Économies Choisies? Échanges, Circulations et Débrouille
Noël BARBE & Serge LATOUCHE (eds.)
Économies Choisies? Échanges, Circulations et Débrouille.
Paris, Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, 2004, 209 pp.
Não haverá muitos livros de antropologia como Economies Choisies?, que se
debrucem sobre os fenómenos económicos do mundo contemporâneo. Como nota um dos
organizadores, Noël Barbe, referindo-se especialmente ao contexto francês, a
antropologia económica é hoje um pálido reflexo do que foi outrora tendo em
conta as contribuições fundamentais de autores como Marcel Mauss, Louis Dumont
ou Maurice Godelier , circunstância que se torna ainda mais intrigante se nos
lembrarmos que estamos no centro de algo que é reivindicado como uma
característica da modernidade (p. 195). Daí a oportunidade desta obra,
resultante de uma série de investigações promovidas pela Mission du Patrimoine
Ethnologique e incidindo sobre as formas recentes da economia informal, num
contexto marcado por evoluções profundas nos domínios da produção e da
circulação.
No preâmbulo é-nos explicado que a economia dita informal, supostamente mais
vulnerável aos ditames da vida social, se perfilava como um terreno de eleição
para etnógrafos, ao mesmo tempo que era sistematicamente descurada pelos
economistas. Trata-se, claro, de apresentar um ponto de partida, devidamente
posto em causa pelo mesmo Noël Barbe, reconhecendo que uma concentração
exclusiva no universo da informalidade acaba por ajudar à reificação da
separação entre a economia dominante, formal, dura, científica, e as
economias atípicas e marginais (p. 203). Mas como acerca destas últimas o
conhecimento antropológico é igualmente parcial, compreende-se melhor que a
focagem comece por privilegiar o exótico em vez do convencional, o alternativo
em vez do normativo, o minoritário em vez do hegemónico.
Entre os colaboradores no volume encontramos sociólogos, antropólogos e
economistas. A abordagem é eminentemente etnográfica, sendo vários os contextos
e as actividades apresentadas como exemplo de economias escolhidas. Numa
primeira parte dedicada aos laços formados por relações de permuta, Smaïn
Laacher e Richard Lauraire oferecem-nos duas perspectivas sobre os sistemas de
trocas locais de serviços e objectos; Nathalie Joly e Jean-Pierre Sylvestre
falam-nos de redes de trocas recíprocas de saberes; Véronique Manry e Michel
Peraldy analisam os meandros do comércio a retalho praticado numa feira de
Marselha. Em qualquer dos casos, procede-se a um exame detalhado das relações
entre a esfera social e a esfera económica, com especial destaque para a
questão da reciprocidade e do equilíbrio entre o que se dá e o que se recebe.
Uma segunda parte, versando sobre as circulações inerentes às novas formas de
migração, traz-nos artigos de Lamia Missaoui e Alain Tarrius sobre as redes
transnacionais de produção de artigos clandestinos envolvendo imigrantes
tunisinos; de Liane Mozère sobre empregadas domésticas filipinas em Paris; e de
Claire Schiff sobre jovens imigrantes turcos em França, trabalhando nos
sectores do vestuário, da construção e da alimentação. E o que sobressai é a
postura ambivalente destes actores, definida como um entre-dois, isto é, uma
vida que se desenrola simultaneamente entre o país ou região de acolhimento
(onde os novos imigrantes residem e trabalham) e o país ou região de origem
(onde têm família, onde montam os seus negócios e para onde alguns esperam
regressar).
Numa terceira parte, dedicada a actividades de desenrasque (débrouille)
situadas aquém ou além do emprego assalariado, Orsetta Bechelloni escreve sobre
o comércio de velharias e antiguidades; Fabrice Liégard sobre o trabalho nas
comunidades Emaús; Monique Le Chêne sobre a apanha de isco numa baía próxima de
Caen; e Elena Daporto sobre companhias de artistas de rua. A atenção centra-se
agora sobre os produtos e objectos trocados ou (no caso particular das
comunidades Emaús) sobre os próprios sujeitos da troca, descrevendo os
processos de qualificação / desqualificação / requalificação a que ambos estão
sujeitos.
