o salgado. Todos os demais gostos, tendo em conta as combinações de que
podem resultar são, tão-só, resultado de diferentes processos de socialização,
de construção das culturas culinárias mais correlacionadas com esta ou aquela
sociedade, condição e pertença social, época, recursos naturais e agrícolas,
pecuários e piscatórios, e até dos imponderáveis da vida, como acontece
frequentemente, por exemplo, em contextos migratórios internacionais.
Práticas alimentares familiares: prevenção e riscos para a saúde
Devemos comer para viver, e não viver para comer.
(Sócrates)
É sabido que a alimentação no seio da família é a que mais concorre para a
formação dos gostos, como já acima o afirmámos. Em relação aos pratos da
cozinha tradicional portuguesa, está fora de dúvida que não sejam bastante
saborosos e, por isso, muito apreciados pela grande maioria dos portugueses e
até pelos turistas que nos visitam, apesar das novas influências e dietas
alimentares. Aqui os elementos que podem ser mais lesivos para a saúde têm-se
revelado ser o excesso de sal e de gorduras, ainda que as banhas de porco se
vão substituindo por óleos vegetais submetidos a altas temperaturas e
reutilizados, como no caso das frituras. Apesar de durante uns tempos esta
substituição ser perfilhada pelos próprios médicos, mais recentemente advoga-se
outra substituição: a das banhas e dos óleos pelo azeite, de preferência cru.
Mas, uma vez que este pode ser bastante mais caro e menos acessível a muitas
bolsas portuguesas, perguntamos se haverá sempre a preocupação de escolher os
óleos e as gorduras que são menos lesivos para a saúde, ou antes os que são
mais baratos ou até mais objecto de promoção?
Interessa deixar claro a este respeito o que a ciência vem afirmando: há uma
estreita correlação entre a ingestão de sal, o abuso de gorduras animais e as
cardiopatias e cancros do aparelho digestivo, entre outras doenças. Estão neste
caso as correlações entre a ingestão de chá muito quente e o aparecimento do
cancro do esófago; a mastigação de bétele e o cancro da cavidade bucal; o
excesso de consumo de batatas, de matérias gordas e cerveja em vez de legumes e
o cancro do cólon. E, inversamente, a influência benéfica do consumo de frutos
e legumes, prevenindo o cancro do recto (Drulhe, 1996), para não falar de
outras correlações entre hábitos alimentares e doença.
Meslé (1983), apoiando-se em dados publicados pela ONU, diz que as três
correlações mais fortes existem entre o cancro do intestino e o consumo de
carne, de cereais e legumes, isto é, os que mais introduzem regularmente estes
últimos elementos na alimentação têm muito menos probabilidade de vir a
contrair um cancro desta natureza. Por outro lado, também não é somente o
excesso de consumo deste ou daquele nutriente alimentar mais ou menos nocivo,
mas também a maneira como é cozinhado e o tipo de alimentação em geral. O mesmo
produto sendo cozido, grelhado ou frito oferece elementos diferenciados para a
preservação da saúde ou, pelo contrário, o desenvolvimento da doença. Daí a
importância dos gostos alimentares forjados desde criança (Grignon e Grignon,
1980; Leandro, 1987).
No nível em que nos situamos, podemos ainda perguntar-nos como são evitados os
fritos,[5] as gorduras, se vão forjando ou reeducando os gostos em matéria de
comer com menos sal, podendo recorrer, em parte, a ervas aromáticas ou outros
substitutos. E os açúcares, diminuindo ou retirando o consumo de sumos,
actualmente tão presentes nas mesas das refeições familiares? E o que se faz
para diminuir o excesso de consumo de carne, hoje para alguns símbolo de melhor
condição económica ou até de vindicta em relação a um passado de mais ou menos
privações? Ao contrário, como se vão introduzindo as sopas junto dos mais
novos, ainda que Portugal seja o terceiro país do mundo, após a China e o
Vietname, que mais consome esta preciosa iguaria alimentar, considerada das
melhores para a saúde e até para dietas de emagrecimento, como vêm afirmando
muitos nutricionistas, dietistas e médicos.
Outro tanto se pode dizer do peixe, de resto, com a sopa, alimento que as
crianças e os jovens de hoje mais tendem a recusar, o que se prende muito com a
formação dos gostos alimentares na família muito precocemente, mas também nas
cantinas escolares e através das várias influências sociais, mormente os grupos
de pares, a publicidade de toda a ordem e a televisão, quiçá até com fenómenos
de moda. E o que dizer do consumo de legumes, mais substituídos por farináceos?
