Antropologia em Portugal: Mestres, Percursos, Tradições
João Leal
Antropologia em Portugal: Mestres, Percursos, Tradições
Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 215 páginas.
Na sequência de Etnografias Portuguesas(2000), João Leal afirma-se neste livro
como o grande estudioso contemporâneo sobre a história da antropologia
portuguesa desde os finais do século XIX até ao presente.
O livro (organizado a partir de artigos publicados anteriormente, quer como
textos avulsos quer como introduções e prefácios a reedições de obras dos
etnógrafos dos finais do século XIX e início do XX) retoma debates sobre os
vários autores e seus objectos de estudo, com as temáticas e metodologias
específicas do percurso da disciplina. Se em Etnografias Portuguesas o autor
traça o quadro cronológico da história da etnografia portuguesa, desde os
finais do século XIX até aos anos 70 do século XX, juntando temas ligados à
própria ideia de evolução da disciplina, nesta segunda obra também três
partes diferentes correspondem a três subtemáticas, nomeadamente mestres,
percursos e transições.
O mote é dado na primeira parte que, retomando uma expressão de Jorge Dias no
seu Bosquejo histórico da Etnografia Portuguesa, se debruça sobre os
grandes mestres ' etnógrafos como Consigleri Pedroso, Adolfo Coelho,
Teófilo Braga e Leite de Vasconcellos ' realçando facetas que, se bem que
apontadas em EP, são agora desenvolvidas.
Por exemplo, o ensaio inicial sobre Consiglieri Pedroso começa com a
contextualização histórica deste período (referido por Jorge Dias como
filológico-positivista) como uma época decisiva na história da disciplina,
que transforma o interesse romântico pela cultura popular num esforço
sistematizado e com orientação científica.
O mesmo fio condutor é utilizado ao abordar as obras de outros dois mestres '
Adolfo Coelho e José Leite de Vasconcellos. Deste modo, nestes três ensaios,
para além de resumir e analisar os temas estudados por cada uma destas figuras
tutelares, Leal preocupa-se em contextualizar tais produções, quer em termos do
quadro dos temas gerais privilegiados pela etnografia europeia da época, quer
das influências teóricas subjacentes, que assim terão dirigido os trabalhos dos
etnógrafos portugueses.
Leal salienta a abertura de A. Coelho aos estudos de terreno e às preocupações
com a identidade e decadência nacional, ao mesmo tempo que aponta as
influências do difusionismo e sublinha as dispersões teóricas presentes, tal
como a mitologia comparada e o evolucionismo, e ainda o modo como este
estudioso se debruçou sobre o tema da cultura popular e da educação,
reflectindo sobre as várias facetas dos seus textos, tais como A pedagogia do
povo português.
Retoma assim a discussão do que ele considera temas essenciais na produção
etnográfica portuguesa dos finais do século XIX e início do século XX ' a
literatura e mitologias populares e a preocupação com a identidade nacional e a
etnogenia −, ideia que corrobora nas linhas escritas sobre Teófilo Braga.
Em relação a Leite de Vasconcellos, Leal passa em revista o seu percurso,
marcado pelo que denomina um vaivém entre a etnografia e a arqueologia, que
insere no quadro geral da proximidade entre as duas disciplinas na segunda
metade do século XIX. Considerando Tradições Populares de Portugal como uma das
mais importantes recolhas de tradições populares da antropologia portuguesa
oitocentista, analisa essa oscilação entre a etnografia e a arqueologia,
referindo a criação do Museu Etnográfico Português e a fundação da revista O
Arqueólogo Português, que mostram, sobretudo a partir de 1895, o
comprometimento de Leite de Vasconcellos com a arqueologia (quer no plano
institucional, quer no plano científico), patente nos três volumes de Religiões
da Lusitânia, que Leal considera a sua obra fundamental no domínio da
arqueologia.
Traçando o percurso de Vasconcellos, Leal refere ainda como, no final dos anos
20, as suas prioridades sofrem de novo uma reviravolta e a par de textos sobre
arte popular surgem textos de etnografia comparativa, focando temas como os
amuletos populares (signum solomonis, figa e a barba) e, finalmente, a
publicação de Etnografia Portuguesa, que pretendia ser um compêndio de síntese
etnográfica sobre a cultura popular portuguesa, intenção essa interrompida pela
morte do autor.
Nesta conexão constante entre o passado e o presente, Leal enfatiza a figura
dos Lusitanos e a importância que Leite de Vasconcellos dava à análise da
cultura popular à luz desse fundo lusitano matricial da nação, um espaço
cronológico delimitado entre a pré-história e a fundação da nacionalidade, em
que a sucessão de povos teria moldado a cultura tradicional portuguesa (p. 69).
