A narrativa da degradação ambiental no Sul da Guiné-Bissau: uma desconstrução
etnográfica
A narrativa da degradação ambientalno Sul da Guiné-Bissau:uma desconstrução
etnográfica
[1]
Marina Padrão Temudo
The narrative of environmental degradation in Southern Guinea-Bissau: an
ethnographic deconstruction
Through a detailed case-study this paper aims not only to unveil the complexity
of the relationship among population increase, agriculture and sustainable
management of natural resources, but also to reveal the reductionism of the so-
called environmental crises narratives. The paper highlights the
methodological and epistemological advantages of linking ethnographic field
research with remote sensing and geographical information systems in the study
of landscape changes, the impact of farmers' livelihood strategies and the
multiple factors conditioning changes in local resource management systems.
Keywords: natural parks, population, counter-narrative, ethno-agronomy, remote
sensing, Guinea-Bissau.
O LEGADO DE MALTHUS
A prática do desenvolvimento tem sido enformada por um discurso hegemónico,
através do qual África nos é retratada como um continente com elevado
crescimento demográfico, fraco ou inexistente progresso industrial e
tecnológico e atravessando uma incomensurável crise social, agrícola e
ambiental. O estabelecimento de uma relação directa entre o crescimento da
população, a degradação ambiental e os conflitos sociais ' tão importante em
termos científicos e políticos ' tem raízes que remontam ao economista
britânico Thomas Robert Malthus (1766-1834), um dos fundadores da demografia
moderna. A sua abordagem consistia em considerar o território e a
disponibilidade reduzida de recursos como os limites para o crescimento da
população (Gausset e Whyte 2005). Malthus alegava que em todas as épocas existe
uma taxa de crescimento demográfico possível, à qual o crescimento da população
tenderia a ajustar-se, e que as fomes ' motivadas por um défice absoluto de
alimentos ' eram o principal factor na regulação do crescimento populacional
(Malthus 1826 [1798]).
Ester Boserup (1965; 1981), mais de um século depois, destaca-se entre os
maiores críticos do pensamento malthusiano. Para ela, o crescimento
populacional constitui um estímulo para o desenvolvimento de tecnologias
geradoras de uma maior produtividade da terra e do trabalho, na medida em que a
intensificação da agricultura que dele decorre (que obriga à progressiva
conversão da agricultura itinerante em permanente) conduz a uma diminuição da
fertilidade do solo e a um crescente investimento em trabalho. Como referem
Gausset e Whyte (2005:12), para Boserup o crescimento da produção não tem um
limite fixo, dado que é sempre possível encontrar novas soluções tecno-lógicas
para o problema da escassez.
A questão ambiental veio a adquirir um lugar proeminente na problemática
população versus recursos, através da corrente de pensamento defendida pelos
designados neo-malthusianos (Leach e Fairhead 2000). Para estes, o
desequilíbrio entre o crescimento da população e os recursos disponíveis conduz
à estagnação da agricultura e à degradação ambiental, que por sua vez irá
reforçar esse desequilíbrio numa espiral descendente (Cleaver e Shreiber 1994).
Considerando que os recursos estão a diminuir, muitos neo-malthusianos
argumentam que terão de ser criadas medidas para reduzir o crescimento
populacional (e. g. Ehrlich e Ehrlich 1993). Em The tragedy of the commons,
Hardin (1968) alega que, no caso dos recursos comunais, as consequências são
ainda mais negativas, pois é suposto que cada indivíduo seja motivado para
tentar extrair o máximo de benefícios. Este trabalho tornou-se um ideário para
os neo-malthusianos e tem vindo a dar corpo às políticas e abordagens
conservacionistas. Para aqueles, o Estado deve intervir e ou privatizar os
recursos colectivos, de forma a evitar que os beneficiários pilhem
irremediavelmente os recursos comuns. De acordo com este cenário, os conflitos
sociais são percebidos como uma consequência inevitável e permanente da
escassez (Gausset e Whyte 2005:12). Esta é a perspectiva adoptada pelos
proponentes de uma das teorias explicativas das chamadas novas guerras do
pós-Guerra Fria, designada por Richards (2005:6) Malthus com armas.
No extremo oposto da posição defendida por Garrett Hardin surgiu uma corrente
suportada pelas conclusões da Convenção do Rio sobre -biodiversidade e o saber
local das populações indígenas (UNCED 1992). Advoga que, em muitos casos, os
sistemas de posse comunal da terra apresentam um grande potencial para a gestão
sustentável dos recursos naturais. Esta nova abordagem é agora defendida também
por muitos dos técnicos e investigadores associados ao Banco Mundial (Burnham
2000:39, 40).
O modelo de Boserup tem vindo a ser desenvolvido por investigadores que
demonstraram que uma maior pressão demográfica não conduz necessariamente à
degradação ambiental e pode, pelo contrário, dar origem ao desenvolvimento de
técnicas para uma melhor conservação do solo e da água e a uma mais eficiente
gestão dos recursos florestais (e.g. Tiffen, Mortimore e Gichuki 1994). A
destruição das florestas tropicais, devido ao seu abate para fins agrícolas,
energéticos (sobretudo produção de carvão para usos domésticos) e para a
exploração das madeiras valiosas, tem servido como bandeira das intervenções
ambientalistas que visam a preservação da biodiversidade vegetal e animal. Em
África, a agricultura itinerante (que envolve corte e queima da vegetação) tem
sido considerada, desde os tempos coloniais, a principal causa de
desflorestação (Ickowitz 2006). Na percepção ecologista mais ortodoxa, as
actuais manchas florestais representam relíquias de uma anterior cobertura mais
vasta de floresta primária, que a intervenção humana destruiu. Face às
designadas narrativas da degradação ambiental, autores como James Fairhead e
Melissa Leach (e.g. 1996; 1998) têm vindo a desconstruir, a partir da
antropologia social, o estereótipo de que os pequenos agricultores africanos
conduziram ao longo dos tempos uma intensa desflorestação do continente.
Através da análise etnográfica e da pesquisa histórica, demonstraram, pelo
contrário, que uma avaliação objectiva da evolução do coberto vegetal
evidencia, em muitos casos, que os agricultores contribuíram para um
enriquecimento da paisagem e das florestas.
O papel do mercado é muitas vezes omitido na análise das relações população-
ambiente ou considerado como uma das causas de agravamento da pressão sobre os
recursos (e.g. Kotto-Same et al. 1997:246). Porém, como o demonstraram Tiffen,
Mortimore e Gichuki (1994), com um estudo de caso do distrito de Machakos no
Quénia, o crescimento populacional, quando combinado com novas oportunidades de
mercado, pode estimular a inovação e o investimento na criação de sistemas
agrícolas sustentáveis, ainda que este processo possa ser favorecido ou
atenuado/impedido por políticas governamentais.
Não subestimando a complexidade da relação entre população e recursos, a
degradação ambiental nos trópicos pode ser, em parte, consequência do -
crescimento populacional. Os pequenos agricultores dispõem frequentemente de
fracas alternativas tecnológicas, têm um acesso limitado a meios de produção, a
crédito e a oportunidades de emprego fora da agricultura, o que agrava a
pressão sobre os recursos em zonas de forte concentração da população. A
armadilha da pobreza em que foram apanhados pode conduzi-los à
sobreexploração dos recursos naturais (Huijsman e Savenije 1991).
