Terrorismo, suicídio e utopia: um olhar sobre o debate actual
Terrorismo, suicídio e utopia: um olhar sobre o debate actual
João de Pina Cabral
Instituto de Ciências Sociais (UL)
Este ensaio é uma reflexão sobre o tema do terrorismo suicida e as suas
implicações que nos rodeiam. O texto é concebido como uma tentativa de alargar
o debate, argumentando que estamos perante uma manifestação de um dos mais
prementes dilemas morais, políticos e filosóficos da nossa contemporaneidade.
Em especial, o devir da leitura acabou por me levar a revisitar a questão da
disposição utópica inscrita nas formas modernistas de pensar o social e que
tenho anteriormente debatido à luz do pensamento ensaístico brasileiro.
[1]
Em 11 de Setembro de 2001, quando ocorreu em Manhattan o acto de bombismo
suicida mais espectacular da história, o professor Talal Asad (TA) estava
presente na cidade, pois lecciona há várias décadas na Escola de Pós-graduação
da City University de Nova Iorque. Na medida em que é um dos mais conhecidos
especialistas sobre a antropologia das sociedades islâmicas, não é de
surpreender que sentisse necessidade de reflectir sobre o evento. Nascido na
Arábia Saudita, filho de um pai de origem judaica que se converteu ao Islão, TA
estudou antropologia em Edimburgo e, mais tarde, foi discípulo em Oxford do
velho mestre Evans-Pritchard. Nos anos 70, fez parte do brain-drain que levou a
nata de toda uma geração da antropologia britânica para os EUA ' figuras como
Victor Turner, Robin Fox, Stanley Tambiah, David Maybury-Lewis, etc. Nessa
época, TA tornou-se famoso como o crítico por excelência da relação entre
antropologia e colonialismo (Talal Asad, org., Anthropology & the Colonial
Encounter, Londres, Ithaca Press, 1973).
Em Maio de 2006 TA foi convidado a apresentar três aulas públicas (as
prestigiadas Wellek Lectures na Universidade da Califórnia, Irvine) que viriam
a constituir a base do livro On Suicide Bombing: The Wellek Lectures (Columbia
University Press, Nova Iorque, 2007). Até devido ao tom oral que os ensaios
retêm, eles prestam-se de forma muito pungente a um debate sobre as questões
que o bombismo suicida levanta. No presente texto, pretendo reflectir sobre a
questão a partir de uma perspectiva social e política (uma subject position)
que difere radicalmente da de TA. Para isso recorro ainda à leitura de três
outras obras: o excelente estudo monográfico que Kate Donahue faz do julgamento
de Zacarias Moussaoui, um terrorista de origem franco-marroquina ligado à rede
da Al Qaeda que foi preso um mês antes dos eventos de Setembro 2001 (Slave of
Allah: Zacarias Moussaoui vs. theUSA. Londres, Pluto Press, 2007); a obra que
Emiko Ohnuki-Tierney escreve sobre os pilotos kamikaze que, durante a Segunda
Grande Guerra, tiveram origem na elite intelectual japonesa (Kamikaze Diaries:
Reflections of Japanese Student Soldiers, Chicago, University of Chicago Press,
2006); e o estudo que o famoso romancista japonês Haruki Murakami publicou
sobre o ataque terrorista no metropolitano de Tóquio em 1996 (Underground: The
Tokyo Gas Attack and the Japonese Psyche, Nova Iorque, First Vintage
International, 2001).
Sumariadas as coisas (pp. 2-4), o argumento central de TA é que as distintas
motivações por trás dos diferentes actos bélicos (tanto o terrorismo como a
conduta militar empreendida em nome do estado) são irrelevantes. O que
necessita de ser explicado não é o terrorismo, sustenta o autor, já que este
seria tão válido quanto a violência institucionalizada (e. g. p. 21). Pelo
contrário, para TA, o que requer explicação é o horror que o terrorismo causa
nos liberals. Esse horror, por um lado, é de natureza puramente simbólica e,
por outro, não se aplica aos bombistas palestinianos, por ser dependente de uma
leitura judaico-cristã do suicídio como sacrifício.
