Archeologie del Trauma: Un'Antropologia del Sottosuolo
Roberto Beneduce, Archeologie del Trauma: Un'Antropologia del Sottosuolo. Roma-
Bari, Laterza Edizioni, 2010, 218 páginas, ISBN: 978-88-420-9249-0.
Roberto Beneduce, Corpi e Saperi Indocili: Guarigione, stregoneria e potere in
Camerun. Torino, Bollati Boringhieri, 2010, 407 páginas, ISBN: 978-88-339-2050-
4.
Chiara Pussetti
CRIA-IUL, Portugal, chiaragemma.pussetti@gmail.com
Para conseguir pôr em diálogo as duas recém-publicadas monografias de Roberto
Beneduce, é necessário considerar o percurso académico do autor. Psiquiatra e
psicoterapeuta de formação, Beneduce começou em 1988 a desenvolver pesquisa no
Mali sobre os sistemas terapêuticos locais, trabalhando ao lado de curandeiros
como investigador e aprendiz. O diálogo constante entre saberes diferentes, o
da biomedicina, de um lado, e do outro as práticas de cura que Beneduce ia
frequentando, antes no Mali e depois nos Camarões, torna-se o elemento de
distinção do centro de apoio psicológico para imigrantes e refugiados que ele
funda em Turim em 1996, o Centro Frantz Fanon. Continua ao mesmo tempo o
trabalho clínico e a investigação, indagando a relação complexa entre
sofrimento, memória, violência, práticas terapêuticas e retóricas humanitárias.
Editadas ambas em 2010, as publicações que decidi apresentar nesta recensão
espelham as duas almas de Beneduce. No primeiro dos dois livros, Archeologie
del Trauma, fala mais o terapeuta, as suas dúvidas e inquietações face a dores,
feridas e memórias impossíveis de reduzir ao perímetro estreito de um único
conceito: o de trauma. Roberto Beneduce interroga aqui modelos e categorias
que, no seio de retóricas humanitárias e do saber psiquiátrico, ignoram muitas
vezes as diferenças, as responsabilidades, as dimensões político-económicas e
os enigmas da memória num terreno de histórias sofridas.
No segundo livro, Corpi e Saperi Indocili, acompanhamos mais o trabalho do
antropólogo, numa etnografia minuciosa que indaga as experiências da doença e
da cura na África contemporânea, através de uma análise profunda dos saberes e
das práticas dos curandeiros banto do Sul dos Camarões. Explorando as
linguagens subterrâneas da feitiçaria e as práticas obscuras dos senhores da
noite, Beneduce analisa outras técnicas e outras representações do mal, do
sofrimento e da morte. O autor acompanha o leitor nesta viagem, revelando
outros imaginários e indicando caminhos alternativos: percorremos assim também
as novas racionalidades da doença e da cura representadas pela medicina dos
brancos, as definições morais de culpa e pecado introduzidas pela epopeia
missionária, as lembranças do período colonial, as ambições e as figuras do
desejo que caracterizam a contemporaneidade africana.
Estes dois volumes estão a ser apresentados em conjunto não somente por causa
da simultaneidade da sua saída no mercado editorial, mas sobretudo por
resumirem de forma emblemática o percurso intelectual de Roberto Beneduce, pois
é possível identificar esta mesma dialética ao longo de toda a sua produção
editorial anterior. Suspenso entre o fascínio por uma África que ele define
como tradicional e cujas dinâmicas da contemporaneidade indaga, mas sempre
piscando o olho aos temas típicos das monografias africanistas de matriz
clássica (feitiçaria, possessão, rituais iniciáticos), e o olhar clínico com o
qual acompanha os seus pacientes no Centro Frantz Fanon e interroga as
categorias de diagnóstico da psiquiatria, através de uma abordagem
arqueológica, Beneduce poderia constituir um belo caso de dupla personalidade.