Se as experiências conservacionistas mais radicais, que implicaram a expulsão
das populações das zonas a preservar, resultaram em situações de pobreza,
conflito e erosão cultural (e.g. Cernea e Schmidt-Soltau 2006; Schmidt-Soltau
2003; Brockington 2002), as intervenções que adoptaram uma abordagem de gestão
comunitária ou colaborativa fracassaram em grande parte dos casos (Leach e
Fairhead 2001). O problema parece residir na aplicação de modelos-padrão, de um
ou outro tipo, que não têm em conta cada contexto social, cultural, político e
ecológico. Como sublinha Burnham (2000:51, 52), por um lado, a questão
ambiental tem servido para alimentar a máquina do desenvolvimento, da qual
depende a sobrevivência de numerosas instituições e o sustento de muitos
funcionários; por outro, a complexidade na elaboração dos projectos parece ser
inimiga da sua aprovação para financiamento e futura avaliação de resultados. A
solução para a gestão sustentável das florestas tropicais assentaria no
entanto, como defendem Leach e Fairhead (2001), na adopção de abordagens de
intervenção processuais e adaptativas em vez de pré-planeadas.
O estudo de caso discutido neste artigo é fruto de uma investigação de cariz
etno-agronómico, cujo trabalho de campo decorreu de 1993 a 2008 (35 meses em
períodos de longa duração) e em que os principais instrumentos de recolha de
informações foram a observação directa, a observação participante, as conversas
informais e as entrevistas semi-estruturadas. A possibilidade de comparação com
os mapas elaborados por Cassamá (2006) ' que retratam as alterações do coberto
do solo, durante um período de 50 anos, com base em fotografia aérea e em
imagens de satélite ' permitiu suportar de forma inequívoca as conclusões da
pesquisa etnográfica.
HISTÓRIA DO POVOAMENTO E GESTÃO TRADICIONAL DOS RECURSOS NATURAIS EM CUBUCARÉ
Cubucaré é uma península que possui uma superfície de cerca de 1142 km2, sendo
delimitada a norte e a oeste pelos rios Cumbidjã e Balana, a este pelo rio
Cacine e pela fronteira com a Guiné Conacri e ao sul pela ilha de Melo e pelo
oceano Atlântico (figura 1).
Figura 1 Localização de Cubucaré.
Apesar de ser uma pequena região, apresenta uma multiplicidade etno-linguística
muito acentuada. Nos primeiros relatos dos navegadores portugueses, os nalus
são mencionados como os habitantes da região da Guiné-Bissau que hoje constitui
a província de Tombali, da qual Cubucaré faz parte (Álvares de Almada 1964
[1594]:111-117). Cerca de 1889, a região de Cubucaré começou a ser invadida
pela etnia fula, o que obrigou os nalus que não foram feitos cativos a
refugiarem-se, a pouco e pouco, nas ilhas de Como e Melo (Carvalho 1949:313).
Pouco antes do fim das chamadas campanhas de pacificação,
[2]
os nalus ' preocupados com a crescente ameaça que representava a etnia fula, a
quem mais tarde os portugueses, agradecidos pelo apoio militar prestado, irão
mesmo entregar parte do território nalu de Cubucaré, correspondente ao actual
regulado de Guiledge (Carvalho 1949; Frazão Moreira 1999:46) ' realizam
cerimónias em que pedem aos espíritos (iras) donos do chão a vinda de
hóspedes de outras etnias. O aumento da densidade populacional é desejado
pelos donos do chão como estratégia de domesticação da natureza ' nas
palavras de um agricultor, nesse tempo as onças eram mais do que as pessoas
', mas sobretudo, hipótese já levantada por Frazão-Moreira (1999:165), como
estratégia política tendente a assegurar a hegemonia sobre o território face à
pressão da etnia fula.
Nas primeiras décadas de 1900, ocorreram vagas sucessivas de imigração de
outras etnias, das quais a primeira terá sido a sosso, oriunda da então Guiné
Francesa e movida inicialmente por fins comerciais (Carvalho 1949:317), a qual
irá contribuir de forma decisiva para a islamização voluntária dos nalus e para
o desenvolvimento da fruticultura. A etnia balanta ' vinda do Norte à procura
de terrenos de cultivo de arroz ' começou a instalar-se em Cubucaré no início
dos anos 20 do século passado, tornando-se maioritária a partir de 1949.
Seguiram-se depois grupos de manjacos, pepéis e bijagós, atraídos sobretudo
pelos grandes palmares (Carvalho 1949:311, 312). Carreira (1962:230),
referindo-se a toda a região de Tombali, fala da importância dos balantas no
povoamento em massa de uma região até aí com população rarefeita (e em alguns
pontos até desabitada).
A distribuição espacial das quatro principais etnias encontra-se representada
no mapa elaborado por A. Teixeira da Mota, onde também constam as principais
povoações e os limites dos regulados (figura 2). No entanto, a etnia fula
aparece sobre-representada, dado que a área que lhe foi atribuída ultrapassa
largamente o regulado de Guiledge, incluindo uma grande área do regulado de
Cadique, onde a sua presença até hoje se limita a uma parte dos habitantes das
povoações de Iemberém e de Madina de Iemberém. Repare-se que, de acordo com os
dados do recenseamento populacional de 1991, os balantas representam 62% da
população, os nalus 10% e os fulas 8% (Silva, Cardoso e Silva 2001:9).
Figura 2 – Localização dos regulados, das povoações mais importantes e das
principais etnias em Cubucaré. (Fonte: Carvalho 1949: 309)
Em 1949, Carvalho (1949:308) afirma que o sector de Cubucaré ' antigo Posto de
Bedanda ' possuía já cerca de 10 mil habitantes, distribuídos por 63 povoações,
situadas em três regulados: Guiledge, Cantanhez (actual regulado de Cadique) e
Cabedú. O primeiro recenseamento geral da população realizado após a
independência indica uma população de aproximadamente 15 mil habitantes, com
uma densidade populacional de cerca de 15 habitantes/km2, distribuídos por 101
povoações (INEC 1979:6). À data do censo de 1991, o sector possuía já uma
população de cerca de 19 mil habitantes (INEC 1992), que aumenta para mais de
25 mil em 2007 (INEP/INEC 2007). A análise da figura 3, elaborada por Anginot
(1988) com base no censo de 1979, evidencia uma maior concentração da população
na faixa costeira ao longo dos rios Cumbidjã e Balana, onde se localiza a
maioria da população balanta e os campos mais produtivos de arroz alagado. Pelo
contrário, as margens do rio Cacine, onde os solos são de baixa fertilidade
para o cultivo do arroz alagado, encontram-se fracamente povoadas.
Figura_3 – Distribuição da população no sector de Cubucaré. (Adaptado de
Anginot 1988: 38)
No estudo do povoamento da região é também de referir que, no -período
colonial, com excepção das grandes povoações onde existiam centros de
comércio ou quartéis, a grande maioria das restantes estava instalada longe
das vias rodoviárias, como estratégia de resistência ao pagamento dos impostos
e ao trabalho forçado. Após a independência, muitas das povoações não balantas
(as balantas estão geralmente localizadas próximo dos campos de arroz nas
margens dos rios) destruídas durante a guerra deslocaram-se para a berma das
estradas.
Como referido, os primeiros habitantes da península de Cubucaré, bem como de
toda a província de Tombali, foram os nalus, razão pela qual esta região é
vulgarmente conhecida por Chão Nalu. Todos os povos da região partilham um
conjunto de crenças, segundo as quais o território de Cubucaré é povoado por
espíritos (iras) cujo mundo se encontra organizado à semelhança do humano. Em
termos de estrutura de poder, o mundo dos iras está dividido como um país em
diversas regiões, chefiadas por um dono do chão, que actua em colabo-ração
com outros iras donos dos matos, donos dos rios, donos dos animais -
selvagens, e que possui as suas sentinelas situadas em pontos estratégicos.
As fronteiras entre estas subdivisões estão claramente definidas por rios,
árvores, acidentes naturais ou pedras. Cubucaré encontra-se assim dividido em
diferentes províncias de espíritos (chãos), e o acesso à terra e aos restantes
recursos naturais é controlado em cada um deles pelo chefe do grupo de
descendência (djagra) que primeiro o povoou.
