Cognição social fora do laboratório não é peixe fora de água: o caso do efeito
de ancoragem
Introdução: O problema da validade externa do laboratório
A investigação nas ciências sociais, e na psicologia experimental em particular
continua a ser frequentemente questionada quanto à efemeridade das suas
conclusões aplicadas. Os resultados experimentais obtidos em condições muito
controladas não podem ser generalizados a outros contextos, pelo que o valor
aplicado desses dados é muito pequeno. Desta forma, estes estudos realizados em
ambientes artificiais controlados são por vezes questionados quanto à sua falta
de aplicabilidade a contextos reais.
No entanto, os ataques às metodologias experimentais controladas enquanto más
metodologias para a construção de ciência aplicada, parecem ignorar alguns
aspectos epistemológicos essenciais aos objectivos dessas investigações.
O objectivo deste artigo é, por isso, fundamentar a relevância e importância
aplicada dos resultados experimentais, ilustrando as implicações em ambientes
reais que os fenómenos e efeitos estudados no laboratório podem ter.
De facto, o problema da generalização dos resultados na psicologia
experimental, que dificulta a percepção de aplicabilidade desses resultados,
deve‑se à relação entre o seu objecto de estudo e a questão popperiana da
validação teórica.
Ou seja, as ciências sociais, como a psicologia, propõem‑se a lidar com uma
enorme variedade e complexidade de estímulos com múltiplos níveis de explicação
(por exemplo, estímulos contextuais, emocionais, motivacionais, cognitivos,
etc.), o que dificulta o teste das teorias e hipóteses explicativas, assim como
a transposição das mesmas para contextos onde os factores presentes são
variáveis e com diferentes importâncias. Desta forma, áreas da psicologia
experimental como a psicologia cognitiva, a psicologia social, ou a cognição
social, têm desenvolvido formas de controlo experimental cada vez mais
sofisticadas que permitem um maior controlo e isolamento de processos e
variáveis nos ambientes artificiais do laboratório. Com isto não se pretende
reduzir o estudo de complexos processos psicológicos ao estudo dos elementos
que os compõe, mas sim permitir que o estudo destes processos se possa
concentrar nas variáveis de interesse de forma mais específica, para que sejam
metodologicamente maleáveis. No entanto, estes ambientes controlados e
artificiais que permitem, o teste de hipóteses e a validação das teorias são,
também, criticados por reduzirem as implicações e conclusões aplicadas que se
podem retirar a partir da generalização dos resultados (e.g., Neisser, 1978).
Essas críticas, dirigidas à psicologia experimental, que se centram na alegada
falta de validade externa das investigações, questionam sobre se a amostra, a
situação e as manipulações são tão artificiais que a classe de situações do
quotidiano real a que os resultados podem ser generalizados é insignificante.
Neisser (1978), por exemplo, criticou os estudos laboratoriais de memória de
apenas descobrirem trivialidades, de não responderem às questões que realmente
importam e de serem tão artificiais que não oferecem condições de generalização
dos resultados a contextos da vida real. Estas críticas e defesa da validade
ecológica dos resultados foram transversais a várias áreas da psicologia
experimental, como a percepção visual (e.g., Gibson, 1979), psicologia do
desenvolvimento (e.g., Brofenbrenner, 1974), clínica (e.g., Brooks &
Baumeister, 1977; Gaylord‑Ross, 1979), social (e.g., Argyris, 1975) ou do
ambiente (Proshansky, 1976) para nomear algumas.
No entanto, esta perspectiva crítica parece assumir que o experimentador
pretende, ou deve pretender, necessariamente, generalizar os resultados a
sujeitos, manipulações e situações semelhantes. O que parece ignorar os
objectivos da investigação que, muitas vezes, não procura generalizações, mas
sim o teste de teorias (Mook, 1983).
Deste modo, a aplicabilidade dos estudos laboratoriais, não deve ser
necessariamente procurada na capacidade de generalização e validade externa dos
resultados, mas sim na validade teórica que estes permitem (e.g., Banaji &
Crowder, 1989). Ou seja, para saber se uma conclusão teórica é válida são
feitas experiências e testadas predições baseadas nessa teoria. No entanto, os
resultados dessas experiências muitas vezes não são, nem pretendem ser,
generalizáveis, mas contribuir para a compreensão dos processos subjacentes. É,
então, essa compreensão sobre os processos que apresenta validade externa e não
a amostra, a situação, ou manipulações que lhe deram origem, isto é, validade
conceptual externa. Isto sugere que muitas críticas à investigação experimental
partem da confusão entre os objectivos de generalização dos resultados e os
objectivos de compreensão, explicação e generalização das conclusões teóricas
(e.g., Mook, 1983; Roediger, 1991).
