A Governação dos pacientes adequados no acesso à procriação medicamente
assistida em Portugal
Introdução
Neste texto pretende-se problematizar os critérios que delimitam a
possibilidade de uma mulher e/ou de um homem recorrerem a tecnologias de
procriação medicamente assistida (PMA) em Portugal, e reflectir sobre a
possibilidade de estes limites potenciarem a (re)produção de múltiplas
desigualdades no acesso a cuidados médicos no âmbito da medicina reprodutiva.
[1] Tal discussão tem como base empírica a análise da governação jurídico-
política e médica dos pacientes adequados. Estas tecnologias têm sido
promovidas como uma resposta terapêutica que visa controlar a essência
biológica ou ultrapassar eventuais obstáculos à concepção originados por
determinadas entidades passíveis de serem medicamente diagnosticadas a
infertilidade, determinadas doenças consideradas graves ou o risco de
transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou outras (art. 4.º da
Lei n.º 32/2006). Esta opção é referenciada a um enquadramento político-
jurídico e médico que perspectiva a infertilidade como uma doença e que promove
uma ideologia da maternidade como o desejo e objectivo de todas as mulheres,
com excepção das que não têm uma relação estável com um homem (Augusto, 2009).
A garantia do apoio político, económico e jurídico-legal ao progresso
científico e tecnológico assenta na promoção simbólica da eficácia da
tecnomedicina, termo associado ao conceito de tecnociência (Latour, 1987) e
cuja aplicação pretende dar conta da profunda inter-relação entre a ciência e a
tecnologia, reflectindo o facto de os conhecimentos e as práticas médicas serem
hoje mediados por tecnologias que se inserem cada vez mais profundamente nas
estruturas corporais. A eficácia da tecnomedicina tende a ser ponderada em
função da respectiva lealdade para com os objectivos e valores sociais
(Infante, 1993: 101 ss.; Garcia, 2006; Machado e Silva, 2008; Silva e Machado,
2009), neste caso norteados pela ponderação dos interesses das crianças que têm
o direito de nascer e crescer saudáveis(Silva e Veloso, 2009).
Num contexto sociopolítico em que cada vez mais se enfatizam as preocupações
com a quebra do número de nascimentos na sociedade portuguesa (Oliveira, 2007;
2008), o governo português parece depositar na PMA a expectativa de poder
atenuar esta tendência. As palavras proferidas no dia 29 de Novembro de 2007
aquando do anúncio público da aprovação pelo Conselho de Ministros do Decreto
Regulamentar que regula a utilização de tecnologias de PMA em Portugal ilustram
as esperanças que recaem sobre as mesmas: realizar 6250 ciclos de tratamento,
dos quais poderão resultar mais 1400 gravidezes e, previsivelmente, mais 1750
recém-nascidos (Conselho de Ministros, 2007).
Em finais de 2007 o governo português anunciou ainda a intenção de expandir o
acesso à PMA através de um aumento do respectivo financiamento público,
aprovado no Orçamento de Estado para 2008. Os encargos financeiros a serem
suportados pelo Estado a partir do ano de 2008, inclusive, deveriam contemplar
até três ciclos de inseminações intra-uterinas e um tratamento de fertilização
in vitro ou injecção intracitoplasmática de espermatozóides, quer nos hospitais
públicos, quer nos centros privados convencionados (Campos, 2008: 194-196), mas
tais apoios só foram parcialmente concretizados a partir de meados de 2009. A
comparticipação do Estado nos medicamentos adquiridos em farmácia pelos casais
que se encontravam em processos de PMA era de 37% até finais de Maio de 2009,
uma vez que, de acordo com as declarações do ministro da Saúde Correia de
Campos ao Jornal de Notícias em Novembro de 2007, estes são medicamentos
importantes, mas não de salvação de vida [ ], nem essenciais para um tratamento
agudo (Carneiro e Domingues, 2007). Este regime de comparticipação dos
medicamentos foi recentemente alterado, tendo sido criado um regime especial
que comparticipa em 69% de alguns dos medicamentos usados no âmbito dos
tratamentos de infertilidade, com efeitos a partir de 1 de Junho de 2009, com o
objectivo de tornar o acesso aos mesmos menos dependente do estatuto sócio-
económico dos casais (Despacho n.º 10910/2009).
