O fiel amigo: o bacalhau e a identidade portuguesa
A identificação entre o bacalhau e os portugueses
Em 1884, numa carta endereçada ao seu amigo Oliveira Martins, Eça de Queiroz
escreveu: Os meus romances no fundo são franceses, como eu sou em quase tudo
um francês ' exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma
característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do
bacalhau de cebolada (Queiroz 2008: 331).[1]
Eça era um cosmopolita e um conhecedor da cozinha do seu tempo, tanto da
portuguesa, como da francesa, que descreve em vários dos seus romances. Por
isso, esta citação, mesmo tendo em conta o registo irónico da sua escrita, não
deixa de ser importante por enunciar certos lugares-comuns do que seria
considerado como essencialmente português em finais do século XIX. O sentimento
tido como específico dos portugueses ' a saudade ' e a canção já então
representada como nacional ' o fado' surgem aqui acompanhadas pelo bacalhau.
Para compreendermos o alcance destas considerações, temos de ter em conta que,
na época, era usual acreditar-se que as nações eram dotadas de um caráter
específico detetável nos comportamentos dos seus membros. É um tempo marcado
por um nacionalismo intenso à escala internacional, presente nas medidas de
protecionismo económico, que conhecem grande favor face às políticas liberais,
nos conflitos pela emancipação nacional e na luta pela conquista de impérios
coloniais (Hayes 1963: 216-241). O nacionalismo inspira a procura do
conhecimento e da revivificação do que se julgava ser o mais antigo e autêntico
dessas sociedades ' as suas tradições ', o que incluiria a cozinha (Lindholm
2008).
A apologia de uma cozinha portuguesa ' que surge também no romance póstumo de
Eça A Cidade e as Serras (J. M. Sobral 2014a [no prelo]) ' inseria-se, assim,
na visão do mundo nacionalista então triunfante. E o bacalhau a que o escritor
alude seria reconhecido pelos leitores como parte dessa cozinha, pois era, há
vários séculos, de consumo generalizado em Portugal. Abundante nas águas mais
frias do Atlântico Norte ' há outras variedades mas essas não foram consumidas
em Portugal e nos outros países europeus ', era curado para suportar, sem se
deteriorar, o longo circuito que o trazia daí até aos grandes consumidores
situados na Europa do Sul: portugueses, espanhóis, italianos e franceses,
compreendendo os dois últimos, principalmente, os habitantes do Sul (Parlato
2007: 75; Vitaux 2013). Um modo de preservação assente na seca sem salga '
stockfish ' também terá chegado a ser conhecido em Portugal, onde, em virtude
da sua extrema desidratação, que conduzia à dureza, lhe foi dado o nome de
peixe-pau (Henriques 1731: 201). Foi, porém, o produto obtido através da
salga e da seca, cuja invenção se atribui aos britânicos (Kurlansky 1999: 55),
que acabou por se firmar em Portugal. Os britânicos não controlavam zonas ricas
em sal, ao contrário de Portugal, por exemplo, cujo sal, nomeadamente o de
Aveiro, era considerado da melhor qualidade (Kurlansky 1999: 57-58) e por eles
importado. Em troca, os ingleses protegeriam os navios portugueses que já
frequentavam os bancos da Terra Nova no século XVI, associação que viria a
soçobrar, como veremos mais à frente.
O consumo de peixe, em Portugal como nas outras sociedades europeias, está
associado a motivações de ordem religiosa. O cristianismo impunha, como
penitência, jejuns e a abstinência da carne e das gorduras animais numa boa
parte do ano, o que tornava obrigatório o recurso ao peixe para escapar a uma
alimentação inteiramente vegetal. As zonas costeiras eram abastecidas por peixe
fresco, o que não sucedia nas zonas interiores ' onde algum ainda chegava às
escassas elites ', apesar de se recorrer ao peixe de água doce. Havia que o
importar, como sucedia com a sardinha, abundante em toda a costa, mais
acessível e transportada salgada, mas que não chegava para as necessidades da
procura. Há que ver, também, que o bacalhau, uma vez curado adequadamente,
teria uma maior capacidade de conservação. Outros pequenos peixes, como o
carapau, seco pelos pescadores, e mesmo outros maiores ' como a pescada ou o
polvo secos, ou o atum de barrica, oriundo do Algarve ' também não tiveram uma
difusão comparável à escala do país. O bacalhau tornou-se uma mercadoria
importante, muitos séculos antes de a ciência moderna o valorizar como alimento
excecional devido à sua carne branca e firme, quase isenta de gordura, que
quando seca é um concentrado de proteínas: perto de 80% (Kurlansky 1999: 34).
Além disso, há um grande aproveitamento do seu corpo: das cabeças e da língua
(em salmoura), dos sames ' ou samos, a bexiga natatória ' e do fígado, fonte de
óleo saudável e de pequenos traumas infantis ligados à sua ingestão compulsiva.
Procede-se neste ensaio a uma genealogia sumária da relação entre o bacalhau e
os portugueses, em parte já abordada de modo distinto por diversos autores.[2]
Quer isto dizer que esta é analisada retrospetivamente, procurando mostrar como
se chegou à situação em que ele aparece como um marcador explícito da
identidade portuguesa. Ao proceder deste modo, sentimos que o nosso olhar sobre
esta matéria deve muito a dois paradigmas disciplinares: o da historiografia
dos Annales, atenta à importância dos fenómenos de natureza económica, social,
cultural e simbólica que ocorrem na longa duração, a da estrutura, que
privilegiaram; o da antropologia da alimentação e da cozinha, um campo de
estudos que, sendo antigo, conheceu nas últimas décadas um grande
desenvolvimento (Tierney e Ohnuki-Tierney 2012). Os contributos destas
abordagens serão visíveis tanto nas obras que citamos, como nas temáticas que
aqui exploramos. Há dois livros, em particular, cuja influência marca
genericamente o modo como a alimentação e a cozinha são aqui abordadas. São as
obras clássicas de Jack Goody (1982) e de Sidney Mintz (1985), que têm, de
resto, grandes afinidades entre si. São textos que combinam a experiência do
conhecimento obtido pela observação e inquirição direta com aquele que decorre
da pesquisa histórica. Se o primeiro traz para a análise da cozinha a dos
sistemas de produção, da estratificação social e dos modos de conhecimento, o
segundo mostra, a partir do estudo do açúcar de cana, como a alimentação e a
cozinha são parte de processos históricos amplos como o desenvolvimento do
capitalismo, o tráfico de escravos e a história do consumo e dos estilos de
vida.
Em ambos os casos, trata-se sempre de examinar os objetos de estudo no contexto
de uma análise mais ampla, como é necessário fazer no estudo da relação entre o
bacalhau e os portugueses. A história desta relação é não só de natureza
económica, ligada ao desenvolvimento da economia mundial capitalista, em que a
pesca e o comércio do bacalhau, um peixe abundantíssimo no Atlântico Norte,
desempenharam um papel relevante, como o mostrou Fernand Braudel (1979: 184-
187), mas também religiosa, social, política e cultural.
Ao longo de séculos, o bacalhau transformou-se de simples género alimentar em
símbolo da identidade portuguesa, de comida socialmente conotada com situações
de abstinência e mesmo própria de pobres, em alimento caro e prestigiado no
campo gastronómico. Nas páginas que se seguem iremos dar alguns contributos
para entender essa metamorfose do bacalhau. Partindo da situação atual em que a
identificação entre o bacalhau salgado e seco e Portugal e os portugueses é um
dado adquirido, iremos fazer algumas incursões sobre a história do seu consumo,
em que se referirá necessariamente, mas sem muito detalhe, a do abastecimento
do mercado português.
A indagação sobre os testemunhos da vinculação entre os portugueses e o
bacalhau conduziu-nos ao exame de materiais escritos que o tomam como objeto,
entre os quais a literatura de cordel, ou a cerimónias paródicas, como os
seus enterros ou julgamentos, que mostram o seu enraizamento e
popularização.
