Cárcere Público: Processos de exotização entre brasileiros no Porto
Beatriz Padilla
(CIES-IUL)
Obra recenseada: Igor José de Renó Machado,Cárcere Público: Processos de
exotização entre brasileiros no Porto, Lisboa, ICS, 2009, 256 páginas.
Aceitei fazer a recensão deste livro com um duplo propósito: por um lado, ler
novamente e de forma integral o que já tinha lido (e citado) tantas vezes ao
longo dos últimos anos, devido ao meu trabalho de investigação em curso sobre a
imigração brasileira em Portugal; por outro, identificar os contributos, leia-
se vantagens e desvantagens, que a obra tem para oferecer hoje, em 2011.
O primeiro esclarecimento que deve ser feito é que o livro concretiza numa
publicação, finalmente, a tese de doutoramento do autor, defendida em 2003, a
qual no processo editorial passou por uma operação de cosmética visual (leia-se
de tradução para o português de Portugal, salvando-se os conteúdos críticos) e
alguns recortes de imagens e fotografias que na versão original contribuíam
para uma melhor ilustração dos diferentes tipos de exotização da brasilidade em
Portugal, que, no fim, é um dos objetivos do livro.
Vários aspetos positivos devem ser destacados. Assim, esta obra é um master
piece em vários microssentidos. Permite entender alguns aspetos do quotidiano
dos imigrantes brasileiros que moravam no Porto no início do século XXI,
especialmente daqueles que o autor denomina classe baixa, mesmo que a sua
pertença a esta classe não tenha ficado totalmente esclarecida, salvo no
contraste com outros grupos de brasileiros mais favorecidos, como dentistas e
outros expatriados. Deixando de lado este pormenor, o dia a dia dos imigrantes
brasileiros, segundo o autor, é dominado pela exotização que é consequência dos
estereótipos dominantes na sociedade portuguesa, mas que eles próprios também
assumem, até com certa agência (pelo menos quem pode), como uma estratégia de
adaptação para conseguir um melhor posicionamento no mercado de trabalho
portuense.
Sintetizando, os contributos teóricos que o autor oferece, e que giram em torno
da exotização no contexto específico da imigração brasileira no Porto por volta
de 2000, são: (i) o jogo da centralidade, (ii) a subordinação ativa, (iii) a
identidade para o mercado. Estes conceitos, novos e criativos, são sem dúvida
ferramentas que futuras investigações podem utilizar ou testar, não só em
Portugal, mas também em outros contextos migratórios onde os sujeitos são
exotizados. Embora o jogo da centralidade e a identidade para o mercado
sejam quase duas faces da mesma moeda, estando focados na inserção no mercado
de trabalho, a categoria mais interessante, a meu ver, é a da subordinação
ativa, já que ilustra como o imigrante adota e adapta o estereótipo dominante e
como, muitas vezes nos casos apresentados, quem consegue reverter melhor a
situação criada pela estereotipificação é aquele que geralmente tem menos poder
(como pode ser um afro--brasileiro) nas sociedades dominadas pelos brancos
(neste caso, tanto o Brasil como Portugal). Assim entram no jogo as ideias que
os portugueses têm dos brasileiros e as que os próprios brasileiros têm sobre
eles mesmos, incluindo a hierarquização (regional, racial) também existente no
Brasil. Neste sentido, ser afro-brasileiro ou aproximar-se de um afro-
brasileiro (especialmente baiano ou carioca) gera um valor acrescentado numa
sociedade que aparentemente valoriza os aspetos culturais brasileiros
associados à cultura afro (capoeira, música, religiões afro-brasileiras, etc.).
Claro que estas hierarquias, e portanto a subordinação ativa descrita neste
caso, só funcionam em contextos específicos, nos quais não se insere a maior
parte da imigração brasileira em Portugal hoje; no entanto, resulta proveitoso
refletir teórica e empiricamente sobre este facto.