À partida estas afirmações são estranhas, já que (a) não são só os liberals,
nem só os ocidentais, que ficam horrorizados com os actos de carnificina
terrorista, (b) todo o horror envolverá sempre um elemento de natureza
simbólica e (c) a influência global do passado cristão ultrapassou há muito as
fronteiras do mundo euro-americano (e, de qualquer forma, muitos dos
palestinianos são cristãos).
A definição operatória de terrorista que o autor nos propõe é alguém que
cria um sentimento de medo e insegurança entre uma população civil para fins
políticos (p. 26). Proposta também peculiar: o terrorista só causa medo e
insegurança porque inflige sofrimentos horríveis a civis inocentes. Acontece
que, para TA, a questão não se levanta. Politicamente falando, não há inocentes
em Israel. Mas, se assim é, como será noutros locais: em Londres, Madrid ou
Kwala-Lumpur? Isto é, quando é que alguém poderá ser considerado inocente?
Há duas opções. Na primeira, a palavra inocente não tem nunca qualquer
aplicação útil, já que somos todos culpados do pecado original de termos aceite
os contextos sociais em que fomos criados como seres humanos. Ora, como não
existem lugares onde violência não esteja historicamente imanente (pelo menos
nos contornos metafísicos que TA dá à palavra), ninguém nunca pode ser
inocente. Na segunda opção, pelo contrário, as pessoas que estão pacífica,
cordata e docilmente a realizar a sua vida quotidiana no respeito pelos
parâmetros sociais que os constituem como cidadãos, são civis inocentes.
Neste último caso, então, o terrorista não é nunca só o que causa medo e
insegurança; é sempre sobretudo o que causa medo e insegurança através da
matança de civis desprotegidos ' através do homicídio de inocentes.
Só que, para TA, todos os cidadãos estão presos ao espaço de violência que é
habitado pelo seu governo representativo (p. 29). Assim, um militante ou um
militar no activo estão tão envolvidos quanto as crianças de colo, as mães que
as criam ou os velhos inválidos. Será, porém, que essa constatação nos ajuda a
aceitar melhor a decisão de trucidar milhares de espanhóis que, numa madrugada
de um dia de semana, iam pacificamente para o emprego? Mais uma vez aqui nos
confrontamos com a falácia do tudo-ou-nada, tão nossa conhecida dos
vanguardismos nas ciências sociais. Em última instância, ninguém pode libertar-
se por completo da rede de implicações implícitas na sua constituição como
agente social ' por isso, ninguém é nunca totalmente inocente. Mas existem,
sim, pessoas que, não tendo participado directamente de algum acto particular
de violência, estão relativamente inocentes em relação a ele.
É claro que esses civis espanhóis assassinados tinham sido todos obrigados a
aceitar até certo ponto a violência implícita na história do estado
espanhol (e, já agora, não só do estado
[2]
mas de todas as outras pertenças colectivas de que faziam parte). Eles tinham
pago para a paz que até ali usufruíam com a parcial aceitação da violência
histórica do estado espanhol. Mas será que isso significa que validaram toda
e qualquer violência passada, presente ou futura realizada em nome do estado
a que pertencem?
Chegados a este ponto, a questão das motivações ou intenções deixa de ser
irrelevante, como acha TA. Não existem contextos sociais sem história nem há
história sem violência. Os espanhóis que participaram activamente do processo
de democratização espanhola sabem quais foram os termos da aceitação da
história de violência do passado espanhol, tendo sido obrigados a confrontá-la
directamente de forma diferenciada, extensiva e negociada. E o mesmo se poderá
dizer de gerações inteiras de alemães, de chineses, de russos, de brasileiros e
de portugueses. Em suma, a imanência da violência não retira a responsabilidade
moral de quem a pratica, nem em nome do estado nem contra esse mesmo estado '
nem para promotores de actos terroristas, nem para líderes de exércitos
institucionalizados. TA insiste que não está a sustentar que as atrocidades
terroristas podem ser às vezes moralmente justificadas (p. 4). E é realmente
bom que nos explique isso logo à partida, porque é difícil ler o resto do livro
sem pensar que é precisamente isso que ele está a fazer.