Do ponto de vista etnográfico, os resultados são globalmente interessantes,
tendo o leitor acesso a diversos excertos de entrevistas, relatos biográficos,
crónicas de locais e actividades e, claro, descrições de situações de
interacção. É verdade que muita desta informação aparece editada num formato
diferente ou mesmo inserida em caixas, o que, se por um lado facilita a sua
identificação, não deixa de transmitir a essa informação um carácter opcional
como se se tratasse de conteúdos que um leitor mais apressado pudesse
dispensar.
Não obstante a pertinência da tripartição temática que ditou a sua ordenação,
verificamos que os contextos e actividades abordados partilham outras
afinidades entre si: assim, o comércio praticado na feira de Marselha cruza-se
com as redes de imigração ligadas à produção de vestuário contrafeito, enquanto
os serviços domésticos prestados pelas imigrantes filipinas são frequentemente
idênticos aos oferecidos por determinados participantes nos sistemas de trocas
locais. Como observa o economista Serge Latouche, na introdução da obra, a
marginalidade é uma constante nos casos tratados e o espectro do desemprego
paira sobre a maioria deles, relacionando-se com a recessão estrutural do
trabalho nas sociedades industrializadas (pp. 2-3). Outra linha de força
sublinhada por Latouche (p. 2) é a da complementaridade existente entre estes
sistemas económicos escolhidos e os processos da economia mais formal, e que
se manifesta de inúmeras maneiras: através da insinuação de um calculismo
económico no funcionamento dos sistemas de trocas locais, ou através do
aproveitamento de uma última réstia de valor em mercadorias altamente
desvalorizadas por parte dos feirantes de Marselha, ou ainda através da
requalificação financeira do que já só tinha valor sentimental ou simbólico por
parte dos negociantes de velharias. Em rigor, deparamos menos com verdadeiras
alternativas do que com complementaridades ou com uma hibridização entre as
lógicas da dádiva e do mercado, para citarmos novamente Latouche, (p. 2).
Seria óptimo que também pudéssemos falar de uma complementaridade entre a
minúcia etnográfica e a contextualização teórica, mas esta é uma mistura que
terá ficado por fazer. Se exceptuarmos o posfácio de Noël Barbe, um texto
competente na sua descrição do estado da arte da antropologia económica (ainda
que por vezes demasiado descritivo e pouco problematizante), as restantes
contribuições não se aventuram tanto pelo universo da teoria, ou fazem-no de
forma passageira. Gostaríamos, mesmo assim, de destacar dois exemplos que nos
parecem contrariar esta tendência.
Em primeiro lugar, o artigo de Véronique Manry e Michel Peraldi sobre a feira
de Marselha, onde se avança a ideia de que a participação nos negócios acaba
por gerar, à sua maneira, mais rede e ligação social do que a pertença a uma
natureza' étnica ou comunitária (p.52). Por outras palavras, aqui é a
economia que faz sociedade, que funda o princípio comum de estar em conjunto
na feira, para depois se subordinar a ele (p. 57). A argumentação não é
totalmente clara tão depressa se diz que o laço assente nos negócios não cria
uma dependência forte e que o controlo e a pressão social se dissolvem num
universo fluido, permeável à mudança (p. 51), como se afirma, num sentido
ligeiramente diferente, que todos os actores da cadeia mercantil estão unidos
por laços de dependência, de dívidas, de poder e de subordinações (p. 54) ,
nem permite dissipar todas as dúvidas acerca da interferência de sociabilidades
prévias (de pendor étnico, familiar ou comunitário) na organização e no
funcionamento da mencionada feira. Em todo o caso, estamos perante uma proposta
que merece ser levada a sério.
Em segundo lugar, o artigo de Monique Le Chêne sobre a apanha de isco, que fica
apenas a um pequeno passo de questionar o conceito moderno de trabalho
assalariado, tão central para a economia industrializada, quando diz que os
apanhadores de isco são vistos como pessoas marginais, predadoras,
esbanjadoras (p. 167) uma visão estereotipada aplicável a muitos outros
grupos que sobrevivem à custa de expedientes diversos e flexíveis.
Digamos, para concluir, que a contextualização etnográfica é uma tarefa
exigente e que por vezes se sobrepõe a tudo o resto. Sob este prisma, temos de
reconhecer o valor das contribuições de Economies Choisies?, ainda que nem
todas tenham o alcance teórico mais desejável.
Daniel Seabra Lopes
Bolseiro de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)