Leal liga ainda os textos sobre amuletos, signo saimão e figa às preocupações
étnico-genealógicas do seu autor, como representantes do projecto subjacente
ao diálogo entre etnografia e arqueologia em L. de Vasconcellos, salientando
como a etnografia portuguesa acabou por assumir um declínio, em detrimento das
preocupações mais interpretativas ligadas à exploração das raízes etnogenéticas
da cultura portuguesa.
A respeito das preocupações folcloristas de L. de Vasconcellos no texto sobre
a barba, e referindo outras figuras da etnografia portuguesa da celebração do
popular ' discípulos de L. V. como Luís Chaves, F. C. Pires de Lima, Cláudio
Basto e Virgílio Correia ' demonstra como L. de Vasconcellos procede a um
tratamento do tema de um prisma comparativo, utilizando a etnografia e a
história. Ao propor a leitura destes três ensaios não apenas como documentos
relevantes para o entendimento do percurso científico do seu autor e da
antropologia da época, mas também como textos com elementos informativos e
sugestões de análise interessantes (p. 77), Leal realça e relembra-nos a
actualidade e pertinência destes textos de Vasconcellos.
Na segunda parte, intitulada Percursos, a intenção é agrupar uma série de
ensaios que exploram temáticas importantes no desenvolvimento da antropologia
portuguesa, quer problematizando a relação entre identidade nacional e
antropologia, quer analisando temas ligados ao que Leal denomina etnografia
espontânea.
Assim, após uma primeira incursão nas teorias evolucionistas sobre a família e
os ecos do debate das mesmas (nomeadamente nos textos de C. Pedroso já
referidos), Leal menciona ainda como os textos de T. Braga e de Oliveira
Martins espelham a influência de Maine e de Foustel de Colanges.
No capítulo Imagens contrastadas do povo, Leal mostra como o discurso
afirmativo, de confiança romântica na nação, e um contorno pessimista sobre a
decadência nacional, sobretudo com Adolfo Coelho e Rocha Peixoto, perduraram na
segunda metade do século XIX, o primeiro ligado a uma imagem positiva e
romântica da cultura popular, o segundo a uma imagem negativizada do povo. Para
Leal, tais discursos mostram como a antropologia portuguesa da época oscilou
entre os imperativos românticos de fornecer uma identidade à nação e a
tendência inversa, de olhar a sua desconstrução e declínio.
É ainda sob este signo de influências teóricas e preocupações, que se
balanceiam entre a defesa da identidade nacional e a sistematização da
diversidade e riqueza cultural do país, que o ensaio seguinte se centra.
Reflectindo sobre as discrepâncias entre duas tradições antropológicas no mundo
ocidental − a antropologia de construção de império dos países desenvolvidos
da Europa e da América e a antropologia de construção da nação dos países
periféricos da Europa − Leal lembra que, em Portugal, apesar da existência de
um império colonial, a antropologia se desenvolveu a partir do segundo modelo,
centrado sobre a problemática da identidade nacional. As razões para tal
prendem-se com a fraqueza do colonialismo português e o modo como as questões
relacionadas com a identidade nacional ocuparam a vida intelectual portuguesa
nos últimos 150 anos, nomeadamente o que Leal denomina, a partir de Eduardo
Lourenço, a fragilidade ôntica da nação. A percepção de Portugal como país
problemático teria levado à necessidade de reforçar o discurso sobre a
identidade nacional de raiz cívico-territorial ( ), com argumentos
etnogenealógicos susceptíveis de conferir maior espessura a uma existencia
nacional fragilizada (p. 113).
Leal analisa aqui, à semelhança do que faz em EP, os quatro períodos segundo
ele determinantes na antropologia portuguesa entre 1870 e 1970 (1870-1880;
1890-1900: 1910-1920; 1930- 1970) , mostrando como a cada um destes períodos
corresponde uma linha de força, em que, no primeiro, Portugal é visto como
produto de originalidades étnicas presentes na literatura e nas tradições
populares; no segundo descobre-se a diversidade interna do país; e, no
terceiro, a implantação da República e o optimismo sobre o destino nacional
moldam uma etnografia nacionalista de carácter folclorizante estruturada em
torno da arte popular. Por último, mostra como, no quarto momento, a figura de
Jorge Dias e da sua equipa − Margot Dias, Fernando Galhano, Ernesto Veiga de
Oliveira e Benjamim Pereira− se impôs no panorama da antropologia portuguesa,
através das monografias sobre comunidades do Norte, dos ensaios sobre a cultura
popular e, sobretudo, em termos de uma etnografia de urgência, no estudo da
cultura material e das tecnologias tradicionais, animada pela preocupação em
traçar um retrato da diversidade e riqueza cultural do país.