A questão da aplicabilidade dos resultados laboratoriais a contextos reais é,
então, um exercício de aplicação de teorias validadas experimentalmente à
compreensão dos fenómenos e processos que ocorrem nesses contextos. Dessa
forma, embora a cognição social, a psicologia cognitiva e a psicologia social
sejam áreas de investigação que privilegiam a experimentação controlada em
ambientes artificiais para testar teorias, as conclusões teóricas que dai
resultam podem ser aplicadas, e ajudar a compreender, fenómenos que ocorrem em
ambientes naturais. Assim, alguns fenómenos e processos, após serem validados
conceptualmente, isto é, após serem demonstrados e compreendidos no ambiente de
laboratório, foram, a partir dessa compreensão e validação teórica,
demonstrados e estudados em contextos práticos reais, evidenciando a
relevância aplicada dos estudos laboratoriais.
No presente artigo vamos, então, explorar um destes casos de sucesso aplicado
na cognição social e psicologia cognitiva, em que um fenómeno de laboratório
passa à vida real. Propomos, por isso, analisar o percurso teórico‑prático do
efeito de ancoragem e utilizá‑lo como um estudo de caso de investigação
laboratorial com aplicações verdadeiras no mundo real.
O efeito de ancoragem diz respeito à assimilação de um julgamento ou decisão a
informação irrelevante para essa tarefa, o que resulta num enviesamento dos
julgamentos no sentido dessa informação. A simplicidade e facilidade com que se
obtém o efeito, a sua consistência e a dificuldade em controlar as suas
consequências nas decisões e comportamentos, tornaram a ancoragem um foco de
estudo com implicações teóricas e práticas em inúmeros contextos relevantes.
Assim, para compreender o como e porquê deste efeito ter tantas manifestações
em contextos de decisão naturais, é um dos propósito do presente artigo,
rever o que se sabe sobre este fenómeno, começando por destacar a hipótese de
acessibilidade selectiva (Strack & Mussweiler, 1997), os métodos de teste e
evidências empíricas que suportam esta explicação do efeito de ancoragem. De
seguida apresentamos várias manifestações do efeito de ancoragem, em contextos
experimentais e aplicados com evidentes implicações práticas para a acção
humana no mundo real, decorrentes em grande parte da teoria e sua validação.
Ilustrando, desta forma, que fenómenos descobertos e estudados em contextos
artificiais de laboratório, não carecem, necessariamente, de validade ou
aplicabilidade. Por fim, e face à robustez deste efeito que leva a erros e
enviesamentos sistemáticos e característicos, discutiremos as melhores formas
de içar a âncora, ou seja, de evitar ou pelo menos atenuar estes erros de
julgamento.
O efeito de Ancoragem
O efeito de ancoragem foi proposto inicialmente por Tversky e Kahneman (1974),
no seu revolucionário programa de investigação heurísticas e enviesamentos.
Neste programa os autores desafiaram o uso de modelos racionais como explicação
para os processos de tomada de decisão, ao apresentarem três heurísticas
simplificadoras, como estando subjacentes a grande parte das respostas humanas
a problemas inferenciais complexos: a heurística da representatividade; a
heurística da disponibilidade e a heurística da ancoragem e ajustamento
(Tversky & Kahneman, 1974).
A ideia central do programa heurísticas e enviesamentos era associar a cada
heurística um conjunto de enviesamentos de decisão. Assim, e de acordo com esse
objectivo, Tversky e Kahneman (1974) ilustram a heurística da ancoragem e
ajustamento a partir do efeito de ancoragem: a assimilação de um valor
irrelevante presente no ambiente (a âncora) aos julgamentos ou estimativas
numéricas sobre determinado alvo, que resulta num enviesamento de resposta, ao
serem feitas estimativas ou julgamentos demasiado próximos desse valor‑âncora
irrelevante.