De acordo com a tradição, qualquer grupo doméstico (morança) que se instale na
região tem direito de acesso a uma parcela de terreno suficientemente grande
para assegurar o sustento dos seus membros. A partir do momento em que o
terreno é atribuído, o seu detentor possui os direitos de usar e de fruir. O
direito de dispor aplica-se exclusivamente à transmissão aos seus descendentes.
Quando, pelo contrário, a transmissão vai ocorrer para fora da morança à qual o
terreno foi concedido, o seu chefe deverá apresentar o futuro beneficiário aos
donos do chão, que de novo procederão aos rituais destinados a averiguar a
aceitação do requerente pelo iradono do chão. Só as benfeitorias permanentes
permitem a transmissão por venda, dado que a terra não é considerada uma
mercadoria e o preço de venda é calculado em função dos investimentos
permanentes (como diques e pomares) realizados.
A cosmologia nalu estabelece um conjunto de normas que, a um nível
inconsciente, gera uma relação com a natureza que preserva a manutenção do
equilíbrio ecológico (Temudo 1998, vol. I:434, 435). Em cada chão, o espaço
encontra-se dividido em três grandes classes:
· o pertencente a cada povoação e que inclui terrenos de habitação e terrenos
de cultivo;
· os matos malgosse,
[3]
que são pequenos nichos florestais (situados nas florestas densas sub-húmidas)
onde se encontram os locais de culto e que pelas descrições são espaços
relativamente circulares com um área inferior a um hectare. Nenhum recurso pode
ser daí retirado ' constituindo aquilo que se pode designar uma reserva
integral ' e o seu acesso está interdito às pessoas que não pertencem à
linhagem dona do chão, a não ser que acompanhadas por estas, quando vão fazer
algum pedido ao ira que aí habita;
· áreas-tampão florestais que rodeiam os matos magosse e cujos recursos
são de acesso limitado, i.e., a caça, a colheita de mel, de lenha, de frutos e
de raízes silvestres são permitidas aos habitantes da região, mas o corte de
grandes árvores para a construção de canoas, de pilões e de traves para casas
está sujeito a um pedido de autorização. Diz-se que estas árvores estão
protegidas ritualmente (mangidas) e que poderá acontecer algo de terrível a
quem as tentar cortar sem autorização. O acesso a estas áreas está rodeado por
uma aura mágico-religiosa que limita a entrada e o usufruto dos recursos. Estas
zonas são também consideradas reservas de fundiário, que poderá vir a ser
atribuído em parte no futuro.
A gestão dos recursos naturais das áreas-tampão está sob a alçada do dono do
chão de cada território, que coloca representantes da sua linhagem na tabanca
mais próxima de cada um dos matos. A autorização para o corte de árvores de
grande porte é dada por este, que indica de forma precisa qual a planta que
pode ser cortada, em função do seu destino.
Nesta secção relatámos de forma atemporal o sistema de gestão dos recursos
naturais dominante nos regulados de Cabedú e de Cadique. Omitiu-se porém que
ele existe num contexto de pluralismo legal e que a hegemonia nalu sobre a
gestão dos recursos naturais prevalece no quadro de uma relação de forças
permanentemente negociada. No regulado de Guiledge, onde a etnia fula é
considerada dona do chão desde o início da ocupação colonial efectiva, há uma
relação material com os recursos naturais e não existem florestas sagradas.
INOVAÇÃO AGRÍCOLA E RECURSOS FLORESTAIS
A transformação de toda a região de Tombali no celeiro de arroz da Guiné-Bissau
está associada à migração para esta região da etnia balanta, a qual introduziu
o sistema de cultivo em fluvissolos após o corte da vegetação de mangal e a
construção de um sofisticado sistema de diques e comportas (bolanha salgada).
Até essa altura, o arroz era cultivado em sequeiro (sistema itine-rante de
corte e queima, designado pampam em crioulo) e em regime de alagamento nas
zonas baixas interiores (bolanha doce). Os sistemas de produção passam, a
partir dessa época, a estar intimamente associados à matriz étnica, podendo
afirmar-se que a etnia balanta se encontra especializada na produção de arroz
em bolanha salgada, as etnias fula e tanda na produção em sequeiro de arroz
consociado com inúmeras outras espécies e as restantes etnias praticam os dois
sistemas em diferentes graus (Anginot 1989).
A migração dos balantas para Tombali ' em parte apoiada por concessionários de
terra (ponteiros) ' teve como consequência imediata um aumento extraordinário
da produção de arroz da então colónia, que obrigou mesmo à criação da
circunscrição civil de Catió (Carreira 1962:221, 224). A expansão da produção
de arroz
[4]
em Cubucaré decorreu até ao início da guerra anti-colonial (1963). Muito
embora a quase totalidade dos excedentes comercializados fosse proveniente de
bolanha salgada, a grande maioria dos produtores de sequeiro era auto-
suficiente e alguns produziam mesmo excedentes. Em Cubucaré, agricultores
djacanca, tanda e sosso dedicavam-se à exportação de arroz para o país vizinho
' fugindo ao controlo dos portugueses ', importando panos, tigelas e outros
produtos que localmente trocavam por aquele cereal. A grande coesão da mão-de-
obra familiar e de entreajuda e o número limitado de actividades geradoras de
rendimentos monetários permitia a desflorestação de grandes áreas e a
manutenção de períodos de pousio superiores a sete anos. O arroz constituía a
principal cultura de rendimento, dado que a produção de amendoim era muito
reduzida, sendo praticada nas zonas de savana por manjacos e mancanhas que
migravam sazonalmente. A colheita de coconote, proveniente dos palmares
espontâneos, era também uma grande fonte de rendimento para a população local.
A fruticultura foi progressivamente adquirindo importância durante o período
colonial, mas a área por ela ocupada era relativamente reduzida, se omitirmos
os pomares de coleira. Esta espécie foi introduzida pelos sossos e era plantada
nas zonas baixas e húmidas em sistema agroflorestal, em pomares que para não
entendidos pouco se distinguem das florestas originais. A importância
económica desta produção em Cubucaré no tempo colonial ' mencionada por
Carreira (1962:224) ' é demonstrada pelo facto de ser pago um imposto sobre os
pomares, que eram recenseados. Mangueiras ' primeira fruteira introduzida na
região pelos nalus ', bananeiras e citrinos eram plantados essencialmente para
autoconsumo ao redor das habitações.
No início da década de 1960 foram instalados em Cubucaré alguns pomares de
cajueiros com recurso a trabalho forçado ' a título de campos de demonstração
', como o ainda existente na tabanca de Cadique. Os produtores rurais não
atribuíram então qualquer importância à cultura, muito embora o usufruto lhes
coubesse, garantindo o Estado a compra dos frutos. Com efeito, o cultivo do
cajueiro foi fomentado na Guiné pelo Comandante Sarmento Rodrigues, enquanto
governador da então colónia, através de plantações conduzidas pelas autoridades
administrativas. Em 1959, dada a sua grande rusticidade e adaptação às
condições agroecológicas, é integrado no Plano de Regeneração do Coberto
Vegetal da Guiné. O estudo do material vegetal existente no território e a
instalação de vários cajueirais por toda a colónia iniciou-se em 1963 (Sardinha
1993). Dois anos depois, Lains e Silva (1965) recomendou a utilização do
cajueiro na recuperação da fertilidade dos solos esgotados pelo cultivo do
amendoim, através da sua instalação como espécie florestal. O valor das
exportações da castanha de caju foi subindo progressivamente e em 1970 ocupava
já a terceira posição, a seguir às do amendoim e do coconote (JIU 1972:36).
