Os dois países de Benjamim Pereira: uma homenagem
Os dois países de Benjamim Pereira: uma homenagem[1]
João Leal
CRIA / FCSH-UNL
Benjamim Pereira viveu, pelo menos, em dois países. Um deles era um país
essencialmente rural. Era não só um país rural mas também um país diverso, de
múltiplas ruralidades, que Benjamim Pereira tentou captar e cartografar. Era,
finalmente, um país que foi retratado através de objectos, uns mais portáteis '
alfaias agrícolas, máscaras ', outros não tanto ' como é o caso das chamadas
construções primitivas ou dos lagares de azeite. Foi nesse país que Benjamim
Pereira habitou em grande parte do tempo que passou no Centro de Estudos de
Etnologia e no Museu de Etnologia, e esse é um país para cujo conhecimento
Benjamim Pereira deu uma contribuição muitíssimo relevante, cujos méritos seria
fastidioso enumerar.
Mas Benjamim Pereira viveu ' e felizmente vive ainda ' noutro país. Um país que
já não é rural sem que dele se possa dizer que é inteiramente urbano. Um país
cuja diversidade é mais incerta e fracturante. Um país que se revê
hesitantemente ' ou que não se revê de todo ' nos objectos que Benjamim Pereira
coleccionou e estudou, um país do qual ainda não foram encontrados os objectos
representativos.
Foi neste segundo país que Benjamim Pereira viveu nas últimas décadas.
Participou nele de várias maneiras, das quais queria reter duas em particular.
A primeira: Benjamim Pereira acompanhou, estimulou e foi interlocutor activo de
muitas das novas pesquisas que foram dando conta deste segundo país,
desempenhando assim um papel único na passagem do testemunho geracional da
antropologia portuguesa clássica para a antropologia portuguesa contemporânea.
É a ele que devemos o privilégio de podermos sentir que nos inserimos numa
genealogia disciplinar que é motivo de orgulho. A segunda: Benjamim Pereira foi
ele próprio um investigador de aspectos importantes da reconversão pós-rural da
sociedade portuguesa, como mostra, por exemplo, o livro Rituais de Inverno com
Máscaras (2006), onde desafiou vários antropólogos mais jovens para com ele
colaborarem num empreendimento onde tradição e invenção da tradição, velhas e
novas máscaras vão a par. Mais recentemente, a sua pesquisa sobre o trajo à
vianesa (Botelho, Medeiros e Pereira 2009) insere-se na mesma linha de trabalho
de diálogo entre esses dois países em que Benjamim Pereira viveu (e ainda
vive).
O PRIMEIRO PAÍS
Do primeiro país temos hoje, graças a Benjamim Pereira e aos seus companheiros
do Centro de Estudos de Etnologia e do Museu de Etnologia, uma imagem de
conjunto nítida, acabada, sólida. Nessa imagem avultam alguns grandes motivos
estruturantes.
Era um país maioritariamente rural, que Benjamim Pereira nos restituiu por
intermédio de dois registos principais. Um deles tem que ver com as condições
materiais da vida rural. É a essa luz que pode ser entendida a importância que
as alfaias agrícolas e os edifícios consagrados à produção agrícola têm na obra
de Benjamim Pereira. O outro tem que ver com o universo do ritual. Um dos mais
conhecidos ' se não o mais conhecido ' trabalho de Benjamim Pereira é o livro
Máscaras Portuguesas (1973) ' consagrado às Festas dos Rapazes e de Santo
Estêvão em Trás-os-Montes ', e foi justamente a esse tema que Benjamim Pereira
regressou recentemente com Rituais de Inverno com Máscaras.
O primeiro país era também um país diverso, de múltiplas ruralidades, que o
trabalho de Benjamim Pereira contribuiu para cartografar. Dois registos são
também aqui relevantes. Um deles tem que ver com o peso que na sua obra tem o
modelo Portugal mediterrânico / Portugal atlântico / Portugal transmontano,
proposto por Orlando Ribeiro (1963 [1945]) e operacionalizado
antropologicamente por Jorge Dias. É esse modelo que está implícito em muitas
das obras no domínio da cultura material que Benjamim Pereira escreveu com os
seus colegas do Centro de Estudos de Etnologia. Simultaneamente, na sua obra
podemos encontrar também uma atenção grande às desmultiplicações locais dessa
diversidade tripartida, como mostra o seu trabalho sobre as máscaras de Trás-
os-Montes, cuja distribuição coincide, para todos os efeitos, com uma
microrregião no interior dessa região mais vasta constituída pelo Portugal
transmontano.