Estas medidas estão associadas ao reforço de um modelo público de contrato na
saúde e de um programa político de privatização deste sistema (Garcia, 2006;
Nunes, 2006), o que pode contribuir para escamotear as incapacidades do próprio
sistema público de saúde em dar resposta às necessidades no âmbito da PMA. Este
é um dos casos que melhor ilustram a limitação da universalidade e parcial
gratuitidade do sistema de saúde português, nomeadamente pela relativa escassez
de financiamentos públicos e ausência de cobertura pelos seguros de saúde
privados, pela descontinuidade da oferta de recursos e pela tendencial
privatização destes cuidados de saúde. A selectividade das respostas do Estado
às solicitações no domínio da PMA desvenda as suas próprias prioridades no que
concerne, entre outros, às políticas de promoção e/ou restrição da população e
à racionalização dos gastos com a saúde (Stanworth, 1987). Daqui podem emergir
novos riscos sociais, centrados na vivência de múltiplas formas de desigualdade
social, como o risco de não cumprimento dos direitos sexuais e reprodutivos, ao
não ser garantido um acesso mais barato e universal a todas as tecnologias de
PMA (Carapinheiro, 2006). A própria tradução jurídica formal da garantia de
protecção dos direitos dos cidadãos-beneficiários destas tecnologias é omissa
quanto à questão da equidade e visa sobretudo definir, monitorizar e gerir as
responsabilidades eventualmente associadas a estas tecnologias por intermédio
da consagração de quatro direitos fundamentais, a saber: (i)o direito à
eficácia e eficiência; (ii) o direito à segurança; (iii) o direito à
informação; e (iv) o direito a consentir ou recusar submeter-se a determinados
procedimentos (art. 5.º, art. 12.º, art. 14.º e art. 30.º da Lei n.º 32/2006).
Ao longo deste texto procura-se mostrar como os principais argumentos usados
para justificar as restrições no acesso às tecnologias de PMA por parte de
juristas e médicos estão associados a uma construção hierárquica das
prioridades políticas e sociais que reflecte as mundividências ideológicas
dominantes, nomeadamente nos seguintes aspectos: privatização e
individualização da saúde reprodutiva; imposição cultural da
heterossexualidade; e celebrização da eficácia da tecnomedicina. Num primeiro
momento, mostra-se como a exigência de um diagnóstico médico para poder aceder
às tecnologias de PMA em Portugal é apropriada pelas instituições políticas e
sociais dominantes com o objectivo de classificar e disciplinar os corpos
generizados (Ussher, 1997; Ploeg, 2001; Silva e Machado, 2008), solidificando a
imposição cultural da heterossexualidade e contribuindo para esboçar o perfil
social e genético de quem deve ser reproduzido. Num segundo momento, traça-se
um panorama possível das principais modalidades de oferta de tecnologias de PMA
em Portugal, reflectindo-se, em particular, sobre as implicações que a sua
descontinuidade e tendencial privatização podem ter na (re)produção das
desigualdades de acesso a estas tecnologias, assim como na ambivalência dos
critérios usados para seleccionar os pacientes adequados.
Em termos empíricos, adopta-se uma perspectiva multidimensional, de tipo
qualitativo e interpretativo, apoiada em dois tipos de fontes de informação:
(i) o actual enquadramento legal da PMA existente em Portugal; e (ii) os
discursos orais de juristas e médicos, obtidos através da realização de
entrevistas semiestruturadas. No caso dos médicos, enviou-se uma carta de
apresentação do projecto de investigação aos dezanove responsáveis clínicos de
centros de medicina da reprodução existentes em Portugal em Outubro de 2005;
dirigiram-se ainda treze cartas a juristas seleccionados por três especialistas
em direito da saúde e direito da família em Portugal a partir da enumeração de
todos os juristas que tinham publicações na área da PMA neste país. Realizaram-
se nove entrevistas a médicos especialistas em medicina da reprodução entre
os meses de Novembro de 2005 e Fevereiro de 2006; e nove entrevistas a juristas
entre Janeiro e Março de 2007.[2] A representatividade sociológica dos casos
analisados reside nas respectivas qualidades teórico-metodológicas e na sua
exemplaridade (Hamel e outros, 1993: 30-44; Yin, 1994: 9-31; Guest e outros,
2006).
