A Revolução no alentejo memória e traumas da reforma agrária em avis
Maria Antónia Pires de Almeida
A Revolução no alentejo memória e traumas da reforma agrária em avis
Lisboa, ICS, 2006, 347 páginas.
Nesta adaptação duma tese de doutoramento em História Moderna e Contemporânea
no ISCTE, pretende-se analisar a reforma agrária portuguesa em Avis, onde
assumiu proporções elevadíssimas, ainda que esteja por fazer a comparação por
concelho e por distrito. Com uma abordagem científica (p. 20), interroga o
que levou uma população que viveu e trabalhou durante várias gerações com a
cabeça baixa, os olhos no chão e o chapéu na mão de repente a levantar a cabeça
e agir? (p. 19). Maria Antónia Pires de Almeida, apresentada como
especializada em História Social Contemporânea e interessada na História Oral,
Memórias e Identidades, Sociologia Rural e Património, considera que houve uma
direcção partidária, um líder forte e um aparelho partidário que
encaminharam um movimento que não se justificava, porque o tipo de vantagens
adquiridas com a reforma agrária pelos trabalhadores propriamente ditos não me
parece inovador em relação aos direitos já conquistados com as lutas no Verão
de 1962 e a legislação emitida no governo de Marcelo Caetano (p. 23). O
processo de reforma agrária terá constituído um anacronismo por as condições
sociais e económicas nos campos já terem sofrido uma evolução positiva muito
significativa precisamente devido à saída do excesso demográfico que pesava
sobre aos campos e à legislação emitida no período de Marcelo Caetano (p. 63).
Assim, interrompeu os processos de investimento na agricultura que estavam a
ser postos em prática desde os anos 60 pelos mais dinâmicos empresários
agrícolas alentejanos, sendo responsável por grande parte do desinteresse que
actualmente se verifica no meio rural no que diz respeito a investimentos a
longo prazo e projectos concretos de desenvolvimento empresarial (p. 288), e
cortou qualquer tipo de contacto que existia entre os dois grupos mais
significativos, quando antes ainda havia relações de trabalho e do patrocinato.
As vilas e as aldeias dividiram-se, os ódios foram atiçados (p. 289). Em
virtude da propaganda, deu-se uma transmutação dum povo tradicionalmente
submisso e de cabeça baixa numa turba violenta e cheia de coragem (p. 148),
que se divertia em passeatas (p. 225) num ambiente festivo, com viagens à
borla em camionetas para assistir aos comícios, a jorna paga pelo sindicato e a
afirmação imparável de que se vivia em liberdade e já não havia patrões (p.
149). As mulheres passaram a sair à rua sem ser exclusivamente para trabalhar,
com uma euforia de prisioneiras libertadas (p. 149). Tornam-se as primeiras
nas manifestações e as que mais barulho faziam, mas no tipo de trabalho que
realizavam a sua situação não mudou: continuaram agachadas a apanhar legumes e
tomates, enquanto os homens conduziam tractores e ceifeiras-debulhadoras (p.
217)
A obra é dividida em sete capítulos. O primeiro centra-se na questão agrária,
com uma análise histórica, bibliográfica e literária (p. 21). O segundo é de
carácter contextual, com o enquadramento local e regional de Avis entre meados
do séc. XX e o 25 de Abril. Os capítulos III, IV e V debruçam-se sobre a fase
dramática da vida nacional (p. 23) entre 1974 e 1977, com uma cronologia e
legislação do processo de reforma agrária em Portugal, as instituições locais,
o 25 de Abril e a reforma agrária em Avis. Estes anos, em que, segundo a
autora, alguns autores estrangeiros (Nancy Bermeo, Jochen Bustorff ou Michel
Drain, entre outros) ajudaram a difundir uma certa visão utópica do processo
de reforma agrária que agora se contesta (p. 24), finalizariam com o
encerramento do período da crise de Estado (p. 24), tratando o sexto capítulo
a contra--reforma agrária e a integração europeia, enquanto o último se centra
na actualidade, nos novos desafios.
Se o Sul rural da Península Ibérica foi longamente caracterizado na etnografia
pela sua repartição em classes, com um grupo possidente claramente estabelecido
no topo da escala social e uma mole de trabalhadores sem terra, neste
trabalho a grande dificuldade foi encontrar uma classe (p. 14), ainda que
noutro local afirme ter-se confrontado no concelho de Avis com baixas
percentagens de proprietários e rendeiros e altas percentagens de trabalhadores
rurais (p. 88). A reforma agrária teria sido destinada a beneficiar o grupo dos
trabalhadores rurais e não o dos camponeses, que segundo a autora é constituído
por proprietários, rendeiros ou parceiros (p. 62): A classificação
profissional de trabalhador passou nesta época a englobar uma série de
categorias perfeitamente distintas e que variaram entre o feitore todos os
criados justos da grande lavoura até chegar aos mais eventuais dos
trabalhadores alentejanos, contratados tanto à jorna como à tarefa (p. 62).
