Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política
Marcio Goldman
Como funciona a democracia: uma teoria etnográficada política
Rio de Janeiro, Editora 7Letras, 2006, 367 páginas.
A síntese deste livro é aparentemente simples e poucos antropólogos ousariam
criticá-la: a democracia, como qualquer sistema político ou social, é composta
por normas, mas também depende dos comportamentos efectivamente levados a cabo
para funcionar (p. 200). Goldman propõe o estudo das intimidades da vida
quotidiana de quem faz política. No mesmo sentido em que se levam a sério as
músicas e religiões na antropologia, o autor propõe que se leve a sério o que
os membros de blocos, terreiros de candomblé ou outras formas de associação têm
a dizer sobre os políticos e sobre a política. Goldman procura respeitar a
sensibilidade da filosofia política dos militantes afro-culturais de ilhéus, na
Baía (Brasil).
Um aviso: é preciso ter calma para ler este livro. O texto está cheio de dados
etnográficos, de movimento, de devir (devir-nativo), e pára em alguns
momentos para nos oferecer flashes teóricos e insights reflexivos bastante
seguros. O tempo é um aspecto curioso do livro. Ele demorou tempo a ser
produzido, entre o primeiro trabalho de campo em 1982 e a edição em 2006, com
vários incidentes pelo caminho e, claro, com várias aproximações e afastamentos
do campo ao longo dos anos. Goldman decidiu fazer uma etnografia com dados que
dizem respeito ao envolvimento político do movimento afro-cultural de Ilhéus ao
longo de um período de vinte anos não consecutivos. Mas, simultaneamente,
desenha uma etnografia em movimento. O ritmo da descrição é descontínuo, como
os materiais, acelera para logo depois desacelerar, e não corre linear, anda
para a frente e pode seguir em flashback. Por um lado, dir-se-ia que a
inspiração deleuziana e guattariana se imprime desde logo no estilo da escrita,
mas que o conselho de B. Latour de uma certa lentidão e modéstia da etnografia
foi seguido. A obra é original e furta-se a classificações genéricas ou
simples, quer no quadro da antropologia quer no quadro das ciências sociais.
Mas, por isso mesmo, o texto é estimulante.
O posicionamento epistemológico começa logo por ser invulgar, sobretudo para
quem não conhece o contexto de intensa produção intelectual brasileira. Trata-
se de restituir à etnografia a sua centralidade no projecto de conhecimento
antropológico. É uma antropologia da política e uma teoria etnográfica da
democracia, fiel ao ponto de vista nativo e à tradução de sentidos etnográficos
em teoria etnográfica, não impondo aos dados um modelo abstracto pré-concebido.
A teoria antropológica é aqui afirmada no sentido de ajudar a criar uma matriz
de inteligibilidade maior a partir de dados e contextos concretos. Procura
superar binómios de posicionamento intelectual antigos, tais como genérico/
particular, práticas/normas, realidade/ideal. Evita colocar questões abstractas
a partir de estruturas, funções e processos, dirigindo-se toda a etnografia
para os funcionamentos e práticas ' neste caso, da democracia. Assim, a ambição
é situar a etnografia como modo de entendimento do sistema político. A
etnografia deixa de estar reduzida ao estatuto de tarefa ilustrativa ao serviço
de uma antropologia (pretensamente mais abstracta) e ganha em dinâmica
epistemológica.
A política é então perspectivada não em si mesma e por si mesma, mas
descodificada nos filtros oriundos de outros campos sociais, inspiração que o
autor busca em M. Foucault. Goldman perspectiva a política sem ciência ou ao
lado da ciência política e dos seus mais directos reformadores; a política em
prática, não a política em falta; a política sem centros e periferias,
devolvida à vida quotidiana. Trata-se de conhecer a democracia representativa
e participada por uma série de actores secundários.
O livro divide-se em seis capítulos que apontam o tempo dos eventos mais
centrais da política em Ilhéus e, simultaneamente, o tempo da etnografia dos
eventos. Não tem conclusão, porque a história contada e as tensões prometem
manter-se.