O diagnóstico médico, heterossexualidade e qualidade dos gâmetas
Em Portugal, as tecnologias de PMA são perspectivadas como métodos subsidiários
de tratamento de doenças medicamente diagnosticadas e poderão ser usadas por
casais heterossexuais casados e/ou estáveis, ou seja, com pelo menos dois anos
de vivência em condições análogas às dos cônjuges (art. 4.º e art.º 6.º da Lei
n.º 32/2006), cujos mecanismos fisiológicos da reprodução não permitam obter a
concepção de um ser humano saudável pelos meios naturais. A doação de óvulos
e de sémen, por exemplo, exige a confirmação da impossibilidade de obter uma
gravidez através da utilização dos gâmetas do casal face aos conhecimentos
médico-científicos objectivamente disponíveis e a garantia da qualidade dos
gâmetas (art. 10.º, n.º 1; art. 19.º, n.º 1; art. 27.º; e art. 47.º da Lei n.º
32/2006). A avaliação da qualidade dos gâmetas parece não depender apenas de
elementos de cariz biogenético (como a exclusão das mulheres e dos homens com
doenças genéticas ou hereditárias), mas também de algumas características
sociais, culturais e morais dos dadores (por exemplo, níveis de escolaridade
elevados, uma profissão socialmente reconhecida, voluntariedade, altruísmo e
estilos de vida saudáveis), o que promove uma distinção implícita entre quem
deve serreproduzido os corpos saudáveis e quem não deve serreproduzido
os corpos doentes (Ettorre, 2000; Silva e Machado, 2009). Estas restrições no
acesso às tecnologias de PMA podem equacionar dois dos direitos contemplados na
Carta dos Direitos Sexuais e Reprodutivos da Federação Internacional de
Planeamento da Família, nomeadamente: o direito à igualdade e o direito a estar
livre de todas as formas de discriminação no âmbito da vida sexual e
reprodutiva (art. 3.º); e o direito de escolher casar ou não e de constituir e
planear família (art. 7.º) (Federação Internacional de Planeamento da Família,
2000).
Se as ciências sociais tendiam a perspectivar a ausência involuntária de filhos
como um problema social nas décadas de 60 e 70 do século XX, esta foi sendo
reconfigurada como um problema médico ao longo dos anos 80, reflectindo a
crescente dominação do discurso biomédico em torno da infertilidade, num
período em que aumentou o número de médicos especializados na área da
reprodução humana e se expandiu a investigação científica e tecnológica no
âmbito da PMA (Becker e Nachtigall, 1992). Os estudos sociais da medicina têm
realçado a importância da análise sociológica do diagnóstico médico, uma vez
que a construção social de uma determinada condição começa a partir do momento
em que os profissionais médicos determinam a existência e legitimidade dessa
mesma condição, atribuindo-lhe um nome e um significado (Brown, 1995; Silva e
Machado, 2008). Um dos exemplos que ilustra a importância da construção
discursiva do diagnóstico médico no âmbito da PMA em Portugal consiste no facto
de esta promover a ideia de que o desenvolvimento científico e tecnológico
neste domínio resulta sobretudo de uma resposta médica à infertilidade
conjugal, eclipsando, por exemplo, as referências às suas mais recentes
utilizações por razões genéticas ou outras.