Com o início da luta armada em 1963, a população de Cubucaré dividiu-se entre
aqueles que ficaram nas povoações aquarteladas (Bedanda, Cabedú, Cadique,
Iemberém, Guiledge) e os que entraram no mato. Durante os onze anos da luta
pela independência, a produção de arroz em sequeiro foi muito reduzida: por um
lado, no caso das populações que se encontravam nas zonas libertadas, as
queimadas destruiriam em parte o seu lugar de refúgio; por outro, as que se
encontravam do lado colonial seriam obrigadas a sair da área protegida pelos
quartéis, tornando-se um alvo fácil para o exército do Partido Africano para a
Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), que os podia obrigar a entrar
no mato. Assim, as populações refugiadas nas tabancas aquarteladas situadas
nas margens de rios (Bedanda, Cabedú, Cadique) dedicaram-se ao cultivo de arroz
de bolanha salgada, enquanto que nas tabancas do interior (Iemberém e Guiledge)
as populações foram alimentadas pelo exército português. Nas zonas
libertadas, a produção de excedentes de arroz foi mantida e estimulada com o
objectivo de assegurar a alimentação dos soldados. Porém, os raides dos aviões
e os constantes bombardeamentos dificultavam a execução das operações culturais
e destruíram parte das infra-estruturas das bolanhas salgadas. De 1963 a 1973
observa-se assim uma redução da área ocupada por bolanha salgada e um
incremento na área de mangais (Cassamá 2006:83).
Comparando os mapas elaborados por Cassamá (2006) para os anos de 1953 e 1973,
podemos comprovar que durante a guerra ocorreu uma grande recuperação do
coberto florestal (figura 4), induzida sobretudo pela redução substancial da
área sujeita a corte e queima,
[5]
mas também em parte pela regeneração da vegetação natural dos pomares de
coleiras que deixaram de ser desbastados regularmente. Este adensamento da
vegetação lenhosa ocorreu essencialmente na área correspondente ao regulado de
Guiledge, onde o sistema de produção utilizado até hoje é o de sequeiro.
Figura_4 – Mapas do coberto vegetal de Cubucaré obtidos do mapa de referência
(1953) e das imagens de satélite MSS (1973), TM (1986, 1994) e ETM+ (2000,
2003). (Fonte: Cassamá 2006)
Após a independência, em 1974, o governo adoptou uma política de centralização
da economia, traduzida, entre outros aspectos, na fixação dos preços das
produções consideradas estratégicas (arroz, amendoim e coconote) e na
obrigatoriedade de troca directa dos excedentes por bens importados nos
armazéns estatais (Armazéns do Povo). A política de fixação do preço do arroz
(a liberalização total do seu preço só aconteceu em 1989), o limitado montante
do crédito concedido para a reabilitação das bolanhas salgadas destruídas
durante a guerra e a perda progressiva da capacidade de mobilização da mão-de-
obra familiar e de entreajuda
[6]
dos chefes dos agregados domésticos após a guerra constituíram desincentivos
para a recuperação dos níveis de produção de arroz anteriores a 1963 e
reorientaram progressivamente os sistemas de produção para a expansão da área
de pomares. Ao contrário dos produtores balantas, muitos produtores das
restantes etnias que antes da guerra possuíam bolanhas salgadas foram incapazes
de as recuperar, sendo obrigados a optar pela produção de arroz em sequeiro,
menos exigente em mão-de-obra em termos de tempo de trabalho e de
especialização. No entanto, dado o seu reduzido número, a área por estes
desflorestada não se considera significativa.
Terminada a guerra, a produção de cola, banana e, em menor escala, citrinos foi
utilizada pelos produtores não balantas como estratégia para adquirir um
rendimento monetário necessário à compra de bens essenciais e em alguns casos
garantir mesmo a auto-suficiência em arroz, através da troca directa por este
cereal com produtores balantas. O desinvestimento na produção de arroz de
sequeiro e a progressiva orientação para a fruticultura, em que parte da
vegetação natural é mantida nos pomares, explica em grande medida a continuada
redução, até 1986, da área correspondente à classe de coberto de savana arbórea
e o incremento da de floresta, especialmente visível em toda a zona nordeste da
península (figura_4). Nesta fase, a desflorestação para a instalação de novos
pomares é mínima, visto que o investimento é essencialmente feito nos pomares
já existentes no tempo colonial.
Até meados da década de 1980, o escoamento de laranjas e bananas encontrava-se
nas mãos de comerciantes ambulantes senegaleses que, de forma irregular e
altamente desvantajosa para os produtores, se deslocavam a Cubucaré. Por seu
turno, o escoamento da cola era assegurado por homens de etnia fula vindos da
região Leste (Bafatá e Gabú), que migravam para Cubucaré durante a estação seca
à procura de trabalho. Colaboravam na desmatação dos pomares e na
desflorestação para cultivo de arroz de sequeiro contra um pagamento em cola,
que depois vendiam na sua região com grande lucro, após o que compravam bens
essenciais que de novo vinham trocar por cola em Cubucaré. Foi este o contexto
em que seria criada a primeira associação de fruticultores ' em 1984 ' com o
objectivo de fomentar a fruticultura, escoar os excedentes de produção e
abastecer a região em bens de consumo corrente e que, devido aos apoios
internacionais que obteve, deu um impulso extraordinário à expansão da
fruticultura na região, reforçado com a liberalização da economia. Após 1985,
assiste-se assim a uma vaga de desbaste da floresta aberta para instalação de
pomares, mais evidente na zona nordeste da península (figura_4, mapas de 1986 e
1994).
O Programa de Ajustamento Estrutural (1986) teve como consequência, segundo
alguns autores, um aumento quase imediato da produção de arroz e de caju (Lea
et al. 1990:xi), motivado pela subida dos preços no produtor. Porém, o volume
das importações de arroz sobe igualmente de forma notória, em parte devido ao
regime de troca obrigatória por caju, cuja cotação subiu em meados da década de
1980 (Dias 1990:10). Paralelamente, os circuitos de comercialização continuam
deficientes e os excedentes de arroz produzidos no Sul do país não são escoados
(Fonseca 1988:15; Imbali 1992:21). Pesem embora estes factos, comparando os
mapas de 1986 e 1994 da figura_4 constata-se que a liberalização dos preços do
arroz se vai traduzir num aumento das áreas ocupadas por bolanha salgada nas
margens do rio Cumbidjã (ver também Cassamá 2006:83, figura 33).
A política de incentivo à produção de caju, a sua troca forçada por arroz e a
subida do preço da castanha no mercado internacional em meados da década de
1980 inícios da de 1990 deram origem a uma multiplicação dos cajueirais em todo
o país e à sua instalação frequente em solos aptos para outras culturas
(Fonseca 1990:17). Em Cubucaré, todavia, só a etnia balanta respondeu de
imediato, instalando pomares nas zonas de savana herbácea e arbustiva, em
especial na faixa costeira ao longo dos rios Cumbidjã e Balana. A maior
plantação de cajueiros existente em Cubucaré até hoje ' conhecida localmente
por Ponta do Vitório ou S. Francisco da Floresta ' foi instalada a partir
de 1985 numa concessão de 1200 hectares da Diocese de Bissau (Handem, cit. em
Frazão-Moreira 1999:456-457) e localiza-se no cruzamento da estrada Cabedú-
Guiledge com a de Bedanda. Pelo contrário, os pomares dos pequenos agricultores
raramente ultrapassam um hectare (Luís Catarino e Viriato Cassamá, comunicação
pessoal 2006).
Entre os muçulmanos, o cultivo de caju esteve proibido por razões religiosas
[7]
até meados dos anos 90, altura em que a insegurança fundiária gerada pelo
início da discussão sobre a nova lei da terra e por um projecto de criação de
um parque natural desencadearam um processo de apropriação fundiária em zonas
de floresta aberta, como adiante se verá. Com efeito, os cajueiros são um
marcador ideal de ocupação do solo, em virtude da sua fácil propagação, do seu
rápido crescimento e rusticidade e da sua resistência ao fogo. Porém, só em
casos raros os agricultores procederam a uma subsequente desflorestação total,
necessária à instalação do pomar, realizando unicamente um desbaste da
vegetação natural num círculo de cerca de meio metro em torno dos pés de caju.
