Mutualidade e conhecimento etnográfico
O termo mutualidade tem vindo a ser usado recentemente para descrever o tipo
de interlocução criada pelos antropólogos na situação de trabalho de campo,
referindo-se ao sentimento de revelação partilhada que é incontornável na
experiência da produção etnográfica sustentada em pesquisa de campo (Pina-
Cabral no prelo). Na leitura de João de Pina-Cabral, a mutualidade funda o
modo como os antropólogos e os informantes se envolvem em processos de
(co)responsabilidade, correspondendo a uma aproximação à comunicação
antropológica, articulada em ações (Pina-Cabral 2003, no prelo; Davidson 2001).
[1]
Como refere Richard Wilson a propósito do pensamento de Pina-Cabral, o que está
em causa é reconhecer que o conhecimento etnográfico se funda em processos de
comunicação que implicam cedências mútuas e por isso são melhor descritos a
partir de conceitos como o de caridade interpretativa do filósofo analítico
Donald Davidson, do que tendo por referência conceitos como o de tradução,
criados para descrever a transposição de sentidos linguísticos (Wilson 2004:
15). Richard Wilson lembra que o conceito de caridade interpretativa serve
para explicar trânsitos históricos que, por exemplo, permitem a comunicação
entre mundos muito diferentes, quando chineses se interessam pelos romances
literários ocidentais e mergulharam nos valores e nos mundos que eles
representam, ou quando Peter Brook adapta a épica indiana do Mahabharata a
peças teatrais que podem ser desfrutadas e que se impregnam no pensamento
intelectual dos espectadores euro-americanos (Wilson 2004: 16). Pina-Cabral
insiste igualmente neste fundo histórico de influências mútuas, assinalando
como para várias gerações de chineses e chinesas a leitura de Balzac,
Flaubert, Roman Rolland ou Gide não foi uma simples distração, mas constituiu
um instrumento para o reenquadramento do seu quadro referencial mais vasto em
termos das suas identidades pessoais enquanto intelectuais, enquanto cidadãos
mas, sobretudo, enquanto homens e mulheres (Pina-Cabral 2003: 113).
Ao transferir esse conceito de caridade interpretativa para a produção da
etnografia em antropologia, Pina-Cabral acredita que também a origem do projeto
de conhecimento antropológico assenta num processo de procura de pontos de
contacto e dos sentidos que nos aproximam dos nossos interlocutores, ainda que
procure a compreensão da diferença (uma marca incontornável da antropologia):
Voltemos às conceções de Donald Davidson sobre o processo de
comunicação. Para este autor a indeterminação da tradução' só é
ultrapassada pelo fato de estarmos dispostos a conceder aos nossos
interlocutores que o que eles dizem é passível de fazer sentido. A
esta disposição ele chama caridade interpretativa' (Pina-Cabral
2003: 118).
Rejeitando há muito a utilidade da metáfora da tradução para explicar ou
descrever os termos da intermediação na etnografia (Pina-Cabral 1991), a
influência primeiro de Davidson e depois de uma leitura e adaptação das
reflexões de Johannes Fabian marca a proposta de João de Pina-Cabral, segundo a
qual a mutualidade é o eixo processual que marca a produção etnográfica
contemporânea. Essa proposta implica pelo menos três posicionamentos face ao
conhecimento antropológico. Primeiro, conceber a pesquisa de campo como um
processo não tanto subjetivo (como sublinharam as reflexões pós-modernas) mas
intersubjetivo ' o que obriga a repensar essa dimensão do conhecimento. Em
segundo lugar, reintegrar e refundar os conceitos de real, verdade ou
evidência para o projeto de conhecimento antropológico: É importante
continuarmos a insistir que, na etnografia, podemos capturar o real (Pina-
Cabral 2010: 167). Este pragmatismo tem marcado muitas das reflexões
contemporâneas recentes sobre o tema na antropologia (por exemplo, Csordas
2004; Hastrup 2004; Wilson 2004; Strathern 2006; Bloch 2008; Engelke 2008;
Toren e Pina-Cabral 2011). Em terceiro lugar, tomarmos a mutualidade como
condição para esta verdade antropológica, assumindo que integramos as
formulações discursivas sobre a vida nas experiências e modos como o mundo se
vai configurando, permite ultrapassar o falso, mas tão difundido, axioma
segundo o qual o propósito da antropologia seria o de confrontar o que se diz
com o que se faz ou pensa:
Partindo da constatação de que o mundo vivido é historicamente
constituído, os antropólogos foram frequentemente tentados a
considerar que o que havia para analisar era apenas esse mesmo
processo constitutivo; isto é, que não há mundo (that there is no
world) (Pina-Cabral 2010: 167).
