On trans-Saharan trails: Islamic law, trade networks, and cross-cultural
exchange in nineteenth-century Western Africa
Ghislaine Lydon
On trans-Saharan trails: Islamic law, trade networks, and cross-cultural
exchange in nineteenth-century Western Africa
Nova Iorque, Cambridge University Press, 2009, 498 páginas.
Francisco Freire
CRIA / FCSH-UNL
OnTrans-Saharan Trailsafirma, no título, trabalhar o contexto oeste-africano,
parecendo contudo centrar-se na sua extensão oeste-sariana. Esta precisão
bastará para sublinhar o carácter do texto: a complexidade do território trans-
sariano, aqui considerado na sua medida mais ampla.
Esta obra insere-se num percurso historiográfico há muito trilhado, que nos
remete precisamente para o tema do comércio trans-sariano. Face a esta
tradição, parece ter-se estabelecido uma outra, antropológica, que é temática e
conceptualmente distinta daquela, pesem embora os espaços permeáveis
frequentados por ambas as disciplinas. Neste caso, uma escola francesa ' ou
mesmo bontiana ' focada nos processos memoriais e nos mecanismos internos
(tribais) de reprodução social tem marcado muita da mais recente produção
antropológica dedicada à região. A história tem emprestado aos antropólogos um
suporte material para dados de terreno pouco solidificados, e que a tradição
oral insiste em contextualizar num arco temporal por vezes distendido até ao
período almorávida (como ligação aos primórdios islâmicos da região, mas também
como quadro filiatório). A antropologia aplicada a esta região parece, em larga
medida, assente num quadro temático quase sempre circunscrito à arabidade e a
tropos ainda herdados dos momentos colonial ou orientalista: Islão, tribo,
parentesco, genealogia. Os trabalhos em história, por seu turno, parecem
recorrer à antropologia de forma a suportar um contexto social (demasiado?)
complexo, obviamente não circunscrito a uma linear progressão cronológica e, de
facto, muito marcado pela oralidade.
A historiadora Ghislaine Lydon afronta directamente esta problemática,
procurando uma interface válida entre materiais escritos e tradições orais
(retomando outra questão clássica). Será precisamente este o mais importante
contributo metodológico da obra, incorporando plenamente dados da tradição oral
(mais de duzentas entrevistas) e arriscando defender a centralidade da
oralidade neste trabalho (pp. 21-25). Muito embora seja este o argumento
explicitado, este não será, de facto, o elemento central do texto. A história
oral terá sido fundamental na reflexão que conduziu a autora ao longo de
extensos períodos no terreno, e a sua presença no texto é evidente, mas, no
entanto, os seus argumentos continuam a basear-se privilegiadamente em fontes
escritas. O trabalho realizado sobre arquivos familiares, será, esse sim, o
centro desta obra.
Ainda que as referências à literatura antropológica sejam quase nulas ao longo
do texto, este trabalhopoderá estabelecer-se como uma peça importante na
negociação de novos espaços de reflexão entre história e antropologia. A rede
comercial do Oued Nun constitui-se como o mais valioso exemplo desta
abordagem, ultrapassando os limites da história económica na forma como conjuga
os sentidos profundos do comércio trans-sariano com a cultura islâmica que
impregna a região. Importa ainda assinalar a forma como a autora trabalhou no
terreno sobre diversas escalas sarianas (Tishit e Guelmim, particularmente),
aí realizando efectivamente trabalho de antropólogo: procurando nova
documentação em espólios familiares, entrevistando intervenientes directos no
comércio caravaneiro (antigos caravaneiros e seus familiares) e actuais
herdeiros de autoridades políticas, ou islâmicas, locais.