Conforme a análise avança vamo-nos tornando conscientes de como ela depende de
uma utilização problemática do conceito de estado / estado-moderno /
estado-nação ' as três expressões parecem ser sinónimas para TA,
prolongando-se em cadeia para uma série de conceitos que ficam obstinadamente
subteorizados, tais como estado progressivo moderno ou estado liberal
democrático (e. g. p. 3). Este uso abstracto, unitarizante e essencializante
do conceito de estado
[3]
é o que permite lançar o binarismo de perspectivas entre liberal / radical que
estrutura toda a obra. Acontece que, para quem esteja fora dos EUA, o dualismo
moralizante que caracteriza esta oposição ' que é, de facto, central à cultura
intelectual americana contemporânea ' não faz qualquer sentido. Ninguém pode
ser obrigado a escolher o melhor de dois crimes. O uso abusivo dos conceitos de
estado e violência revela-se, assim, demagógico.
Na primeira parte do livro, TA tenta fundamentar a sua opinião de que a
distinção entre terrorismo e guerra é espúria. Para o autor, a ideia de um
espaço histórico em que a violência circula (p. 15) demonstra que os motivos
que levam as pessoas a agir hoje não são o que conta, mas sim a dinâmica
histórica da violência. Na sua mão, a categoria violência adquire virtudes
metafísicas ' como é tão característico da vulgata neo-foucaultiana
contemporânea. Convém, pois, lembrar que, no fim dos seus dias, o próprio
Foucault se tinha apercebido de como essa metafísica da violência corria o
risco de reproduzir aquilo mesmo que ela identificava.
[4]
De facto, apesar do tom reverencial adoptado por Antonius Robben no seu recente
debate com Nancy Scheper-Hughes, esta é igualmente a questão que os divide
quando discutem o sentido do conceito de violência. Insurgindo-se com as
virtudes metafísicas do contínuo de violência propalado por Philippe Bourgois
e Scheper-Hughes, Robben assinala que a violência não é um fenómeno contido
com uma lógica própria. O contínuo da violência não se reproduz a si mesmo,
pois é socialmente embutido e estruturado a múltiplos níveis. O que isto
significa é que as estruturas são reproduzidas e alteradas em práticas sociais
por sujeitos actuantes [ ]. A relação entre estrutura e violência é sempre
mediada pela agência.
[5]
Na sua crítica ao conceito de violência estrutural, o antropólogo holandês
apresenta na verdade mais uma variante da insatisfação europeia com o idealismo
implícito na tradição alternativa americana.
O que causaria, portanto, o bombismo suicida palestiniano para TA seria a
sujeição brutal à ocupação israelita e não as intenções livres do bombista
individual (p. 45). Afirmações como esta essencializam violência, permitindo
ao autor não ter de explicar como é que as pessoas se tornam bombistas
suicidas, como é que as coisas são organizadas, como é que existem políticos e
especialistas militares que mobilizam esforços consideráveis no sentido de
produzir bombistas suicidas, como é que toda uma coorte de jovens foi levada
a cometer este tipo de atrocidade. Neste aspecto, mais uma vez, o enfoque
palestiniano que o autor dá à questão desvia do problema central: o terrorismo
jihadístico hoje é um desafio global que ultrapassa em muito os campos de
guerra da aliança israelo-americana.
O autor sustenta que, na distinção entre terroristas e exércitos em guerra,
não é a crueldade que conta, e muito menos ainda o perigo que estes constituem
para formas de vida organizadas, mas o seu estatuto civilizacional (pp. 37-
38). Frases como esta repetem-se, por meio da quais TA pretende validar um
ponto de vista radical através de recurso ao etnocentrismo dos seus opositores
liberals (os que constroem ideias xenofóbicas sobre choque de civilizações).
Mas, como vimos, ambas as perspectivas são igualmente insatisfatórias. Para
recusar o terrorismo como opção política não é necessário concordar com a
lógica racista segundo a qual o que causa o terrorismo é que eles são
selvagens, menos civilizados ou historicamente reactivos à modernidade.
Este binarismo desvia-nos do que seria a opção correcta para as ciências
sociais: viz fazer um esforço por analisar o universo de coisas que se escondem
dentro da expressão bombista suicida. Há que estudar as diferenças entre os
vários tipos de terrorismo suicidário. Para isso, é necessário ultrapassar o
enfoque encantatório no conflito israelo-palestiniano. De facto, não é só a
opinião do bombista que conta (nessa medida, mas só nessa medida, TA tem alguma
razão); conta também toda a organização de guerra que leva à situação em que
cada acto bombista é cometido. Pareceria de todo relevante propor, por um lado,
uma tipologia do bombismo suicida que não estereotipificasse a figura
(demonizando-a à la liberal ou endeuzando-a à la radical) e, por outro lado,
uma caracterização dos agentes políticos envolvidos que promovem, apoiam e
organizam o acto suicida.