A imposição institucional da norma da heterossexualidade é justificada pela
esmagadora maioria dos médicos entrevistados com base numa evocação restritiva
da definição médica de infertilidade enquanto uma doença que afecta casais
heterossexuais, o que implica a ausência de reconhecimento implícito da
infertilidade de uma mulher ou de um homem solteiro como um problema passível
de intervenção médica (Augusto, 2009). O discurso de um dos médicos
entrevistados mostra como a classificação pretensamente objectiva da
infertilidade como uma questão de ordem médica pode ser apropriada pelas
instituições sociais com o objectivo de classificar e disciplinar os corpos das
mulheres e de solidificar as definições de género, sexualidade e família
legítima ao proceder a uma avaliação moral implícita negativa das mulheres sós
que desejam ter um filho; ao pressupor que todas as mulheres-mães devem gostar
de homens e aturá-los; e ao veicular a importância da presença do elemento
masculino na constituição de uma família:
Uma senhora só, mais ou menos jovem, porque não gosta de homens ou
porque não está para os aturar ou por qualquer outro motivo quer ter
um filho só, não é, no plano objectivo, uma questão de ordem médica.
Portanto, não é uma infertilidade. Daí perturba-me a ideia de o fazer
[possibilitar o acesso de mulheres sós a técnicas de PMA], até porque
me perturba a ideia de ajudar a nascer uma criança que, à partida,
não tem pai. [Entrevista a médico]
Num contexto em que a concepção humana está subordinada à intervenção médica, a
maioria dos médicos entrevistados entende que tem legitimidade para restringir
alguns dos direitos do casal com o objectivo declarado de assegurar o direito
da criança a ter um pai e uma mãe, o que parece assegurar a utilização
responsável das tecnologias de PMA (Mitcham, 2006):
Eu acho que nós temos que fazer uma distinção clara entre o direito
de um casal a ter um filho e os direitos da criança. E não podemos
ser nós [médicos] a contribuir para gerar uma criança que vai ser
órfã à partida. Não me parece que seja o melhor contexto para educar
uma criança, sobretudo se somos nós a produzir, a contribuir para que
isso aconteça. [Entrevista a médica]
Apenas uma médica admitiu que a imposição da heterossexualidade no acesso às
tecnologias de PMA reflecte uma norma cultural que parece ir ao encontro dos
valores e das expectativas da sociedade em que estas são aplicadas,
reconhecendo a profunda imbricação entre sociedade e tecnologia:
Pessoalmente, por exemplo, não tenho nada contra a homossexualidade e
não teria nada contra o facto de inseminar uma mulher homossexual ou
qualquer coisa assim do género. Mas não o faço porque não é do
consenso geral no país não estamos na Holanda ou na Suécia; se
estivéssemos, tudo bem, mas não estamos. [Entrevista a médica]
Os médicos entrevistados entendem ainda que as mulheres e os homens que acedem
a tecnologias de PMA devem manifestar uma estabilidade conjugal, muitas vezes
eleita como o elemento que simbolicamente atesta a respectiva capacidade para
serem mães e pais e que pode ser reconfigurado como um instrumento que garante
os direitos e os interesses da criança que vier a nascer. O seguinte extracto
de entrevista a uma médica ilustra ainda outros processos. Por um lado, a
construção dos casais e das crianças como os pacientes da PMA (e não as
mulheres e os homens). Ao reflectir sobre a emergência de um novo tipo de
paciente hermafrodita no âmbito da PMA o casal , Irma van der Ploeg (1995)
mostra como esta entidade híbrida produzida através das práticas tecnológicas é
perspectivada como um ponto de partida não problemático a partir do qual se
sucedem as intervenções médicas e técnicas sobre os corpos das mulheres, as
quais são reconceptualizadas como intervenções que recaem sobre os casais e
não sobre as mulheres. Por outro lado, este extracto salienta a importância do
envolvimento de personagens extramédicas na avaliação das eventuais
competências para a parentalidade dos casais que pretendem conceber por
intermédio destas tecnologias, sobretudo nos hospitais públicos portugueses, a
qual é justificada pelo facto de os médicos pretenderem assegurar acima de tudo
os direitos das crianças:
Os nossos casais são sempre avaliados pela psicóloga. Se nós acharmos
que eles não têm condições para serem pais, nós não fazemos técnicas,
estão excluídos. Nós acabamos por ter dois pacientes: temos o casal e
temos a criança que ainda não nasceu; e sentimo-nos responsáveis
pelas condições que vamos dar a essa criança quando ela nascer.