Diferentemente dessa visão discursivista extrema, a ideia de que a produção da
etnografia depende da capacidade de criar condições de mutualidade obriga a
perguntar o que há de partilhável em relações à partida inverosímeis, tais como
as que vivemos em contextos de pesquisa etnográfica. A partilha não significa,
portanto, assentir e, sim, alcançar pontos de comunicação ' de semelhança e não
de identidade '; não implica também que os nossos interlocutores alcancem
connosco e ao mesmo tempo do que nós o conhecimento que nós alcançamos, até
porque produzimos o nosso conhecimento em diálogo com uma tradição de
conhecimento, com debates específicos, que se consolidaram no decorrer de uma
história disciplinar (Pina-Cabral 2003: 109). Por não ser um conhecimento
homogéneo, já que ele implica, necessariamente, uma diversidade de perspetivas
(multivocal, plural, etc.) que se vão constituindo num processo temporal longo,
a produção de conhecimento etnográfico implica também uma permanente
reavaliação do conhecimento face a sucessivas interlocuções. A ideia está bem
representada na expressão de Fabian de que em trabalho de campo não consumimos
os outros, porque os nossos interlocutores permanecem presentes e confrontam-
nos (Fabian 2001: 77, cit. em Pina-Cabral no prelo).
A mutualidade é, assim, uma chave para a epistemologia etnográfica. Um dos mais
difíceis desafios colocados a um antropólogo é explicar a uma audiência de
colegas de diversas áreas disciplinares em que medida e como é que, no processo
de trabalho de campo, vamos reorientando a nossa análise, as nossas hipóteses e
as nossas interpretações. Quanto mais o contexto universitário caminha para
exigências de estandardização, mais a questão se coloca. E quanto mais diversas
áreas do conhecimento adotam preferências por abordagens etnográficas ' da
psicologia à sociologia ou à criminologia ', mais difícil se torna mantermos a
ideia de que um projeto de pesquisa antropológica não tenha de partir de
hipóteses. Do ponto de vista da antropologia, a ideia de que a etnografia
assenta num método através do qual se recolhem dados objetivos no / do terreno
não está em causa, mas a forma como se concebe essa aproximação ao terreno por
vezes implica ou tende a implicar uma ficção de distância e, ao mesmo tempo, de
transcendência no processo de construção do conhecimento. Para contrariar essa
transcendência que torna nebulosa a descrição do processo de produção de
conhecimento etnográfico é preciso não negligenciar a dimensão processualista
do conhecimento, em constante transformação e que se produz no seio de relações
sociais. A reflexão que propomos neste dossiê contribui para dar resposta a
este conjunto de desafios, partindo da premissa de que a experiência da
situação de campo não implica apenas para a antropologia uma vivência pessoal
(subjetiva) e, sim, uma vivência prolongada de intersubjetividade que se
desenvolve por meio de revelações partilhadas,sendo no âmbito dessas revelações
que vamos reformulando as próprias categorias com que compreendemos a realidade
em estudo (Toren e Pina-Cabral 2011; Toren 2011; Viegas 2011).
Assim, o contributo deste dossiê para estas questões resultou, primeiramente,
do desafio que fizemos a cada um dos autores para refletir sobre uma situação
ocorrida no decurso da sua pesquisa de campo que tivesse sido por eles
considerada um imprevisto (esta foi a expressão que usámos). Reforçámos o
facto de não se tratar de contar uma anedota de campo ou de expor um momento
difícil para o autor, mas de explorar um ou mais eventos que tivessem
representado uma experiência inesperada por meio da qual tivessem reformulado
as perguntas etnográficas. Os textos que integram o dossiê respondem de modos
muito diversos, e ao mesmo tempo complementares, a este desafio.