Num dos exemplos apresentados no seu estudo seminal, Tversky e Kahnenman
(1974), após girarem uma roda da sorte com valores entre os 0 e os 100
perguntavam aos sujeitos, se a percentagem de países africanos membros das
nações unidas era maior ou menor que o número que lhes havia calhado na roda da
sorte. Após a resposta a esta pergunta comparativa era pedida uma estimativa
absoluta sobre a percentagem de países africanos nas nações unidas. As
respostas dos sujeitos permitiram observar um efeito de ancoragem, uma vez que
o número aleatório e irrelevante que saiu na roda da sorte influenciou as suas
respostas no sentido da âncora. Especificamente, a estimativa de percentagem
média de países africanos nas nações unidas foi 25% quando o valor sorteado foi
10 e foi de 45% quando o valor sorteado foi 65, embora os sujeitos soubessem
que o valor da roda da sorte (âncora) não tinha qualquer relevância para o
julgamento e que tinha sido gerado aleatoriamente. Este paradigma experimental
de duas perguntas, uma pergunta comparativa, do alvo com a âncora, e uma
pergunta absoluta sobre o alvo, é o paradigma clássico de ancoragem. É também a
forma mais fácil de encontrar um efeito de ancoragem consistente, pois, mesmo
avisando os participantes do enviesamento ou da irrelevância da âncora o efeito
continua a ocorrer (Tversky & Kahneman, 1974). No entanto, uma breve
análise do estudo acima descrito levanta óbvias preocupações de validade
externa dos resultados. As escolhas e decisões que realizamos no mundo real
raramente envolvem percentagens de países africanos, e muito menos rodas da
sorte. Contudo, como já referido, não é da generalização dos resultados de um
contexto experimental assumidamente simplificado e artificial que aqui se
trata. Em vez disso interessa‑nos explorar a validade externa das conclusões
teóricas retiradas desta e de outras investigações de laboratório.
A consistência e facilidade em obter este efeito a partir deste e outros
paradigmas, promoveu, então, uma grande quantidade de estudos no sentido de
compreender os processos cognitivos que lhe subjazem. Sendo a partir da teoria
que surgiram depois extensões empíricas e semelhantes evidências da presença
deste fenómeno em muitos contextos aplicados, cumprindo‑se, como mostraremos a
seguir, o famoso adágio atribuído ao psicólogo social Kurt Lewin de que não há
nada mais prático do que uma boa teoria.
Não há nada mais prático do que uma boa teoria
Como referimos, o efeito de ancoragem foi proposto inicialmente por Tversky e
Kahneman (1974) para ilustrarem a heurística da ancoragem e ajustamento. Por
isso mesmo, estes autores teorizaram o efeito de acordo com a heurística
subjacente, pelo que, este fenómeno de assimilação de um valor irrelevante (a
âncora) aos julgamentos se deveria a um ajustamento insuficiente. Ou seja, as
pessoas, quando teriam de gerar uma estimativa absoluta sobre um alvo, partiam
do valor apresentado na pergunta comparativa anterior (a âncora), e ajustavam
até um valor que considerassem plausível. Como o ajustamento seria tipicamente
insuficiente, as respostas dadas seriam enviesadas ao estarem muito próximas do
valor da âncora.
No entanto, os estudos que procuraram encontrar evidências de processos de
ajustamento cognitivo em paradigmas semelhantes não foram muito bem‑sucedidos,
apresentando resultados contraditórios (e.g. Wilson, Houston, Brekke, &
Etling, 1996), a não ser que as âncoras apresentadas fossem valores
indubitavelmente inaceitáveis. Por exemplo, foram encontradas evidências de
processos de ajustamento quando as âncoras apresentadas eram valores
implausíveis, por exemplo, 260 anos de idade para um ser humano (Strack &
Mussweiler, 1997), ou quando as âncoras eram valores auto‑gerados ' isto é, em
incerteza sobre o valor absoluto de um alvo, e na ausência de uma âncora
externa, as pessoas geravam espontaneamente valores de referência a partir dos
quais ajustavam até um valor plausível para o alvo (Epley & Gilovich,
2001). Contudo, mesmo nos casos em que existe ajustamento, o efeito não
desaparece e as pessoas continuam a ser enviesadas no sentido das âncoras.
Desta forma, embora os processos de ajustamento contribuam para o efeito em
algumas situações, fica por explicar o processo cognitivo subjacente à
ancoragem, isto é, o como, e porquê das pessoas serem afectadas por valores que
sabem ser irrelevantes para a decisão.
Hipótese de Acessibilidade Selectiva
Para responder a estas perguntas, foram apresentadas várias explicações
alternativas para o efeito como as inferências conversacionais (Grice, 1975) ou
a primação numérica (Jacowitz & Kahneman, 1995; Wilson et al., 1996; Wong
& Kwong, 2000), todas elas contribuindo para uma melhor compreensão do
efeito de ancoragem. No entanto, a explicação dominante e que nos últimos anos
tem reunido mais evidências é a Hipótese de Acessibilidade Selectiva(HAS)
proposta por Fritz Strack e Thomas Mussweiler que entende o efeito enquanto um
caso especial de primação semântica (e.g. Strack & Mussweiler, 1997;
Chapman & Johnson, 1994).