Mas é possivelmente este mesmo posicionamento oblíquo que lhe permite
evidenciar, por um lado, as transformações dos repertórios simbólicos da tal
medicina tradicional africana face às influências da colonização e da
evangelização e, por outro, os desafios e as contradições de uma modernidade
incerta, caracterizada por mobilidades, desigualdades e violências. Conhecendo
pessoalmente o autor e a sua extraordinária sensibilidade como etnógrafo e, em
particular, como terapeuta, poderia afirmar que, no fundo, Beneduce se
interroga incessantemente sobre os mesmos temas: a memória e os seus dilemas, a
história e as suas feridas, a dor e as suas expressões, através de uma análise
crítica dos modelos hegemónicos da cura. Todavia, os seus textos distanciam-se
notavelmente um do outro, quer pelos objetos e sujeitos do estudo, quer pela
postura metodológica e epistemológica adotada pelo autor ' diferenças que
sobressaem e que se revelam estimuladoras de análise crítica.
Em Corpi e Saperi Indocili Beneduce indaga, como o subtítulo bem resume, as
relações entre cura, feitiçaria e poder nos Camarões. O texto apresenta-se como
uma monografia etnográfica de matriz clássica, se considerarmos o estilo
organizativo e argumentativo proposto ao longo do texto, que denota a vontade
de abordar da forma mais completa e abrangente todos os aspetos envolvidos na
experiência do mal e da cura no contexto analisado (a zona da cidade de
Sangmélima na área Bulu dos Camarões). Mas já nas primeiras linhas da
introdução o autor entrelaça esta aventura particular com as tramas da sua
própria biografia, cruzando interrogações e experiências, projetos e
metodologias diversas, e delineando itinerários geográficos complexos, entre a
Eritreia, Moçambique, a República Democrática do Congo e Itália. Mais uma vez
cenários que o veem em ação, ora como antropólogo, ora como psiquiatra, sempre
suspenso entre a etnografia e a clínica. Cada um destes âmbitos de reflexão,
todavia, sublinha o autor, ilumina reciprocamente todos os outros, evidenciando
limites e sombras e permitindo perceber aspetos que podem tornar-se invisíveis
por um hábito académico que muitas vezes impõe cesuras forçadas: entre
observação objetiva e partilha do quotidiano, entre interpretação e dados de
campo, entre teoria e prática, entre o antropólogo e o terapeuta. O trabalho
conduzido com pacientes imigrantes em Itália enriquece-se através das
observações, das considerações e das perguntas que vêm do terreno em África. Os
mesmos relatos, violências e dissídios mas olhados de perspetivas diversas. O
posicionamento duplo, instável por vezes e certamente delicado, do autor,
permite-lhe pôr em diálogo universos sociais e simbólicos diferentes,
horizontes de significados e epistemologias aparentemente incomunicáveis. A
pesquisa em África que lhe permite o acesso ao imenso património de saberes do
qual os curandeiros detêm a custódia do segredo, assim como os quinze anos de
clínica com pacientes imigrantes permitem a Beneduce repensar de forma crítica
as categorias de diagnóstico que constituíam a sua ferramenta de trabalho como
terapeuta e elaborar uma análise complexa, nutrida pela experiência
etnográfica, das outras linguagens do sofrimento e idiomas do corpo. Assistente
e aprendiz, Beneduce mantém uma distância próxima com os seus interlocutores no
campo e o encontro etnográfico transforma-se rapidamente numa relação complexa
entre terapeutas carismáticos, chamados pelo desejo de curar a um mandato
especial: tratar a dor dos outros, lutar contra o mal. Mais uma vez Beneduce
põe em jogo as suas identidades coexistentes: professor, médico, psiquiatra,
psicoterapeuta e antropólogo, forçado a olhar através das lentes da história o
objeto da sua pesquisa, num diálogo constante com as mais amplas dimensões
económicas e políticas, cujas assimetrias tantas vezes se traduzem em sintoma.