De frutos em vez de doçaria de toda a ordem? De água, preterida pelos sumos e
em alguns casos até por bebidas alcoólicas, ingeridas por crianças e jovens em
idades muito precoces, até com o consentimento dos pais? Para estes, não basta
falar das influências externas, pois eles são os primeiros e os principais
responsáveis pelos seus filhos, ainda que haja cada vez mais agentes externos a
interferir na sua educação, inclusive para a saúde. A este respeito, porque
tanto se fala de educação para a saúde, desde há umas décadas a esta parte,
poderá esta ser entendida como uma faceta à parte da vida, ou, antes pelo
contrário, está plenamente integrada em qualquer processo educativo desde a
mais tenra idade? Neste e noutros sentidos, o que a família faz ou deixa de
fazer exerce plenas repercussões sobre a saúde dos seus membros.
Acresce, ainda, outra questão que não tem vindo a ser invocada nesta análise e
se prende com as bebidas alcoólicas. É sobejamente conhecido que em Portugal se
consome muito álcool e este se introduz cada vez mais precocemente nos hábitos
alimentares e de convivência dos jovens, em parte devido à exploração que a
sociedade de consumo visa fazer deles, sem que muitos se tenham revelado
capazes de reagir perante estes aliciantes. Trata-se de um problema importante
quando se pensa nos riscos que daqui podem advir para a saúde destas pessoas,
tendo em conta os hábitos que podem ir adquirindo com o decorrer do tempo. Não
será por acaso que doenças associadas ao envelhecimento, como, por exemplo, a
cirrose, a perda de audição, estão a manifestar-se cada vez mais em jovens de
30 anos e até mais novos (Baumann, 2002).
Idêntico raciocínio podemos aplicar à socialização feita na família no atinente
ao consumo de bebidas alcoólicas. Se é certo que muitas famílias retardam a
iniciação dos jovens ao álcool, também há igualmente muitas outras que não
reagem assim, designadamente aquelas que habitam nas regiões onde a cultura
vinícola é elevada, como nos mostram os trabalhos de Anderson e outros (2006) e
Cerqueira (2009). Se não são tomadas certas precauções pode correr-se o risco
de deixar de beber com moderação. Ao deixar abandonar-se ao consumo exagerado
de álcool aliás, sinal de alegria e de festa, sendo uma das bebidas mais
proeminentes da convivialidade social, chegando a honras de ter a protecção de
uma divindade: o deus Baco também se pode incorrer no reverso da medalha, se
não se tomam as devidas precauções. Os efeitos daí decorrentes são de vária
ordem em termos de risco para a saúde física e psíquica, dos quais indicamos
apenas três: a violência doméstica que pode ajudar a desencadear e a acentuar-
se, pondo em risco a saúde dos outros familiares; os acidentes rodoviários,
podendo lesar terceiros que nada têm a ver com estas situações; as doenças que
pode provocar a médio e longo prazo, não descurando as neoplasias.
Trazer a primeiro plano estas questões não nos impede de falar de uma outra que
tem a ver com o facto de as práticas alimentares familiares, mais recentemente,
estarem submetidas a outro constrangimento: o uso do tempo. Uma cozinha
refinada não exige apenas poder de compra, gosto e saber-fazer culinário.
Requer tempo e disponibilidade, o que se vai tornando mais difícil desde que a
mulher entrou no mercado de emprego, caso esta não disponha de recursos para
pagar, normalmente a outra mulher, para que a substitua nessas tarefas, e
também o homem não participe mais nas mesmas (Herpin, 1984; Leandro e Ferreira,
1997).
A gestão do tempo, tornando-se agora mais complexa, vai influenciar as práticas
culinárias no espaço doméstico. Se é verdade que a profissionalização das
mulheres muito tem contribuído, até, para aumentar os recursos financeiros da
família, também não é menos claro que, comendo cada vez mais no exterior, nem
sempre se dá prioridade à qualidade, quando se pensa nas refeições ligeiras
mais à base de sanduíches, pizzas e uma grande variedade de fritos ou outros
produtos de fast-food.