As investigações de campo desenvolvidas pelos antropólogos que contribuíram
para este dossiê constituem, do nosso ponto de vista, uma importante
representação da diversidade das investigações antropológicas que estão
atualmente a ser desenvolvidas sobre Portugal ' a revisitação do mundo rural,
o acompanhamento de vidas transnacionais, a produção (e poder) de identidades
profissionais, as reequações das pertenças e papéis de género em contexto
imigratório. Nesse sentido, o conjunto dos artigos deste dossiê leva-nos a
realidades do país, contribuindo para a constante atualização dos terrenos
portugueses e para a compreensão das suas complexidades (e. g. O'Neill e Brito
1991; Lima e Sarró 2006).
MUTUALIDADE e INTERSUBJETIVIDADE
Para a antropologia a etnografia permanece vital, não porque os
métodos etnográficos garantam um certo tipo de conhecimento dos
outros, mas porque o trabalho de campo etnográfico nos leva a um
diálogo direto com os outros, oferecendo-nos oportunidades para
explorar o conhecimento (Jackson 1996: 7).
A mutualidade como marca do processo de produção da etnografia implica tomar a
posição do sujeito e a subjetividade como intersubjetividade (Toren 2011;
Viegas 2011), dando um passo em frente na integração da problemática da
reflexividade na antropologia. Como nos lembra Hastrup, se na era moderna se
admitia que o objetivo do conhecimento antropológico era a enumeração de
proposições ontológicas sobre outras culturas, a antropologia produzida após
a crítica reflexivista será informação organizada, sim, mas direcionada aos
modos de viver no mundo e modos de atender ao mundo (Hastrup 2004: 456),
fazendo da condição de ser-no-mundo o ponto de partida para a pesquisa
antropológica (Pina-Cabral e Campbell 1992; Toren 1993; Jackson 1996: 9). Numa
recente reflexão sobre as adaptações da intersubjetividade da filosofia
fenomenológica (especificamente de Husserl) para a antropologia, Alessandro
Duranti (2010) lembra-nos que esta adaptação da fenomenologia ao projeto de
conhecimento antropológico só se tornou possível porque a antropologia se
libertou do tipo psicologizante das abordagens da intersubjetividade (Devereux
1967), que a entendem como uma forma de conhecer o que os outros têm em mente
ou uma experiência de participar nas ações e sentimentos de outro ser, sem se
ser ou nos tornarmos o outro (Duranti 2010: 19, 22). No seguimento do
pensamento de Husserl, Duranti expõe um outro modo de conceber a
intersubjetividade que, em vez de a aproximar da empatia (ver o mundo do ponto
de vista do Outro), a descreve como uma condição de produção de saber
necessariamente vinculada à relação: ver a intersubjetividade de uma forma
verdadeiramente husserliana significa concebê-la, antes de tudo, como a
possibilidade da interação humana e do conhecimento humano (Duranti 2010: 21,
26). A relação, neste sentido, não pode ser confundida com a identificação (que
a empatia presumia).
É esta depuração conceptual da intersubjetividade que está associada à noção de
mutualidade. Ela distingue-se, por fim, de uma outra aceção de mutualidade
proposta recentemente por Marshall Sahlins a propósito do parentesco, que
poderia ser definida como a mutualidade do ser (mutuality of being): uma
relação entre pessoas que pertencem [belong] umas às outras, que são parte
umas das outras, que estão copresentes umas nas outras, cujas vidas estão
juntas e são interdependentes (Sahlins 2011: 11). Esta proposta de Sahlins não
se alinha diretamente com o entendimento da intersubjetividade que aqui
postulamos. Sahlins está a recorrer à visão da intersubjetividade como uma
forma de participação entre duas entidades separadas. Diferentemente, a
perspetiva que aqui defendemos presume que a própria subjetividade é
intersubjetividade e portanto a revelação partilhada, a rigor, é constitutiva
e não o produto da aproximação entre dois entes.[2]
A fundamentação do trabalho epistemológico da antropologia nesta experiência de
mutualidade tem um último corolário que apenas enunciámos acima e que importa
explicitar. Se, por um lado, a mutualidade implica uma corresponsabilidade e,
por outro, implica um confronto permanente (e não determinável) com os nossos
interlocutores, então se compreende a complexidade da ética no empreendimento
da pesquisa antropológica. Se estamos permanentemente a ser confrontados com os
outros e se faz parte do projeto de conhecimento antropológico integrar esse
confronto no nosso conhecimento, então a ética é um procedimento que acompanha
do início ao fim o trabalho de pesquisa. Percebemos, no próprio procedimento
epistémico, por que razão se tem tornado tão dominante a ideia de que, no caso
da antropologia, os consentimentos prévios não resolvem as questões éticas (por
exemplo, Caplan 2003: 23). Afinal, e como Michael Lambek (2010) argumentou
recentemente, os discursos e as ações dos sujeitos encerram uma ética banal
(ordinary ethics, no original), ética essa que, como argumentamos, está
presente, em toda a sua complexidade e ambiguidade, nas formas como construímos
conhecimento na relação com os nossos interlocutores.