Contando da sua África, que ele define como fantasma, ambígua e indócil,
parafraseando Michel Leiris (L'Afrique fantôme, 1981), Georges Balandier
(Afrique ambiguë, 1957) e Achille Mbembe, Afriques indociles, 1990), Beneduce
fala-nos da doença da incerteza, da vulnerabilidade e do abuso, fala da
violência e das suas vítimas. É desta mesma África subsaariana que, na sua
maior parte, chegam os pacientes ao Centro Frantz Fanon, e é com esta mesma
incerteza que ele se confronta na prática clínica, explorando aquela zona de
sombra, que ele define como subsolo, na qual se ligam a vida psíquica, a
história e a violência. Tentar praticar uma antropologia do subsolo é o desafio
que Beneduce enfrenta em Archeologie del Trauma. O livro confronta-nos com uma
reflexão crítica capaz de abalar algumas ideias instaladas sobre as
experiências psicológicas das vítimas de tortura, dos refugiados e dos
imigrantes em geral, que dominam não só a literatura especializada, mas também
a linguagem comum, os discursos sobre trauma e vulnerabilidade, as retóricas
humanitárias e as representações da violência e das suas vítimas. Sempre
empregando as suas múltiplas competências, Beneduce observa as histórias dos
pacientes acompanhados ao longo dos anos através de lentes diferentes, criando
um diálogo estimulador entre disciplinas e perspetivas teóricas diversas, como
sejam a das ciências da saúde, das ciências políticas, da história e da
psicologia, além da antropologia. Não sem uma certa ironia, lutando contra o
que ele define como o exército dos peritos psicotraumatólogos, profetas de um
novo evangelho no qual as categorias de diagnóstico têm a força de fórmulas
mágicas, Beneduce critica os projetos terapêuticos que esquecem as matrizes
locais do sofrimento e da cura, sublinhando a importância de devolver valor às
experiências particulares do mal-estar. Beneduce usa palavras duras: fala de
imperialismo cultural da psicologia da emergência, de imposição de retóricas
humanitárias e modelos psicológicos rígidos que acabam por contribuir para
aquela anestesia moral e impunidade, características de contextos de terror e
arbitrariedade. Parte destas considerações para a sua provocatória análise
arqueológica do conceito de trauma, da hegemonia da categoria de perturbação
de stresse pós-traumático (PTSD), distanciando-se de uma psiquiatria à procura
de um consenso tão rápido quanto superficial.
A provocação de Beneduce, especialmente considerando entre os seus leitores um
eventual público de profissionais da área da saúde, é ousada: não podemos
esquecer que a ciência soberana no que diz respeito à questão do trauma
continua a ser a psicanálise, que à volta deste conceito construiu uma complexa
teoria do tempo, da dor, da memória e da verdade. Com a legitimidade e a força
do seu ' no mínimo ' duplo posicionamento, de médico psiquiatra mais do que
antropólogo, Beneduce reprova não só as categorias e os modelos que pretendem
definir a arquitetura secreta do sofrimento, mas também critica duramente as
técnicas terapêuticas que elidem a questão moral e promovem uma alienação da
história. Por um lado, define ironicamente as categorias psiquiátricas como
práticos conceitos prêt-à-porter, que concorrem para eclipsar a história em
nome de outras verdades (as do inconsciente ou das leis da neuropsicologia).
Por outro lado, piscando o olho a Foucault, define as intervenções
psicológicas destinadas a trabalhar os dilemas e as chagas da memória como
tecnologias do self, operações engenhosas de controlo dos sujeitos. Na onda
foucaultiana, Beneduce convida então o leitor a considerar as noções de trauma
ou de PTSD de uma perspetiva genealógica, em primeiro lugar reconstruindo a sua
constituição de um ponto de vista histórico. Os dois conceitos constituem,
afirma o autor, ícones perfeitos da história: permitem finalmente anestesiar ou
anular o escândalo da dor através da linguagem neutral da ciência. A analgesia
moral e política derivada do emprego destes conceitos gera-se, em particular,
quando estes evocam um substrato comum (biológico ou psíquico), um mecanismo
neuropsicológico universal, que permite não considerar eventuais diferenças de
condição, projetos e relações de força. Mais se fala de trauma ou de PTSD, mais
se tenta reconduzir à realidade orgânica e objetiva uma alteração persistente
do sistema nervoso central, mais se torna invisível a história. Olhar para
estas noções de uma perspetiva arqueológica significa, por outras palavras,
indagar o que conceitos criados no interior de um saber definido tornam
pensável e o que, pelo contrário, acabam por esquecer ou mascarar.