Obscurecendo a distinção entre a divisão técnica e a divisão social do
trabalho, insiste na maior diversidade social (p. 77) que se pode detectar no
Alentejo, já que quando se pretendeu mobilizar a população rural para a
reforma agrária, se verificou uma tentativa fortíssima de anulação intencional
dessa diversidade e de reconstrução dos trabalhadores como um grupo coeso e
igualitário (p. 77). Reconhece que os locais de sociabilidade de classe eram
diferenciados e que uma característica unia de facto o grupo dos pobres: a
imagem que faziam dos ricos (p. 132), ainda que o aspecto destes nem fosse
muito ostensivo e as suas mulheres deixassem os casacos de peles nas arcas
de cânfora (ou nos guardavestidos com naftalina) e as jóias no cofre, usando-
os apenas em visitas esporádicas à capital ou em alguma ocasião social ou
familiar festiva (p. 132). Parece-lhe que é necessário desmistificar um pouco
as ideias preconcebidas sobre as elites fundiárias alentejanas (p. 134) e
admira-se porque em regra, os trabalhadores odiavam os grandes proprietários!
(p. 133). Questiona o absentismo, um lugar comum (p. 38), já que se uns
proprietários viviam em Lisboa, outros ficavam-se pelos concelhos limítrofes,
arrendando as suas explorações, e mesmo uma nova categoria, a das senhoras com
falta de preparação e incapazes de assumir a administração duma casa agrícola,
que viviam de rendas por incapacidade de se dedicarem à lavoura (p. 203). Na
necessidade de viverem dos rendimentos', tinham o bom senso de arrendarem as
terras a quem tinha maior competência para as cultivar (p. 134). Assim,
interroga-se: Será isto absentismo? (p. 135), já que alguns, abnegadamente,
tiveram mesmo que abandonar as suas profissões na capital para tomarem conta
das lavouras' quando os pais ou padrinhos faleceram (p. 137). Considera que
houve uma intenção de bipolarizar o Alentejo nos autores neo-realistas ao longo
do século XX, através dos estereótipos do latifundiário, cidadão de lavoura e
cabaré', com uma conotação irremediavelmente negativa, e do trabalhador rural
vitimado pelo próprio nascimento e pela condição de pobre, sem qualquer
capacidade de escapar a um destino de servidão e de humilhação às mãos da
prepotência do patrão e dos seus representantes: feitores, capatazes (p. 76).
Mais, nenhum dos entrevistados lhe contou que tivesse passado fome
propriamente dita (p. 120), e custa-lhe compreender que a seguir ao 25 de
Abril, Se para alguns o clima era de terror, para outros era de euforia.
Grande parte da população do concelho viveu aqueles tempos em festa, com
grandes banquetes, onde chegaram a ser comidos os veados da Fundação [Abreu
Callado] e os touros reprodutores. (p. 203)
Considera que as precárias condições culturais dos trabalhadores rurais de
Avis foram aproveitadas por uma certa elite devidamente endoutrinada para o
efeito pelo Partido Comunista Português, por via dos seus dirigentes sindicais
na região (p. 210), ou seja, os trabalhadores teriam visto acenarem-lhes com a
possibilidade de ser patrão, não trabalhar, ficar rico (p. 211).
Imediatamente a seguir ao 25 de Abril, começaram a movimentar-se, assistiram a
comícios e organizaram comissões para tudo e mais alguma coisa (p. 182). O
penúltimo presidente da Câmara terá sido expulso da vila, juntamente com o
vice-presidente que caiu na asneira' de declarar que tinha trabalhado para a
PIDE (tratando os presos) (183), numa ocasião em que o povo tomou
literalmente o poder nas suas mãos: a comissão administrativa da Câmara, com
um vogal operário agrícola, foi presidida por um enfermeiro filho de
trabalhadores rurais que tirou o curso na tropa e que na portaria de nomeação
é referido como ex-odontologista»' (p. 185). Quanto ao reconhecimento do novo
grupo de protagonistas da política local, admira-se com a assunção duma
designação unificadora: Como contraponto simbólico, é de acrescentar uma
curiosidade, sem dúvida anedótica: cada um dos nomes escritos na acta da
primeira reunião da comissão administrativa está precedido de senhor', por
extenso, o que não deixa de ser significativo de um desejo de afirmação social
por parte de um grupo que nunca antes tinha tido esse tipo de tratamento! (p.