Na segunda parte do livro, TA argumenta contra uma interpretação religiosa
segundo o modelo do sacrifício cristão. Para ele, a jihad islâmica é um gesto
tão secular quanto religioso: o bombismo suicida pertence essencialmente à
tradição moderna ocidental do conflito armado para a defesa de uma comunidade
política livre: para salvar a nação (ou para fundar o seu estado) no confronto
com um inimigo perigoso, pode ser necessário agir sem estar preso aos
constrangimentos morais ordinários (p. 63). Assim, conclui ele, o que é único
no bombismo suicida [ ] reside, não na sua essência, mas nas circunstâncias
contingentes (p. 64). É curioso que, não estando pronto a aceitar como
moralmente relevantes as motivações dos suicidas, TA está pronto a aceitar as
motivações dos políticos que promovem, dirigem e pagam por esses projectos
colectivos ' quer dizer, as pessoas que dominam essas tais nações ou
estados-nação em nome das quais a tal violência circula. Note-se ainda na
frase acima citada a convergência entre estado e nação. Emerge, pois, uma
interpretação colectivista do terrorismo (de facto, etnicista), cujas
implicações se tornam evidentes em afirmações como: os bombistas suicidas
nunca são velhos, o que sugere que a agilidade e a confiança física são mais
importantes para as suas performances do que motivos apropriados (p. 84).
Então, afinal, a questão não parece ser que os motivos não contem, mas quais os
motivos que contam; melhor ainda, os motivos de quem? Está claro que, se essa é
a coorte etária a que pertencem os bombistas suicidas, é porque eles são os
mais dispensáveis para os políticos que detêm o poder. Em princípio, quem tem
razões mais fortes para lutar contra o inimigo não são os jovens imolados mas
sim as pessoas que dirigem e subsidiam os projectos bélicos que recorrem a
estratégias suicidas (Hezbollah, al-Qaeda, Hamas, etc.). No entanto, tal como
nas carnificinas da Primeira Guerra Mundial, quem morre é quem tem menos
investido na vitória: os jovens.
A terceira parte da obra de TA é uma tentativa de analisar a categoria
horror. Aí, o argumento é que a razão pela qual os ocidentais ficam
horrorizados com bombismo suicida é por se tratar de uma instância de
destruição de identidade (p. 90). Na verdade, qualquer suicídio é isso mesmo e
qualquer suicídio causa horror, em particular numa cultura fortemente
individualista como a cultura anglo-americana contemporânea, para a qual a
possibilidade de um gesto de auto-destruição pessoal em nome de um interesse
colectivo chega até a ser difícil de conceber.
Conclui TA: O suicídio é um pecado porque é um acto sobressaliente de
liberdade (p. 67). Só que, mais uma vez, o argumento é capcioso. A questão é
abordada como se o horror que sentimos perante o bombardeamento da estação de
Atocha tivesse a ver com a morte do bombista. Ora, a reacção que os espanhóis
tiveram (e cujos efeitos políticos se fizeram sentir imediatamente) mostra bem
que o horror não foi sobretudo causado pela morte dos bombistas, mas sim pela
proximidade da morte e do sofrimento ' pela vulnerabilidade que, de repente, os
atingiu a todos. Para TA, as pessoas que pensam desta forma são essencialmente
hipócritas. Para demonstrar isso, ele compara a descrição dos eventos
traumatizantes resultantes de uma explosão suicida num restaurante israelita
com a descrição autobiográfica das acções violentas cometidas por um soldado
americano no Vietname. Mais uma vez, o leitor fica perplexo. O contraste só
pode fazer sentido para quem concorde com o que se passou na Guerra do Vietname
' guerra que a larga maioria de nós acha ter sido especialmente vergonhosa de
um ponto de vista humanitário. A comparação perde, pois, qualquer efeito
argumentativo. Voltamos a observar o profundo artificialismo da oposição
retórica entre liberals e radicalse a forma como ela se situa dentro de uma
visão do mundo americanocêntrica que, assim, é reproduzida para efeitos de
exportação global. O sonho utópico de uns é espelhado no sonho utópico dos
outros.