A aquisição de um gosto alimentar implica também uma habituação, um treino em
determinados tipos de alimentos e sabores, o que ocorre através da mediação dos
sentidos. Os habitus culinários ' como os outros ' formam-se pela incorporação,
que naturaliza e exalta certos alimentos e sabores e rejeita outros. Uma
cozinha é definida segundo diversos fatores, entre os quais o que é ou não
comestível, os modos de preparar a comida, certas maneiras ou etiquetas
(Belasco 2008: 15-18) comuns no grupo, o que não implica qualquer homogeneidade
deste. Há, por exemplo, quem evite certos alimentos que vão contra os seus
valores ou porque os ache repugnantes ' os vegetarianos rejeitam os alimentos
animais, que são, no entanto, parte da dieta da maioria dos portugueses; uma
parte destes gosta de caracóis, outros detestam-nos, etc. ', ou ainda, pura e
simplesmente, porque não os pode adquirir. Mas certos alimentos e sabores
tornam-se familiares à maioria, como é o caso, entre os portugueses, do
bacalhau e de temperos que entram comummente na confeção dos pratos em que ele
é uma componente principal: azeite, alho, cebola. Essa familiaridade possui uma
dimensão corporal, construída por experiências simultaneamente sensoriais '
olfativas, visuais, gustativas ' e culturais, que se enraízam e tornam a comida
uma manifestação de especificidade de grupo, revelada pela aceitação ou
exaltação de certos alimentos ou preparados e pela repugnância face a outros
(Tierney e Ohnuki-Tierney 2012: 119-120). Essa familiaridade, como qualquer
outra ' a aprendizagem da chamada língua materna, por exemplo ' adquire-se de
um modo não consciente, através de uma socialização lenta, que começa na
infância. Como refere um neurocientista, estas impressões e preferências ao
nível do gosto são retidas a nível cerebral e sobrevivem à multiplicidade das
ofertas culinárias com que deparamos nos nossos dias: Mesmo na nossa era da
globalização, quando a nossa dieta quotidiana pode incluir pratos de outras
terras ' como sushi em Los Angeles, massa em Nova Iorque ou McDo' em Paris '
as combinações particulares que aprendemos enquanto crescemos são parte da
nossa identidade nacional (Shepherd 2012: 12). São elas que formam a base de
identificações duradouras, da memória e da nostalgia, em que um alimento ' como
um determinado tipo de pêssego evocado por uma grega em Londres (Seremetakis
2005) ou os pepinos do Líbano por um emigrante deste país na Austrália ' pode
desencadear metonímias imaginadas que se reportam ao todo, que é a terra
natal (Hage 2010: 418-425). No fim de contas, trata-se de situações análogas à
desencadeada pelo consumo de uma madalena acompanhada por chá por Proust.
Levado, nas suas palavras, pelo odor e pelo sabor, é conduzido a relembrar
experiências similares na infância e, com elas, toda uma vida no tempo que
passou (Proust 1973 [1913]: 58-61), através de uma memória sinestésica, ou
seja, da soma das experiências sensoriais, como as que recordam a ilha grega de
que se partiu (Sutton 2001).
Um consumo antigo
O bacalhau salgado e seco é muito importante na alimentação atual em Portugal,
pois os portugueses são o seu primeiro consumidor mundial (Dias et al. 2001:
11). Já o são há muito. Antes da Segunda Guerra Mundial, o consumo médio anual
era de 7 kg por habitante; entre 1946 e 1967 de 8,8 kg per capita. Dados
comparativos relativos a outros grandes consumidores revelam a distância que os
separa do consumo português. A Espanha, segundo consumidor mundial, que, antes
da Guerra Civil de 1936-39, consumia 3 kg por habitante, passa para 1 kg em
1950; a França, em 1954, consumia 0,8 kg per capita (Garrido 2004: 307). A
balança alimentar de 1948-49 revela que se consumiam 47.522 toneladas de
bacalhau salgado e seco ' menos do que peixe fresco (77.307 toneladas), mas
muito mais do que suíno (29.653 toneladas), uma fonte de proteína básica, e do
que de bovinos ' adultos e jovens (29.969 toneladas) ', carne de luxo.
Consumiam-se então 14.755 toneladas de ovinos e caprinos e 10.050 de aves de
capoeira (Correia 1951: 230-231).[3]
As médias nacionais encobrem o facto de o seu consumo ser muito diferenciado.
Os maiores consumos em finais da década de 1950 ocorriam nos distritos do Porto
(17 kg per capita), Lisboa (16,5), seguidos de Braga (9,6 kg), Viana (7,5 kg),
Aveiro, Setúbal, Coimbra, Viseu (áreas onde havia simultaneamente maiores
rendimentos, próximas do mar e algumas contendo centros da pesca do bacalhau).
Os menores, nos distritos do interior e no Algarve (citado em Moutinho 1985:
180-181).
Para Moutinho, estes dados exprimiriam desigualdades de rendimento muito
fortes. O bacalhau seria mais consumido pelos citadinos e pelo proletariado
industrial e menos pelos agricultores pobres, que também o comeriam, mas de
forma pouco representativa em termos de quantidade (1985: 182). Um historiador
mais recente emitiu opinião concordante: as zonas do interior eram mais pobres,
destituídas dos rendimentos mais elevados propiciados tanto pelo terciário como
pela indústria. No Algarve quase não se comia bacalhau, mas, em contrapartida,
consumia-se bastante peixe produzido localmente (Garrido 2004: 308-312). Note-
se, entretanto, que, embora o peixe visse aumentar o seu consumo entre 2003 e
2008, o bacalhau viu-o diminuir nesse período em 20%, devido ao aumento de
preços (INE 2010: 7).
Citamos estes dados porque, apesar das suas lacunas ' não nos permitem
diferenciar os consumidores segundo a sua posição de classe ', nos proporcionam
uma imagem da distribuição espacial do consumo do bacalhau que não possuímos de
modo sistemático para épocas anteriores. Alguns outros estudos corroboram estes
dados. Deve dizer-se que, como pano de fundo, a situação alimentar da maioria
da população portuguesa era deficiente, em particular no que se refere aos
alimentos de origem animal. O pão, batatas, hortaliças e legumes constituíam o
núcleo da alimentação das classes trabalhadoras rurais (Oliveira e Silva 1951
[1948]: 196). A carne consumida por estes grupos era sobretudo a carne de porco
mais gorda e alguns enchidos. O peixe mais importante era a sardinha e o
bacalhau acompanhava-a, com menor intensidade, nas classes trabalhadoras. Os
regimes alimentares rurais eram, em meados do século XX, mais pobres do que os
citadinos e a alimentação aumentava em variedade e riqueza à medida que se
ascendia na hierarquia de classes (Ferreira 1951 [1944]). Como se referia num
estudo dos orçamentos familiares e das despesas de alimentação de 176 famílias
de trabalhadores rurais de todos os distritos do Continente, a escolha de
alimentos era determinada em primeiro lugar por constrangimentos de ordem
económica, mas também pelo hábito (Oliveira e Silva 1951 [1948]: 196). Era ele,
certamente, que explicava que a sardinha e o bacalhau fossem consumidos por
trabalhadores rurais no Noroeste, mas não na Beira Baixa ou no Alentejo (E. L.
Basto 1951 [1934-1936]).
Todavia, apesar de não constar, em pleno século XX, da dieta alimentar
quotidiana ' mas, em dias especiais, ou festivos, a situação seria diferente '
de uma parte da população portuguesa, o bacalhau havia séculos que se
transformara num alimento importante em Portugal. Esta informação assenta num
grande número de fontes, apesar de estas não serem suficientemente detalhadas
ao ponto de conhecermos com todo o rigor o lugar que ele ocupava na mesa dos
diferentes grupos sociais. Também não há informações sobre a qualidade do
bacalhau que se comia, embora não seja erróneo supor, à luz da oferta
diferenciada contemporânea do produto, que o que as elites ingeriam não seria
certamente o mesmo produto consumido pelas camadas populares.
Há testemunhos de um consumo importante do bacalhau em Portugal desde o século
XVI, afirmando-se ser o peixe predileto, a par da sardinha (Castelo-Branco
s. d.: 312). Era o remédio dos pobres (Castelo-Branco 1969 [1956]: 170);
também era chamado a carne dos pobres no Sul da Itália e estava integrado na
cozinha camponesa (Parlato 2007: 69). Na Âncora Medicinal, manuscrito de
Francisco Borges Henriques que refere inconvenientes do seu consumo, afirma-se
que ele é apropriado aos mais pobres e rudes que trabalham: He o alimento dos
pobres e dos rusticos; e proprio para pessoas que trabalham e se exercitão
muyto. Não se deve usar nas pessoas delycadas, nem nas que passão vida
sedentária (1731: 199). A primeira aparição do bacalhau na literatura
portuguesa ocorre presumivelmente num auto de Gil Vicente de 1521, As Cortes de
Júpiter, que se refere à partida do Tejo de uma filha de D. Manuel que vai
casar com o duque de Saboia (Godinho 1965: 491). E provavelmente a primeira
representação pictórica do bacalhau salgado e seco surge numa pintura de Josefa
de Óbidos, da segunda metade do século XVII, alusiva ao mês de março, tempo da
Quaresma (Carvalho e Pomeroy 1997: 138-139).