Um outro aspeto relevante da obra de Machado é que deslumbra como peça
etnográfica, especialmente nos capítulos em que partilha com o leitor o
trabalho de campo. Neste sentido, pode ser pensada como referência metodológica
sobre como fazer etnografia e como usar o diário de campo no processo de
escrita. O estudo revela igualmente o posicionamento do autor no terreno
(brasileiro, de classe média, etc.) que, por sua vez, determina uma dupla visão
da realidade que estuda, ou seja, a de um brasileiro com os pés em Portugal
(o que é conseguido graças à sua conexão com a família portuguesa de
acolhimento ou adoção, que atua como uma ligação à terra, traduzindo as
diferenças culturais às vezes impercetíveis) e que partilha a visão portuguesa
da realidade sobre a imigração brasileira, situação que no conjunto possibilita
uma melhor empatia. Esta dupla ancoragem é relevante na interpretação do
fenómeno migratório, porque o autor revela como os seus interlocutores
pertencem aos dois contextos, que se complementam e explicam, o de origem e o
de destino.
Se bem que esta etnografia apresente aspetos muito positivos, como já foi
ressaltado, é também importante apontar algumas críticas. Na minha opinião, um
aspeto que deveria ter sido melhorado é sem dúvida a sua bibliografia. As
referências a trabalhos posteriores a 2003 são escassas (salvo referências
gerais à introdução dum livro publicado em 2007 em Portugal sobre a imigração
brasileira), sobretudo se considerarmos a prolífica produção sobre o tema desde
então. A mesma crítica pode ser feita em relação à falta de atualização da
legislação, especialmente porque mudou repetidamente, tendo consequências
específicas para os cidadãos brasileiros residentes em Portugal. Neste sentido,
uma atualização de dados, legislação e referências teria sido sem dúvida uma
mais-valia, permitindo fazer uma ponte entre a realidade longínqua descrita no
livro e o presente.
A escolha do trabalho de campo não é neutra. O facto de este estar focado nos
bares e lugares / momentos de lazer, mesmo que seja enriquecedor, conduz o
leitor a pensar que a vida dos brasileiros, o seu dia a dia, é ainda mais
exotizado, ao não permitir perceber, salvo em casos específicos, como decorre
um dia normal do imigrante. Podemos perguntar-nos até que ponto o jogo da
centralidade e a identidade para o mercado marcam todos os aspetos da vida
como imigrante, ou se viver virado para o mercado só reflete a experiência de
alguns brasileiros, talvez daqueles mais ligados ao mercado artístico-cultural
e, na altura, àquelas ocupações onde o atendimento ao público era percebido
como central. Contudo, o enfoque inovador sobre os momentos lúdicos, o tempo
livre e a socialização do imigrante justificam a limitação que essa escolha
impõe. Por outro lado, ainda pode salientar-se que, mesmo que o autor fale da
imigração brasileira no Porto, as experiências focam mais o ponto de vista do
imigrante no masculino, salvo o caso das mulheres que socializam nos mesmos
bares e que trabalham no mercado do sexo, mas essas não podem ser estendidas a
todas as mulheres brasileiras.
Finalmente, os contributos mais interessantes do livro, especialmente por serem
mais críticos, inovadores e comparativos e por não terem perdido atualidade,
são o capítulo 5 e o anexo sobre o exotismo. Enquanto o capítulo 5 analisa a
contemporaneidade da lusofonia, como fenómeno colonial por oposição ao pós-
colonial, como coluna vertebral do pensamento luso (salvo poucas exceções), e
explica as hierarquias étnico-raciais vigentes em Portugal, o anexo apresenta
uma análise comparativa muito interessante sobre a situação e posicionamento
dos imigrantes brasileiros em outros contextos migratórios, como a Argentina,
os Estados Unidos e o Japão, os quais mudam segundo os imigrantes sejam ou não
exotizados, permitindo ao leitor entender melhor a posição dos brasileiros em
Portugal.
Num balanço final, a qualidade da discussão e debate que Cárcere Público traz
ao fenómeno das migrações, especialmente no contexto português, valoriza esta
publicação tardia.