Associados a estes aspectos estão igualmente a individualização dos modos de
vida, inclusive familiares (o marido e a mulher, na maioria das vezes, vão cada
qual para o seu emprego com o seu carro e programam diferentemente o seu
sistema de refeições, assim como as dos filhos), o cansaço e o stress
desencadeados por estas situações, que deixam menos tempo para as mulheres e os
homens poderem dedicar mais tempo à cozinha, como já vai acontecendo aqui e
ali. Estão, assim, à vista alguns dos riscos que daqui podem advir para a saúde
dos familiares e ainda mais para a própria mulher, se for ela que tenha de
continuar a ocupar-se exclusivamente desta tarefa (Fischler, 1979). Existe, de
facto, uma forte correlação entre a família, o emprego, os recursos económicos,
a divisão das tarefas domésticas, a disponibilidade de tempo e a qualidade da
alimentação. Muitas situações há que, sem serem directamente procuradas, levam
a família e designadamente as mulheres (pois, apesar de todas as conquistas de
mais individualidade e sucesso profissional, é sobre elas que continuam a
pender estas actividades) a terem de se confrontar com várias contradições nem
sempre muito conciliáveis.
É que, quaisquer que sejam os aspectos nutricionais da alimentação e os seus
efeitos bioquímicos e sensuais sobre o organismo, a relação entre a
alimentação, as novas solicitações socioprofissionais e a saúde inscreve-se nos
quadros socioculturais da organização das sociedades e da nossa percepção do
mundo. Daí também a importância dos sistemas que prescrevem o uso ou a
proibição destes ou daqueles elementos, os modos de preparação culinários e as
condições sociotemporais e familiares.
Por outro lado, actualmente está muito em voga o recurso à restauração, à fast-
food, como já atrás se referiu, refeições mais ligeiras. Simultaneamente
aumenta o interesse pela alimentação vegetariana e a valorização dos produtos
naturais da agricultura biológica, o que revela uma vitalidade das culturas em
não se fecharem apenas nos hábitos e costumes nem nos quadros restritos de
uma dieta de carácter dietético restrito (Drulhe, 1996). Mas estas procuras são
ainda restritas, como nos revelam os dados de um projecto de investigação
interuniversitário, de índole comparativa, financiado pela FCT, intitulado: O
contributo (in)visível: a gestão familiar dos cuidados de saúde (Leandro e
outros), bem como os da dissertação de mestrado de R. Gomes (2009), sendo que
muitos dos dados desta se integram também naquele projecto.
Seja como for, um tal investimento induz, talvez ou quase por inércia, outros
caminhos, perante o aumento das doenças circulatórias, cardiológicas, crónicas
e degenerativas em idades muito precoces. Por exemplo, as crianças comem muito,
uma vez que tudo apela ao consumo de substâncias agradáveis ao paladar, ao
contrário de um bébé que come ao seu ritmo normal de fome e de sono, a menos
que outros factores familiares ou não aí intervenham.
Por outro lado, as condições socioeconómicas de famílias de condição social
modesta ou mesmo pobre ou muito pobre podem também representar riscos para a
dieta alimentar familiar e, designadamente, para as crianças. Nestas
circunstâncias, quantas saem de casa sem tomarem o pequeno-almoço, esperando
pelo pequeno lanche fornecido pela escola por volta das 10 horas, ou então, se
dispõem da mesada, tomam sumos em vez de água ou leite, bolos em vez de frutas.
Em sentido inverso levanta-se aqui outra questão. A mesada mais elevada que as
famílias de melhor condição social dão aos filhos não contribuirá para que
estes abusem deste tipo de elementos, recorrendo às máquinas implantadas na
escola ou aos cafés das proximidades. Sobre este aspecto e outros, que tipo de
relação estabelece a família com a escola e a escola com os fornecedores e
confeccionadores de produtos alimentares?
Seja como for, na prática, relativamente a estes comportamentos, parece que a
família e a escola se adaptam às solicitações de consumo do século XXI mais
relacionadas com novas modas e modelos alimentares da sociedade sem as
questionarem. Veja-se, por exemplo, a facilidade com que as famílias cedem
perante os filhos quando estes apelam a este ou àquele produto alimentar
relacionado com a fast-food ou algo similar, não só por si mesmo, mas porque
traz tal ou tal boneco. Constata-se, assim, uma cultura económica da
alimentação que compromete a família e os comerciantes. Muitas vezes, parece
que procuram apenas o lucro pelo lucro, independentemente das consequências
nefastas que podem advir para os seus clientes. Por sua vez, as famílias,
porque cedem facilmente perante as exigências dos filhos, desde idades muito
precoces, podem contribuir para construir gostos e exigências alimentares
caprichosas nefastas para a saúde. Não seria muito mais interessante que os
tais bonecos pudessem vir a ser, particularmente, colocados nos legumes, na
fruta, na sopa e noutros elementos alimentares mais benéficos para a saúde?