Cremos que a razão da sua exaltação em Portugal radica, em última instância, na
celebração pelas classes populares rurais e urbanas de um alimento que
enriqueceu uma dieta secular pobríssima feita de pão e de alguns vegetais ou
toucinho. Como já se observou: A comida é algo de básico, e o gosto das
pessoas pela comida tende a ser tradicional, conservador [ ] As pessoas tendem
a gostar daquilo de que sempre gostaram (Tuan 2005 [1993]: 230). Neste aspeto,
a ligação prolongada de tantos portugueses ao bacalhau ' como a de outros povos
da bacia mediterrânica ' será similar à dos descendentes dos antigos escravos
das plantações açucareiras das Índias Ocidentais inglesas, que continuam a
abastecer-se nos mercados de Montreal da atualidade do seu bacalhau salgado e
seco, pequeno, que fornecia a proteína barata do seu sustento como força de
trabalho. Nos mesmos mercados, portugueses e italianos procuram uma variedade
maior e de melhor qualidade do mesmo alimento (Kurlansky 1999: 104-105) '
variedade maior que corresponderia mais a um ideal do que a comida
tradicionalmente ingerida pela esmagadora maioria, como se verá. Na opinião de
uma historiadora recente da alimentação, os países mais pobres da Europa, a
América, as Antilhas e a África comem-no como um alimento da dieta básica,
especialmente em Portugal, onde o bacalaó [sic] é o prato nacional (Toussaint-
Samat 1994 [1987]: 319).
As fontes relativas ao comércio marítimo que abastecia os mercados, como o de
Lisboa, atestam a sua importância nos séculos XVI (Brandão [de Buarcos] 1990
[1552]: 39, 181), XVII e XVIII (Freire 1739, Castelo-Branco 1969 [1956]: 168-
169). Na primeira metade do século XVIII, num relato exaltante da cidade,
proclamada o melhor porto do mundo, e sem fome, o que é inverosímil, dizia-
se que nela se consumiam, de par com trezentas mil cabeças de gado maior e
menor, quatrocentos mil moios de pão [ ] 600.000 quintais de bacalhau (Freire
1739: 105-106). Não procuremos examinar se os números são verosímeis ' fiquemo-
nos, tão-só, pelo reconhecimento da sua importância na cidade e nas zonas para
onde era distribuído o que nela se comerciava. Era importantíssimo no Porto,
por onde entravam muitos milhares de quintais, com uma enorme quantidade
importada de Inglaterra (A. R. Costa 1789: 56 e 222).
Mas também há dados referentes já não à sua importância como mercadoria, mas
especificamente ao seu consumo, de que aqui apenas podemos oferecer alguns
exemplos dispersos, mas que irão proporcionar uma imagem da amplitude da sua
distribuição. Está presente, logicamente, nas mesas monásticas, como sucedia,
por exemplo, no Convento do Bom Jesus de Viseu, nos séculos XVII e XVIII.[4]
Também integra a dieta alimentar dos padres da congregação do Oratório ' mas aí
igualmente, com a sardinha, a dos trabalhadores das suas quintas do Alto Douro
no século XVIII (Pereira 1984) ' e a dos monges bernardos em finais do século
XVIII (Mota 1990). Encontramo-lo nas dietas do Colégio dos Nobres nos séculos
XVIII e XIX (Crespo e Hasse 1981) e é incluído como um dos géneros principais
nas rações do exército em início do século XIX, representando o maior dispêndio
a seguir à carne, ao pão e ao vinho.[5] No século XVII já se encontrava nas
rações da Marinha (Quintella 1839: 226). Está presente na alimentação dos
alunos da Casa Pia (Cruz 1843: 339) e na dos hospitais do exército como o da
Estrela nos dias de magro (1843: 279). Mas não o comeriam os presos do
Limoeiro, compelidos a uma alimentação draconiana de cereais e leguminosas ' a
que se acrescentava um tempero de toucinho nos dias de gordo e de azeite nos
de magro (1843: 108). Entrava no sustento ' às vezes e uma pequena posta
ordinariamente só ' dos internados no Asilo de Mendicidade (1843: 291), dos
expostos (1843: 303) e das órfãs (1843: 330). Era, enfim, um alimento comum da
classe mais baixa de Lisboa (1843: 382-383): Além do peixe fresco Lisboa
consome uma quantidade enorme de peixe salgado, como é o bacalhau ' mas também
a cavala, o atum ou a pescada, em parte introduzidos pelos ingleses, mas também
pela portuguesa Companhia das Pescarias (1843: 382-383). Todas estas
considerações se devem ao médico Francisco Inácio dos Santos Cruz, autor do
Ensaio sobre a Topographia Médica de Lisboa, ou Consideraçoens Especiaes
Relativas à Sua História. Esta obra inclui um retrato social da alimentação na
cidade. Fala dos usos da classe mais baixa, consumidora de pão, de carne de
porco, de vegetais, e da preferência desta por peixes como o bacalhau, a
sardinha, o carapau, a sarda, o chicharro, como das carnes e peixes consumidos
pelas classes abastadas ' a carne de vaca é a primeira mencionada entre
estas, o peixe favorito é o fresco, como a pescada, o pargo, o goraz e o
linguado. Também se refere que estas classes são cosmopolitas, procurando
imitar os costumes italianos, franceses ou ingleses na comida e na bebida (Cruz
1843: 372-385). Não estamos muito distantes da situação dos nossos dias.
Que durante séculos o bacalhau não foi considerado comida de primeira categoria
é-nos revelado por uma carta, datada de 20 de setembro de 1773, da mulher do
Morgado de Mateus para o marido, então governador de São Paulo, no Brasil. Nela
queixa-se de uma filha bastarda dele, entre outras razões, por ela não querer
do comer senão galinha, franga e doce, que enjoa vaca e bacalhau, único peixe
que aqui aborda (Bellotto 2007). Estamos a falar do interior, de Vila Real de
Trás-os-Montes, onde esse peixe já chegava. Um folheto da época ' Aventuras, ou
Lograçoens, de D. Bacalháo Quaresma e de D. Sardinha d'Espixa (Anónimo 1790) '
distribui social, espacial e culinariamente o seu consumo na cidade de Lisboa,
vendo-o, em contraste com a imagem mais difundida, como integrado nos hábitos
alimentares das classes média e alta. Seria consumido por aristocratas,
médicos, estrangeiros, ricos, homens de gravata lavada, que habitariam na
parte alta da cidade de então: Bairro Alto, zona do Príncipe Real, Buenos Aires
ou Estrela. Além disso era tratado culinariamente com requinte, de mil
maneiras. Pelo contrário, a sardinha, que estacionou pela Ribeira Nova, teria
sido submetida a mil tropelias ' modos de a cozinhar aparentando ausência de
sofisticação, como cozê-la ou assá-la ' por todos, ricos ou pobres, que
habitavam os bairros do mar. Apesar da sua conotação de comida de pobre, o
bacalhau era adquirido pela Casa Real, que tinha fornecedores ' bacalhoeiros
' próprios, já no século XVIII e no XIX, sem que saibamos quanto deste peixe se
destinava à família real e/ou aos seus servidores nobres e plebeus.[6]
Rodrigo de Moraes Soares escreve em meados do século XIX que questão
importantíssima para a nossa agricultura, é a do bacalhau, que fornece às
populações ruraes parte essencial da sua alimentação (1858: 247). Para Basílio
Teles (1904: 366-372) fazia parte, com a sardinha e a carne de porco, do
regime misto, pelo peso dos vegetais, dos arrendatários rurais ' situados um
pouco acima dos proletários. Todavia, não é apresentado como elemento de
consumo corrente da população numa área montanhosa da Beira particularmente
pobre, onde se afirma, aliás, que três quartos dos moradores não produziam
milho suficiente para fazer o seu pão e que só um pouco mais de metade da
população colheria suficientes batatas para o seu consumo anual. Apesar de a
carne de porco de salgadeira ser quase a única a ser utilizada
parcimoniosamente, só cerca de metade dos fogos matara porco no ano de 1936. O
peixe consumido aí é a sardinha; uma destas no pão e um caldo já seriam para os
habitantes rurais desta freguesia de Castro Daire uma fartura. No Douro, a
situação do trabalhador ainda seria pior (Marcelino 1951 [1936]). Brito
Camacho, reportando-se a esses tempos, afirmava que o trabalhador rural minhoto