No decurso do livro, Beneduce tenta investigar através de lentes múltiplas as
relações entre violência, memórias, poder, sofrimento e suas configurações
históricas, sem nunca reproduzir os modelos universalistas do trauma e da cura
que apagam muitas vezes as especificidades sociais, culturais e históricas e
que conduzem à proliferação de vítimas genéricas, expulsas da história e
ignoradas como sujeitos políticos e morais capazes de agir e escolher. Nesse
sentido, este é um trabalho relevante, na medida em que nos permite, através da
experiência ao mesmo tempo clínica e antropológica do autor, ter acesso a algo
que costuma ser muito difícil de captar: o modo como se manifestam e são
negociados no quotidiano muitos dos dilemas, ambivalências e ambiguidades que
caracterizam aquele espaço delicado onde as histórias dos refugiados, dos
requerentes de asilo, dos imigrantes e as suas memórias tangenciam a história
dos serviços para eles vocacionados. Mantendo-se em equilíbrio naquela zona
subtil de interface entre os utentes e os serviços, Beneduce apresenta uma
reflexão sobre as relações que os que habitam os espaços da exclusão ' os
indesejáveis dos quais fala Michel Agier (Gérer les indésiderables, 2008),
indivíduos indefinidos, social e juridicamente expostos a qualquer forma de
arbitrariedade ' constroem com o passado, o poder, a dor e a própria
subjetividade. Falando com a consciência de quem frequenta na prática
profissional quotidiana os serviços vocacionados para os sem-Estado, os não-
cidadãos, Beneduce examina lucidamente o governo contemporâneo dos
indesejáveis, um governo que fala em nome dos que não somente vivenciam uma
dupla ausência, como indicava Sayad falando em geral da condição dos
imigrantes, mas também um duplo desenraizamento: do tempo e do direito. A
questão do apoio social, da ajuda humanitária e das suas formas ocultas de
poder relembra, segundo a perspetiva de Beneduce, as tentativas de civilização
e de medicalização do outro da época colonial, a história da planificação do
desenvolvimento como missão pedagógica, na direção de uma humanidade moderna e
livre, segundo uma lógica liberal. É a partir destas considerações que o autor
instiga os colegas a desenvolver uma análise crítica das práticas do
humanitarismo e do apoio social, como dinâmicas de reprodução da autoridade,
ideologias políticas produzidas em nome dos outros, mas sem o consentimento
deles. Como do conceito de trauma, também da categoria de vítima Beneduce
tenta uma análise arqueológica, desvelando o seu caráter omnívoro, noção mais
moral do que política, cujos confins plásticos englobam a humanidade em
excesso, da qual nos falava Bauman (Wasted Lives, 2003), as tais vidas
desperdiçadas geridas pelo warfare management.
A condição de vítima representa portanto o pré-requisito essencial para se ser
recetor de ajuda e assistência. Não apenas isso, sublinha Beneduce, mas o
requerente de asilo não tem acesso à esfera da cidadania, isto é, não é
reconhecido como refugiado senão enquanto vítima. O acesso aos direitos ou ao
reconhecimento do asilo político depende da possibilidade de poder demonstrar
ser vítima através de uma reevocação performativa das memórias da violência e
do trauma, uma condição já definida por outros autores como cidadania
humanitária, isto é, a constituição de sujeitos detentores de direitos e
responsabilidades com base numa condição social específica (cf. V.-K. Nguyen,
Antiretroviral globalism, biopolitics, and therapeutic citizenship, em A. Ong
e J. Collier (orgs.), Global Assemblages, 2008). Sublinhando então a força
política dos conceitos de trauma e de PTSD, o autor justamente sublinha a
diferença fundamental entre refugiados e requerentes de asilo, mostrando como
ser um refugiado significa em primeiro lugar tornar-se um refugiado, ser
reconhecido juridicamente como tal. Parafraseando Simone de Beauvoir quando
dizia, a respeito da construção de género, que Ninguém nasce mulher, torna-se