Era, finalmente, um país povoado de objectos. Objectos fotografados,
recolhidos, cartografados, comprados, guardados, analisados minuciosamente
(voltarei a este tema no final). O projecto antropológico de Benjamim Pereira e
de toda a equipa de Jorge Dias era um projecto que, inserido numa tendência
mais vasta da etnologia europeia do seu tempo, antecipava em larga medida o
renovado interesse contemporâneo pela cultura material, ou pela vida social
das coisas, para citar uma formulação feliz de Appadurai (1986). Foi assim por
intermédio de objectos ' a partir de objectos ' que Benjamim Pereira discursou
as múltiplas ruralidades do primeiro país em que viveu.
DO PRIMEIRO PARA O SEGUNDO PAÍS
Hoje vivemos ' e Benjamim Pereira também ' num segundo país. Dele sabemos
algumas coisas. Sabemos, por exemplo, que ele já não é rural, sem ser
inteiramente urbano. É também um país diverso, embora diverso de outra forma. É
um país com objectos ' num certo sentido, é mesmo um país com cada vez mais
objectos ', mas esses objectos são agora diferentes.
Deste segundo país, a nossa imagem é entretanto ainda fragmentada, incerta,
incompleta.
Parte disso é um reflexo do espírito do tempo. Este é ' como se sabe ' um tempo
de fragmentação do mundo e da antropologia. Um tempo avesso a sistematizações e
onde a preferência vai para os instantâneos e para as vozes múltiplas. Um
tempo ' convertido à hibridez constitutiva da cultura ' de que ninguém quer
desenhar mapas com fronteiras nítidas e fixas. Este espírito do tempo é bem-
vindo: vivemos no tempo em que vivemos e é a partir desse tempo e nos termos
desse tempo que temos que pensar o mundo (e o país).
Mas outra parte da nossa incerteza actual tem a ver com a dificuldade em
estabelecer diálogos produtivos entre pesquisas felizes que permanecem,
infelizmente, fechadas em si próprias. A antropologia que se faz em Portugal e
que toma a realidade portuguesa como objecto de estudo vive em larga medida uma
contradição que não se tem revelado produtiva: nunca tanto se escreveu com
tanta qualidade sobre contextos etnográficos tão diversificados e, ao mesmo
tempo, nunca foram tão evidentes as dificuldades em usar essas etnografias na
construção de uma teoria antropológica sobre o país. Cultivando o local, o
estudo de caso, a observação intensiva de pequenas coisas, temos tido
dificuldades em passarmos para escalas de análise mais abrangentes.
Nessa ausência, torna-se fácil a teorias essencializadoras sobre Portugal e
os portugueses ' baseadas em tropos como a inveja ou o mais recente chico-
espertismo (Gil 2004, 2009) ' fazerem um caminho triunfal, sem que encontrem
qualquer oposição significativa na opinião publicada.
Sucede que nada nos impede de tentar organizar de modo mais ambicioso o que
temos vindo a conhecer sobre este segundo país. E, desse ponto de vista, o
trabalho de Benjamim Pereira sobre o primeiro país propõe-nos pontos de partida
produtivos.
O SEGUNDO PAÍS: ENTRE O RURAL E O URBANO
Em 1960, 40% da população portuguesa era rural. Trinta anos depois, em 1991, o
país estava reduzido a 10% de rurais (Machado e Costa 1998). Acompanhando esta
contracção demográfica significativa, no mesmo período o declínio do interior
rural acentuou-se e ' a par da emigração para a Europa e para a América '
assistiu-se ao crescimento exponencial das cidades, em particular das grandes
conurbações litorais que hoje concentram a maioria da população portuguesa.
Desta transformação central na natureza da sociedade portuguesa resultou um
país muito menos rural, mais urbano e sobretudo mais suburbano. Mas sobre este
segundo país continua, por enquanto, a pesar a sombra do primeiro, que Benjamim
Pereira tão bem analisou.
É, em primeiro lugar, um país menos rural, mas onde a ruralidade, reconvertida
em pós-ruralidade, mantém um peso significativo no imaginário social e político
das populações e das elites, como mostram as discussões sobre a Política
Agrícola Comum (PAC) ou a generalização de processos de emblematização da
cultura popular de matriz rural, a que Benjamim Pereira tem sido tão sensível.
Sendo, em segundo lugar, um país mais urbano, é sobretudo um país mais
suburbano, instavelmente situado entre o campo e a cidade. Por um lado, o êxodo
rural traduziu-se no crescimento de uma larga e ininterrupta teia de subúrbios.