[Entrevista a médica]
Os argumentos que legitimam os poderes dos médicos e dos juristas nos processos
de definição dos critérios de acesso às tecnologias de PMA em Portugal
entroncam, em termos globais, numa proposta autorizada de articulação entre um
conjunto de direitos considerados fundamentais e a consequente ponderação
relativa da respectiva valorização simbólica e social (Silva e Veloso, 2009).
Esta proposta associa o direito a procriar com o direito a constituir família,
disseminando a ideia de que família e procriação são conceitos afins. Mas a
consagração destes direitos subordina-se a outros valores fundamentais,
nomeadamente: a maternidade e paternidade conscientes e o direito das crianças
ao seu desenvolvimento integral (Duarte, 2003: 37 e 80); e, sobretudo, os
interesses das crianças, pretensamente salvaguardados pelo direito à vida, pelo
direito a conhecer a história pessoal, genética e biológica (Barbas, 1998),
pelo direito a não herdar defeitos genéticos detectados e elimináveis
cientificamente (Ascensão, 2003: 37) e pelo direito ao seu desenvolvimento
integral, o que passará pela garantia de biparentalidade (Sociedade Portuguesa
de Medicina da Reprodução, 2003; Assembleia da República, 2005a: 2643-2648). No
decurso de um debate parlamentar, a deputada Maria de Belém Roseira (Partido
Socialista) acrescentou ainda um outro argumento para justificar a consagração
da norma da heterossexualidade conjugal como uma das principais restrições do
acesso a tecnologias de PMA a necessidade de o Estado fazer opções no âmbito
dos investimentos no Serviço Nacional de Saúde, sobretudo quando está em causa
uma tecnologia que tem sucesso insuficiente ou baixo e é extraordinariamente
cara e onde a oferta pública de centros de PMA não satisfaz as necessidades da
procura em tempo útil (Assembleia da República, 2005b: 5757). Neste contexto, a
orientação sexual esboça-se como um critério preferencial na hierarquização dos
potenciais beneficiários destas tecnologias (Donovan, 2008).
De acordo com o jurista Jorge Duarte Pinheiro (2005: 766), a tendencial
biparentalidade que anima o direito da filiação em Portugal insere-se na lógica
do interesse superior da criança, o qual, na perspectiva do legislador, exige
que a criança tenha, em termos ideais, um pai e uma mãe. A ideologia de
maternidade subjacente não só reforça a crença de que as melhores mães vivem
numa união heterossexual estável, como também exclui as mulheres solteiras e as
mulheres lésbicas do acesso à maternidade no interesse da criança (Stanworth,
1987: 15). Um dos juristas entrevistados entende que a maternidade autónoma
indicia um certo egoísmo por parte da mulher e que a ausência de um elemento
masculino na família pode constituir um problema, espelhando a tendencial
antipatia jurídico-legal pela monoparentalidade (Machado, 2007):
Parece-me que no caso das mães solteiras haverá um certo egoísmo por
parte da mãe. Não é das mães solteiras, é das mães solteiras com um
dador anónimo. [ ] Portanto, o ónus da argumentação está em quem quer
mudar a lei e vejo isso como muito difícil de superar. Por parte de
um casal de lésbicas, temos o mesmo problema, porque não há a figura
paterna. [Entrevista a um jurista]
O extracto de entrevista acima transcrito espelha a importância atribuída à
figura paterna, que caracteriza a generalidade dos enquadramentos jurídico-
legais sobre tecnologias reprodutivas, a qual está sobretudo associada à
protecção simbólica da ideia do pai como um elemento fundamental que completa a
família nuclear, mais do que às considerações práticas que visam assegurar o
sustento financeiro da criança ou os cuidados a prestar à mesma (Sheldon,
2005). Esta visão é aliás reafirmada pelo direito português, ao possibilitar
que uma mulher só tenha acesso a tecnologias de PMA desde que haja embriões in
vitro criopreservados como resultado de um projecto parental partilhado entre
esta mulher e o marido e/ou companheiro falecido e este o tenha consentido
(art. 22.º da Lei n.º 32/2006). A legitimação jurídico-política desta excepção
ao princípio da biparentalidade tende a ser referenciada a um contexto onde
prevalece a retórica da protecção e dignificação do embrião humano (Pinheiro,
2005: 780), a qual parece ser assegurada pelo enquadramento jurídico-legal ao
privilegiar os destinos que envolvem um projecto parental, neste caso
simbolicamente representado pelo consentimento do elemento masculino falecido,
que emerge como o garante da boa reputação da mulher-viúva que desempenhou o
seu papel convencional de esposa fiel e pretende dar continuidade à sua
pretensão de ser mãe (Lees, 1997).