Será que TA tem razão quando afirma que não há diferença moral entre o horror
infligido por exércitos estatais [ ] e o horror infligido por insurgentes (p.
94)? Essa pergunta leva-nos imediatamente à questão mais complexa, que ele
evita endereçar: haverá ou não um qualquer momento em que infligir horror se
torne necessário para salvar um bem maior? Aí é que começam os nossos
problemas, já que ninguém sabe muito bem (nem poderá nunca saber ao certo,
creio eu) como é que se fazem essas contas. Se não há uma resposta absoluta,
correcta e precisa que virá resolver tudo, então, como gerir as ambiguidades?
Na distopia deixa também de haver co-responsabilidade ética? Ora este livro
deixa-nos à porta desse debate, mas com a porta fechada.
Nas frases finais, TA põe-nos perante uma escolha: ou (a) consideramos que a
vida de qualquer ser humano tem o mesmo valor ou (b) pensamos que o massacre
de humanos civilizados é mais perturbante que o de não-civilizados (pp. 95-
96). Será que é possível alguém enganar-se quanto à resposta certa a dar a esta
pergunta? De facto, levados pela ganância cega, Dick Cheney e os seus
apaniguados chegaram a ensaiar respostas do segundo género ' desculpas de mau
pagador. Mas será isso razão suficiente para que um dos mais conhecidos
antropólogos da actualidade gaste o nosso tempo com mentiras idiotas? O que há
que decidir não é entre essas duas opções, não; mas sim se o valor de muitas
vidas e muito sofrimento humano é superior ou inferior a outros interesses e a
quais. Para essa questão confusa e complexa, TA não parece ter qualquer
resposta útil. Essa, porém, é a pergunta que, face à violência do terrorismo
dos nossos dias, volta a pôr-se mais uma vez à humanidade.
Esta, afinal, é a questão que endereçam outros livros que se esforçam por
esclarecer o tema. Por exemplo, a antropóloga Kate Donahue escreve uma curta e
despretensiosa monografia sobre o julgamento do bombista francês, filho de
marroquinos, que foi apanhado pelas autoridades americanas em Agosto de 2001
por problemas de passaporte, não tendo conseguido fazer parte da carnificina
do 11 de Setembro (Slave of Allah: Zacarias Moussaoui vs. theUSA. Londres,
Pluto Press, 2007). Ao seguir o percurso vital deste homem, desde o seu
princípio de vida como um jovem francês à sua crescente radicalização islâmica
conduzida pelas repetidas experiências de alterização e discriminação a que vai
sendo sujeito, a antropóloga permite-nos ir compreendendo os eventos
aparentemente estranhos que se desenrolam durante o seu julgamento. Apanhado
nas teias da justiça americana por razões triviais, após o 11 de Setembro,
Zacarias Moussaoui torna-se a face pública visível do inimigo. A patente
ineficiência do aparelho policial americano alerta-nos para o facto de como a
polícia tantas vezes funciona mais como um instrumento de vitimização do que de
protecção da população civil.
Como Zacarias afirma e o governo americano confirma, a finalidade deste
julgamento era desde o início enforcá-lo. Na velha tradição antropológica do
estudo de caso (cuja história, curiosamente, a própria autora parece ignorar),
o livro segue o percurso desse julgamento e vai-nos fornecendo o material de
que necessitamos para compreender melhor as acções e motivações de quem nele
participa. Zacarias age de uma forma que, em termos judiciais, poderia parecer
não só irracional como ofensiva. A autora, contudo, vai-nos revelando a
racionalidade-outra que se esconde por detrás da sua ironia desesperada:
sabendo que o vão matar de qualquer forma, Zacarias não vê que a finalidade do
julgamento seja a que os juízes declaram (fazer justiça) e, pelo contrário, vê
o tribunal como a derradeira ocasião que ainda lhe sobra para passar ao público
global a mensagem em nome da qual ofereceu a sua vida ' a sua utopia.