Assim, Lydon debate fontes orais e materiais escritos relacionados com o
comércio trans-sariano, assente em informações alcançadas nos caravanhubs de
Chinguetti, Ouadane, Oualata, Tishit e Guelmim. A autora expõe algumas peças
recolhidas nos acervos privados de famílias ainda residentes nestes ksar-s
(relatos de viagem, processos de herança, contabilidade, diversos documentos
exarados por qadi-s e mufti-s), centrando finalmente a discussão no século XIX,
um período historicamente seguro (porque melhor suportado, quer pelas fontes
orais, quer pela documentação escrita). Exploram-se privilegiadamente os
caminhos percorridos pelos tekna e pelos oulad bisbah (e secundariamente pelos
kunta, tajakant e oulad d'laim), assinalando-se também a importância de
comerciantes judeus ao longo desta rota. Os tekna, sediados em Guelmim,
dirigiriam a maior parte destas operações, controlando habilmente uma autonomia
face ao makhzen e dispondo de uma vasta rede de agentes, de Essauira (no
extremo norte desta rota) ao interior sariano (Tombucto, Tishit), e até à foz
do rio Senegal. Já os oulad bisbah, também eles ligados a Guelmim, para além de
uma reconhecida presença nos ksar-s de Tishit, Oudane ou Chinguetti, estender-
se-iam ainda por toda a África Ocidental, com agentes em Rosso, São Luís do
Senegal, Dakar, Louga, Banjul e mesmo Conakry (p. 196). Forma-se assim a rede
de Oued Nun.
A autora introduz (longamente) a história da região, acentuando a complexidade
dos fluxos sociais e culturais desenvolvidos. Viaja-se através de um milénio de
história, posicionando-se as bases da sua tese central: a profundidade das
trocas culturais (crosscultural exchange) numa geografia extensa mas sempre
interligada ([Sahara] was never a barrier but always a bridge to
intercontinental exchange, albeit one that required faith, resources,
dexterity, and patience either to inhabit or to cross [p. 105]). São então
sistematizadas as referências históricas da região: a formação dos exércitos
almorávidas e posterior conquista de um território entre o centro do actual
Marrocos e a actual Mauritânia; a preponderância wangara na primeira metade do
segundo milénio; a constante presença judaica; a conquista de Gao pelo exército
marroquino em 1591.
Ao longo deste enquadramento, sinaliza-se o lento, mas sólido, processo de
islamização (pp. 280-286) e o relevo do comércio de papel, responsável por duas
profundas alterações: 1) a formação de uma papereconomy (conceito tomado de
Goitein), isto é, o desenvolvimento de um enquadramento documental dos
processos comerciais; 2) a formação de uma papereconomy of faith, isto é, uma
ligação inegável entre a circulação de obras escritas e a expansão de um
universo cultural islâmico (p. 337). Lydon socorre-se ' com mérito ' do
comércio de papel para defender a ligação entre fluxos mercantis e culturais.
Os dados analisados promovem a centralidade de diferentes qadi-s e mufti-s na
operacionalidade transcontinental desta rede comercial, à qual, claramente, não
bastaria a ousadia dos seus agentes directos. O envolvimento islâmico das
caravanas sarianas, e de todos os seus intérpretes, promove a
interconectividade entre geografias aparentemente distintas, que se provam
ancestralmente inter-relacionadas, quer em termos comerciais, quer,
particularmente, enquanto espaços de partilha cultural.
Os contactos estabelecidos com comerciantes europeus parecem menosprezados
neste trabalho, que, ainda que centrado no século XIX, se ocupa em expor
longamente a história comercial da região. Este aspecto parece ser tratado com
demasiada brevidade, sem que seja mencionado o alcance dos laços comerciais (e
não só) criados ao longo de mais de cinco séculos de contactos permanentes ao
longo da faixa atlântica a norte da foz do rio Senegal. Os limites cronológicos
impostos pela autora definem um terreno analítico bem consolidado, e este
défice de comércio europeu deve-se, julgo, à própria abordagem desenvolvida:
a exploração privilegiada dos dados relativos à presença da cultura islâmica ao
longo desta rota.
O texto mantém uma narrativa viva por entre temas bastante complexos
(bibliograficamente bem ancorados, com recurso a fontes em árabe), apresentando
sólidos argumentos quanto à profundidade dos vínculos estabelecidos ao longo do
eixo ocidental das rotas caravaneiras trans-sarianas. Sem tratar, obviamente,
um tema inovador, a autora supera as dificuldades colocadas a um terreno bem
conhecido dos historiadores, ao qual acrescenta dados inovadores. O método
seguido permite destacar uma rota comercial menosprezada, que aqui nos surge
consolidada no fluxo de bens e saberes entre o Norte e o Ocidente africanos.
OnTrans-Saharan Trails é efectivamente um livro tecido por uma historiadora,
mas que merece sem dúvida a atenção de antropólogos interessados nos contextos
sarianos e oeste-africanos.