' o mais pobre dos membros dessa sociedade rural ' tinha um passadio à base de
pão e caldo, alambazando-se uma ou duas vezes na semana com uma lasca de
bacalhau ou uma amostra de toucinho (Camacho 1927: 130). Haverá por certo
muito de verdade na asserção de o bacalhau muitas vezes não ser acessível no
dia a dia aos grupos populares mais pobres, que teriam de se contentar com a
sardinha, sendo alimento mais de remediados que de pobres (Garrido 2004:
315). Mas há que considerar, ao ponderarmos o seu consumo, a existência de
tipos distintos de bacalhau para classes sociais diferentes. O mais pequeno
destinar-se-ia aos menos abastados, como ainda se pode observar nos nossos
dias.[7]
No entanto, temos de ter em conta, como já se referiu, a existência de padrões
culinários diferenciados. Como se assinalou também, o maior consumo de peixe
dava-se no litoral (e sobretudo no Noroeste), onde se situavam portos
importantes (Porto, Viana, Aveiro, Lisboa), envolvidos historicamente no
comércio do bacalhau e na sua pesca. O consumo do bacalhau acompanhava essa
tendência geral do consumo de peixe (Garrido 2004: 310-311). Tal não será
estranho à sua presença nas cozinhas dessas regiões ' sobretudo no Norte ', não
só na alimentação quotidiana, como na comensalidade festiva. Desde meados do
século XIX ' mas a prática seria anterior, não saberemos quanto ', o bacalhau,
acompanhado com batatas e legumes (couves), aparece descrito como um elemento
central na ceia de Natal no Norte, a consoada, a festa da família (Ferraz
Júnior 1866). Na origem desse consumo encontram-se mais uma vez motivações de
natureza religiosa. A véspera de Natal era um tempo de abstinência com a
interdição da carne. Por isso, o consumo do peixe impunha-se, e este acabou por
ser, fundamentalmente, o bacalhau. Em começos do século descrevia-se a
diferença na comida natalícia entre o Porto e Lisboa. Enquanto na primeira das
cidades a refeição mais importante tinha lugar na véspera, antes da missa do
galo, o que tornava de rigor o consumo de peixe, que era o bacalhau, na segunda
a principal celebração consistia no almoço do dia de Natal, em que já se podia
comer carne: o peru era, então, o principal dos alimentos (Viterbo 1912: 163-
164). Aliás, um escritor recente assevera que no Minho, em Trás-os-Montes e
Alto Douro e na Beira Alta, essa refeição é similar e de peixe, por ser antes
da meia-noite. Nas províncias do Centro e em Lisboa misturam-se tradições. Onde
a refeição tem lugar após a meia-noite, ou a refeição principal é no dia
seguinte, a carne é permitida, como na Beira Baixa, Alentejo, Algarve, Madeira
e Açores (Quitério 1987: 154).
Mas foi a consoada nortenha, com bacalhau, que acabou por formar a
representação dominante da refeição festiva mais importante do Natal em
Portugal.
Razões históricas do consumo do bacalhau em Portugal
O consumo do bacalhau em Portugal radica, como já se assinalou, na sua história
cristã e, naturalmente, no que esta espelha do legado judaico. O cristianismo,
que procurava atrair não judeus, não reteve os preceitos restritivosque
estruturavam a alimentação destes e nos seus inícios existiu uma grande
liberdade em matéria alimentar (Albala 2011: 11). Mas manteve, em
contrapartida, outras práticas do Antigo Testamento ' como a associação entre
comida e festividade, ou o jejum como via de purificação e de obediência face a
Deus (Albala 2011: 12). As restrições ao consumo alimentar também provinham de
outras matrizes, greco-romanas, que defendiam o controlo das necessidades
corporais e a abstinência como uma via para a virtude. O pecado da gula foi
condenado muito cedo e as práticas ascéticas do monasticismo inspiraram
correntes puritanas do cristianismo hostis aos excessos alimentares (Albala
2011: 13-14). Entendia-se igualmente, nos primórdios do cristianismo, que uma
comida excessivamente abundante, e especialmente em carne, era prejudicial à
saúde corporal e à mente. Além disso, esta alimentação levaria à produção de
muito sangue que se converteria em esperma, estimulando a líbido (Albala 2011:
13-14). Se a carne e a gordura eram associadas à comida quente e rica, indutora
de euforia e excitação, do pecado da luxúria, o peixe, pelo contrário, era
frio, por viver na água, sóbrio, puro (Toussaint-Samat 1994 [1987]: 313).
O peixe aparece associado ao cristianismo desde os inícios deste. Cristo é
comparado a um pescador, os apóstolos, vários dos quais eram pescadores, são
exortados a serem pescadores de almas e os cristãos também são representados
como peixe por passarem pela água do batismo. A própria barca de Pedro é um
símbolo da Igreja (Parlato 2007: 39-47). Como assinala Toussaint-Samat, o
ideograma do peixe (do grego iktus) era o emblema da Igreja primitiva, sendo as
suas cinco letras as iniciais das cinco palavras gregas que descreviam o
Salvador: Iesus Khristos Theou Uios Soter (Jesus o Ungido, o Filho de Deus, o
Redentor) (1994 [1987]: 311-313). Deve-se também referir que o peixe já
ocupava um lugar importante na tradição hebraica, sendo um prato predileto no
Shabbat.
O cristianismo instituiu uma ordem alimentar dominada pela alternância entre
tempos sem restrições em matéria de prescrição alimentar e tempos de jejum '
que significava tomar apenas uma refeição propriamente dita por dia ' e
abstinência. A abstinência do consumo de carne e de outros produtos de origem
animal ' manteiga, queijo, ovos ' ocupava muitos dias do ano, com particular
destaque para o período de 40 dias da Quaresma e para os 30 dias do Advento,
antes do Natal (Kiple 2007: 86-87).[8] O contraste era enorme nos dias
justapostos. O Carnaval era um tempo marcado pelos excessos alimentares, de
carne, ligados à crítica e à inversão dos papéis sociais. Mas a Quarta-Feira de
Cinzas, que se lhe seguia, vinha representar o oposto, lembrando a
transitoriedade da vida humana e instaurando o período de jejum e abstinência
mais longo do calendário cristão, a Quaresma, tempo de penitência, de expiação,
de sacrifício. A Sexta-Feira Santa representava um momento culminante da
Quaresma, por ser o dia do martírio de Cristo. O domingo de Páscoa celebrava a
ressurreição, com o retorno ao consumo festivo da carne. Também a véspera de
Natal era um tempo de abstinência, preparatório do nascimento de Cristo.
Passada a meia-noite de dia 24, já era possível comer a carne e o Natal é um
dia de refeição comum, de festa familiar na tradição cristã, como já se disse
(Albala 2011: 16). Ainda nos nossos dias, em que se assistiu a um abrandamento
das regras de jejum e abstinência depois do Concílio do Vaticano II, a Quarta-
-Feira de Cinzas e a Sexta-Feira Santa são dias de jejum e abstinência
obrigatórios e certas sextas-feiras, especialmente as da Quaresma, são de
abstinência.[9] Diga-se que o rigor tradicional nesta matéria se mantém na
cristandade ortodoxa e algumas confissões protestantes seguiram nesta matéria
orientações similares às dos católicos (Yoder 2003).
Estabeleceu-se, portanto, uma alternância entre os dias de gordo ' em que se
podia comer carne ' e os dias de magro, em que se comia peixe.
A ligação do consumo do bacalhau aos preceitos cristãos da penitência e
purificação está bem documentada em Portugal. Em meados do século XVII, o
Agiologio Lusitano celebrava as virtudes do eremita agostinho F. Aleixo da
Cruz, asseverando que quando os religiosos tinham como passadio peixe fresco,
ele se regalava com uma sardinha sarrenta, ou migalha de bacalhau (G. Cardoso
1666: 747). No século seguinte, mencionava-se o caso de uma abadessa dominicana
' para quem a pureza era a virtude principal, destacando-se pelo zelo com que
procurava evitar qualquer contacto entre as religiosas e indivíduos do século
masculino ' como tendo comido sempre bacalhau no decurso de 25 anos (Natividade
1761: 234).