Infinitamente mais informativo que as generalidades radicalizantes de TA, o
livro de Kate Donahue permite-nos compreender como funciona a teia de
identificações e diferenciações pessoais que levam uma pessoa a cometer um acto
desta natureza. Mas os motivos pessoais dos bombistas suicidas não são sempre
igualmente fortes, nem são sempre os mesmos, nem os melhores. Por vezes são
ambíguos, podendo até chegar a ser incompatíveis com o próprio gesto suicida.
Não basta, portanto, falar em generalidades que nos dominam e controlam e das
quais somos joguetes ' o tal contínuo da violência de Scheper-Hughes. Há que
tomar em conta a forma particular e sempre complexa como os homicidas-suicidas
foram levados a cometer o gesto. Aí concordamos, mas só até certo ponto, com
TA. A intenção com que alguém comete um acto é sempre só parte do que pode
explicar esse acto. Não há acção humana sem intenção, mas toda a acção humana é
subdeterminada, como insiste o filósofo Donald Davidson. A intenção com que um
acto é cometido não poderá nunca explicar completamente nem porque ele foi
cometido nem o que dele resultou.
Não parece possível encontrar um melhor exemplo disso do que o fascinante
estudo sobre os diários pessoais dos pilotos kamikaze na Guerra do Pacífico,
que Emiko Ohnuki-Tierney escreve (Kamikaze Diaries: Reflections of Japanese
Student Soldiers, Chicago, University of Chicago Press, 2006). Aí, a professora
de História da Universidade de Chicago mostra que muitos dos pilotos estavam
longe de se rever no acto que cometiam movidos por fortes sentimentos de
obrigação pessoal.
Através de uma leitura atenta dos diários deixados por alguns destes pilotos, a
autora vai-nos revelando a crescente perplexidade e a crescente inevitabilidade
da posição em que os pilotos se vão encontrando. Estamos a falar de jovens de
classe média alta, altamente escolarizados e perfeitamente fluentes em mais do
que uma língua ocidental. Entre eles, encontramos leitores ávidos de todos os
grandes filósofos da história e de todas as grandes obras da literatura
mundial. Muitos deles eram até declarada e convictamente comunistas, pacifistas
ou antimilitaristas ' o que os leva a deplorar o movimento bélico no qual se
encontram imersos. A manipulação a que são sujeitos por parte de quem os rodeia
(alguma intencional, outra inocente), a crescente excepcionalidade da situação
em que se encontra o país e as pessoas com as quais se identificam de forma tão
emocional, o sentido de obrigação e de inevitabilidade pessoal que têm perante
uma população ameaçada levam-nos a cometer actos que não são já cometidos
estritamente por eles próprios.
Nesse momento derradeiro, dentro do cockpit do seu avião, o piloto kamikaze
está só. Contudo, o gesto que comete escapa largamente à capacidade que tem de
iniciativa pessoal. O que nos leva a ver uma afirmação deste tipo como
vagamente contraditória (perguntando, por exemplo: mas, afinal, foi ele ou não
foi ele que atirou esse avião contra uma vedeta americana?) é a falácia do
individualismo ' que esconde a forma como a agência é socialmente construída e
a própria pessoa é um produto da sua condição.
O movimento intelectual contrário, porém, tal como o comete TA, é igualmente
inaceitável. Quando TA nega relevância à intenção do agente do terrorismo
suicida, atribuindo a responsabilidade dos seus actos terroristas a agentes
colectivos impessoais (estados ou estados-nações), ele está igualmente a
preservar a unitaridade do indivíduo face ao colectivo ' desta vez
desresponsabilizando-o. Está, da mesma forma, a fugir ao real desafio com que
se confronta a boa teoria antropológica: explicar a complexidade da agência
social sem abdicar do papel da racionalidade. Como é tão patentemente
demonstrado pelas perplexidades em que se encontravam os eruditos pilotos
kamikaze que nos deixaram os diários dos seus últimos dias, acção e intenção
conjugam-se de forma complexa.
Na acção humana, intenção conjuga-se com indeterminância, subdeterminação e
imprevisibilidade. Indeterminância, porque os significados que partilhamos
nunca são integralmente determináveis; subdeterminação, porque a intenção de
uma acção nunca a poderá integralmente explicar; imprevisibilidade, porque
nenhum de nós pode saber todas as implicações futuras de um gesto que cometeu
intencionalmente por uma qualquer razão particular.