Inversamente, no campo, as aldeias e as freguesias tornam-se cada vez mais
arredores de redes regionais de cidades médias, às quais estão ligadas de
diversas maneiras.
É, em terceiro lugar, um país ' urbano e suburbano ' marcado pelo crescimento
das classes médias (incluindo as classes médias baixas), de 20% em 1960 para
quase 50% em 1991 (Machado e Costa 1998).
É, finalmente, um país que deixou de caber em si próprio: o êxodo rural maciço
começado nos anos 1960 alimentou uma persistente emigração para a Europa e para
a América do Norte que, depois de um aparente abrandamento durante algumas
décadas, voltou a atingir no século xxi números particularmente expressivos,
embora persistentemente ignorados pelas elites políticas.
Como tem sido sublinhado, esta mutação estrutural do país foi rápida, foi muito
rápida. Talvez por isso o segundo país só possa ser pensado ' pelo menos por
enquanto ' a partir do primeiro, aquele cuja ruralidade Benjamim Pereira tão
bem tematizou.
Isso é particularmente evidente no que sobra do país rural reconvertido à pós-
ruralidade ou no caso do país que emigrou. Este último em particular é um país
pensado pelos seus protagonistas em torno de representações, embora
imaginárias, da ruralidade.
Mas o pano de fundo da ruralidade é igualmente importante no estudo do país
suburbano, um país para todos os efeitos instavelmente situado entre a cidade e
o campo. O próprio crescimento das classes médias também não pode ser
interpretado sem levar em linha de conta a ruralidade: uma parte significativa
dessas novas classes médias ' sobretudo das classes médias baixas ' é uma
classe média de primeira geração, de origens rurais mais ou menos frescas.
Este pano de fundo rural reflecte-se em numerosos fenómenos que antropólogos e
sociólogos têm estudado. Explica a pluriactividade característica de muitas
regiões do Norte do país. Dá conta das estratégias em relação ao desemprego em
meio urbano, baseadas na família-providência. Está na base de uma intensa
mobilidade social, sem a qual não podemos explicar, por exemplo, o aumento da
frequência ' maioritariamente feminina ' da universidade, mas também a sua
paradoxal conjugação com altas taxas de insucesso escolar, resultantes da não
correspondência entre aumentos do capital económico e aumentos de capital
cultural. Subjaz à generalização de padrões de consumo assentes na combinação
entre orçamentos de bens essenciais baixos ' baseados no hipermercado ' e
compra a crédito de bens de prestígio de gama média ou média / alta ' baseados
no centro comercial.
Mas falta-nos ir mais longe. Não temos ainda o equivalente português de A
Utopia Urbana de Gilberto Velho (2002 [1973]), aplicado a um prédio de
apartamentos na Brandoa. Falta-nos também o equivalente ao filme Aquele
Querido Mês de Agosto (de Miguel Gomes) sob a forma de uma monografia
etnográfica.
E temos dificuldades em responder a questões relacionadas com a produção de
novas formas culturais e de novos modelos de sociabilidade resultantes deste
novo desenho do país. Qual a relação entre novas formas de cultura popular de
massas ' as novas feiras rurais, os arraiais animados por cantores pimba ' e
as reconfigurações suburbanas da ruralidade? Qual é a relação entre o país
suburbano e a oferta religiosa das igrejas neopentecostais? Como explicar ' em
meio urbano e suburbano ' a estranha mistura entre inovação social e tendências
para a retradicionalização dos estilos de vida, evidentes na quase
consensualização das praxes académicas ou no novo fôlego cerimonial de certos
ritos de passagem? Qual a relação ' se é que há alguma ' entre os progressos da
emancipação feminina no mundo pós-rural e a generalização do alterne? Que
padrões de consumo são os dessas novas classes médias e que relações tecem com
revindicações estatutárias? Que reivindicações estatutárias são essas?
O SEGUNDO PAÍS: NOVAS DIVERSIDADES E MOVIMENTO
Situando-se em espaços intersticiais entre o urbano e o rural, Portugal é
também um país que podemos interrogar a partir de preocupações ' que eram as de
Benjamim Pereira ' acerca da sua diversidade. Editorialistas e comentadores
políticos glosaram recentemente o tema da suposta homogeneidade de Portugal. Em
certa medida ' e de um ponto de vista comparativo ' não deixa de ser verdade.
Mas, a um outro nível, a afirmação tem que ser ponderada.