A associação entre o bacalhau e a religiosidade seria satirizada por Eça de
Queiroz, num tempo marcado pela secularização, em que a religião deixara de
pertencer à esfera do indiscutível. O seu romance A Relíquia conta as manobras
mal sucedidas de um falso crente, que sonha vir a ser o herdeiro de uma tia
rica e beatíssima. As peripécias do protagonista irão fracassar por esse
hipócrita ter trocado descuidadamente dois embrulhos ' um com a camisa da Mary,
outro com a relíquia ' oferecendo à titi a peça de vestuário íntimo
feminino em vez da prometida relíquia de Cristo que pretendia ter trazido da
Terra Santa. Ora, entre os labores em que o personagem se empenhou para obter
os favores da piedosa senhora encontrava-se o consumo do bacalhau, ou mesmo,
refinadamente, a própria abstinência (pública) do mesmo: Corrigi então a minha
devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o bacalhau das sextas-feiras não
fosse uma suficiente mortificação, nesses dias, diante da titi, bebia
asceticamente um copo de água e comia uma côdea de pão: o bacalhau comia-o à
noite, de cebolada, com bifes à inglesa, em casa da minha Adélia (Queiroz
1887: 58).
A sátira dirigia-se, assim, a uma ligação antiga e já alvo de crítica há muito,
inclusive por eclesiásticos reformistas. O liberal Abade de Medrões, deputado
às Cortes Constituintes de 1821, atacara-a tanto por entender que comer carne
ou peixe nada influía na virtude cristã, como por constituir um gravame
económico para os habitantes do interior que, por não disporem de peixe fresco,
seriam obrigados a gastos excessivos para adquirir um bacalhau péssimo, o que
lhe valeu a condenação eclesiástica (Miranda 1822: 65-66).
Da penitência ao sucesso
Ao longo do tempo, o que começou verosimilmente como necessidade tornou-se
hábito querido e o bacalhau veio a ter um sucesso único na cozinha portuguesa '
como peixe, só a sardinha foi mais difundida. Penetrou na antroponímia, com o
apelido Bacalhau, na toponímia ' Rua dos Bacalhoeiros ', serviu para designar o
aperto de mão e o sexo das mulheres e assuntos ou processos que não têm
desenlace e ficam, portanto, em águas de bacalhau.[10] Foi incorporado na
cultura popular, através de manifestações como o enterro do bacalhau.[11]
Este, documentado por escrito desde o início do século XIX, constava de um
julgamento e funeral paródico do bacalhau, que tinha lugar de modo geral no
Sábado de Aleluia, embora também tenha ocorrido na Quarta-Feira de Cinzas ou
mesmo na Terça-Feira de Entrudo (C. L. Cardoso 1982-1983). Isto é, realizava-se
sobretudo no momento em que acabava a proscrição do consumo de carne, na
primeira das datas, mas também no início do tempo de abstinência em que esse
consumo era interdito, na segunda, ou no mesmo dia em que, com o fim do
Entrudo, findava o consumo do gordo (C. L. Cardoso 1982-1983: 780-781).
Porventura, celebrava-se paradoxalmente nesta última data por associação ao
enterro do Entrudo, mas esta é apenas uma das explicações possíveis aventadas.
[12] A etnografia portuguesa abordou esta celebração desde o século XIX, as
mais das vezes limitando-se à sua descrição, embora um autor mais ambicioso e
informado pelo saber etnográfico do seu tempo, como Adolfo Coelho, o tenha
visto como uma manifestação cuja origem radicaria num conjunto de festividades
cíclicas ligadas a antigos cultos naturalistas indo-europeus e que celebravam a
expulsão do inverno, identificado com a morte, face à chegada do verão, que
significava a vida, e que se mantinha por hábito e sem compreensão deste seu
sentido (Coelho 1899). Entretanto, este tipo de interpretações, que trata tais
manifestações como meras sobrevivências pré-cristãs, foi desvalorizado por
quem pensa que, se a sua explicação implica tomar em consideração crenças
pagãs, também tem de se ter em conta o impacto do cristianismo medieval e do
seu calendário festivo e a própria intencionalidade humana para expressar
certos interesses: disfarçar-se, criticar, comer e beber em excesso, inverter a
ordem das coisas, etc. (Baroja 1979: 150-156). E, acrescente-se, hoje em dia, a
vontade em celebrar e promover a especificidade, a singularidade, do local em
que acontece e dos seus habitantes.[13]
A análise aprofundada do enterro do bacalhau ' e ainda menos a de rituais com
alguma similitude, como a serração da velha ou a queima do Judas ' não cabe
no âmbito deste artigo. Servimo-nos dele para ilustrar o estatuto icónico único
do bacalhau em Portugal, pois nenhum outro alimento foi investido deste modo
pela imaginação popular patente na literatura de cordel e em celebrações que '
não obstante algum interregno, devido a interdições, pois os enterros eram
propícios à crítica política ' foram revividas nos nossos dias como em
Soutocico, no concelho de Leiria (C. L. Cardoso 1982-1983: 765). Além disso,
embora existam similitudes óbvias com o enterro da sardinha em Espanha, não
terá havido uma ocorrência tão grande destes festejos em outros lugares ' há um
ou outro em Espanha, mas raríssimo ', um comprovativo do seu papel singular em
Portugal. No fim de contas, estes enterros do bacalhau tratam de parodiar o
cerimonial da justiça ' com julgamentos em que o bacalhau se defende das mais
diversas acusações ' e o próprio ritual religioso do enterro (Moleiro 2008).
Um dos mais antigos folhetos de cordel referentes a estes eventos é da autoria
do prolífico José Daniel Rodrigues da Costa, o Suplício do bacalhau e degredo
do Judas em Sábado de Aleluia, datado de 1818. Imputado pelas mais variadas
ofensas, desde arruinar as vendedeiras de peixe fresco de Lisboa pela
concorrência que lhes fazia, até ser responsabilizado pela saída de dinheiro do
país, pois era importado de Inglaterra, o bacalhau defende-se, falando da sua
utilidade, revelando a sua aceitação na cozinha portuguesa em diversas
preparações ' entre as quais com batatas e cebola, com molho de alho,
associações culinárias que persistiriam ' e reivindicando a sua presença na
alimentação de grupos com uma posição social bem distante, dos cavadores de
enxada e dos galegos aos elegantes. É claro que a condenação à morte é
inevitável, pois, no dia seguinte, Domingo de Páscoa, já se pode comer carne. E
é o regresso do tempo da carne que se festeja. Note-se que o enterro do
bacalhau está associado neste texto ao degredo de Judas. A queima do Judas
assinalava a execução simbólica do apóstolo que havia traído Cristo ' neste
caso, em vez de queimado era degredado para a companhia de outro Judas que se
encontrava preso na Ilha de Santa Helena: Napoleão.[14]
Estes folhetos enunciavam pontos de vista sociais, que podiam ser os dos
estereótipos de género e misóginos de alguns em que se criticam os patetas
deste mundo que confiam das mulheres; homens de palha, estafermos animados, que
assentam que só o que elas fazem é bem feito, como se escreve em Aventuras, ou
Lograçoens, de Dom Bacalháo Quaresma e de D. Sardinha d'Espixa (Anónimo 1790:
8); ou então, como em O Adeos do Bacalhau (Anónimo 1825), críticas aos
ingleses, que controlam o seu comércio e críticas ao mísero estado da
agricultura, que leva a que o país precise de importar pão estrangeiro, e a
apologia da política pombalina que, além da Companhia das Vinhas do Douro,
fundara a Companhia das Pescarias do Algarve, que, no entender do autor, devia
fornecer o peixe que substituiria a importação do bacalhau. A forma jocosa do
escrito ' em que o Senhor Simplício Bacalhau Salgado e Moura aparece a fazer
testamento em notário do Porto ' não deve fazer esquecer o seu significado
político. É um manifesto antibritânico e que faz a defesa da política de
Pombal, temas caros aos liberais, publicado em 1825. Na sua fala jocosa, um
outro folheto revela que já então o bacalhau era chamado fiel amigo (J. D. R.
Costa 1818: 16). Esta designação, corrente até aos nossos dias, é bem
elucidativa da associação entre o bacalhau e os portugueses.