Sumariando o propósito deste dossiê, poderíamos dizer que a pesquisa
antropológica implica uma forma de experiência intersubjetiva que não é
apenas um meio (um método) para alcançar um fim (conhecimento), mas uma forma
efetiva de criar / produzir conhecimento. É esse percurso, do reflexivismo
metodológico para aquilo a que poderíamos aqui chamar reflexivismo epistémico,
que é percorrido em cada um dos textos deste dossiê. A marca deste tipo de
reflexão passa por descrever como se transforma em conhecimento as reações
imprevistas de interlocutores em campo, nesse sentido contribuindo para essa
ampla e inacabada tarefa de explicarmos porque a antropologia não parte de
hipóteses e sim de problematizações. A integração de reações imprevistas serve
aqui de mote, portanto, para descrevermos como se transforma o confronto mútuo
em material que, por sua vez, moldamos e transformamos em conhecimento.
CONHECIMENTO E REVELAÇÃO EM QUATRO EXPERIÊNCIAS DE PESQUISA ETNOGRÁFICA
Este dossiê conta com quatro textos que explicitam a produção de etnografias
fundadas em experiências de campo. No primeiro texto, Humberto Martins fala-nos
de uma região rural do Norte de Portugal ' um contexto que nos diz ter sido
escolhido por ele porque o mundo rural português oferece no século XXI objetos
de estudo novos e interessantes. Desenvolvendo uma pesquisa que alia
etnografia escrita com filme etnográfico, Humberto Martins situa a sua pesquisa
num registo explícito de mutualidade: Ela reconhece a importância de um plano,
de uma sequência numa cozinha antiga, escura do fumo de anos a curar o fumeiro,
da sua representação em imagem criada simultaneamente por mim e por ela e da
representação que muitos outros espectadores criarão sobre aquele lugar, ela,
eu. Dar a sua opinião sobre qualquer assunto que surgisse na sua interlocução
em campo era portanto a posição que viria a assumir sem hesitação, esperando
que as reações dos seus interlocutores fossem parte da sua compreensão desta
vida rural no século XXI.
Assim surgiram as reações inesperadas face a duas opiniões que esboçou, tendo
sido por intermédio dessas reações que foi compreendendo experiências vividas
pelos habitantes locais. A primeira correspondeu a uma reação negativa à
opinião que expressou a propósito da passagem do gado bovino nas ruas
calcetadas (principais) do povoado. Reconhecendo a diversidade de perspetivas
sobre o assunto, o antropólogo acaba por se posicionar do lado de algumas das
pessoas da aldeia que acham que a aldeia deve manter a sua originalidade, ou
seja, a sua vida e estética camponesa, o que, curiosamente, se torna objeto de
desejo do turismo predominante no Parque Nacional da Peneda-Gerês (onde a
aldeia se situa). Face à sua posição, as reações multiplicam-se e expõem-se as
posições ambivalentes dos moradores que fazem parte de um mundo rural marcado
pela modernidade. Tendo experienciado no passado (quando emigrados) viver em
espaços limpos e isentos de odores de bovino, estes moradores contrapõem-se,
defendendo que o gado e, em geral, todos os animais (galinhas, pintos, cabras,
ovelhas e cavalos) deviam apenas passar pelos caminhos à volta do aglomerado
urbano. Um dos seus próximos interlocutores considerou que, ao estar contra
esta posição, o antropólogo não estaria verdadeiramente implicado na vida
quotidiana da aldeia, projetando-o para fora (tu não és daqui). É a partir
dessa reação que Humberto Martins funda a sua compreensão do que significa a
ambivalência de um rural confrontado com as aporias do mundo moderno.