Como acabei de sugerir, há vários países ' pós-rural, emigrante, suburbano,
urbano ' dentro do segundo país que é o de Benjamim Pereira e que também é o
nosso. Simultaneamente, Portugal ' embora em proporções menos importantes do
que a grande maioria dos países europeus ' é hoje um país que recebe
imigrantes. Embora desigualmente distribuída pelo território, essa imigração
acentuou a diversidade étnica, cultural e religiosa do país. É também um país
que tem assistido à multiplicação de diferentes culturas juvenis, onde se
combinam ligações transnacionais e formulações locais. As formas de organização
familiar também se diversificaram, pondo em evidência a gradual crise de
modelos morais de inspiração conservadora. Os seus subúrbios não são
exactamente os mesmos e a sua população é heterogénea. É também, naquilo que
nele continua a ser rural, um país de múltiplas ruralidades, embora diferentes
das de Benjamim Pereira.
Uma grande parte da produção antropológica recente sobre Portugal tem feito o
levantamento de muitas dessas novas diversidades, com relevo para aquelas que
derivam da imigração. Mas temos até agora tido dificuldades em ir além desse
levantamento casuístico. Se o primeiro país ' graças também a Benjamim Pereira
' tinha um mapa nitidamente traçado da sua diversidade, no segundo estamos
ainda um bocado perdidos. Sabemos que é diverso, mas não como é diverso.
É verdade que essa nova diversidade do país é mais difícil de pensar. Por um
lado, nela rompeu-se o laço entre cultura e território que era tão importante
no modelo clássico Portugal mediterrânico / Portugal atlântico / Portugal
transmontano. É, nesse sentido, uma diversidade mais desamarrada e menos
dependente de constrangimentos geográficos. É também uma diversidade menos
geométrica, ou, se quiserem, menos cartográfica. É uma diversidade feita de
sobreposições, de justaposições, de fracturas. Mas é uma diversidade sem a qual
se torna difícil entender o país. Estando em crise a diversidade que Benjamim
Pereira assumiu na sua obra, o desafio que ela nos coloca é o de construirmos
um modelo ' ou modelos ' alternativo(s).
Esse modelo poderia, por exemplo, ser pensado com recurso ao leit motif do
movimento. O movimento que desde os anos 1960 conduziu uma população
maioritariamente rural do campo para a cidade e os movimentos de mobilidade
social a ela associados. O movimento dos imigrantes que chegaram, que ficaram
ou que simplesmente utilizam Portugal como placa giratória para percursos
transnacionais mais abrangentes. Mas também o movimento dos emigrantes, com
particular relevo para os mais recentes, ainda largamente por cartografar. O
movimento que conduziu a uma inserção cada vez mais efectiva do país em redes
transnacionais e globais de circulação de pessoas, de mercadorias, de
ideologias e de formas culturais que repercutem de forma distinta sobre
diferentes grupos sociais. A diversidade do país seria neste caso descrita por
intermédio de trajectos e de itinerários e dos sulcos e traços que estes
deixam.
A estes movimentos de grande alcance ter-se-ia de acrescentar outros movimentos
de menor latitude: do bairro de lata para o conjunto de habitação social; as
viagens pendulares dos citadinos aos campos; o trânsito institucional das
pessoas nas malhas do Estado; os movimentos pendulares masculinos do interior
rural do Norte e Centro para a construção civil espanhola, com regresso aos
fins-de-semana.
Como se sabe, desde a adesão de Portugal à União Europeia, o país é marcado:
por novas facilidades de comunicação induzidas pelo aumento exponencial do
parque automóvel e pelo crescimento, se possível ainda mais exponencial, dos
equipamentos rodoviários, das auto-estradas às rotundas. Quais são os novos e
velhos movimentos propiciados por essas novas facilidades de comunicação? Para
onde vão esses carros todos? Que mundos diversos ' ou não ' é que eles ligam
entre si?
Uma diversidade deste tipo seria também uma diversidade pensada não apenas a
partir do movimento, mas dos impedimentos ao movimento. Como a barreira da raça
que impede o exercício do direito à assimilação e condena à prisão étnica. Ou a
mobilidade social descendente provocada pela deslocalização da produção
industrial. Ou a generalização de uma condição juvenil precária que mina o
projecto modernista da ascensão social contínua intergeracional.