A jurista Vera Lúcia Raposo alerta para as fragilidades dos argumentos
jurídicos normalmente usados para justificar a restrição do acesso a
tecnologias de PMA a casais heterossexuais, atendendo, entre outros aspectos, à
fragmentação das famílias actuais, a qual parece residir fundamentalmente na
fragmentação da paternidade (Sheldon, 2005); no entanto, esta jurista não deixa
de concluir que as crianças necessitam de estar rodeadas de modelos masculinos
e femininos (Raposo, 2007: 49), revelando implicitamente a ideia de
complementaridade dos géneros e uma visão essencialista da estruturação da
personalidade e da educação de uma criança face ao binómio masculino-feminino
(Amâncio, 2003), o que enuncia a centralidade da oposição homem/mulher no
sistema jurídico português (Machado, 2007; Silva e Veloso, 2009). A idealização
normativa da heterossexualidade revela assim uma ordem social assente na
diferença e na complementaridade entre mulheres e homens, cujos fundamentos
parecem encontrar-se na natureza (Hird, 2004: 26-28).
A oferta de tecnologias de PMA em Portugal: descontinuidades, privatização e
incertezas
Se em 1999 existiam em Portugal treze centros que aplicavam técnicas de PMA
(European Society of Human Reproduction and Embryology, 2002: 3261), dez anos
depois (em 2009) este número mais do que duplicou, cifrando-se em trinta e um.
Este esforço de ampliação da oferta de recursos e cuidados de saúde resultou
sobretudo do investimento do sector privado, em detrimento da expansão de
infra-estruturas, instalações e equipamentos de cariz público. De acordo com os
dados disponibilizados pela Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução e
pela Associação Portuguesa de Fertilidade, a maioria dos centros que
disponibilizavam tecnologias de PMA em Portugal no final de 2009 eram privados
(dez unidades públicas e vinte e uma unidades privadas) e concentravam-se nos
maiores centros urbanos do país (doze em Lisboa, seis no Porto e cinco em
Coimbra) (quadro 1). O coordenador da Comissão Nacional de Saúde Materna e
Neonatal Jorge Branco anunciou em Outubro de 2008 a criação de mais quatro
unidades públicas que aplicarão tecnologias de PMA a partir de 2009 no Hospital
da Covilhã, no Centro Hospitalar de Coimbra, no Hospital Garcia de Orta, em
Almada, e no Hospital de Faro. Este esperado investimento público é acompanhado
pelo investimento privado. Os Hospitais Privados de Portugal e o grupo Espírito
Santo Saúde anunciaram em Maio de 2008 a intenção de abrir três ou quatro
unidades de PMA até final de 2008, uma delas no Porto e as restantes em Lisboa.
Quadro 1 Número, tipo e localização das unidades que aplicam tecnologias de PMA
em Portugal
A distribuição geográfica assimétrica dos estabelecimentos, equipamentos e
recursos humanos especializados no âmbito da PMA em Portugal penaliza as
populações que residem em zonas distantes dos locais onde se situam as unidades
de medicina da reprodução, quer em termos económicos, quer em termos de
distância/tempo (Remoaldo e Machado, 2008: 126). Os estudos desenvolvidos no
que concerne às desigualdades no sistema de saúde português têm provado que a
procura e utilização de cuidados de saúde decrescem à medida que aumenta a
distância/tempo entre o local de residência dos cidadãos e a localização dos
estabelecimentos, equipamentos e recursos humanos de saúde (Cabral, 2002;
Santana, 2005). A percepção desta distância/tempo pode agravar-se em domínios
que implicam tratamentos prolongados, cansativos, dolorosos e caros, como é o
caso da PMA, o que contribui para reforçar a tese do local de residência como
um obstáculo efectivo no acesso a estas tecnologias, que se agudiza em Portugal
pela concentração da oferta de unidades de PMA em Lisboa, Porto e Coimbra.