Irene Rodrigues fala-nos de uma pesquisa que, nos últimos dez anos, a tem
levado a conviver com chineses em Lisboa, em Pequim e numa área rural chinesa.
Percorrendo as diversas formas como foi sendo por eles posicionada no contexto
de uma mesma categoria de estrangeira (laowai), vai depurando um exercício
reflexivo que tem por objetivo aprofundar o conhecimento etnográfico do que é
ser estrangeira. As posições dos seus interlocutores confrontam-na
permanentemente e com elas vai aprendendo não apenas a prosseguir em campo, mas
também a refletir sobre esta condição de ser estrangeiro e do etnógrafo
estrangeiro na China, que as reflexões antropológicas só têm referido de modo
pontual a propósito dos entraves políticos e formais à obtenção de autorização
para a realização da investigação, e das reorientações temáticas que daí
advieram. Diferentemente dessa postura estritamente autorreflexiva, o texto de
Rodrigues leva-a a aprofundar a multiplicidade de sentidos da condição de
laowai num amplo quadro social que transita entre considerações sobre ser-se
estrangeiro na China e dar-se com estrangeiros entre os emigrados fora da
China: a ideia de estrangeiro difundida na China tem fortes continuidades e
nuances históricas, já que ela não reflete apenas o modo como são percecionados
os ocidentais' na China, mas também o sentido de modernidade na China e a
própria ideia de ser chinês na atualidade.
Se para alguns dos seus interlocutores Irene Rodrigues conseguia em momentos
determinados quase parecer pelo menos parente de chineses, conclui haver
também quem continue a mantê-la como estrangeira e, na verdade, descobre desse
modo que há um sentido positivo que é atribuído pelos chineses emigrados em
Portugal ao facto de se estar com um estrangeiro: Nalgumas situações, aparecer
com uma amiga estrangeira' era capitalizado pelos chineses que eu acompanhava,
perante outros chineses, como uma forma de promover a sua mobilidade social
ascendente. Para desbravar esse conhecimento etnográfico, a análise de Irene
Rodrigues vai procurando outras categorias que ajudem a compreender o espetro
de sentidos desta categoria (afinal lata) de ser laowai, por exemplo aquelas
que se fundamentam na origem territorial e social: Um dia em conversa com um
outro amigo chinês, estudante de inglês oriundo da província de Jiangxi, ele
avisou-me: Agora tens de ter muito cuidado a andar em Pequim. A cidade está
cheia de waidiren (gente de fora)!' A transposição de uma reflexão
metodológica e autorreferencial para um registo da produção do conhecimento
etnográfico (a que aqui chamamos reflexivismo epistémico) é portanto
iluminadora no texto de Irene Rodrigues.
Elizabeth Challinor (cujo contributo surge num texto em inglês, dado ser essa a
língua-mãe da autora) define o seu posicionamento em campo como um envolvimento
de simultâneo alheamento e intimidade. Discutindo duas dimensões da [sua]
investigação com mulheres cabo-verdianas estudantes numa cidade no Norte de
Portugal, Elizabeth Challinor descreve neste texto a transformação do que se
propunha estudar e a necessária reformulação das suas categorias de pesquisa,
face a dois aspetos do trabalho de campo que, afirma, me levaram não só a
reconsiderar a minha própria posição, como a reajustar as lentes analíticas
através das quais tinha estabelecido os terrenos da minha pesquisa,
nomeadamente as categorias de mulheres cabo-verdianas e as dinâmicas de poder
entre géneros. Se à partida pretendia estudar as mães, a sua gravidez marcada
pela fragilidade de uma situação de emigrantes, jovens e eventualmente sem
parceiro conjugal, a pesquisa de campo vai-a conduzindo a uma muito mais
complexa trama de entendimento das relações de género, das dinâmicas de poder e
das mudanças vividas por mulheres e homens nas circunstâncias em que se
encontram. Este salto é configurado no artigo que aqui nos apresenta a partir
de um evento que para ela foi um choque experiencial imprevisto, já que se viu
envolvida numa desavença conjugal com contornos que vão indiciando a eventual
presença de violência doméstica.