185) Espanta-a também que os novos dirigentes dos órgãos autárquicos passassem
a ser eleitos por critérios como a proximidade com os eleitores.
O processo de reforma agrária Foi a altura ideal para forjar uma consciência
de classe que nunca tinha existido e activar os recursos humanos para a
mobilização social. Potenciando antigas frustrações e ressentimentos, a
propaganda facilmente virou a multidão contra os antigos elementos do poder e
conseguiu reverter e abolir completamente algumas solidariedades anteriormente
existentes entre as classes. (p. 150) Tal foi possível por se tratar dum
grupo altamente sugestionável, já que aos trabalhadores rurais faltava a
capacidade crítica para interpretarem a situação que se lhes colocava, o que
tem a ver com as circunstâncias culturais descritas e que se podem resumir no
elevado grau de analfabetismo e em vidas de muito trabalho físico sem qualquer
possibilidade de estímulo mental (p. 152). Salienta a decepção de alguns
trabalhadores rurais que ainda hoje dizem que querem matar os ilusionistas que
os levaram' para a reforma agrária, o que evidencia o individualismo que
marca este grupo e a pouca ou nenhuma importância dada a qualquer processo
colectivo e a total falta de interiorização dos conceitos que presidiram,
pelo menos em teoria, ao movimento, já que o que cada um queria era a
independência de um patrão e de uma renda de casa (p. 260). Os trabalhadores
reagiram irracionalmente a um estímulo, vindo a constituir-se como bando
organizado e armado que actuou com a legitimidade revolucionária de quem quer
mudar as normas culturais vigentes (p. 184). Quanto aos proprietários, o
processo ter-lhes-á provocado sérias dificuldades económicas (p. 153). Uma
proprietária chegou a vender os cordões de ouro da família para pagar as
jornas e começou a ver as suas roupas serem usadas por outras pessoas, sem
poder reagir (p. 204). Mais: As vítimas das ocupações de terras tiveram os
seus percursos de vida definitivamente alterados e as suas relações com a
propriedade agrícola e com o meio social em que estavam inseridos nunca mais
voltaram a ser as mesmas. (p. 226)
Criadas as condições por parte do Governo, do IRA, do exército, de que mais
precisavam os trabalhadores para avançarem? Sobretudo quando a GNR parecia
anestesiada. (pp. 155-6) E foi assim que Neste final de 1974 os trabalhadores
experimentaram algo que nunca haviam ousado e ninguém os reprimiu, pelo
contrário (156), um movimento que corresponde ao da revolução bolchevique
(p. 165). O registo caricatural prossegue quando refere a participação da
Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas, cuja brigada saía do quartel com
grande aparato de jipes, chaimites e outros carros de combate, armada até às
orelhas e com cabelos e barbas compridos, de aspecto alucinado', para se
juntar a grupos de ocupantes e marcar a sua presença no terreno (p. 164).
Colando-se ao discurso dos proprietários, que toma acriticamente como seu,
refere o aparelho legal então surgido, nomeadamente a lei Oliveira Baptista,
que conduziu à peregrinação (muitos chamam calvário) dos proprietários a
tentarem reaver as suas terras ocupadas e a pedirem as reservas a que tinham
direito (p. 169). Em Avis foi a razia total! (p. 200), tendo os
proprietários salientado a vingança, inveja e cobiça. Alguns trabalhadores
queriam simplesmente ver os ricos a trabalhar como eles. (p. 200) A
perspectiva dos proprietários é seguida com ardente fervor, mostrando a autora
certezas inabaláveis no que lhe contaram: Se houve descapitalização das
explorações agrícolas, esta não resultou de qualquer tipo de sabotagem
económica ou desinvestimento. Pelo contrário, foi provocada pelas despesas
extraordinárias a que as colocações obrigatórias de pessoal e o impedimento da
venda de gado obrigavam. (p. 202) Quanto à contra-reforma agrária, os que
ficaram no desemprego aquando da entrega das herdades a longo prazo grande
parte deles até acolheu com satisfação o afastamento definitivo da actividade
agrícola, pois tratava-se de uma população rural a caminhar para o
envelhecimento e as novas gerações tinham outras habilitações e outros
interesses profissionais que as atraíam para outros sectores de actividade ou
mesmo para outras regiões ou países (p. 250). Nos anos de 1978 a 1980, com as
desocupações, destaca-se o papel dos filhos dos proprietários: nas datas
marcadas para as entregas reuniam-se irmãos, primos e amigos que se
entrincheiravam nos montes( ) As desocupações constituíram assim um período de
autêntica euforia, com a excitação típica dos jovens, sem excepção do sexo