Em qualquer caso, tanto o movimento como os impedimentos ao movimento deveriam
ser olhados como fonte de energia social e cultural, de produção ' voluntária
ou forçada ' de novas formas culturais e sociais: desde a associação étnica às
novas festas de aldeia, dos grupos de auto-ajuda às coreografias políticas do
protesto, das reconfigurações das formas familiares à emergência de novos
sentidos de comunidade.
OBJECTOS: MINÚCIA E HISTÓRIA
Seja qual for a teoria antropológica sobre o segundo país que venhamos a
construir, nela a obra de Benjamim Pereira pode servir-nos, por fim, de
inspiração metodológica. Chego assim ao terceiro aspecto da antropologia de
Benjamim Pereira: é uma antropologia construída a partir de objectos.
Os objectos ' como é sabido ' voltaram à agenda da antropologia. Marcada por
uma revisão em profundidade das antinomias sobre as quais foi construída a sua
versão modernista ' entre natureza e cultura, entre sujeitos e objectos, entre
mercadoria e dádiva ', a antropologia que se seguiu ao modernismo ' que convive
melhor, felizmente, com as ambivalências (Bauman 2007 [1991]) ' é uma
antropologia interessada pela vida social dos objectos. Num certo sentido,
esses objectos são diferentes daqueles de que Benjamim Pereira falou: estão
situados não do lado da produção, mas do lado da fruição e do consumo; não são
objectos artesanais mas objectos que, embora apropriados individualmente, são
produzidos em série. Dito isto, os novos estudos de cultura material têm tudo a
ganhar com uma releitura atenta dos velhos estudos de cultura material e os
trabalhos de Benjamim Pereira são, a esse respeito, incontornáveis.
Não é tanto desse ponto que gostaria de falar, mas mais do modo como o trabalho
etnográfico que Benjamim Pereira desenvolveu com esses velhos objectos marcou
uma maneira de fazer etnografia que pode continuar a ser inspiradora, mesmo que
não trabalhemos sobre objectos (velhos ou novos). Há nela dois aspectos que são
decisivos. A minúcia e a história. Os objectos de Benjamim Pereira eram, por um
lado, objectos minuciosos. E eram, por outro lado, objectos com história.
Comecemos pela minúcia. Há um romancista francês, Georges Perec,[2] que ' entre
outras características ' povoa os seus romances de circunstanciadas descrições
das paisagens físicas em que se movem os seus personagens: uma parede, a sua
cor, o estado da pintura, as manchas de humidade, as infiltrações de água no
canto superior direito, as gravuras nas paredes, o conteúdo detalhado do que
cada uma delas contém; depois, as outras paredes, descritas com o mesmo
cuidado; e assim sucessivamente: as mesas, o número de pernas, a cor da
madeira, o seu toque, os riscos no tampo, as cadeiras uma a uma, a pequena
mesinha num dos cantos onde repousa um copo, etc.
O trabalho de Benjamim Pereira com os objectos tem a mesma minúcia descritiva,
como é evidente, por exemplo, num dos mais importantes livros de que foi co-
autor: as Construções Primitivas em Portugal, escrito em colaboração com
Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (Oliveira, Galhano e Pereira 1988
[1969]). O livro é uma descrição comovida de várias construções ' cabanas de
pescadores, abrigos pastoris, barcos de avieiros ' que têm na precariedade o
seu denominador comum. E aquilo que nele avulta ' como de resto noutros livros
de Benjamim Pereira ' é essa minúcia descritiva que faz com que o livro possa
ser hoje utilizado como uma espécie de manual de autoconstrução de um abrigo em
pedra ou de uma cabana na praia.
Gostaria de dar um exemplo extraído da descrição de uma cabana de pescadores do
Algarve:
[ ] a cabana começa a revestir-se a partir do fundo das paredes. A primeira
fiada é colocada com o couce para baixo, ligeiramente mergulhada num rego
aberto na areia, e disposta em pequenas manadas seguidas, encostadas a quatro
ripas, e cosidas a ponto à terceira ripa a contar de baixo, ou, noutros casos,
à primeira, igualmente a partir de baixo. As fiadas seguintes, nas paredes e na
cobertura, são dispostas com o couce para cima, batendo-se previamente cada
manada no solo ou sobre a perna, obliquamente, de modo a que os couces acertem
perfeitamente em bisel, disfarçando assim os degraus das fiadas, no interior
das cabanas (Oliveira, Galhano e Pereira 1988 [1969]: 195-196).