Uma prova da continuidade dessa associação entre o bacalhau e os portugueses
encontra-se na presença do peixe salgado e seco nas cozinhas de diversos países
de língua oficial portuguesa, outrora parte de um mesmo império. Às vezes o
receituário é semelhante, noutras há uma elaboração distinta a partir de
matrizes culinárias locais. Citamos, do Brasil, uma culinária em cuja matriz a
portuguesa exerceu grande influência (Cascudo 2004 [1967-1968]), e só para
referirmos a Baía, o bacalhau à baiana e a frigideira de bacalhau (Senac
2008), os bolinhos de bacalhau, o bacalhau à Gomes de Sá e o bacalhau com
grão-de-bico (Carybé 2007); lembrando o passado escravo, refira-se ainda o
funge com bacalhau assado em Pernambuco (Ramos 2009).[15] Encontra-se também
a torta de Capoxaba em Vitória, Brasil, os pastéis de mandioca com bacalhau
em Timor, o chutney de bacalhau em Goa (Hamilton 2008). Há informações de que
penetrou na consoada natalícia dos habitantes dos países lusófonos, onde é um
produto caro.[16] Um testemunho da presença do bacalhau na cultura popular
brasileira é-nos dado pelo popular choro Espinha de Bacalhau, de Severino
Araújo (1937).[17]
A pesca e o abastecimento do bacalhau: uma síntese breve
Para haver consumo, tem de existir produção e abastecimento. Desse ponto de
vista, a relação portuguesa com o bacalhau parece passar por uma fase em que
houve produção própria, seguida de uma outra, bem longa, em que se dependeu de
importações, para finalmente existir pesca realizada por portugueses, sem que a
importação do peixe ' ligada também a interesses poderosos dos importadores '
tenha cessado. A pesca foi objeto de grande atenção da parte dos interessados
em substituir a sua importação, ao menos parcialmente, por uma produção
portuguesa, e também de alguns historiadores contemporâneos (Moutinho 1985;
Garrido 2004). Há notícia de portugueses pescarem bacalhau no Atlântico Norte,
na Terra Nova e junto à costa leste do Canadá, desde o século XV. Nessa época e
no século XVI, chegaram a estabelecer-se aí, efemeramente, colónias de
pescadores, oriundos de Viana do Castelo, de Aveiro e dos Açores (Godinho 1965:
498-500).Trata-se da reivindicação de uma presença antiga que se encontra
também na Arte de Navegar de Manoel Pimentel (1746: 376), no Ensaio sobre os
Descobrimentos de Mendo Trigozo (1803: 305-326), tema retomado pelo grande
economista José Acúrsio das Neves (1830: 35-39). De assinalar que estes dois
últimos escritores reivindicaram a primazia na descoberta da Terra Nova e do
Canadá para navegadores portugueses.[18] Nestas narrativas, as expedições ao
Noroeste Atlântico e a pesca do bacalhau são associadas às viagens marítimas e
conquistas dos séculos XV e XVI, vistas como o momento culminante da história
do país ' a sua Idade de Ouro ', tópico que seria glosado mais tarde por outros
autores e no decurso do Estado Novo.
Mesmo quando se refere uma primazia basca ' defendida por autores
contemporâneos para quem estes foram os primeiros a explorar sistematicamente
as zonas de pesca entre a Gronelândia e o continente americano na Idade Média,
depois de um primeiro estabelecimento viquingue aí (Kurlansky 1999: 17-26) ',
não se deixa de referir que a Nação Portuguesa era eminentemente pescadora e
que esta era a escola que formava os intrépidos marinheiros das suas
descobertas e conquistas (Pereira d'Azambuja 1835: 3).
Essa pesca terá sido muito intensa até ao último quartel do século XVI, quando
a União Dinástica (1580) tornou os barcos portugueses presa dos inimigos dos
Habsburgos de Espanha, como os corsários ingleses no reinado de Isabel I, e
também os franceses (Pereira d'Azambuja 1835: 4; Kurlansky 1999: 50-60).
Acresceria a este facto que o investimento no comércio do açúcar brasileiro
contribuía para o desinteresse pelas pescas no Noroeste Atlântico (Godinho
1965: 499).
O envolvimento do Estado português no abastecimento do bacalhau continuou nos
séculos XVI e XVII, exercendo uma função reguladora e fiscal, pois este era uma
fonte importante de rendimentos tributários (Garrido 2011: 29). O facto de o
bacalhau ser importado e de tal representar uma fonte avultada de despesas para
Portugal foi sublinhado por diversos observadores dos mais influentes da
economia portuguesa, do mercantilista Duarte Ribeiro de Macedo (1817 [século
XVII]: 14), a José Bonifácio de Andrada e Silva (1790: 389-390) e ao
protecionista moderado Acúrsio das Neves (1830: 39). Não faltam indicações
estatísticas a mencionar a importância desse comércio ' como os mais de três
milhões de quintais importados entre 1819 e 1829 (Neves 1830: 356) ',
apontando-se sobretudo, e mesmo denunciando-se, o papel dominante da Inglaterra
nesse comércio. E, quando se assinala a necessidade de se estancar esta
hemorragia de dinheiro, defendendo-se uma política protecionista e apontando-se
as variedades de peixe que Portugal podia pescar para se substituir o bacalhau,
incluem-se também os recursos das costas brasileiras (Andrada e Silva 1790:
389-391) ' na época, os peixes locais não constituíam alternativa ao bacalhau
na meza dos ricos (Lisboa 1786: 62). Este discurso multissecular estará
subjacente às propostas de desenvolvimento das pescas pelos portugueses.
Todavia, só ao longo do século XIX, e em particular nas últimas décadas do
século, armadores privados promovem empresas de pesca do bacalhau (Moutinho
1985: 24-33). O auge da pesca terá lugar sob o Estado Novo, muito embora nunca
tenha chegado para prover à procura, havendo sempre necessidade de se proceder
a importações.
A importância do bacalhau como fonte de proteína para a população, e como fator
importante do défice da balança comercial ' em 1926 a produção nacional de
bacalhau salgado e seco representava somente cerca de 10% do que se consumia
(Moutinho 1985: 69) ' levou a um investimento, desde finais dos anos 20, na
criação de estruturas dedicadas ao desenvolvimento da sua pesca. Estas
estiveram ativas entre 1934, altura em que se instituiu uma política de
protecionismo à pesca, e 1967, momento em que começa o seu fim, com a
liberalização das importações. Esta política reduziu o peso do peixe importado,
fomentando a indústria da pesca, embora sem alcançar a substituição de
importações, que não era, aliás, um dos seus objetivos (Garrido 2004: 297-306).
Fruto desta política, em 1958 Portugal foi o primeiro produtor mundial de
bacalhau salgado e seco, com 59.826 toneladas, mas, ainda assim, houve
necessidade de importar 25.370 (Garrido 2004: 297, 299). O bacalhau era, em
finais dos anos 20, a segunda importação em valor, a seguir aos cereais, fonte
do alimento principal, o pão. Salazar estava consciente da sua importância em
Portugal, comparando-o a este respeito com o açúcar, e referindo ser este peixe
menos acessível às massas proletárias, ao contrário da sardinha, mas dizendo
que o mesmo era para uma percentagem elevada da população um género de primeira
necessidade (Garrido 2004: 51).
No anedotário relativo a Salazar, uma forma de crítica a um regime que não a
tolerava, aparece a receita do bacalhau à Salazar. Este consistiria em
bacalhau cozido com batatas, mas sem azeite, pois se o peixe fosse gordo não
precisava deste, e, se fosse magro, não o merecia (Consiglieri e Abel 1999:
14).
Na primeira década do século atual, e em consequência do esgotamento dos bancos
da Terra Nova e das medidas de proteção tomadas por países em cujas águas se
encontra bacalhau, a frota portuguesa não captura quantidades que excedam os 4%
do consumo nacional (Garrido 2011: 29).
O regime representou a pesca como uma atividade heroica em continuidade com os
feitos registados durante a expansão ultramarina do século XVI (Moutinho 1985:
195-196; Garrido 2001). A partida oficial era precedida da bênção dos
bacalhoeiros, celebrada no espaço mais identificado com aquela: junto à torre
de Belém e ao mosteiro dos Jerónimos, que o rei D. Manuel mandara edificar já
então com intuitos comemorativos dessa história e da sua dinastia. Era uma
representação coerente com a ideologia nacionalista do Estado Novo, de
exaltação da fé e do Império. Mas, como se disse antes, o regime não inovava
propriamente, antes reproduzia uma associação discursiva entre a pesca e os
Descobrimentos, que era anterior. Entretanto, a atmosfera de exaltação épica e
as condições de existência política deixavam no silêncio os testemunhos
duríssimos da vida dos pescadores, que hoje se fazem ouvir: Naqueles tempos
éramos tratados como animais.[19]
A construção de uma cozinha nacional e o bacalhau: o testemunho dos livros de
cozinha
Os textos tiveram uma importância preeminente na codificação da alimentação.