Neste sentido, podemos ainda interrogar-nos acerca da educação familiar para a
liberdade e responsabilidade dos filhos, logo que esteja em causa a capacidade
de escolherem perante uma gama de produtos de consumo cada vez mais alargada
numa sociedade onde tudo se exibe e se procura seduzir para a compra. Como é
que os pais chamam os filhos a participarem e a saberem escolher nas grandes
superfícies ou outros locais, entre a vária gama de produtos expostos, sempre
mais ávidos de seduzirem e despertarem a pituitária? Ao mesmo tempo, como são
chamados a participarem na preparação das refeições no interior da família,
tendo em conta o que é essencial à alimentação, mas também os gostos de cada
um, sabendo que estes são sempre capazes de se reeducarem? Como se faz da
refeição na família um momento de reencontro e de prazer entre os convivas?
Como se alimenta o individualismo em vez do espírito grupal, do laço familiar,
quando este ou aquele elemento da família, pelas mais variadas razões, pode
agarrar no seu tabuleiro e ir instalar-se no interior da casa no local onde
pensa retirar mais prazer imediato, como da televisão, quando esta predomina
com o seu discurso e imagens sobre as conversas entre os familiares? Como se
articulam as necessidades de cada um em termos alimentares quando alguém
precisa ou se decide a fazer este ou aquele regime, por vezes não só por razões
de estética e de moda, mas de saúde, ou prefere a alimentação vegetariana a
qualquer outra? Em contrapartida, os consumos alimentares excessivos e
desregrados, tal como o vestuário e o calçado menos benéficos para a saúde,
apesar de socialmente exibidos, poderão causar erros dificilmente corrigíveis,
devido a um certo laxismo, em primeiro lugar, dos pais, primeiros
responsáveis pela alimentação e educação dos filhos. As questões sobre esta
problemática poderiam continuar indefinidamente.
Por último, interessa deixar claro a influência decisiva da família no que toca
à necessidade de fazer exercício físico. Apontemos, em primeiro lugar, os modos
de vida no espaço doméstico. Aqui as crianças, os adolescentes e os jovens
passam a maioria do seu tempo sentados diante da televisão, do computador, dos
videojogos, o que favorece também a obesidade infantil ou de outras idades da
vida. Não se comem guloseimas e bebem sumos em excesso, durante os intervalos
das refeições?
Idêntica terapêutica se aplica às actividades de brincadeira, estruturadas ou
não ao ar livre, que tendem a restringir-se, em parte devido a uma cultura
urbana, que oferece poucos espaços livres para as crianças brincarem, de modo a
que possam pensar, criar, relacionar-se com os outros de maneira espontânea e
aprender, com eles, a viver em sociedade. Nas cidades, a maioria das
actividades de lazer para crianças e jovens têm lugar em espaços fechados, quer
de âmbito colectivo, quer familiar, o que também limita o exercício físico. A
falta deste, em correlação com menos qualidade ou excesso alimentar, não é
alheia a resultados menos benéficos para a saúde, como a realidade nos vem
mostrando.
Conclusão
A análise que apresentamos, mais de carácter reflexivo do que empírico, aborda
dois domínios essenciais: o investimento na e da família, independentemente das
suas condições sociais de existência, como actora de cuidados informais de
saúde e, no interior destes, mais concretamente as práticas alimentares, as
culturas dos gostos, dos olfactos e as condições sociais de existência.[6]
Um dos parâmetros que tivemos constantemente presentes foi a dimensão temporal,
tendo em conta a articulação entre o passado e o presente, uma vez que nas
últimas décadas se têm produzido grandes transformações sociais, culturais,
familiares, alimentares e, simultaneamente, das mentalidades e dos
comportamentos acerca da alimentação e da saúde. Por um lado, faz-se desta um
valor primordial da modernidade símbolo de uma vida que se quer cada vez mais
longa, quiçá que não tenha ocaso, qual eternidade transmudada da vida do além
para a vida terrena, e sem doença e, por outro, nem sempre se adoptam as
melhores atitudes e práticas para o conseguir, sabendo, nos nossos dias, que
são os modos (comportamentos sociais) e os estilos (comportamentos individuais)
de vida e das famílias que mais concorrem para o efeito.[7] Ora, as doenças
degenerativas, normalmente associadas ao envelhecimento, vão fazendo cada vez
mais a sua aparição em pessoas cada vez mais novas e até crianças, no que se
refere, por exemplo, à diabetes mellitus, com todas as consequências que daqui
podem advir, o que tem muito que ver com a alimentação e a falta de exercício
físico.