masculino, que pela primeira vez tiveram autorização e até apoio dos pais para
saírem em grupo e armados quase para uma batalha campal, devidamente
abastecidos com farnel e muita bebida. (p. 253) A autora comove-se: Podemos
imaginar o medo, misturado com orgulho, das respectivas famílias. Os meninos
estavam a recuperar as nossas terras aos comunistas! (p. 253)
Na actualidade, o espaço rural refuncionalizou-se, em função do turismo e do
artesanato, com a paisagem e a natureza a tornarem-se visitáveis. Os turistas
adoptam um comportamento com similitudes aos dos filhos dos proprietários que
praticam os desportos mais adequados ao grupo social em que estão inseridos:
equitação, alta escola e tauromaquia, alguns pertencem a grupos de forcados,
quase todos possuem jet-skis, quads, fazem motocross, passeios de jipe em
preparação para raids todo o terreno, caçam , ao contrário dos pais, que, no
seu tempo', nem à caça podiam ir porque tinham as herdades ocupadas Mas não
dispensam as outras' férias no Algarve de Verão e nos Alpes para os desportos
de Inverno. (p. 283) A Câmara Municipal, que teve de suprir necessidades
básicas por satisfazer e construir equipamentos sociais variados, lançou
infra-estruturas para um turismo que gera muito poucos resultados económicos,
como foi o caso do parque de campismo (p. 284). Deixando antever que as
vedações actuais dos terrenos, sobretudo de caça, impedem a circulação e o
acesso a locais de interesse geral, adianta que quem procurar os dólmenes e
menires do concelho, não os encontra, já que muitos deles estão dentro de
herdades vedadas e sem estradas ou caminhos de acesso (p. 284).
A autora considera ter usado métodos de trabalho rigorosos aprendidos com a
sociologia, a antropologia e a ciência política (p. 15), realizando
entrevistas, que constituem a base da análise e um importante factor de
originalidade (p. 15), através das quais pretende Dar a voz aos
intervenientes de forma rigorosa e (o mais possível) isenta (p. 15). Quanto à
pretensão à isenção, na obra os trabalhadores rurais são referidos por alcunhas
(Cuco, Sarrafaça, Mascote) e os proprietários pelos títulos académicos (A Srª.
Engenheira, na p. 204). Ainda que a autora tenha escrito que manteve o sotaque
nas transcrições, e mesmo algumas incorrecções ortográficas e gramaticais
utilizadas pelos entrevistados, o que teve a intenção de valorizar a riqueza da
linguagem regional e de modo nenhum é usado de forma depreciativa (p. 25, em
nota), o título dum sub-capítulo, Os hipotenizados' e outras referências ao
correr do texto (Bertolameu, na p. 196) denunciam um significativo desrespeito
por alguns dos que acederam a falar-lhe, a que aplica o ferrete de classe e um
paternalismo inaceitável num estudo de ciências sociais, bem evidenciado na
citação duma proprietária, escolhida para epígrafe da conclusão. Enquadra
alguns comportamentos numa espécie de personalidade-base do Sul: Basicamente,
os alentejanos e as populações mediterrânicas, em geral, não têm, por uma
questão de mentalidade, o hábito ou qualquer vontade de se exporem em público
(p. 218), sem entender que há conjunturas revolucionárias e que a psicologia
colectiva é uma fraca explicação, como fica demonstrado quando contesta Nancy
Bermeo (p. 26) ou quando naturaliza a mentalidade da população em causa,
porque o alentejano emigra menos, tem uma ligação mais forte à terra e uma
desconfiança natural em relação aos estranhos; mesmo que tenha algo a dizer,
certamente não o fará em público e muito menos respondendo a um questionário
(p. 26).
A falta de rigor da obra, que ignora estudos das elites na antropologia
portuguesa e em que a perspectiva comparativa em torno dos movimentos rurais no
mundo está completamente ausente, fica bem evidenciada na nota da p. 149,
quando a autora resolve informar os leitores do que significa a sigla MRPP:
Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, vulgo Meninos Rabinos
que Pintam Paredes. A utilização recorrente de maiúsculas (ROUBO, na p. 259),
exclamações e reticências conduzem-na a um texto que se torna panfletário e
parcial, que se conjuga com uma atitude paternalista quanto aos trabalhadores,
mostrando-se incapaz de os entender como seres da história, com capacidade para
escolher em função de constrangimentos, e condu-la a encará-los como
manipuláveis, iludidos por outros, que os levaram a agir além da sua vontade.
Tem toda a razão uma vez, quando classifica a sua obra: não passa de um
retrato, com todas as limitações impostas pela subjectividade da observadora.
(p. 20)
Paula Godinho
Departamento de Antropologia, FCSH-UNL