Os pomares de caju instalados em floresta surgem ironicamente na aldeia de
Iemberém, onde as ONG que trabalham na região possuem a sua sede local.
O desenvolvimento da fruticultura, com destaque para a banana, está também
relacionado com uma redução das áreas desflorestadas para a produção de arroz
de sequeiro. Face ao absentismo crescente dos jovens, os produtores mais idosos
encaram a fruticultura como um seguro de velhice, porque, nas palavras de um
deles, mesmo que os filhos se vão todos embora, nós podemos continuar a comer
com o seu rendimento. Nos pomares tradicionais as árvores de grande porte
consideradas úteis são preservadas e a densidade de plantação, conjuntamente
com a consociação de espécies de portes diferentes, produzem um ecossistema
favorável à manutenção da fertilidade do solo e à redução do ataque de pragas e
doenças. Paralelamente, na instalação de pomares de espécies perenes, as
bananeiras são usadas durante os primeiros anos para ensombrar as jovens
plantas ' evitando a rega ' e ainda porque a sua produção cobre as despesas da
desmatação bianual do pomar até as outras fruteiras entrarem em produção. Esta
estratégia produtiva e as técnicas a ela associadas deram origem, a partir de
finais da década de 1980, a fases alternadas de aumentos e diminuições
localizados no tempo e no espaço das classes de savana arborizada, floresta
aberta e floresta densa, mais visíveis na zona Nordeste da península, em
especial no regulado de Guiledge (ver Cassamá 2006:83 e figura 32). Os pomares
maduros dão origem a uma leitura espectral nas imagens Landsat, -
correspondente às classes de floresta densa ou aberta (Cassamá 2006:98),
dependendo da espécie predominante, da densidade de plantação usada e ainda da
preservação ou não de espécies arbóreas da vegetação natural.
A expansão da fruticultura, particularmente da produção de banana, está a
afastar cada vez mais os pomares das povoações, que hoje se encontram por vezes
a vários quilómetros de distância. Sergent (1991:20) registou já esta
tendência, afirmando que se os pomares em 1989 se encontravam a uma distância
compreendida entre quatrocentos metros e um quilómetro, em 1991 essa distância
era já de mais de dois quilómetros. Este afastamento torna cada vez mais
difícil a vigilância dos pomares, sendo enormes as perdas provocadas pelo
ataque de pragas (macacos e porcos selvagens), que no caso da banana chegam a
destruir completamente um pomar num único dia. Se alguns produtores optam pelo
abandono dos pomares de bananeiras mais distantes, a maioria vai aumentando
anualmente as áreas, instalando os pomares em zonas de forte concentração de
produtores. Esta estratégia é justificada pela menor proporção do prejuízo em
relação à produção total. Existe assim um conflito entre a protecção da fauna
selvagem e a protecção das florestas, na medida em que a ausência de um
controlo sobre as populações de certas pragas obriga a um aumento das áreas
desflorestadas para a instalação de pomares. Porém, nenhuma intervenção externa
teve em conta este facto.
A partir de 1992, uma ONG local fomentou a introdução de pomares de mangueiras
melhoradas, com base na existência de um suposto mercado europeu, no âmbito do
projecto mencionado de protecção das florestas e criação de um parque natural.
Para ter acesso a crédito, material vegetal melhorado e utensílios de trabalho,
os produtores beneficiários deveriam proceder à -desflorestação integral do
campo, plantar em linhas com um compasso mais alargado do que o usado
tradicionalmente ' estando ainda interdita a consociação com outras espécies de
fruteiras ', regar nos primeiros anos e consociar as mangueiras com amendoim,
feijão e mandioca (AD 1995:2). As técnicas de instalação do pomar preconizadas
pelos agentes externos entravam assim em contradição com as técnicas agro-
florestais tradicionais, as quais numa perspectiva agroecológica parecem estar
mais adaptadas às condições locais e à necessidade global de manter estável, ou
mesmo de incrementar, o potencial de sequestro de carbono.
Da análise da distribuição do povoamento (figura_3) ressalta que as aldeias
mais populosas (Caboxanque, Bedanda, Cafine, Cabedú, Darsalam, N'cala), todas
localizadas nas margens do rio Cumbidjã, são também aquelas onde a produção de
arroz em solos de mangal é mais elevada e a etnia balanta é dominante. É também
a zona onde, desde os anos 20 do século passado, ocorreu um maior crescimento
populacional devido à imigração. Pelo contrário, as margens do rio Cacine, onde
os solos são menos propícios ao cultivo do arroz de bolanha salgada, encontram-
se fracamente povoadas e é nelas que se situam as principais manchas de
floresta densa sub-húmida. No mapa de 1953 observa-se uma grande extensão de
área coberta por savana arborizada nas margens do rio Cumbidjã, relativamente à
área observada por imagem de satélite em anos subsequentes (figura_4).
Informações recolhidas localmente, junto de interlocutores com mais de 70 anos,
confirmam a existência desde tempos longínquos (anteriores à ocupação colonial
administrativa da península e ao aumento da densidade populacional devido à
imigração) duma vasta zona de savana herbácea (lala de palha) e arbóreo-
arbustiva (lala de mato). Esta ter-se-ia vindo a reduzir (o mato comeu a
lala), face, segundo os agricultores, a transformações da bacia hidrográfica
(à medida que a água entrou, o mato avançou) e a possíveis mudanças na
ecologia da vegetação induzidas pelo cultivo do amendoim durante a época
colonial por imigrantes sazonais manjacos. Cumulativamente, esta é também a
zona onde se localiza actualmente a grande maioria dos pomares de caju, o que
tem vindo a contribuir recentemente para um adensamento da vegetação lenhosa na
zona de savana herbácea e arbórea-arbustiva.
Os factos enumerados convergem para duas conclusões: por um lado, o sistema de
produção adoptado e as oportunidades de mercado, mais do que o crescimento da
população, têm vindo a determinar a pressão sobre os recursos florestais; por
outro, a agricultura itinerante não é, desde o início da guerra anti-colonial,
uma causa importante de desflorestação.
NOVAS DINÂMICAS DE APROPRIAÇÃO DA NATUREZA: UM PATRIMÓNIO PARA QUEM?
A compreensão do declínio da capacidade reguladora do sistema local de - gestão
dos recursos naturais só se torna possível através da adopção de uma abordagem
histórica que torne visível a sequência de factores que actuaram neste sentido.
A conversão à religião islâmica conduziu a um progressivo abandono das práticas
animistas, muitas delas rodeadas agora de grande sigilo, determinando o
início da destruição da crença no sistema de mitos e tabus que mantinham a
autoridade dos donos do chão na regulação do acesso aos recursos naturais nos
regulados de Cadique e de Cabedú (ver Temudo 1998, vol. I:451-463). Mais do que
um conflito religioso, trata-se de um conflito político pela hegemonia do
território e o controlo dos seus recursos.
A religião tem vindo a servir às etnias mais islamizadas como uma arma política
para reduzir a hegemonia nalu sobre o território, hegemonia essa que, como
atrás referido, advém dos contratos estabelecidos com os iras donos do chão,
cujos laços devem ser renovados de acordo com um calendário ritual e seguindo
determinadas práticas, uma das quais completamente interdita pela religião
muçulmana (libações com bebidas alcoólicas). O islamismo deu origem ainda a uma
procura de bem-estar e de riqueza material e a um maior individualismo,
contrário ao espírito de gestão comunitária e sustentada dos recursos naturais
da etnia nalu.
A partir de 1963, a luta armada veio introduzir um vector de mudança de
importância determinante no sistema local de gestão dos recursos naturais. Com
efeito, as florestas mais densas, às quais o acesso era até aí limitado, foram
o refúgio da população que se encontrava do lado do PAIGC. Por esse motivo,
foram realizadas determinadas cerimónias, de forma a levantar as sanções
rituais que impediam o acesso livre às zonas-tampão.