Para contrariar, como se impõe, certos estereótipos que teimam em fazer crer
que a família não tem mais uma função económica, em boa verdade a produção
doméstica, associada às condições sociais e culturais de existência, continua a
revelar-se de uma importância capital em todas as dimensões da vida humana,
inclusive económica. A observação da vida quotidiana revela-nos a importância
que ocupam as actividades produtivas fora do mercado ou não
comercializadas, sendo a família um dos espaços onde esta prática mais se
verifica. A produção doméstica encontra, assim, uma nova legitimidade. Certas
aproximações económicas já não confinam a família ao único estatuto de
consumidora, mas reconhecem-lhe, ao mesmo tempo, uma função produtiva (Soffer,
1985), ainda que uma tal conduta não deixe de colocar questões metodológicas
cruciais, em virtude da ausência do preço do produto da actividade familiar, o
que não autoriza nenhuma apreciação ou medida imediata.
Desta maneira, procurámos associar três aspectos. Primeiro a influência da
família na preservação da saúde, mas também os riscos que pode fazer correr a
este propósito. As relações entre culturas alimentares, os gostos forjados por
elas e as várias condições sociais da vida moderna e os efeitos que daí
decorrem em termos de saúde e de doença são outra das perspectivas da nossa
abordagem. Em terceiro lugar, garantir a plausibilidade desta interpretação
implica ter também presentes as condições socioeconómicas e culturais das
várias famílias.
Não podemos ocultar, no entanto, a questão da correlação entre as desigualdades
sociais e familiares e os efeitos mais ou menos nefastos sobre a saúde que
daqui podem advir (Fassin, 1996; Leandro, 2009). Em termos de prevenção, as
várias instâncias de saúde, quer nacionais quer internacionais, insistem, cada
vez mais, sobre os riscos do tabagismo, do alcoolismo, de uma alimentação
nociva e da falta de exercício físico. Estamos aqui não apenas perante
comportamentos individuais, mas frequentemente decorrendo de hábitos
familiares, de valores transmitidos, de referências estéticas, de modos de
socialização e, para muitos, de condições económicas, todas componentes nem
sempre fáceis de transformar de um dia para o outro, a par com as recorrentes
influências dos media ou da oferta do mercado.
Aliás, os resultados pouco encorajadores de programas de educação a este
propósito, tendo, por exemplo, presente o fenómeno do aumento da obesidade de
jovens e crianças, não deixam de revelar que tais programas, ainda que produzam
resultados benéficos, são frequentemente mais eficazes nas famílias e meios
sociais de boa condição social do que o inverso, agravando assim as
desigualdades. Poder-se-á, ainda, argumentar que, por vezes, nas famílias mais
abastadas nem sempre a alimentação é de boa qualidade para a saúde, sobretudo
quando se deixam entranhar hábitos que depois parecem difíceis de mudar, até em
virtude da formação dos gostos alimentares. Mas aqui há sempre mais margem de
manobra para outras escolhas.
Por outro lado, o facto de assinalar, aqui, que o vector das procuras
nutricionais e alimentares tem sofrido grandes transformações através dos
tempos e dos contextos sociais (embora determinados pratos culinários
tradicionais se mantenham para lá destas mudanças, como, por exemplo, o
bacalhau seco desde o século XIV em Portugal) pretende chamar a atenção para o
peso específico que a lógica deste funcionamento, no seio da família, tem na
formulação precisa das ementas alimentares, na precaução, manutenção e promoção
da saúde e, ao invés, no desencadeamento de doenças decorrentes de uma má
gestão da nutrição e da alimentação. Quaisquer que sejam os aspectos e os
efeitos que estas produzam sobre o corpo, a relação entre alimentação e saúde
inscreve-se na nossa percepção do mundo. Todas as crenças associam a
alimentação à saúde e prescrevem os modos de utilização e de preparação
particulares para a preservar ou favorecer. Neste sentido, a redescoberta e
revalorização dos designados produtos naturais (por exemplo, a alimentação
vegetariana) atestam a vitalidade da cultura e das novas correntes culturais
que não se deixam fechar nos quadros duma dieta alimentar tradicional ou
consumista ou ainda na ordem duma dieta biomédica. Ademais, importa referir que
cada vez mais vai havendo consciência, inclusive por parte de muitos médicos,
acerca dos efeitos secundários da iatrogénese, ou seja, do recurso a
medicamentos desnecessários que, em boa parte, para além de outros aspectos de
corrida aos mesmos para solucionar muitos problemas da vida, não teriam
qualquer razão de ser se a alimentação fosse objecto de mais cuidado e de
selecções criteriosas. Logo, está em causa a ingestão de certos produtos e a
ausência ou mesmo a parcimónia em relação a outros. Nesta perspectiva, a
influência da família, até pelo seu contributo para a formação dos gostos e
escolhas alimentares, não é de somenos importância.