mulher, o refugiado constitui-se enquanto tal como consequência do olhar de
terceiros, que o define como vítima impotente e necessitada de ajuda. Estamos a
falar daquela experiência de disempowerment que Muhammad Ali Khalidi (em The
most moral army in the world?: the new ethical code' of the Israeli military
and the war on Gaza, Journal of Palestine Studies, 2010) definiu como
neocolonialismo ou imperialismo humanitário, isto é aquela relação de poder
específica veiculada pela ajuda, que cria identidades colonizadas, sujeitos
incapazes, por outras palavras, de se imaginar senão como sujeitos passivos,
beneficiários, dependentes e vulneráveis. Os vulneráveis, as vítimas têm
que aprender a utilizar muito bem a linguagem do sofrimento e do trauma, único
capital simbólico de que dispõem para se poderem tornar quase-cidadãos. O livro
de Beneduce evidencia de forma clara os aspetos mais dramáticos desta relação:
primeiro, a forma paradoxal como o poder é suprimido ou atribuído às pessoas;
segundo, a apropriação, por parte das instituições que criam as condições para
que o sofrimento tenha lugar, das teorias salvíficas sobre a utilidade do
sofrimento com vista a um bem-estar maior e futuro da humanidade (a violência
do zelo de Lock, em The quest for human organs and the violence of zeal, em
Das et al. (orgs.), Violence and Subjectivity, 2000); finalmente, a evidência
de quanto a assistência, o cuidado, o Estado-social, a proteção humanitária e
até os direitos podem ser manipulados e imbricados na definição e organização
das modalidades de pertença ou exclusão nacional. A relação burocrática da
assistência é definidora de novas identidades sociais, é, portanto, uma relação
polarizada entre vítimas e benfeitores, indivíduos passivos e sujeitos agentes,
recetores e doadores. Se considerarmos a intuição antropológica de Marcel
Mauss, que no Ensaio sobre a Dádiva (1925) afirmava que a dádiva define as
relações de poder e status entre quem doa e quem recebe o dom, podemos afirmar
que as relações que se baseiam na dádiva nunca são neutras, mas, especialmente
na impossibilidade da reciprocidade, constroem o outro como vítima, passivo,
dependente, infantilizado. Incapazes de devolver o dom, na lógica da
reciprocidade, os refugiados ficam bloqueados na posição de subordinados: o que
se espera deles é a prestação de comportamentos dóceis e de reconhecimento em
relação aos benfeitores, e uma total ausência de agency que os transforma em
vítimas mesmo quando o não são. O livro de Beneduce constitui, neste sentido,
um passo importante na direção de uma melhor integração e de um atendimento
diferente dos imigrantes não documentados, dos refugiados e requerentes de
asilo. Não se afirma que os que são excluídos dos direitos não necessitam de
apoio. Evidentemente que sim. O problema que neste livro se levanta com grande
sensibilidade é acerca do tipo de ajuda que recebem, da forma como esta ajuda é
oferecida e sobre o papel que eles são obrigados a assumir para poder
beneficiar desse apoio. O que significa, por outras palavras, que é preciso
demonstrar ser uma vítima real para se ser reconhecido como cidadão. O
humanitarismo define o que poderíamos qualificar como uma ordem do discurso: os
seus enunciados, as suas relações e os efeitos de verdade. Os sem-Estado não
podem evocar condições de pobreza, falta de emprego, instabilidade ou
exploração económica para ter acesso aos direitos, mas devem mostrar as feridas
da violência na memória e no corpo. Devem tornar-se pacientes, através de uma
biomedicina que opera como um verdadeiro dispositivo de cidadania,
transformando a violência política e o sofrimento coletivo em doença
individual. É uma forma, se quisermos, de biopolítica presente nos decretos
legislativos, na postura das instituições e dos profissionais que nestas
colaboram, que está presente, por outras palavras, em todas as pequenas
monarquias que podem decidir quem pode ficar na Europa-fortaleza.
