Cultura popular portuguesa: práticas, discursos e representações
Clara Sarmento
Cultura popular portuguesa: práticas, discursose representações
Porto, Edições Afrontamento, 2008, 496 páginas.
A obra de Clara Sarmento Cultura Popular Portuguesa: Práticas, Discursos e
Representações obteve o prémio CES 2007 para Jovens Cientistas Sociais de
Língua Oficial Portuguesa. Apesar de o título não o indicar claramente, este
livro resulta de uma investigação tendo por objecto central o moliceiro da
região de Aveiro. O moliceiro é um tipo de embarcação regional cuja função
original era a da recolha do moliço, substância constituída por plantas
aquáticas tradicionalmente empregues para a fertilização dos campos agrícolas.
A principal originalidade desta embarcação, que é, em larga medida, a causa da
sua promoção como artefacto estético e cultural de valor, reside nos painéis
decorativos que ostenta e que têm sido observados e estudados como autênticas
expressões de arte popular. Apesar da sua existência longa, o barco moliceiro
esteve, por diversas razões que são minuciosamente detalhadas pela autora,
perto da extinção nas décadas de 70 e 80 do século xx. Nas últimas duas décadas
assistimos a um ressurgimento do barco moliceiro que não é indiferente ao
interesse que este tem despertado junto de entidades públicas e privadas,
atentas ao potencial simbólico e económico deste emblema regional.
Esta é uma pesquisa de fôlego, alicerçada numa extensa e bem documentada
informação proveniente de diferentes fontes orais, literárias e iconográficas,
produzidas por diversos agentes individuais e colectivos, em contextos
históricos variados. A autora traça um percurso histórico em que descreve
pormenorizadamente a evolução do moliceiro ' enquanto artefacto simbólico e
funcional ', bem como das representações que são socialmente construídas em seu
torno. A investigação desenvolvida, embora se situe na área dos estudos
culturais, é assumida como de natureza interdisciplinar, buscando uma
articulação íntima com os domínios da antropologia cultural e dos estudos
literários. A perspectiva interdisciplinar, mais do que acertada, revela a
crucial importância de uma abordagem epistemológica abrangente, cruzando
teorias e metodologias, no sentido de uma aproximação a um objecto
multifacetado.
A autora parte da noção de cultura popular para, de alguma forma, proceder à
desconstrução de um conceito que, como sublinha, sofre desde a origem de uma
ambiguidade semântica (p. 9). Este processo de questionamento do conceito é
realizado a partir dos mecanismos de fabricação social e cultural dos
imaginários em redor do moliceiro e dos seus painéis, que são, como comprova a
autora, histórica e ideologicamente condicionados. Daí que o moliceiro e a
narrativa pictórica que este exibe tenham de ser descodificados no âmbito de um
contexto local que envolve múltiplos agentes sociais, com as suas biografias e
condições de vida mas, igualmente, no âmbito de dinâmicas de representação e de
produção de discursos ideológicos orbitando em torno da localização e função
simbólica do povo e das suas artes. A história do moliceiro revela bem como
este foi sendo apropriado por diferentes instâncias, poderes públicos e
privados, que contribuíram para as variações funcionais e simbólicas que este
foi adquirindo.
A obra organiza-se em três partes bem distintas. Uma primeira parte, intitulada
Ria de Aveiro: espaço e economia, é constituída por uma análise exaustiva da
composição económica, social e demográfica das comunidades lagunares da Ria de
Aveiro ao longo dos tempos, situando nitidamente a interligação funcional entre
as condições e hábitos quotidianos das gentes locais e o moliceiro. A secção
seguinte, com o título A cultura popular e o barco moliceiro, procede a uma
descrição pormenorizada desta embarcação, enunciando técnicas e tecnologias,
práticas e protagonistas. Esta secção apresenta, também, uma análise orientada
para os painéis decorativos, enquanto narrativas visuais articulando
iconografia e mensagem escrita. A última parte, intitulada A representação
etnográfica, faz, em primeiro lugar, um exame crítico aos discursos
etnográficos tendo por objecto as culturas populares e, em especial, as gentes
do mar e da região, desvendando a natureza claramente ideológica e
politicamente motivada de muitos dos enunciados supostamente científicos, para
de seguida desvelar os processos de construção da tradição que motivaram uma
refuncionalização do moliceiro, agora objecto imbuído de renovados
significados culturais.
É ainda de sublinhar, pela escassa representatividade destes suportes na
publicação e divulgação de conteúdos de natureza académica em ciências
sociais, a inclusão de um CD-Rom que acompanha o texto escrito. A informação
apresenta-se segmentada num CD Imagens (Antropologia da cultura popular
portuguesa: o caso da região de Aveiro ' colecção de 1400 imagens) e numa Base
de dados (Inventário dos barcos moliceiros de Aveiro ' totalidade dos barcos
moliceiros registados ao longo do século xx). A base de dados, sendo
imprescindível para um estudioso da matéria, é menos interessante para o leitor
comum. Fundamental é, no entanto, a exploração da vasta base fotográfica que
complementa o texto escrito do livro e que serve de suporte imagético à
história do moliceiro e à sua esfera de produção e uso.
Questionando a visão tantas vezes ingénua, romântica ou ideologicamente
condicionada que serve a edificação dos discursos sobre a chamada arte popular,
esta obra tem o mérito de revelar quão importante é uma averiguação
empiricamente fundamentada, incidindo sobre diferentes contextos e actores que
concorrem para a criação das imagens e imaginários acerca dos artefactos e
artes populares. A pesquisa demonstra que as artes do quotidiano local não
estão imunes a processos políticos, simbólicos e económicos mais globais, que
nos endereçam para outras esferas analíticas. A arte popular não se constitui,
portanto, como um repositório estático representando a autenticidade ontológica
de uma comunidade, mas antes como um produto de movimentos diversos, por vezes
ambíguos e contraditórios, que percorrem os circuitos da fabricação dos mitos
nacionais, da invenção da tradição ou do consumo turístico.
Ricardo Campos
CEMRI ' Universidade Aberta