Sem dúvida, porém, de todas estas obras, a que mais profundo vai no exame e no
estudo empírico das questões levantadas pelo terrorismo não é escrita por um
historiador ou antropólogo, mas pelo romancista universalmente conhecido Haruki
Murakami. Em Underground: The Tokyo Gas Attack and the Japanese Psyche, o
escritor examina as causas que levaram os discípulos da seita Aum a cometer o
ataque mortífero à população da capital japonesa usando um tipo de gás (sarim)
que os nazis tinham inventado como parte do seu esforço de guerra.
Na capa do livro diz-se que se trata de uma peça poderosa de literatura
jornalística. Não sei como alguém, tendo lido o livro, pode descrevê-lo em
seguida nesses termos. Trata-se, na verdade, de uma peça exemplar de literatura
sociológica. O autor entrevista cerca de sessenta vítimas do gás sarim que foi
espalhado por esta seita em várias linhas do metropolitano de Tóquio às 7h30m
do dia 20 de Março de 1996. Murakami realiza assim o exercício que nenhum dos
outros estudos chegou a fazer ' virar a violência ao contrário, retirando-a da
mente de quem a executa e integrando-a na vida de quem a sofre. Desta forma, o
autor revela quão perigoso é o posicionamento mental que permite que projectos
de terrorismo mais ou menos suicida cheguem a ser apresentados por alguns
autores (entre estes TA) como exercícios racionais, instrumentos possíveis de
conflito político.
De seguida, Murakami entrevista membros da seita Aum; deixando-nos, ao ouvir as
suas palavras, ainda mais perplexos perante a profundidade da capacidade humana
para fugir à complexidade da realidade; a capacidade que os seres humanos têm
para confundir desejo com realidade.
Tendo-se escondido propositadamente durante todo o longo e fascinante percurso
de mais de 300 páginas por trás das palavras do seus entrevistados ' vítimas e
membros da seita homicida ' o autor oferece-nos por fim sete páginas de
análise. Na minha opinião, estamos aqui perante um dos mais brilhantes textos
sócio-antropológicos sobre a nossa condição contemporânea. Na essência,
Murakami confronta-se com algo que o deixa perplexo: num dado momento das suas
vidas, [os membros da seita] abandonaram o mundo e entregaram-se à procura de
uma utopia espiritual no Aum Shinrikyo, algo de que eles não se arrependem e de
que não se culpam (pp. 359-360). Mesmo que, no fim, se tenha tornado algo de
monstruoso, a memória doce e radiante da paz que originalmente encontraram fica
dentro deles e nada pode facilmente substituí-la (p. 360).
O autor confronta esta experiência com eventos de outra natureza que, no
passado, o tinham profundamente fascinado, dando azo a uma das obras mais
lúcidas da ficção contemporânea japonesa (The Wind-Up Bird Chronicle): o
projecto colonial japonês na Manchúria durante a II Guerra Mundial. Pergunta-se
o leitor, que é que une estes dois projectos aparentemente tão diversos (o
colonialismo asiático japonês e a seita Aum)? A sua resposta é que ambos são
utópicos: o que falta [a ambos] é um sentido propriamente tridimensional da
história ou, mais concretamente, uma identidade entre linguagem e acção (p.
361).
Perante exemplos como estes, somos obrigados a constatar o triste facto de que
a linguagem e a lógica, cortadas da realidade, têm muito mais poder que a
linguagem e a lógica na realidade ' com toda essa matéria estranha que pesa
como uma pedra sobre qualquer acção que tomemos (p. 363). Muitos dos
antropólogos e historiadores que têm recentemente endereçado a questão colonial
teriam a ganhar em dedicar alguma atenção à forma como Murakami aproxima os
dois tipos de movimento. Se ambos remetem para problemáticas comuns
particularmente japonesas, também é verdade que a aproximação entre ambos
poderá iluminar outras terras e outras histórias nacionais.