Política da prova, política do testemunho, política da verdade e da dúvida como
recurso para obter um direito: é neste eixo que o livro de Beneduce se abre a
novas interrogações sobre o setor da assistência e do apoio, como estímulo para
pesquisas futuras. E é neste ponto que os nossos interesses, os do Beneduce, o
autor do livro, o médico psiquiatra, o professor de antropologia médica e os
meus, como leitora e ex-aluna, mais uma vez se aproximam. O ponto a que me
refiro é o setor do cuidado, care, que vai do assistencialismo, do apoio
social, ao humanitarismo. São duas práticas distintas mas que, no fundo,
constituem duas faces da mesma moeda: o primeiro, nas suas facetas piores,
reproduz um paternalismo de cariz colonial, justificado pela força do domínio
(cf. A. Ong, Buddha is Hiding, 2003) e do ethos da compaixão (D. Fassin,
Compassion and repression: the moral economy of immigration policies in
France, Cultural Anthropology, 2005); o segundo, capaz de silenciar
paradoxalmente as vozes dos atores em jogo, descontextualizando as suas
histórias e sofrimentos, transforma-os sempre mais em objetos de assistência e
sempre menos em agentes políticos. O mesmo poder que concorre para criar as
condições que favorecem a exclusão social entra em jogo para oferecer respostas
institucionais e políticas de intervenção adequadas ao sofrimento que se propõe
aplacar. Julgo, com Beneduce, que, atualmente, um dos maiores desafios da
pesquisa antropológica que se queira caracterizar como crítica consiste em
investigar as políticas contemporâneas, não tanto nas suas instituições e
técnicas, mas sobretudo no ethos que as anima. Trata-se de políticas que, em
nome da virtude moral da compaixão, se empenham em aliviar o sofrimento,
afastando todavia o olhar das suas próprias causas e contribuindo para criar
sujeitos assistidos e torná-los vítimas, mesmo e especialmente quando não o
são. Os sentimentos morais ' ou as tais boas intenções que se autojustificam
enquanto tal face a qualquer tentativa de crítica ' encontram-se hoje na base
das políticas públicas contemporâneas: nutrem os seus discursos e legitimam as
suas práticas, especialmente quando estas são destinadas aos oprimidos, aos
dominados, aos excluídos. O vocabulário do sofrimento, da vitimização, assim
como o da compaixão e da solicitude humanitária fazem hoje parte da nossa vida
política. A intervenção de George Bush em 2002, na qual define o esforço contra
a pobreza como um trabalho de compaixão (<www.whitehouse.gov/news/releases/
2002/04/20020430-5.html>), ou o discurso de Sarkozy para a França que sofre
em 2006 (<http://www.u-m-p.org/site/index.php/s_informer/discours/
nous_allons_faire_revivre_l_espoir>) são dois bons exemplos desta postura: uma
linguagem que se impõe e é capaz de criar consenso com uma força tal que
permite justificar e legitimar qualquer tipo de intervenção ou decisão política
(cf. D. Fassin e M. Pandolfi, Contemporary States of Emergency, 2010). Como
sublinha muito bem Didier Fassin (em La raison humanitaire, 2010), esta
política da compaixão é, em primeiro lugar, uma política da desigualdade e, em
segundo lugar, uma política de solidariedade: a relação humanitária é,
portanto, profundamente assimétrica. E esta assimetria é mais política do que
psicológica: parafraseando Fassin, não se trata tanto de uma crítica da
compaixão pela postura de superioridade que implica, mas porque supõe uma
relação de diferença social. A compaixão é dirigida de cima para baixo, dos que
detêm o poder (ou o saber) para os vulneráveis, os marginais, os frágeis. A
política da compaixão é portanto um governo humanitário das vidas precárias. E
a antropologia não é estranha a esta lógica, especialmente a postura de uma
certa antropologia médica crítica na qual eu muito me reconheço e que
certamente caracteriza o estilo dos livros de Roberto Beneduce ' uma
antropologia que a partir dos anos 90 começa a delinear-se pelo seu interesse
pelos miseráveis, os excluídos, os traumatizados, as vítimas. Expressões como
sofrimento social e violência estrutural tornam-se ícones desta particular
representação das misérias do mundo (cf. Pierre Bourdieu, La misère du monde,
1993), à qual as ciências sociais aportam a autoridade da reflexão teórica e
das pesquisas empíricas. Legitimada pelos dados etnográficos e pelo discurso da
ciência, esta visão das coisas impõe-se com a força da evidência. Talvez seja
isso o que mais caracteriza estes dois livros de Beneduce: uma certa postura de
acusação de todos os mecanismos que contribuem para silenciar os que já não têm
voz, para ocultar a história e as suas heranças, a política e as suas
motivações. Há neles uma vontade de intervenção que comove o leitor, que
acompanha esta viagem envolvente entre a denúncia do que foi e está a ser feito
em direção a uma suposta forma certa ou, pelo menos, melhor de cuidar dos
oprimidos, e uma tensão genuína para compreender e aliviar os múltiplos
sofrimentos dos aflitos que acaba por reconfirmar em parte o ethos da
compaixão, ou melhor, a economia moral que caracteriza a contemporaneidade.