Após a independência, a terra foi nacionalizada e o poder das autoridades
tradicionais desautorizado. Em sua substituição são nomeados representantes do
Estado. Porém, o sistema estatal de guardas florestais é totalmente ineficaz,
dado o reduzido número de guardas, a falta de meios de transporte e o baixo
salário, que os torna facilmente subornáveis. O facto de a terra passar a ser
considerada propriedade do Estado reforça os efeitos da islamização crescente
sobre o sistema de gestão nalu, impedindo os donos do chão de executar os
rituais que interditavam o acesso livre aos recursos naturais dos matos
malgosse e zonas-tampão, dado que poderiam ser acusados de feitiçaria. Muito
embora o sistema de mitos e tabus tenha continuado a funcionar de forma
relativamente eficaz até à década de 1990, a independência veio assim criar
espaço para o início de um conflito intra e inter-étnico e institucional
(instituições locais versus externas).
Em 1994, as primeiras eleições multipartidárias trouxeram uma nova palavra de
ordem ' democracia ', utilizada pelas restantes etnias para contestar a
hegemonia nalu na gestão dos recursos naturais. Se na aparência é mantido um
respeito pelos nalus como donos do chão, desenvolve-se gradualmente um
conflito inter-étnico de baixa intensidade que tenta transformar um sistema de
acesso regulado a áreas de usufruto comum num sistema de acesso aberto. Em
paralelo, a crescente integração no mercado veio também reforçar o conflito
intergeracional, mais do que o próprio conflito inter-étnico. Se os mais velhos
subordinavam as estratégias imediatas às estratégias de longo prazo ' que
asseguravam a reprodução económica, social e cultural do grupo ', os jovens
reduzem o futuro ao momento presente e à sua própria pessoa, desafiando todos
os mitos e tabus na procura de uma riqueza imediata.
Para os nalus, a floresta é percebida na sua dimensão sagrada, mas também como
um reservatório de recursos naturais. Por este motivo, a sua percepção da
diminuição progressiva das áreas-tampão, que rodeiam os locais de culto dos
iras donos do chão, tem motivado, por um lado, uma redução da dimensão das
parcelas de cultivo atribuídas aos novos habitantes e, por outro, um controlo
mais rígido das transmissões para fora dos agregados domésticos a quem grandes
parcelas de terra tinham sido distribuídas. Se, anteriormente, qualquer
agregado que abandonasse a região podia oferecer o seu fundiário, bastando para
tal informar os donos do chão, agora estes decidem pela sua divisão por forma
a beneficiar um maior número de requerentes. Esta percepção da necessidade de
proteger os recursos naturais ainda existentes é sentida com maior intensidade
pela geração mais velha ' com mais de 50 anos ', aquela cuja islamização foi
menos profunda e cujos valores ainda não estão tão marcados por novas
necessidades de consumo.
Em meados da década de 1990, a insegurança fundiária criada pelo anúncio da
elaboração de uma nova lei da terra
[8]
' da qual os agricultores ouvem falar através dos parentes que vivem na cidade
' desencadeou diversas estratégias: divisão das reservas fundiárias das
povoações; divisão nominal, por herança antecipada, dos terrenos de cada
agregado doméstico pelos filhos do sexo masculino; plantação de cajueiros em
terrenos em pousio prolongado; registo dos pomares adquiridos por compra pelos
jovens. Após a liberalização económica, houve uma corrida da elite política e
económica ao registo de grandes concessões de terreno ' por forma a garantirem
o acesso às linhas de crédito recentemente abertas ', dando origem a numerosos
conflitos com os pequenos agricultores em outras partes do país (Bruce, Moura e
Tanner 1992; Tanner 1991). O início da discussão da lei da terra vem assim
criar, entre os agricultores de Cubucaré, o medo de que as suas reservas de
fundiário e terrenos em pousio possam vir a ser apropriados pelo Estado.
De todos os factores que na década de noventa tiveram um impacte negativo no
sistema tradicional de gestão de recursos naturais, foi precisamente um
projecto implementado por três ONG locais o que desencadeou mais conflitos e
estratégias de segurança fundiária (Temudo 2005). O seu objectivo era a
salvaguarda da Mata de Cantanhez com a plena participação das organizações de
base e dos agricultores (AD 1993:2). Repare-se que, tanto neste como em outros
documentos (e.g. Schwarz 1995:20, 22; AD 1992:10; AD et al. 1992:4), não se faz
referência aos donos do chão ' cujo sistema de gestão dos recursos naturais
preservou as florestas até hoje ', e que se nomeia em primeiro lugar as
associações e agrupamentos, instituições introduzidas pelos agentes externos,
de representatividade muito limitada face ao conjunto das sociedades e cuja
relação das direcções com os restantes membros é em muitos casos conflituosa,
dada a falta de transparência na gestão (Temudo 1998, vol. II:95-110).
A estratégia de acção do projecto considera conciliáveis medidas de repressão
(legislativas e administrativas), a implementar de imediato, e a participação
das populações em todas as etapas do processo, conseguida através de soluções
a encontrar a médio/longo prazo (AD et al. 1992:28). Pretende-se reabilitar,
rever e reactualizar os diplomas legislativos elaborados nos anos 50, que
definem a Mata de Cantanhez como uma reserva integral (AD et al. 1992:29).
No documento do projecto é afirmado que o cultivo de arroz em sequeiro ' cujo
ritmo de itinerância se diz ter vindo a aumentar ' e a fruticultura constituem
mecanismos de desequilíbrio ecológico (AD et al. 1992:20), omitindo que foi
precisamente a fruticultura que deu origem a uma redução da área anual dedicada
a corte e queima e que contribuiu mesmo para um aumento significativo do
coberto vegetal lenhoso. Por outro lado, é sobrevalorizada a hipótese de
substituição do cultivo de arroz de sequeiro pelo de bolanha doce (AD et al.
1992:30), técnica que os agricultores só usam em anos de crise alimentar pelas
suas desvantagens comparativas (ver Temudo 1998, vol. I:148, 149).
As ONG tentam contrariar uma estratégia de ocupação do espaço que responde a um
problema de incerteza face às condições aleatórias do clima, às condições
actuais de acesso à mão-de-obra, às grandes perdas anteriores e posteriores à
colheita, ao funcionamento do mercado, ao crescimento demográfico e à futura
aplicação de uma nova lei da terra, sem no entanto apresentarem alternativas
viáveis do ponto de vista económico. Pelo contrário, o projecto investiu
essencialmente em acções conducentes a um melhor conhecimento da biodiversidade
do meio, ao ordenamento do território e consequente demarcação dos maciços
florestais e em acções de informação e sensibilização da opinião pública '
seminários, encontros, brochuras, exposições fotográficas, concursos escolares,
produção de filmes e visitas de estudo ', destinadas essencialmente à população
urbana e a promover a imagem das ONG junto dos financiadores (Temudo 1998, vol.
II:110-120).
As manchas florestais delimitadas pelo projecto excedem as áreas dos antigos
matos malgosse e zonas-tampão, criando um profundo mal-estar entre a
população (Temudo 2005), que vê reduzido o seu acesso aos recursos e as
compensações prometidas/esperadas circunscritas a um número restrito de
produtores. Um dos pontos fortes da contestação residia no argumento de que, se
as florestas existiam no momento da elaboração do projecto, seria porque a
própria população as tinha conservado, como ilustram as seguintes declarações
de alguns entrevistados: Desde os nossos pais que há matos que a população
nunca desmatou; Nós não precisamos que nenhum projecto nos venha dizer para
guardarmos o mato. Se eles quando chegaram viram os matos aqui, foi porque nós
os guardámos desde o tempo dos nossos avós. A manutenção, até 2003, dos
limites dos grandes maciços de floresta densa sub-húmida (que correspondem às
florestas sagradas e zonas-tampão) foi, com efeito, comprovada por Cassamá
(2006) com recurso a fotografia aérea, a imagens de satélite e a observação
directa no terreno. De salientar ainda que os maciços florestais delimitados na
área do futuro Parque Nacional das Matas de Cantanhez se localizam na
totalidade fora do regulado fula de Guiledge (ver Cassamá 2006:18), único
regulado de Cubucaré onde não é aplicado o sistema tradicional nalu de gestão
dos recursos naturais.