Todos queremos respostas e todos desejamos poder controlar o mundo ' por isso,
o som do clarinete da utopia continua a despertar-nos. Mas há que lutar contra
a noção de que, se mudarmos algo de particular, vamos conseguir controlar o
futuro em geral. Esse é o sonho da utopia que TA não está pronto a abandonar e
que, assim, o aproxima tanto da lógica dos seus adversários retóricos que tanto
despreza ' os tais liberals da laia de G. W. Bush e quejandos. Mas também é o
sonho dos que acham que o mundo é robusto e que resistirá a todas as
experimentações. Recentemente, num texto sobre a história do eugenismo,
Hermínio Martins alertou-nos para os perigos de acreditar que podemos controlar
o resultado das nossas acções.
[6]
A própria palavra utopia deveria já conter em si mesma um alerta contra os
males que transporta. Quando Erasmo propôs a Tomás Morus que adoptasse esse
nome para título do seu livro, eles estavam a fazer um trocadilho ironizante: a
terra perfeita (eu-topos) é uma terra nenhuma (ou-topos). Tomás Morus escreve o
livro sempre num tom irónico. A sua morte de mártir é a declaração mais clara
possível da sua recusa última do sonho que terá tido um dia em Antuérpia.
Depois do que sofremos durante o século XX à pala das várias manifestações do
utopismo modernista, não estaremos nós hoje em condições para compreender que a
acção humana ' sendo sempre marcada pela intenção e a racionalidade ' será
também sempre subdeterminada e imprevisível? Como podemos nós hoje continuar a
reproduzir a lógica binarizante dos que pensam como TA e julgam poder controlar
o devir da história?
Termino com as palavras que Murakami ensaia como resposta a esse médico de
carreira exemplar, membro da classe média alta japonesa que, imerso no seu
sonho utópico, aceitou espalhar veneno no metropolitano da cidade onde tinha
nascido e sempre vivido.
A realidade é criada na confusão e na contradição, se excluirmos esses
elementos não estaremos já a falar da realidade. Podemos pensar que ' ao
seguirmos uma linguagem e uma lógica que aparentam ser consistentes ' seremos
capazes de excluir esse aspecto da realidade, mas não: ele estará sempre
escondido à nossa espera, pronto a tirar a sua vingança (p. 362).
Em conclusão, o terrorismo suicida é mais uma manifestação da utopia modernista
que tanto mal tem feito à humanidade. Há que ter a coragem de fazer o que
Murakami faz: dar voz aos que sofreram os seus efeitos, situar quem está preso
na engrenagem da utopia, abrir os nossos ouvidos à história humana realmente
vivida. Em última instância, saber resistir às panaceias universais que tanto
justificam o terrorismo como os actos de autoprotecção abusiva a que temos
assistido.
No início de tudo isto, Platão, o inventor original da ideia, dizia que o que
é incompleto nunca pode ser uma medida para nada (República, livro 3). Mas
hoje temos a obrigação de saber que estava fundamentalmente errado ' todas as
medidas serão sempre incompletas e, se o esquecermos, cairemos sempre na
armadilha homicida da utopia.
Março de 2008
[1]
Cf. João de Pina Cabral, 2007, A pessoa e o dilema brasileiro: uma
perspectiva anticesurista, Novos Estudos CEBRAP, 7 8, pp. 95-111; João de Pina
Cabral, 2008, O demónio e o dilema brasileiro: uma perspectiva anticesurista
II, Revista de Antropologia, no prelo.
[2]
TA escreve com letra minúscula. E, já agora, porquê maiúscula?
[3]
Vale a pena lembrarmo-nos que a geração de Tomás Morus foi a primeira para
quem o conceito de estado adquiriu o sentido que hoje tem. De facto, antes do
século XVI, a evidência da existência dessa unidade social (o estado) não
tinha a força que passou a ter a partir da Época Moderna. Hoje, mais uma vez,
não sou o primeiro a notá-lo, a unitaridade ontológica do conceito volta a
causar problemas.
[4]
Cf. Michel Foucault, 2003 [1997], Society Must be Defended: Lectures at
the Collège de France, 1975-1976. Nova Iorque, Picador, p. 46.
[5]
Antonius C. G. M. Robben, 2008, Response to Nancy Scheper-Hughes, Social
Anthropology, 16 (1), pp. 84 e 88.
[6]
Hermínio Martins, Eugenismos de ontem e de hoje, 2008, em Luísa Schmidt
e João de Pina Cabral (orgs.), Ciência e Cidadania: uma Homenagem a Bento de
Jesus Caraça. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.