Trabalhamos sobre um Barril de Pólvora. Homens e Perigo na Refinaria de Sines
Paulo Granjo
“Trabalhamos sobre um Barril de Pólvora”. Homens e Perigo na Refinaria de Sines
Lisboa, ICS, 2004, 329 páginas.
Correspondente à dissertação de doutoramento em Antropologia do autor (2001,
ISCTE), este estudo interroga a produção de segurança em contexto de perigo
industrial.
Enunciado o objectivo ' compreender de que forma resultam, do quadro de
relações sociais em que estes homens trabalham, diversos mecanismos que irão
limitar ou potenciar o perigo tecnológico e laboral (p. 19) ' discutem‑se o
percurso aí conducente, a metodologia (observação participante, entrevista
semidirectiva e questionário sociológico) e os aspectos da relação do
pesquisador com a problemática e com o terreno (em particular, a sua perda de
acesso aos engenheiros ao revelar consistente interesse pelos operários). O
autor ocupa-se ainda, revendo bibliografia, da necessidade de reinventar a
teoria (p. 30) em que se encontrou, por não identificar quadros teóricos
directamente pertinentes para o seu trabalho.
São depois brevemente apresentados o espaço físico da refinaria, os processos
de fabrico e as ocupações directamente observadas: operadores de exterior (que
executam, directamente sobre a maquinaria, monitorização do, e intervenções no,
processo produtivo), operadores de consola (que desempenham funções similares
mas de forma mediatizada, via consola electrónica, e mais abrangente, tanto na
dimensão da área fabril a seu cargo, como no leque de informação de que
dispõem) e chefes de turno. Analisam-se, a seguir, as representações do
trabalho nestes grupos, por identificação de características-chave
(responsabilidade, qualificação, perigo, etc.) e avaliação da sua
incidência e valoração (positiva ou negativa) no discurso. Estudam-se as
várias fronteiras identitárias que, mobilizando espaços e máquinas, funções e
qualificações, posições hierárquicas ou horários de trabalho (o autor explora,
sobretudo, as implicações do trabalho a turnos), os operadores de exterior e de
consola desenham e activam, consoante as circunstâncias. É dada atenção
especial ao seu autoposicionamento face a algumas categorias propostas pelo
autor, em particular a categoria operário. Elementos sobre as relações de
patrocinato que percorrem a fábrica e um inventário dos perigos existentes
completam este múltiplo enquadramento.
O texto volta depois a centrar-se, principalmente, nos pensamentos e emoções
dos observados, analisando a sua percepção e valorização dos perigos antes
listados, a forma como concebem a ameaça que estes representam e os seus modos
de a verbalizar. É então que o autor desenha, a partir de Luhmann, o
contraste perigo versus risco e o situa na geografia social da fábrica:
engenheiros e outros com dominância hierárquica, física e funcionalmente
distantes da ameaça, ponderam o risco ' que, do seu ponto de vista, é
(probabilisticamente) calculável ' contra ganhos (de produtividade, de
rentabilidade, etc.), tendendo a arriscar para prossecução destes; já aqueles
que têm ou tiveram contacto directo e continuado com os perigos laborais (p.
167) partilham uma representação de perigo contínuo e imprevisível, tendendo à
prudência na sua relação com o processo produtivo.
Estabelecido este contraste, central na argumentação, é abordado um díspar
conjunto de representações e práticas, quanto à sua capacidade potenciadora ou
minoradora face ao perigo. Potenciam-no a ideologia de gestão dominante ' em
particular o imperativo de reduzir custos fixos de mão-de-obra e a tónica na
produtividade e na rentabilidade, mesmo sob risco ' assim como as dinâmicas
de poder, formal e informal, que transpõem tais orientações para o gesto dos
operadores. Já as formas e conteúdos da aprendizagem informal do ofício ' que
é, ao mesmo tempo, socialização no grupo ocupacional e aculturação nas
representações partilhadas do perigo e do acidente ' são considerados,
juntamente com a acumulação, pelos operários, de conhecimento prático sobre o
efectivo funcionamento do dispositivo técnico, factores maiores de segurança.