A nomeação de guardas de várias etnias veio agravar os conflitos interétnicos e
dar origem a uma tensão no seio da própria etnia nalu, dado que nem os guardas
desta etnia foram nomeados pelos donos do chão. A oferta de uma bicicleta, a
promessa de possíveis remunerações pagas por hipotéticos turistas e a esperança
de, no futuro, conseguirem exigir do projecto o pagamento de um salário ' a sua
principal reivindicação nas reuniões de negociação ' explicam a aceitação do
cargo.
A livre entrada nos matos, outrora considerados malgosse, dos técnicos do
projecto e de investigadores, financiadores e avaliadores ' os brancos ', em
simples visitas ou em missões de estudo para as quais não é pedida autorização
aos donos do chão, vem criar a ideia nas restantes etnias de que os nalus
venderam os matos aos brancos. Paralelamente, os nalus não compreendem qual a
razão da escolha das suas florestas pelo projecto ' havendo outras na Guiné-
Bissau ', suspeitando que se trataria de uma tentativa para lhes roubar os
iras. Agentes externos e financiadores são acusados de, através do projecto,
tentarem estabelecer contratos com os iras para os levarem consigo. Esta
percepção está enraizada na crença local de que os iras são a fonte de todo o
poder, riqueza e sabedoria para aqueles que estabelecem contratos preferenciais
com eles. Nesta medida, o projecto foi um factor decisivo no processo de
destruição do conjunto de mitos e tabus que sustentam o sistema local de gestão
dos recursos naturais ' sem os iras que os guardam, o acesso aos recursos dos
matos passa a ser livre (Temudo 2005). A revolta da população contra o projecto
desencadeou ainda um movimento de desflorestação ao longo das estradas no
regulado de Cadique (onde a sede das ONG se situava) e um reforço das
estratégias de segurança fundiária utilizadas face às possíveis consequências
da futura lei da terra. O projecto acabaria, no entanto, por ter fim em 1997,
devido a desentendimentos entre as próprias ONG.
Em 1998, a representação permanente da União Internacional para a Conservação
da Natureza (UICN) na Guiné-Bissau desenvolveu esforços para dar continuidade
ao projecto anterior (UICN 2000:1). Porém, a guerra civil de 1998/99
interrompeu este processo e contribuiu para novos desenvolvimentos na relação
da população de Cubucaré com a floresta. O facto de se -tratar de uma guerra
marcadamente urbana provocou um movimento de mais de 200 mil deslocados para as
zonas rurais, que aí se refugiaram durante os onze meses que ela durou. Em
Cubucaré, um grande número de agregados domésticos recebeu deslocados de guerra
(Temudo e Schiefer 2003:405). A maioria dos deslocados não participou nos
trabalhos agrícolas em 1998, mas em 1999, já após o fim da guerra, alguns
solicitaram campos de cultivo cujos rendimentos levaram consigo para recomeçar
a vida em Bissau. O seu número foi porém reduzido, podendo-se afirmar que o
impacte sobre a área sujeita a corte e queima foi quase nulo. Por seu lado, os
produtores locais também não foram capazes de aumentar os campos de sequeiro
por falta de sementes, seja porque uma parte fora consumida pelos deslocados,
seja porque a colheita de 1998 fora reduzida devido a uma irregular
distribuição das chuvas. As estratégias produtivas a que os agricultores
recorreram consistiram, durante a estação seca de 1998, no aumento da produção
de raízes e tubérculos (mandioca, batata doce, inhame e falso inhame) e,
durante a estação das chuvas de 1999, no incremento da produção de cereais mais
resistentes à seca (sorgo, milheto e fónio) e no recurso à técnica de
sementeira directa de arroz nas bolanhas salgadas, por forma a rentabilizar a
quantidade de sementes possuída. A recepção dos deslocados durante a guerra não
teve, como tal, um efeito negativo em termos de desflorestação de novas áreas.
As florestas voltam a ser relembradas como lugares de refúgio e como lugares
sagrados, morada de iras, e estes são de novo convocados para proteger o
território, através da execução de cerimónias destinadas a fechar o chão em
relação à guerra. Com o fim do conflito, a vitória eleitoral de um partido
maioritariamente balanta veio introduzir uma alteração na relação de forças e
uma crescente perda de autoridade dos donos do chão ' fragilizada já pelo
projecto acima referido ', com consequências gravosas em termos da gestão dos
recursos naturais. Por este motivo, quando os técnicos da UICN abordaram os
régulos nalus para os auscultar acerca da implementação de um novo projecto
para a conservação das florestas de Cantanhez,
[9]
a iniciativa foi bem recebida: num contexto em que o Estado era percebido como
tomando o partido dos infractores, as ONG mandatárias de um poder que vinha
mais de cima ' a Terra de Branco ' surgiam como o último recurso. Em 2002,
sob proposta da UICN, assistiu-se a novas mobilizações para a reeleição de
comités de gestão e de guardas dos matos. Foram então seguidas as já
conhecidas recomendações e expectativas dos agentes externos ' nomeando guardas
de diferentes etnias ', numa tentativa de voltar a atrair projectos para a
região, dado que a estrada que os une a Bissau necessitava de reparação
urgente. Porém, desta vez, os jovens, considerando que os régulos se deixam
comprar pelos agentes externos, aceitando decisões que os prejudicam
directamente e à região (em troca de benefícios pessoais), decidem criar a
União dos Comités de Co-Gestão dos 15 Matos Reservados de Cantanhez: se os
brancos e as ONG locais consideram que as suas florestas têm valor, então
terão de os compensar devidamente para que elas sejam preservadas. Qual será o
valor que o seu património sagrado alcançará como património mundial no
mercado da ajuda ao desenvolvimento? Por fim, o liberalismo triunfa e as
florestas parecem estar a libertar-se do seu valor simbólico para se tornarem
uma mercadoria no eco-mercado mundial.
CONCLUSÕES: PATRIMONIALIZAR A NATUREZA, PRODUZIR A CRISE AMBIENTAL
O conhecimento do impacte de factores como o crescimento da população,
diferentes regimes de posse e uso da terra e de gestão dos recursos naturais,
diferentes sistemas de sustento e políticas económicas, e ainda alterações
climáticas sobre mudanças no uso dos recursos naturais e na biodiversidade é
ainda muito reduzido, tornando necessária a aplicação de abordagens inovadoras.
Nesta medida, os crescentes estudos que têm vindo a aliar técnicas etnográficas
e/ou sociológicas e de detecção remota (e. g. Amanor e Pabi 2007; Evans e Moran
2002; Sussman, Green e Sussman 1996; Guyer e Lambin 1993) permitiram uma
análise mais holística e descodificar conexões inesperadas entre as variáveis
consideradas.
Na região de Cubucaré, o sistema de gestão nalu dos recursos naturais emerge
como a principal variável explicativa da preservação até hoje dos grandes
maciços de floresta densa sub-húmida dos regulados de Cadique e de Cabedú.