No final deste capítulo, a propósito do período a partir de 1890, em que a arte
popular é recuperada pelos estudiosos, Leal menciona figuras esquecidas do
campo da etnografia na sua ligação a esta área, como Joaquim Vasconcelos,
Virgílio Correia e Ernesto de Sousa, salientando, no primeiro, o seu trabalho
de nacionalização da arte popular ligado a uma noção de urgência de
salvaguardar o que rapidamente se perderia; em Virgílio Correia, a sua
perspectiva pastoral de encantamento com a arte pastoril e as indústrias
caseiras; em Ernesto de Sousa, a sua forma de questionar o gosto do Estado Novo
e o modo como desenvolveu a equação entre arte ingénua, primitivismo e
modernismo, e tornou conhecidas figuras como Franklin e outros artistas
populares.
Leal termina esta secção de uma forma bastante criativa, imaginando como estes
três personagens ficariam encantados se pudessem visitar as feiras de
artesanato actuais e como Joaquim de Vasconcelos se entusiasmaria com o
renascimento da estatuária de granito, Virgílio Correia com as miniaturas de
Estremoz, das irmãs Flores, e Ernesto de Sousa conversaria com as netas de Rosa
Ramalho e de Mistério.
Na terceira e derradeira parte do livro, Transições, agrupam-se ensaios sobre
a nova antropologia que surge em Portugal a partir da década de 60, sobretudo
com o aparecimento de olhares de fora, de antropólogos estrangeiros que trazem
novas perspectivas e destronam a articulação estruturante entre antropologia e
identidade nacional. Assim, o tema da perspectiva pastoral versus
contrapastoral surge a propósito de três grandes figuras da etnologia mais
recente, a partir dos anos 50 do século XX, com Orlando Ribeiro, Jorge Dias e
José Cutileiro. Embora salientando as diferenças entre eles− nomeadamente o
facto de Orlando Ribeiro ser geógrafo humano e apaixonado pelo Sul e Jorge Dias
ser antropólogo e encantado com o Norte − Leal equaciona as perspectivas destes
dois autores de uma visão pastoral do país e da vida das pessoas, uma espécie
de idealismo cego em que apenas as vertentes positivas são salientadas. Ao
contrário, o trabalho de José Cutileiro é nomeado por ter por trás uma visão
contrapastoral, na medida em que se centra na luta de classes e poderes no
Alentejo rural nos anos finais do regime salazarista e consegue uma aproximação
realista a esta situação.
As premissas básicas que enformam este capítulo são continuadas no seguinte, em
que se debatem as novas formas de fazer antropologia em Portugal que surgem a
partir da década de 60, com os primeiros esforços no sentido da criação de uma
anthropology of empire building, os estudos de Jorge Dias entre os Macondes
de Moçambique, a criação do curso de antropologia no ISCSPU e o projecto do
Museu de Etnologia. Grande parte dessa inovação deve-se a antropólogos
estrangeiros: Leal enfatiza o modo como os trabalhos de Collette Callier-
Boisvert sobre as mulheres e a emigração na serra minhota, e os de Joyce
Riegelhaupt sobre anticlericalismo na região saloia trouxeram uma lufada de ar
fresco e um novo olhar sobre o país. Retoma também o estudo de Cutileiro que,
apesar de português, contribuiu com a visão do funcionalismo britânico para a
disciplina, dando conta de uma situação social marcada pela desigualdade e pelo
conflito.
João Leal tem o dom de juntar níveis de análise e temáticas diferentes
(autores, métodos, objectos, influências teóricas) e de dar uma elucidativa
visão de conjunto do panorama da etnologia portuguesa nos períodos realmente
relevantes para a construção da disciplina, entre os finais dos séculos XIX e
XX, coincidentes com épocas de acelerada mudança histórica, política e social
do país. A sua originalidade, para além de todo o trabalho de estudo das obras
clássicas que está patente, prende-se com o modo como, de uma forma reflectida
e crítica, Leal aponta como os primeiros antropólogos portugueses estabeleceram
diálogos com as teorias antropológicas internacionais, conduzindo-nos através
de um percurso que mostra as pequenas guerras culturais da construção da
identidade nacional e da própria disciplina. Esta é, sem dúvida, uma obra de
referência para qualquer estudioso da antropologia portuguesa, do modo como ela
se moldou e simultaneamente influenciou um país em transformação, permitindo o
alargamento de perspectivas e de âmbitos de análise de que a disciplina usufrui
presentemente.
Clara Saraiva
Instituto de Investigação Científica Tropical e Universidade Nova de Lisboa