Para quem julgue que isto é apenas antropologia das técnicas ' que também é ',
vale a pena lembrar uma outra passagem do mesmo livro, ainda sobre as mesmas
cabanas:
O arranjo interior destas cabanas é extremamente cuidado. As divisórias são
geralmente recobertas por capas de revistas com vedetas cinematográficas,
calendários, cartazes publicitários, fotografias, etc. A pobreza e o
incaracterístico do mobiliário são atenuados pela disposição de toalhas e panos
bordados, quadros com retratos de família e outros, jarras de flores, etc.
(Oliveira, Galhano e Pereira 1988 [1969]: 198).
Ora bem: esta minúcia reencontra-se um pouco por toda a obra de Benjamim
Pereira e dos seus colegas do Museu de Etnologia e do Centro de Estudos de
Etnologia Portuguesa. Os seus objectos são minuciosos. E são também objectos
com história. Essa história é em muitos casos uma história difusionista de
longa duração que temos frequentemente dificuldade em subscrever. Nas
Construções Primitivas, por exemplo, os abrigos pastoris em pedra recobertos a
colmo das montanhas do Norte de Portugal são vistos como sobrevivências das
habitações castrejas. Mas é também, em muitos casos, uma história de mais curta
duração, documentalmente apoiada e que é uma história fundamental para a
localização histórica de modos de vida que não são intemporais. Seja como for,
construções primitivas ou lagares de azeite, máscaras transmontanas ou sistemas
de serração de madeira, os objectos de que Benjamim Pereira nos fala são
objectos com história.
Podemos falar sobre os diferentes contextos etnográficos em que trabalhamos sem
necessariamente recorrer a objectos, embora possamos dizer ' invertendo a
formulação de Appadurai (1986) ' que não são só os objectos que têm vida
social, mas também a vida social que está ela toda cheia de objectos.
Mas sucede que (1) a minúcia permanece a melhor arma do nosso trabalho de
etnógrafos. É a minúcia que colocamos na reconstituição de uma história de vida
ou na descrição de um serviço religioso, no acompanhamento de uma reunião de
activistas ou na observação etnográfica de uma consulta médica num bairro
social, que nos permite seguir as injunções de James Clifford acerca do valor
da etnografia na interpretação crítica do mundo contemporâneo: not so fast!,
what else is there? (Clifford 2000). A minúcia é o modus operandi da
etnografia, que procede por esmiuçamento. E (2) desse esmiuçamento faz parte a
história. A etnografia modernista, segundo Michel-Rolph Trouillot (2003),
obedecia ao modelo um observador / um tempo / um espaço. Hoje em dia, com a
multiplicação dos trabalhos de campo multissituados, são já muitos os
antropólogos que articulam entre si vários espaços. Comparativamente, o
processo de efectiva inclusão dos vários tempos na pesquisa etnográfica está
mais atrasado. Nascida de um projecto anti-historicista, a antropologia
modernista criou uma barreira mais efectiva à história, tornando assim mais
difícil a localização dos seus objectos no tempo. Entretanto ' como sabemos ',
cada objecto de investigação é necessariamente um objecto onde se sedimentam
múltiplas camadas históricas, que têm de ser também elas esmiuçadas, de forma
convincente e esclarecedora. Com Benjamim Pereira, para além da minúcia,
podemos reaprender esse gosto ' que deriva da necessidade ' pela história e
pelo seu esmiuçamento.
ELOGIO DO BENJAMIM (COM PALMAS)
Por estas razões todas, o Benjamim pode continuar a ajudar-nos na tarefa de
responder aos desafios interpretativos do segundo país onde nós e ele vivemos.
Por estas razões todas ' que são já muitas ' e por mais duas. Pela sua muito
grande, pela sua enorme capacidade de partilhar saber e entusiasmo. Mas,
sobretudo, pela sua disponibilidade sempre renovada para estimular sucessivas
gerações de antropólogos a fazer aquilo de que eles gostavam e gostam. Sem
preconceitos nem pré-condições. Sem reservas. Apenas pelo gosto de ver as
pessoas fazerem bem as coisas que gostavam ' e gostam ' de fazer. Apenas pelo
gosto de poder juntar aos seus retratos do primeiro (e do segundo) país, os
nossos retratos do segundo país. Essa capacidade de partilha e de entrega é
muito rara. É ela que distingue alguém que verdadeiramente se apaixona pelo
mundo que verdadeiramente quer compreender. É também ela que faz do Benjamim
uma pessoa única.
Por todas estas razões e por mais estas duas, temos todos uma dívida de
gratidão para com o Benjamim, que estas e outras homenagens nunca poderão
saldar totalmente. Peço por isso uma enorme, uma prolongada salva de palmas
para o Benjamim!