Considerando que os matos sagrados existentes na época pré-colonial coincidem,
de acordo com a tradição oral, com os encontrados actualmente, podemos com
alguma segurança afirmar que as maiores manchas florestais se concentravam na
faixa costeira ao longo das margens do rio Cacine. A estabilidade nos limites
destes matos, observada por Cassamá (2006), faz-nos -pensar que a baixa
densidade populacional da zona terá também influído na sua preservação, dado
que os matos situados na zona mais interior da península ' sujeitos a uma maior
pressão antrópica em virtude do maior número de habitantes e do sistema de
produção praticado ' têm sofrido progressivas reduções das zonas-tampão. A zona
de maior pressão demográfica ' faixa costeira ao longo das margens dos rios
Cumbidjã e Balana ' é também aquela em que o sistema de produção assenta
exclusivamente na utilização do mangal (bolanha salgada) e das savanas (pomares
de caju). A inexistência de manchas florestais densas no regulado de Guiledge,
observada já no mapa de 1953, deve-se, de acordo com os mais velhos nalus, à
sua destruição pela etnia fula. Os fulas, sem qualquer relação sagrada com a
floresta, praticando um sistema de produção itinerante de corte e queima e
utilizando os fogos descontrolados na agricultura e na caça, terão
progressivamente aumentado a área ocupada por savana nesta região.
As sucessivas expansões e retracções do mercado corresponderam a mudanças
vincadas no coberto vegetal de Cubucaré. Associada ao período mais intenso de
retracção do mercado, a guerra anticolonial constituiu a época em que ocorreu
uma menor pressão antrópica sobre as florestas e um correspondente incremento
da pressão sobre os mangais em certas zonas da península. O mercado iria de
novo desempenhar um papel preponderante após a independência, ao provocar a
reorientação de um sistema de produção centrado no arroz (destinado a
autoconsumo e venda) para um outro que assenta numa crescente produção de
fruteiras para venda e na compra do cereal importado. A mão-de-obra jovem vai-
se progressivamente desviando da produção agrícola para as actividades
comerciais e a maior densidade demográfica (resultante do crescimento
populacional e da imigração) não correspondeu a uma proporcional pressão sobre
as florestas. Em síntese, contrariando a narrativa neo-malthusiana da
degradação ambiental, o crescimento demográfico ocorrido nas últimas cinco
décadas não deu origem a uma redução da área coberta por floresta e a um
processo de savanização crescente, nem contribuiu para uma estagnação/
diminuição da produção agrícola.
Este estudo de caso ilustra também a flexibilidade e a adaptabilidade das leis
consuetudinárias nalus que regulam a gestão dos recursos naturais ' leis essas
que assentam num princípio de equidade social, que garante a todos os
habitantes o direito de prover à sua subsistência, e na interdição da venda da
terra ', mas também a sua fragilidade num condicionalismo de crescente
islamização, individualismo e desautorização externa. A sacralidade da
natureza, que permitiu a preservação dos grandes maciços de floresta densa sub-
húmida até aos nossos dias, foi irreversivelmente ferida pelas intervenções de
desenvolvimento (lei da terra e projecto de criação de um parque natural), que
curiosamente tinham por objectivo defendê-los contra a suposta acção predatória
das populações locais.
O projecto de criação do parque natural de Cantanhez surge assente na
construção de um falso problema, existente numa falsa região.
[10]
Como vimos, até ao início do projecto, os grandes maciços florestais tinham
sido preser-vados e a maior pressão exercida por uma população crescente sobre
os recursos naturais deu origem a alterações nas regras de atribuição de
fundiário e a uma extraordinária inovação nos sistemas de produção (na qual
também influíram alterações nas relações sociais e nas políticas económicas). A
insegurança gerada pela ameaça que representava a lei da terra iria
reflectir-se numa estratégia de ocupação permanente (com fruteiras lenhosas)
das - reservas de fundiário de cada agregado doméstico, sem atingir os grandes
maciços florestais. Malaise (1996:72) ' um reputado botânico belga que tem
vindo a colaborar com as ONG guineenses que intervêm na região em estudo, -
através da realização de numerosos estudos ', citando o Plano Director Nacional
Florestal de 1992, afirma ter ocorrido uma diminuição da área ocupada pelas
florestas densas sub-húmidas (correspondentes às florestas sagradas e zonas-
tampão) de -Cubucaré de 177.500 hectares em 1978, para 135.431 hectares em
1985. É curioso notar que é exactamente até meados dos anos 80 que o coberto
florestal de Cubucaré apresenta um crescimento continuado ' dado que só a
partir dessa época se inicia o processo de desflorestação para a instalação de
novos pomares ', e que o investigador não questiona a validade destes dados com
base na sua extensa pesquisa de campo, o que demonstra como o sistema de
valores se sobrepôs à análise empírica.
Mas a própria delimitação da região (e concomitantemente do problema que a
acção de desenvolvimento tenta resolver) assenta num erro. As famosas matas de
Cantanhez, sobre as quais se interessou a administração colonial e que o
projecto pretende proteger, estão situadas em que território? O território de
Cantanhez é uma construção colonial (ver Frazão-Moreira 1999:46), que
corresponde ao actual regulado de Cadique. É precisamente neste território que
existem ainda hoje as maiores florestas densas sub-húmidas, cujos limites foram
preservados através do sistema nalu de gestão dos recursos naturais. Ao fazer
coincidir os limites de Cantanhez com os de toda a península de Cubucaré, o
projecto construiu artificialmente o problema da destruição dos matos em
zonas onde eles talvez nunca tivessem existido ou onde a sua destruição ocorreu
bem no início da ocupação colonial (caso do regulado de Guiledge).
Se a Convenção do Rio (1992) coloca a manutenção da biodiversidade no centro
das preocupações mundiais, o protocolo de Quioto (1997) recoloca o problema, já
que as alterações climáticas nos obrigam a enquadrar a questão da
biodiversidade numa perspectiva ecológica mais abrangente. Nesta medida, a
gestão dos recursos naturais pelas populações de Cubucaré parece consentânea
com as preocupações actuais, pela dupla intervenção na protecção dos grandes
maciços florestais e pela activa e continuada substituição de um sistema de
produção consumidor de floresta por um outro mais diversificado e que se baseia
na plantação de árvores fruteiras. Desta forma, a estratégia local consegue
também aliar com sucesso o desenvolvimento económico e a conservação do meio
ambiente.
Os conflitos entre diferentes actores locais e entre estes e actores externos
que tentam introduzir novas práticas de conservação dos recursos naturais
emergem, na maioria dos casos, de diferenças em termos de conhecimentos,
práticas, percepções e representações sobre a natureza (e.g.
Temudo 2005). Frequentemente, as populações locais têm sido consideradas
responsáveis pela degradação ambiental, do que resulta a adopção de abordagens
conservacionistas biocêntricas. Pelo contrário, as abordagens assentes no
princípio do desenvolvimento comunitário e a ideia de que o desenvolvimento -
económico nem sempre é adverso à conservação da natureza têm também sido
criticadas pela sua falta de eficiência (e.g. Oates 1999). O caso aqui em
estudo é um bom exemplo de como as abordagens de desenvolvimento comunitário
têm promovido uma ideia corporativa e homogénea de comunidade,
subalternizando as constelações de poder e os conflitos que estas encerram. Ao
deslocar o centro de poder da instituição tradicional gerontocrática e
monoétnica dos donos do chão para as organizações, criadas exogenamente de
cima para baixo, dos guardas de matos e comités de gestão interétnicos e
consti-tuídos maioritariamente por jovens, a intervenção externa não conduz a
uma melhor e mais democrática gestão dos recursos naturais, mas à transformação
de um sistema equitativo de acesso aos recursos e de gestão sustentável num
sistema que vai abrir as portas à pilhagem dos recursos ' a tragédia dos
comuns, para relembrar Hardin (1968).
Em síntese, torna-se necessário olharmos para além do território e da escassez
de recursos, por forma a identificarmos a construção social, cultural e
política dos territórios através da qual a competição pelos recursos ocorre e
os sistemas de sustento operam (Gausset e Whyte 2005:8), e compreendermos
adequadamente os múltiplos factores sociais e biofísicos que determinam as
interacções entre população, agricultura e ambiente.