Em suma, se um certo número de doenças do aparelho respiratório podem estar
associadas ao tabagismo, a maioria das doenças estão associadas à alimentação
inclusive muitas neoplasias (Béliveau e Gingras, 2006) , sobretudo decorrente
dos modos de vida e práticas familiares. Pode-se falar, igualmente, da
influência da família em termos de laços e coesão social, na medida em que se
vão conhecendo cada vez melhor os seus efeitos para a manutenção e promoção da
saúde. Os conflitos e a violência doméstica são frequentemente responsáveis por
muitas situações de doença física e psíquica, podendo até provocar distúrbios
alimentares, tanto no atinente à anorexia como à bolimia. Ora, a mesa da comida
é por excelência o espaço onde se tecem relações mais intensas, tanto a nível
familiar como social. Daí a importância de coincidências de horários e de mais
interesses comuns, do sentido de coesão de grupo e de partilha, ao invés do
individualismo exacerbado.
Se, em termos macrossociológicos, numa democracia tecnológica, os movimentos
de cidadãos têm vindo a revelar-se parceiros de relevo, em termos
microssociológicos a intervenção da família, transmissora dos primeiros
rudimentos de formas de pensar, sentir e agir, muito marcantes para toda a
vida, também não poderá ser menosprezada quando se pensa na forte influência
que exerce ou deixa de exercer sobre a saúde dos elementos que a formam e as
repercussões que daí decorrem para a sociedade em geral.
Convém ter presente que a questão central que se coloca, hoje, ao nível da
gestão colectiva dos riscos, tem muito a ver com a questão da saúde. Afinal
trata-se da preservação da vida e da luta contra a doença e a morte (Thomas,
1991). Se no passado as normas e os saberes relativos à saúde do corpo e do
espírito eram ditados pelas instâncias religiosas, no mundo moderno a ciência,
designadamente a medicina, a biologia e mais recentemente as ciências sociais e
humanas, ocuparam praticamente todo esse espaço. Com a modernização criou-se o
sentimento de que as duas primeiras instituições poderiam resolver todas as
questões que lhes estavam associadas e, até, os imponderáveis da vida
quotidiana. Ora, o desenvolvimento das tecnologias, mas sobretudo dos acidentes
e incidentes, as crises que lhes estão associadas e as doenças incuráveis,
designadamente de pessoas ainda muito jovens, têm vindo a questionar cada vez
mais um tal optimismo.
Esta situação assume uma importância tanto maior quanto o desenvolvimento
científico conduziu a riscos invisíveis ou inesperados entre perigos distantes,
o que tem vindo a suscitar a desconfiança geral a nível da vida quotidiana. São
os efeitos perversos de que fala Aron (1977). As sociedades modernas são
consideradas de insegurança, como o afirma Castel (2003). Daí uma desconfiança
generalizada entre as pessoas, as famílias e as instituições. No domínio da
saúde pública, os objectivos das grandes instituições internacionais e dos
especialistas visam melhorar ou assegurar a saúde das populações, através da
mudança dos comportamentos e das atitudes potencialmente nefastas.
Estas intenções constituem uma forma de regulação social, encorajando cada um a
adoptar as medidas mais convenientes para o conseguir. Há, assim, uma
individualização das normas de prevenção nas sociedades. Ora, na prática,
apesar da valorização e afirmação do indivíduo, verifica-se, cada vez mais, que
este tem necessidade dos outros para se afirmar como tal, como o afirma Singly
(2003). Admitimos que esses outros começam essencialmente por se situar ao
nível da família. É inevitável, neste quadro, que as principais e precoces
influências que se recebem no atinente à formação de hábitos de vida saudáveis
comecem no seio da família, como procurámos demonstrar ao longo deste trabalho.
Ao mesmo tempo, esta lógica de vida não dispensa a necessária articulação e
confiança entre a família e os profissionais de saúde, mormente os médicos.
Deste modo, poder-se-ão evitar muitos dos riscos que poderão lesar a saúde de
cada um e de todos em conjunto.