O preço da sombra: sobrevivência e reprodução social entre familias de Maputo
Ana Bénard da Costa
O preço da sombra: sobrevivência e reprodução social entre familias de Maputo
Lisboa, Livros Horizonte, 2007, 83 páginas.
A história recente de Moçambique, com destaque para a guerra que opôs a Renamo
e a Frelimo e as políticas modernizantes subsequentes, provocou uma intensa
deslocação das populações, principalmente as que residiam nos meios rurais, em
direcção à capital, Maputo. Com o fim da guerra civil, e ao contrário do que se
previa, esse êxodo rural não só não se inverteu como não diminuiu. É nos
bairros suburbanos da cidade de cimento que vive hoje em dia a maioria da
população da capital, numa periferia que continua a expandir-se e a crescer
também em densidade populacional.
Partindo do pressuposto de que esta situação representou uma desestabilização e
transformação para as famílias e os modelos de organização social e económica
dos diferentes grupos, a autora propôs-se analisar as estratégias de
sobrevivência e reprodução social desenvolvidas pelas famílias deslocadas de
guerra que residem nos bairros de caniço da capital e que são
maioritariamente originárias das regiões rurais do Sul do país. A recolha dos
dados empíricos foi realizada em três bairros da periferia de Maputo, Mafalala,
Polana Caniço e Hulene B, numa primeira fase, em 1999 e 2001, para a realização
da tese de doutoramento em Estudos Africanos Interdisciplinares em Ciências
Sociais, e, mais tarde, em 2004 e 2005, no âmbito da sua investigação de pós-
doutoramento.
Assim, Ana Bénard da Costa argumenta que as estratégias de sobrevivência destas
famílias passam pela dispersão económica e geográfica dos seus membros, ou
seja, a mobilidade territorial, tanto dos meios rurais para os urbanos como
dentro da própria cidade de Maputo e entre os vários bairros da sua periferia,
assume-se como parte fundamental das estratégias de sobrevivência e reprodução
social destas famílias. Note-se que, para a grande maioria dos indivíduos e
famílias, a vinda para a cidade não implicou uma ruptura com o espaço rural ou
com a família que aí continuou a residir, possibilitando por isso que a
circulação de pessoas entre o campo e a cidade seja constante e se processe de
diferentes formas ' seja a deslocação temporária das mulheres para trabalhar na
machamba, cujos produtos servem o consumo doméstico e a venda nos mercados
informais da capital, sejam as visitas regulares das crianças aos seus parentes
na terra de origem do pai, ou ainda a presença de jovens rapazes em casa de
familiares que residem em Maputo.
No que concerne às estratégias económicas de sobrevivência e reprodução social
destas famílias, a autora adverte que não é tarefa fácil aferi-las (p.123).
Devido ao crescimento do sector informal da economia da cidade e às condições
de inconstância e imprevisibilidade do contexto, as actividades dos diferentes
membros da família, homens e mulheres, dispersam-se pelos vários sectores,
formal e informal, em regime de pluriactividade e complementaridade.
Do mesmo modo, a coexistência de diferentes sistemas matrimoniais, relações
conjugais e de género, relacionadas com a multiplicidade de quadros de
referência, normas e modelos culturais em presença, permite o desenvolvimento
de estratégias de reprodução social adaptadas a um contexto social e económico
que exige uma grande flexibilidade e versatilidade de práticas. Assim, alguns
dos referentes mais importantes da identidade familiar entre os habitantes da
periferia de Maputo são o culto dos antepassados e as relações entre vivos e
mortos, a relação com a terra de origem e ainda a atribuição de nomes
próprios, símbolos de identificação familiar habilmente manipulados e adaptados
em função de interesses vários e das estratégias accionadas.
Segundo a antropóloga, existe uma articulação fundamental entre a dimensão
religiosa e o sistema de parentesco tsonga, cuja análise simultânea apresenta
como um dos meios privilegiados para compreender as estratégias de
sobrevivência e reprodução social das famílias, assim como os processos
identitários e simbólicos que estas implicam (p.61). Há que ter em conta que,
tanto em termos de práticas familiares como de práticas terapêuticas e adesão
às organizações religiosas, os vários referentes disponíveis não são mutuamente
exclusivos, mas articulados permanentemente. Por seu turno, as igrejas
funcionam como importantes redes de solidariedade, o que influi decisivamente
nas estratégias de sobrevivência das famílias. Elas dão um apoio muito concreto
aos membros das famílias, -sobretudo às mulheres, ajudando-as a educar as
crianças e jovens e a gerir os conflitos que surgem entre os diferentes membros
da família, sobretudo conjugais (ainda que possam também ser uma fonte de
conflitos, através de acusações de feitiçaria que recaem geralmente sobre os
parentes mais próximos ou mesmo das tentativas de conversão).
Uma vez que se trata da -adaptação da tese de doutoramento a livro, é com-
preensível a exclusão do capítulo de pro-blematização teórica fundamental à
disser-tação (defendida em 2003, no ISCTE). No entanto, talvez a estrutura do
texto pudesse ter sido revista. Ao desenvolver mais a contextualização da
problemática, eventualmente através da introdução das histórias de família mais
cedo no livro, a autora permitiria uma melhor compreensão das estratégias em
causa e, no fundo, da verosimilhança destas vivências, sem enfatizar tanto a
procura da coerência ou coesão das práticas, valores e formas de vida destas
pessoas. Há ainda que acentuar a relevância do trabalho para a discussão sobre
a forma como a mobilidade se inscreve nas práticas familiares contemporâneas,
mesmo que o envolvimento da autora com o contexto moçambicano, que não começa
nem acaba neste livro, possa extravasar este enfoque propriamente temático.
Assim, através da análise das histórias de família de algumas das pessoas que
vivem nestes bairros em expansão, O Preço da Sombra permite-nos não só
relacionar as mudanças que foram ocorrendo nestas famílias com o contexto de
onde elas são originárias e com o qual se relacionam frequentemente, como
também problematizar as dinâmicas de poder ' económicas, étnicas/raciais,
religiosas, de género, etc. ' que acontecem nos meandros das grandes cidades
africanas contemporâneas como Maputo.
Ana Luísa Micaelo
Doutoranda no ICS-UL, bolseira FCT