O texto centra-se na difícil descrição de como o choque deste episódio a
conduziu a um choque epistémico, tendo de romper com categorias centrais à
sua pesquisa, tais como a fragilidade da maternidade entre jovens mulheres
emigradas, para dar conta de dilemas complexos das dinâmicas de género que
descobre estarem em processo de transformação. Assim, se a sua atitude inicial
face às posições opostas de cada um dos cônjuges foi a de proteger a mulher
grávida (o foco da minha pesquisa implicava que fosse particularmente sensível
à situação das mulheres grávidas nas suas potenciais fragilidades emocionais e
físicas), o artigo acaba por nos dar conta da sua mudança de perspetiva, não
tanto por contingências de método, mas por avanços na compreensão (e
integração) das vidas destas mulheres num mundo complexo de relações de género,
marcado por fortes ambivalências e dilemas vividos por homens e mulheres cabo-
verdianas nestas circunstâncias. O processo de conhecimento marcado pelo que
denomina conviver com a tensão (staying with the tension) conduz a
observações complexas sobre diferentes paradigmas de género que parecem estar a
ser experienciados ao mesmo tempo por homens e mulheres cabo-verdianos, devido
a influências opostas de ideologias de género divergentes que produzem uma
variedade de expetativas de género que coexistem pouco harmoniosamente. O
texto expõe de modo particularmente iluminador como relações de mutualidade
desencadeiam reformulações do enfoque analítico e o alcance ambivalente de
vivências que parecem encravadas entre diferentes ideologias.
Madalena Patriarca mostra como, no decorrer da realização do seu trabalho de
campo em Lisboa sobre os psiquiatras, se confrontou com entraves de natureza
ética e epistemológica à observação dos serviços psiquiátricos. Tais entraves
revelavam não apenas uma desconfiança de muitos dos seus interlocutores quanto
à abordagem etnográfica, mais concretamente em relação à sua fiabilidade
científica, mas revelavam também o cerne mesmo daquilo que a psiquiatria
considera ser o conhecimento científico legítimo. A antropóloga percebeu que os
consentimentos que havia conseguido para realizar pesquisa sobre psiquiatras
nos hospitais de Lisboa se revelaram pouco úteis para o que efetivamente era
preciso para os psiquiatras a posicionarem e lhe reconhecerem legitimidade
(ética) para a sua investigação. Os psiquiatras duvidam substantivamente do
tipo de recolha de dados que ela se propõe fazer e assim mostra-nos como isso
passou a fazer parte constitutiva do seu conhecimento sobre a psiquiatria. É,
portanto, ao integrar as perspetivas deles sobre o seu trabalho que ela própria
vai desvelando o seu objeto de estudo. Estes imprevistos do terreno conduziram
a autora a caminhos alternativos que resultaram na produção de uma cartografia
histórico-psiquiátrica da cidade.
Contámos finalmente com um contributo especial de Fernando Florêncio, na
sequência da sua participação como discussant no primeiro seminário que esteve
na origem desta publicação. Entusiasmado em refletir sobre a sua própria
experiência de produção etnográfica, o texto de Florêncio serve-nos quase de
contraponto aos restantes contributos. Sustentando-se em trabalho de campo de
longa duração realizado em Moçambique e lidando com questões da política,
particularmente acesas do ponto de vista de éticas e mutualidade, Florêncio
conduz-nos a pensar nas implicações de se trabalhar um tema para o qual a
interlocução em campo é condição de base para contrariar posições ideológicas.
Mostra-nos, ao mesmo tempo, os difíceis contornos desse processo neste caso,
tanto da questão política como da sua condição de estrangeiro num país com
passado colonial. A interlocução, intersubjetividade e mutualidade ganham nesse
contexto uma expressão quase de teste à abrangência da problemática da
produção do conhecimento etnográfico tal como a debatemos aqui, mostrando a sua
natureza altamente contingente e pragmática.
O conjunto de textos reunidos neste dossiê temático é, em suma, uma
concretização exemplar do enquadramento da etnografia contemporânea realizada
por antropólogos que fizeram pesquisa de campo na última década e viram nessa
experiência uma materialização de um conhecimento que transformou a
subjetividade da experiência de campo em intersubjetividade, e também os
imponderáveis das suas experiências de campo em processos de interlocução
marcados pela mutualidade.