Houve desde há milénios ' na Mesopotâmia de há uns 5000 anos ' uma ligação
entre literacia e alta cozinha, pois a cozinha popular era de transmissão
oral e de aprendizado prático (Goody 1977: 138-140). Contribuíram também para a
construção da identidade de uma dada população, que incluiu a da sua
alimentação. De facto, as prescrições do Levítico, do Deuteronómio ou do Êxodo
(Douglas 2008 [1972]), por exemplo, constituem definições da identidade étnico-
religiosa do antigo Israel. Serão raros os leitores que hoje desconhecem o
papel atribuído ao livro por Benedict Anderson (1983) na imaginação da
comunidade nacional. Os livros de cozinha também contribuem para esse fim,
permitindo reunir um corpus de receitas e preparados que provêm do território
nacional e com muitíssimos dos quais poucos habitantes teriam um contacto
direto, sobretudo outrora, quando as deslocações da população para fora da área
em que havia nascido eram muito mais raras. Esse conjunto seria assim
objetivado e codificado como nacional, podendo, a partir desse momento, ser
reproduzido tanto na esfera da restauração como na esfera doméstica (J. M.
Sobral 2014b [no prelo]).
Durante muito tempo apenas haverá referências escassas ao bacalhau nos livros
de cozinha, destinados a uma elite. Está ausente do manuscrito chamado Livro de
Cozinha da Infanta D. Maria (Manuppella 1986 [séculos XV-XVI]) e do primeiro
livro de cozinha impresso em português, Arte de Cozinha, de Domingos
Rodrigues, cozinheiro do rei (2001 [1680]).[20] Surge no manuscrito de
Francisco Borges Henriques, de 1715, Receitas de milhores doces e de alguns
guizados , no preparado designado como frigideiras de bacalhau (assemelha-se
ao atualbacalhau à Braz)e num molho para bacalhau.Lucas Rigaud, outro
cozinheiro real, no Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha (1999 [1780]),
oferece apenas três receitas de bacalhau: à provençal, à béchamel e assado
nas brasas.
Estas mesmas receitas repetem-se no Cozinheiro Imperial (M. R. C. 1843 [1840]),
mas o número de pratos de bacalhau aumenta (para seis) na Arte do Cosinheiro e
do Copeiro (1841) do Visconde de Vilarinho de São Romão, com várias receitas,
entre as quais porventura a primeira dos bolinhos de bacalhau. Este autor
define como comida de pobre as batatas com bacalhau ' que um etnógrafo
viria a classificar como uma das preparações mais comuns (C. Basto 1923-25:
176) ', mas não deixa de assinalar que ele é peixe muito gostoso. A única
referência feita ao peixe em O Cozinheiro, Confeiteiro e Licorista Moderno
(Anónimo 1849) é precisamente aos bolinhos de bacalhau. Há um pouco mais de
uma dúzia de pratos de bacalhau na Arte de Cosinha de João da Mata (1876).
Há um número maior de receitas (15) ' mas a maioria, se não a totalidade, de
matriz francesa, como a brandade de bacalhau ' na edição de 1905 do
importante Cozinheiro dos Cozinheiros de Paulo Plantier, na esteira do que
havia publicado na primeira (de 1870). As preferências do autor iam para o
bacalhau fresco, achando o salgado, que seria o único acessível para a maioria,
difícil de digerir. Note-se que este pretendia ser, sem dúvida ' devido à
colaboração de escritores influentes como Fialho de Almeida, D. João da Câmara,
aristocratas e artistas como Rafael Bordallo Pinheiro ' a autoridade que
definia o cânone dominante em matéria de gosto culinário.
Contudo, em 1901, numa obra intitulada o Cosinheiro Popular dos Pobres e Ricos
' mas cujo conteúdo, apesar do título, revela que não se destinaria
propriamente às classes trabalhadoras rurais ou urbanas, por certo pobres '
encontramos já 22 receitas de bacalhau (Carneiro 1901). Haverá umas 26, muitas
das quais com continuidade no receituário dos nossos dias, no Tratado Completo
de Cozinha e Copa, publicado em 1904 por Carlos Bento da Maia. Na obra Cosinha
Portugueza ou Arte Culinária Nacional ' o primeiro livro em que a cozinha é
associada explicitamente à nacionalidade ', publicada em 1902 por um grupo de
senhoras (sic) de Coimbra, encontramos mais de três dezenas de receitas, entre
as quais o bacalhau cozido e com grão. Na mesma época, encontramos uma
caracterização de um jantar dito à antiga portuguesa, onde o bacalhau e o
presunto tinham um lugar preeminente (Castilho 1901: 649).
Deparamo-nos com 14 receitas de bacalhau num livro eclético de cozinha
vernácula e internacional, o Manual Completo do Cozinheiro, Mestre dos
Cozinheiros (Anónimo 1916); alguns dos pratos, como o bacalhau cozido com
batatas, o bacalhau de cebolada à portuguesa ou o arroz de bacalhau, eram
e são amplamente conhecidos. Nas Receitas de Cosinha e Dôces Usuaes no Solar da
Coelhosa, de Alzira O. Martins (1922), um livro com um receituário luso-
brasileiro, há 13 receitas, algumas comuns em certas zonas, como a desfeita
em Lisboa. Na Arte de Bem Comer, publicada por duas autoras sob o pseudónimo de
Alinanda em 1929, e em que se enfatiza a superioridade da cozinha francesa,
surgem 17 pratos de bacalhau.
A consagração do bacalhau na literatura culinária virá com as 48 receitas da
Culinária Portuguesa,obra publicada em 1936, da autoriade António Maria de
Oliveira Bello (Olleboma), importante industrial, homem ligado ao turismo '
havia sido um dos fundadores da Sociedade de Propaganda de Portugal em
princípio do século XX. Presidia à Sociedade Portuguesa de Gastronomia, um
grupo de indivíduos da aristocracia, da alta burguesia, professores
universitários, advogados e literatos, que reivindicava o monopólio do gosto e
do saber no campo culinário. Atente-se ao contexto da publicação desta obra: o
Estado Novo havia sido criado em 1933 e este era um tempo de consolidação do
nacionalismo e nomeadamente dos nacionalismos autoritários. Sendo este contexto
significativo, tal não implica que a nacionalização culinária tenha começado
então. No caso português, como em outros ' na Itália, por exemplo (Montanari
2010) ', a nacionalização culinária iniciara-se no século XIX e prosseguiria,
porventura com maior intensidade, após a instauração de um regime democrático
em 1974. Valha como exemplo o enorme sucesso de Cozinha Tradicional Portuguesa,
de Maria de Lurdes Modesto (1999 [1981]), onde o bacalhau ocupa um lugar
destacado.
Com o decurso do tempo, passar-se-ia das Cem Maneiras de Cozinhar Bacalhau
(1919),de Febrónia Mimoso (pseudónimo), às 500 de Vítor Sobral (As Minhas
Receitas de Bacalhau: 500 Receitas, 2012), às 1000 Receitas de Bacalhau
(Anónimo, s.d., livro de matriz brasileira, como o comprova o seu receituário,
sem indicação de autor, presumivelmente do século atual). Note-se, entretanto,
que já num folheto de finais do século XVIII se falava das mil maneiras de
tratar o bacalhau (Anónimo 1790:4).
A análise dos livros de cozinha revela-nos que, ao contrário dos primeiros
livros destinados sobretudo à elite, dominados por uma cozinha de matriz
cosmopolita, onde a hegemonia francesa se afirma desde o século XVIII e
triunfa, um pouco por toda a parte, no século XIX (Ferguson 2004), os livros
destinados a um público um pouco mais amplo ' as classes médias desde as
últimas décadas do século XIX ' mas mesmo assim restrito, pois poucos sabiam
ler, reservam um espaço cada vez maior a uma culinária que reivindica o
qualificativo de nacional. E o bacalhau marca presença no esforço
nacionalizador.
Como escreveu Arjun Appadurai (1988) a propósito da Índia ' mas o que ele diz
aplica-se por inteiro a Portugal ', os livros de cozinha têm um papel
constitutivo na edificação de um corpusculinário nacional. O bacalhau, como
vimos, aumenta a sua presença neles de modo espetacular a partir dos finais do
século XIX. A imprensa de grande circulação e mais tarde a televisão fariam o
resto.
Esta definição de um cânone nacional-culinário em Portugal, que está claramente
em sintonia com as considerações de Eça de Queiroz que citámos no início, nada
tem de específico. O caso português insere-se numa tendência internacional
revelada em diversos estudos recentes a nível internacional, do Japão ou do
México à Rússia, de reação contra a cozinha dominante de matriz francesa, que
era pelo menos a servida nas refeições socialmente mais importantes (J. M.
Sobral 2007, 2008, 2014b [no prelo]; Smith 2012).