Logo, se a rede de transportes públicos não for suficientemente completa e
regular pode comprometer a ligação entre o local de residência e o de consultas
e tratamentos, limitando a procura por parte de casais com um estatuto
socioeconómico mais baixo e sem viatura própria.
Os constrangimentos dos espaços e dos lugares de implementação destas
tecnologias dificultam ainda o acesso a técnicas de PMA por parte de cidadãos
com determinadas doenças infecto-contagiosas, devido à inexistência de meios
materiais e de laboratórios adequados, e parecem exigir a restrição do número
de tratamentos que cada casal pode realizar, sobretudo nos serviços públicos de
saúde, agravada pela existência de listas de espera. No entanto, os contornos
que definem a admissibilidade destes critérios variam em função da unidade de
medicina da reprodução em causa, sendo que a distinção entre o carácter público
ou privado da mesma se afigura como um dos factores determinantes nesse
processo (Augusto, 2009).
A não capacidade de resposta dos serviços de saúde face à procura de
tecnologias de PMA também é usada como um argumento para justificar a imposição
médica de limites apenas à idade máxima da mulher que pode aceder a estas
tecnologias, aspecto que não é objecto de regulação na actual lei portuguesa.
De acordo com os médicos entrevistados, tais limites oscilam entre os 38 e os
40 anos nos serviços de saúde públicos e entre os 42 e os 45 anos nas unidades
de medicina da reprodução privadas. Um dos médicos entrevistados reconhece que
na prática clínica quotidiana se procura conjugar uma heterogeneidade de
argumentos técnicos, médicos, económicos, biológicos, éticos, sociais e
organizacionais para determinar os limites aceitáveis da idade em que uma
mulher pode e deve ser mãe (por exemplo, a diminuição das taxas de êxito, a
capacidade de resposta dos serviços de saúde, as práticas transnacionais
dominantes, os constrangimentos económicos e/ou a ética e deontologia médicas):
As instituições oficiais [ ] têm uma procura que excede de tal forma
a sua capacidade de resposta, que utilizam os 38 anos do cônjuge
feminino como limite para fazer as técnicas. Não tem nada de pessoal,
os 39 anos podem ser biologicamente, enfim, jovens, mas este é um
número que advém de experiência internacional [ ]. Isto porque se as
taxas de êxito até essa idade andam aí à volta dos trinta, trinta e
qualquer coisa por cento, a partir daí começam a descer de forma
abrupta e, portanto, não parece fazer lógica, até de justiça social,
que estejamos a gastar custos com pessoas que têm, infelizmente, uma
probabilidade muito baixa de resolver o assunto e a deixar, enfim,
seria perder probabilidades nas que estão em lista de espera. [ ] Se
estamos em regime privado [ ] eu aí não ultrapasso os 42 anos, porque
acho que a partir daí mesmo a chama da esperança já me parece utópica
e não me parece ético eu estar a colaborar nessa, enfim, ilusão.
[Entrevista a médico]
No extracto de entrevista acima apresentado é-se confrontado, por um lado, com
a possibilidade de recentramento da intervenção médica e técnica nas mulheres
mais jovens, sob a pretensão de uma maior garantia de sucesso das tecnologias
de PMA e, por outro lado, com o reforço da imagem do insucesso das mesmas como
directamente dependente da idade da mulher. Este discurso em torno da idade da
mulher permite ilustrar a recente ênfase colocada no uso de critérios
biológicos na governação da paciente adequada para as tecnologias de PMA, uma
vez que a idade da mulher é subtilmente perspectivada como uma medida de
resposta biológica capaz de prever o sucesso destas tecnologias. Como mostra
Charis Thompson (2005: 89-91), a estandardização e democratização parcial dos
procedimentos técnicos e médicos neste domínio a partir de finais da década de
1990 contribuiu para o estabelecimento de uma hierarquia de pacientes sobretudo
baseada em critérios biológicos e menos em critérios socioeconómicos, como
sejam a exigência de um diagnóstico médico, a idade da mulher e a selecção dos
pacientes com maior probabilidade de sucesso, a qual se tornou possível a
partir do desenvolvimento da investigação médica com o objectivo de isolar os
factores preditivos do sucesso das tecnologias de PMA.