Deixem-me pontilhar esta recensão de alguns dos insights de teoria etnográfica
que podem servir-nos a todos para pensar. É oferecida uma discussão sobre o
carácter invasivo da política em Ilhéus, o seu penetrar constante de domínios
dos quais deveria estar excluída, como o parentesco, a arte ou a religião, e a
concomitante possibilidade de ser praticada não apenas por aqueles que estão na
sua esfera oficial e partidária. A política é polissemântica, transitória, mas
também pode ser poluente e disruptiva (pp. 119-121). A política é claramente
uma oportunidade (pp. 128-129).
A teoria da segmentaridade sai da gaveta e é revista, já não apenas em função
da explicação de morfologias sociais de sociedades sem Estado, o que explicaria
o seu tipo exótico, mas como aspecto universal da vida política. Libertando
o conceito do seu viés sociologizante, Goldman propõe que a segmentação seja
entendida como questão etnográfica e no sentido processual do termo, em que vão
sendo criadas, por diversos movimentos, em diversas orientações e modalidades,
estruturas propriamente segmentares. Estas podem formar-se de modo arborescente
(piramidal) ou rizomático (categorias que o autor recupera de G. Deleuze e F.
Guattari). As modalidades de segmentação apontadas pelos mesmos autores '
binárias, circulares, lineares ' são discutidas em contexto. Goldman aponta e
estuda a tendência federalizante nos blocos (já antes enunciada por M. Agier),
no sentido em que, além de se articularem com múltiplas formas de organização,
podem agregar-se para negociar com a prefeitura, por exemplo.
O Estado está permeado pela segmentação, não lhe é oposto. Se a democracia
parece estar voltada para a administração de conflitos, ela não funciona
linearmente por meio de acordos e pactos. Goldman crê que se trata de um
processo de distribuição de conflitos, lançando conflitos contra conflitos, de
modo a controlar e impedir a eclosão de outros, supostamente mais graves, que
ameaçariam a estabilidade e a permanência do sistema. Goldman segue então M.
Herzfeld na ideia de que a segmentaridade não reside na divisão de uma suposta
unidade, mas na conversão de multiplicidades em segmentos, em unidades
simultaneamente divisíveis e unificáveis, de acordo com múltiplas estratégias
que vão da repressão à resistência, passando pela manipulação e pela cooptação
(pp. 141-182).
Através da história do Centro Afro-Cultural de Ilhéus, Goldman propõe
interpretar três modalidades de relações sociopolíticas constantemente
abordadas pelas ciências sociais brasileiras: a compra de votos, as promessas
eleitorais e, de modo mais amplo, a fraqueza das instituições democráticas '
como meios de viver e pensar a política (pp. 166-173). Goldman discute a
conexão entre aspectos geralmente tidos como fenómenos separados: a inflexão
constante da representação política moderna e da participação eleitoral, a
forma como as pessoas se envolvem na captação de votos no sistema eleitoral
brasileiro, as pesquisas e os debates eleitorais, a distribuição de cestas
básicas, os momentos de festa e de controvérsia (cap. 4).
Em Goldman, o Estado não é apenas instituição, mas modo de funcionamento, forma
de poder, de captura e de produção de unidades, conceitos que mais uma vez
pede emprestados a Deleuze e Guattari. É neste eixo reflexivo que surge
discutida uma das mais complexas temáticas do presente, a questão do racismo,
como prática e forma de poder, como forma de inclusão diferenciada. Mas são
também discutidas as relações entre o movimento afro-cultural em Ilhéus e o
Estado, a relação dos blocos com a política partidária; as ambiguidades em uso
no termo cultura, que tanto serve para falar de formas de sociabilidade como
para fazer parte de um arsenal de aparelhos de captura de que dispõem os
Estados e os poderosos; as burocracias estatais e os diferentes enredos da
política nativa como territórios de bruxaria, onde umas pessoas são eliminadas
por outras na luta pelos poucos espaços disponíveis.
Goldman vai dialogando com um conjunto de autores com quem partilha afinidades
teóricas, não apenas temáticas. O livro revela a sua própria trajectória por
dentro da teoria antropológica. Esperemos que a história da etnografia política
de Goldman não termine aqui e nos surpreenda de novo.
Susana Durão
ICS ' Universidade de Lisboa