O que se define então como nacional corresponde a práticas culinárias
existentes no território português, algumas já há séculos ou milénios (a tríade
mediterrânica do pão, azeite e vinho, a sardinha, o bacalhau, o uso do alho, a
doçaria), o que não significa que sejam exclusivas ou autóctones de Portugal. A
cozinha portuguesa é, como qualquer outra, um produto histórico, sendo
tributária de outras. O bacalhau pertence à tradição alimentar portuguesa.
Quando nos referimos a tradição não estamos a falar de algo transferido sem
mudanças ao longo de gerações ' pelo contrário, houve sempre invenção da
tradição (Hobsbawm 1983), pois muitos pratos, como o cozido à portuguesa,
por exemplo, não são mais do que uma criação com variantes de cozidos de carne
e legumes comuns na Europa e anteriores à ideia de cozinhas nacionais. Mas,
na esteira de Edward Shils (1981), estamos a mencionar hábitos e receituários
que funcionam à imagem de uma língua que, mesmo sendo recriada constantemente,
permanece, no entanto, suficientemente estável para a língua passada ser
compreensível pelos que a falam no presente.[21] Estamos igualmente a mencionar
o que, sendo um produto da história, aparece como algo de dado, natural,
dotado da força compulsiva que têm os factos a que se atribuem tais
características (Shils 1981: 47, 200).
A construção ' no sentido de constituição e codificação de um conjunto de
receitas ' de uma cozinha nacional portuguesa teve o seu início no século XIX,
o século da afirmação das identidades nacionais, e obteve um considerável
reforço com o Estado Novo, ampliando-se já sob o regime democrático. Mas a
iniciativa política encontrou um eco profundo no consumo repetido do alimento,
que contribuiu para o tornar parte do habitus culinário português, incorporado
e naturalizado, para citar processos sociais a que Pierre Bourdieu deu tanta
importância.[22]
Entretanto, o estatuto culinário do bacalhau mudou. De alimento popular passou
a prato sofisticado, submetido a preparações muito elaboradas e de inspiração
cosmopolita, há muito presentes no receituário ' e de que o livro citado de
Vítor Sobral é exemplo. E, também, passou a ser objeto da preferência de alguns
dos mais importantes líderes políticos portugueses do século XX, como Oliveira
Salazar ou Mário Soares (Guimarães 2001). O consumo de Salazar revela muito da
ideologia do seu regime, defensora da autarcia, da poupança, que exalta o
nacional e o ideal doméstico (neste caso através da comida caseira). Como
recorda uma sua educanda (quase uma filha adotiva): O chefe do governo
detestava comer fora [ ] Sentia-se melhor na sua residência com os seus pratos
favoritos, coisas simples como petinga [sardinha pequena] frita acompanhada de
feijão frade ou bacalhau assado, fosse com batatas a murro ou em camadas com
grelos e broa esfarelada, tudo sempre cozinhado, claro, pela Tia Maria [a
célebre governanta de Salazar] (Rita e Vieira, 2007: 31-37).
O bacalhau e os portugueses: uma identificação recriada nas relações e inscrita
no corpo e na memória
Há umas décadas, relatando uma viagem à Califórnia, o escritor Ferreira de
Castro escreveu, a propósito de uma visita que fez: Estamos, com certeza, não
numa casa de americanos, mas numa casa de portugueses. Por cima da comprida
caixa onde a estátua do grande Cabrilho [reivindicado como descobridor da
Califórnia] jaz, como numa urna, estão dependurados três bacalhaus A estátua
de Cabrilho está sobrepujada por um verdadeiro e saboroso símbolo (em Castelo-
Branco s. d.: 312-313). Esta referência elucidativa à identificação entre o
bacalhau e Portugal evoca o papel de marcador nacional de alimentos como o
arroz no Japão (Ohnuki-Tierney 1993), os tamales no México (Pilcher 1998) ou a
sopa de tartaruga, o whisky e o haggis entre descendentes de escoceses na
Austrália (Tyrrell, Hill e Kirkby2007).
Também para a diáspora portuguesa o bacalhau se tem revelado um alimento
icónico, como sucede com as Academias do Bacalhau, uma importante rede de
associações ' serão hoje um pouco mais da meia centena, criadas a partir de
1968, sendo a primeira fundada na África do Sul ' que hoje se encontram na
Europa, na África, na América do Norte e do Sul, na Austrália e em Portugal
(Consiglieri e Abel 1998: 150-160). Sob a invocação emblemática do fiel amigo
promovem o convívio entre portugueses, a par do auxílio mútuo e da atividade
filantrópica. As refeições coletivas em que se consome regularmente bacalhau
recordam as tradições judaico-cristãs em que também a refeição coletiva,
destinada a fortalecer a harmonia social e a fraternidade, era acompanhada
por práticas caritativas (Albala 2011: 11). Estas academias não são confrarias
gastronómicas, antes associações vinculadas à identidade portuguesa. A criação
de um coletivo unido pela nacionalidade transparece da própria nomenclatura do
parentesco espiritual que designa os associados ' compadres e comadres ' e
da vontade de eliminar clivagens políticas e distinções de classe entre os
membros.[23] Iniciadas na era colonial, desenvolveram-se sobretudo nos tempos
pós-coloniais.[24]
O bacalhau surge como símbolo da pertença nacional portuguesa ' sem dúvida
devido ao seu papel multissecular na vida quotidiana ', enquanto identificação
que confere segurança ontológica (Skey 2011: 24-25) no contexto
transnacional, onde há sempre um confronto com outras identidades ' quer as da
maioria dos autóctones, quer as de outros grupos imigrantes, mostrando que as
identidades étnico-nacionais continuam bem vivas na era da globalização
(Castells 1997).
A replicação de celebrações festivas como as do 10 de Junho ' um feriado
particularmente comemorado pelas academias e que na atualidade envolve
especificamente os portugueses na diáspora, como dia das comunidades
portuguesas ' contribui para marcar uma temporalidade nacional num universo
transnacional. Tal ocorre, igualmente, quando os portugueses residentes em
Portugal e os dispersos pelo mundo ' e muitos dos seus descendentes ' recordam
e reproduzem quase sincronicamente a identificação nacional em que foram
socializados através da celebração da consoada, que implicará para uma boa
parte o consumo de bacalhau.[25] Podemos acrescentar que, se já se definiu a
nação como uma coletividade que pode ser vista, ouvida e idealizada (Skey
2011: 25) através de representações do seu espaço, da língua, das narrativas
mais influentes que se lhe reportam, ela também pode ser de certo modo
percecionada como ingerida através das comidas que identificamos com ela.
Para entendermos o papel que o bacalhau ' e outros alimentos, como o azeite ou
o vinho ' desempenha como marcador de identidade, temos de ter em conta os
contributos das abordagens recentes que mencionámos de início e que insistem na
dimensão memorativa, ritual e sinestésica da comida do país de origem (Sutton
2001), ou no modo como o seu consumo faz parte da nostalgia culinária,
definida como a reminiscência ou evocação intencional de um outro tempo e
lugar através da comida (Swislocki 2009: 1). Como já se observou, a comida
possui um enorme poder para conferir poder simbólico aos indivíduos e grupos
sociais, através de dois dispositivos interligados: Primeiro, a comida é
corporificada em cada indivíduo e opera por conseguinte como uma metonímia ao
ser incorporada como parte do eu [self]. Depois, a comida tem sido
historicamente consumida por um grupo social [ ]. Este consumo comunal torna,
por conseguinte, a comida uma metáforado nós' ' o grupo social e
frequentemente o povo como um todo. Esta dupla ligação ' a metáfora sublinhada
pela metonímia ' faz das comidas um símbolo poderoso do eu coletivo não apenas
ao nível conceptual, mas também ao nível das vísceras (Tierney e Ehnuki-
Tierney 2012: 121).
Por outras palavras, para compreendermos como o bacalhau se tornou português,
temos de ter em consideração os processos de lenta habituação a este alimento
em que a maioria foi socializada ao longo de séculos e também o facto de ele
ser comida festiva, tanto nos rituais mais ou menos opulentos do Natal, como
nas refeições dos grupos que não o consumiam no quotidiano e que, por isso,
viam nele algo de festivo, a apetecida proteína animal que permitia variar uma
dieta pobre à base de produtos agrícolas. Também devemos ter em conta os
efeitos de toda a produção discursiva, ideológica, figurativa ' basta pensar na
relação que Rafael Bordallo Pinheiro instituiu entre ele e a figura do Zé
Povinho ' que o tem celebrado como símbolo nacional.[26] Mas isto não nos pode
fazer esquecer que essa identificação passou também pela incorporação pelo
gosto, pelas memórias evocativas de cheiros e sabores ' mesmo que haja muitos
portugueses que não comunguem do afeto que a maioria parece votar-lhe.