Perante os dados que assim constrói, o autor passa da interpretação à
intervenção, advogando o reconhecimento organizacional explícito da competência
e da acção dos operadores em matéria de segurança e a adopção da sua
representação de perigo, na refinaria estudada como em outros sistemas
tecnológicos hipercomplexos e perigosos (p. 266). Prevê obstáculos a uma tal
diligência (desconfiança por parte dos trabalhadores; resistência dos
dominantes, na fábrica e fora dela, perante o implícito questionamento das
relações de poder vigentes), mas considera‑a necessária a uma eficaz
estratégia de gestão do perigo (p. 267), a estender à sociedade no seu
conjunto ' numa viragem conceptual e social em cujo âmbito a antropologia
do perigo avança, poderá revelar-se central (pp. 278‑9).
Após anexos, o volume acolhe em posfácio dois capítulos da dissertação
original, que mobilizam argumentos diversos para afirmar a importância dos
estudos de antropologia em meio fabril.
Desvelar o social onde a tecnologia parece imperar é, certamente, uma
proposta aliciante. Porém, em contexto industrial, o social está também ' e
decisivamente ' na técnica. E o gesto assume, neste olhar sobre indústria, uma
presença surpreendentemente discreta. O autor pormenoriza o que dizem aqueles
trabalhadores, mas pouco transmite sobre o que fazem: sobre os seus gestos, a
corporalidade do trabalho (contudo entrevista na referência de um informante ao
cheiro persistente pelo qual a fábrica irrompe na intimidade interpessoal [p.
203]), os utensílios, os processos de decisão perante a máquina. Sente-se falta
de uma etnografia da técnica, dirigida ao social contido no gesto e na
maquinaria ' aos processos pelos quais, por exemplo, como referiu ao autor um
projectista de refinarias, duas instalações idênticas na origem se tornam
materialmente diferentes, após algum tempo de laboração, sem que se saiba
porquê (p. 162). Considerando as aquisições dos estudos sobre a técnica (em
antropologia, em sociologia, em história), sabe-se porquê.
Situar as relações com o perigo, e a diversidade destas na fábrica, no todo
social-e-técnico das práticas de trabalho (e não especialmente no grau de
proximidade aos espaços e procedimentos perigosos) ajudaria a melhor
compreender o facto de, como reporta o autor, também os operários (e não apenas
os engenheiros) equacionarem custos e benefícios (ainda que a sua linguagem de
cálculo não seja a matemática) e, nesse equacionamento, envolverem a produção;
de também os operários arriscarem (embora convocando não a probabilidade, mas
a sorte, ou a ideia, mais ou menos irónica, de que paira aqui por cima a
Nossa Senhora dos Petróleos [p.167]); de os truques operários na condução do
maquinismo (a respeito dos quais teria sido útil pormenorizar) se apresentarem
ambivalentes face ao perigo. De resto, os elementos fornecidos sobre a
aprendizagem ocupacional corroboram a inserção profunda dos modos de lidar com
o perigo nos modos de lidar com a técnica e com a produção: a atitude operária
face ao perigo emerge no âmbito de um processo de construção, controlo e
reprodução do conhecimento técnico, da qualificação e do próprio grupo
ocupacional, que apresenta dinâmicas comuns a muitos contextos operários (aos
quais facilmente se aplicaria o conceito de aprendizagem situada, pese a
opinião contrária dos seus próprios criadores, citados pelo autor). Por
exemplo, o apertado controlo do novato, que aqui se faz sob a retórica do
perigo (e sob outros idiomas noutros locais), é usual nestes contextos.
O carácter socialmente localizado dos modos de construir e reproduzir atitudes
face ao perigo não deixa de sugerir um contraste interessante (que poderia ter
sido explorado à volta da ideia, cara ao autor, da relação risco vs. perigo)
com o individualismo que Beck associa à sociedade do risco. O mesmo carácter
torna problemática, por outro lado, a proposta de apropriação organizacional
das boas práticas operárias, uma vez que as situa num património de
conhecimento endógeno, identitário e estratégico nas relações de poder fabris
' logo, reservado por inerência.
Rodeados de objectos materiais, tendemos, contudo, a render‑nos ao fetichismo
da mercadoria (Marx), escamoteando os seus contextos, materiais e simbólicos,
de produção. Também por isso é esta uma leitura a ter em conta: pelo que
desvela do mundo industrial, pelas portas que entreabre ao seu conhecimento e
interpretação, pelo estímulo à interrogação destes processos, fascinantes e
decisivos no desenhar dos mundos contemporâneos (Augé).
Emília Margarida Marques
CEAS/CRIA, CEEP/CRIA, bdp FCT