Conclusão
Com base numa investigação de carácter qualitativo e interpretativo, conclui-se
que as principais modalidades de acesso às tecnologias de PMA em Portugal são
mediadas pelo poder social do direito e da tecnomedicina e pelas imagens
dominantes acerca dos corpos, dos lugares e dos papéis das mulheres e dos
homens na sociedade. A admissibilidade legal do acesso às tecnologias de PMA
depende genericamente da existência de um casal heterossexual estável com um
diagnóstico médico; no caso da doação de gâmetas, exige-se ainda a garantia da
qualidade destes e a certificação da impossibilidade de obter uma gravidez
através do recurso aos gâmetas dos respectivos beneficiários. O direito
(re)produz uma ideologia de patriarcado, ao reafirmar através da
biparentalidade a complementaridade natural dos géneros e uma visão da
estruturação da educação de uma criança a partir do binómio feminino/masculino;
e ao realçar a importância simbólica da figura masculina e paterna como um
elemento fundamental que completa a família nuclear. Os médicos especialistas
em medicina da reprodução afiguram-se como gatekeepers secundários neste
processo, uma vez que detêm o conhecimento técnico e científico que permite
estabelecer um diagnóstico médico e propor uma metodologia de intervenção,
cujos testes e procedimentos recaem quase exclusivamente na mulher; e que
permite hierarquizar a qualidade dos gâmetas e definir os critérios que parecem
garantir uma maior probabilidade de sucesso dos usos das tecnologias de PMA.
Apesar de a estruturação das dinâmicas familiares ter sofrido diversas
metamorfoses ao longo dos últimos trinta anos em Portugal, o recurso ao
casamento, enquanto instituição reconhecida e legitimada que enquadra a
conjugalidade, marca uma presença estável e significativa nas representações
dos portugueses neste domínio (Almeida, 2003; Wall, 2005; Donati, 2007). O laço
legal e social construído pelo casamento ainda representa um ritual na
sociedade portuguesa que marca a transição estatutária para a condição de
adulto (Lalanda, 2005: 389) e é usado como um instrumento que simboliza a união
biológica entre os membros do casal e as respectivas redes de parentesco
(Smart, 1987). O reforço da idealização de um modelo de família com dois
progenitores heterossexuais e uma ou duas crianças saudáveis que estão
biologicamente relacionadas com pelo menos um deles dificulta o estabelecimento
de uma família para certas categorias de pessoas, como as mulheres e os homens
classificados como inférteis e/ou catalogados como socialmente indesejáveis,
o que se perspectiva como discriminatório e inconsistente.
Num contexto em que os tratamentos associados às tecnologias de PMA são
excluídos das situações cobertas por seguros privados de saúde e em que a
maioria da oferta dos mesmos acontece em unidades localizadas nas imediações
dos grandes centros urbanos e pela medicina privada, predominantemente
orientada para o lucro e para a rentabilização do tipo custo-efectividade dos
recursos existentes, praticando preços inacessíveis para muitos portugueses, e
em que a probabilidade de nascer uma criança é relativamente baixa, as actuais
medidas políticas de apoio à PMA podem não contribuir para atenuar as
desigualdades socioeconómicas e geográficas no acesso a estas tecnologias,
dificultando a concretização de um dos objectivos da Organização Mundial de
Saúde para este milénio a acessibilidade como o principal desafio a enfrentar
por quem está envolvido em tecnologias de PMA (Vayena e outros, 2002). Defende-
se aqui a necessidade de conceber formas de intervenção solidária que
perspectivem a saúde como um direito humano fundamental que não pode ser
comercializado (Nunes, 2006), o que, no caso da PMA em Portugal, significa
sobretudo garantir uma maior equidade no acesso a estas tecnologias, promover a
resistência à sua privatização e assegurar a qualidade e eficiência na
prestação de cuidados de saúde públicos e privados.