De acordo com a Hipótese de Acessibilidade Selectiva, no paradigma clássico de
ancoragem, os sujeitos resolvem a pergunta comparativa, por exemplo, Mahatma
Ghandi tinha mais ou menos de 79 anos quando morreu?, utilizando uma
estratégia de teste‑de‑hipótese de que o alvo é igual à âncora. Uma vez que
as pessoas são confirmatórias a testar as suas hipóteses, gerando informação
congruente com as mesmas (Klayman & Ha, 1987; Trope & Liberman, 1996),
no teste da hipótese de que o alvo é igual à âncora, os sujeitos recuperam
selectivamente conhecimento consistente com esta hipótese (hipótese de
selectividade). Assim, para responder se Ghandi tinha mais ou menos de 79 anos,
um sujeito vai testar a hipótese de que Ghandi tinha de facto 79 anos quando
morreu, recuperando selectivamente informação congruente com essa hipótese, por
exemplo: Ghandi era careca e magro como um velhinho, Ghandi lutou pela
independência da Índia durante décadas., etc. (Mussweiler & Strack, 1999).
A geração desse conhecimento torna‑o mais acessível para responder à pergunta
absoluta (hipótese de acessibilidade), à semelhança do processo de primação
semântica (e. g. Higgins, 1996), o que resulta em estimativas baseadas em
conhecimento sobre o alvo congruente com a âncora, levando ao enviesamento no
sentido da âncora.
Um caso especial de primação semântica
Esta interpretação do efeito de ancoragem enquanto um caso especial de primação
semântica recebeu bastante suporte empírico, existindo vários estudos a
demonstrar directa ou indirectamente que a consideração da âncora na pergunta
comparativa parece tornar acessíveis os atributos do alvo que são semelhantes à
âncora (Strack & Mussweiler, 1997, Mussweiler & Strack, 1999, 2000a;
Chapman & Johnson, 1999).
Por exemplo, num teste directo a esta hipótese, os sujeitos após responderem à
pergunta comparativa do paradigma clássico de ancoragem, por exemplo, A
temperatura média anual na Antárctica é maior ou menor que ' 47º C (para âncora
baixa ou ' 17º C para âncora alta), tiveram de listar os atributos do alvo que
lhes ocorreram na mente e só depois respondiam à pergunta absoluta sobre a
temperatura média anual na Antárctica. Os resultados mostraram que, além de um
consistente efeito de ancoragem, os sujeitos aos quais foi apresentada a âncora
baixa listaram mais pensamentos que implicavam um valor baixo do alvo, por
exemplo, A Antárctica tem as temperaturas mais baixas da Terra. Os sujeitos
aos quais foi apresentada uma âncora alta listaram atributos do alvo
congruentes com um valor elevado do alvo (Mussweiler & Strack, 1999, estudo
4), revelando, assim, a natureza semântica do efeito. Noutro estudo, foi também
demonstrado que os sujeitos eram mais rápidos a reconhecer palavras associadas
a carros caros como Mercedes ou BMW após compararem o preço médio de um
carro alemão com uma âncora alta (40.000) do que após a comparação com a
âncora baixa (20.000), mas que reconheciam mais depressa, palavras associadas
a carros baratos como Volkswagen após a comparação com a âncora baixa
(Mussweiler & Strack, 2000a). Ou seja, a informação congruente com a âncora
parece ficar efectivamente mais acessível para o julgamento, evidenciando, o
paralelismo entre os fenómenos de primação semântica e o efeito de ancoragem.
A Consistência do Efeito de Ancoragem
Esta conceptualização do efeito de ancoragem enquanto um processo
essencialmente semântico, implicando um grande nível de automatismo1
subjacente, permite explicar e prever uma grande consistência e facilidade em
obter o efeito. Por outras palavras, enquanto processo de natureza semântica e
automática, será fácil observar um efeito de ancoragem nos julgamentos e
decisões. Tão fácil, que em determinadas condições de exposição, o difícil será
mesmo evitar que este ocorra, o que explicará a existência de manifestações
empíricas de ancoragem nos mais variados contextos de decisão reais, como
veremos mais à frente. De facto, vários estudos têm evidenciado a consistência
e robustez do efeito, uma vez que a utilização de diferentes manipulações do
tipo de instruções, âncoras ou tarefas têm sido incapazes de evitar a ancoragem
dos julgamentos.
Por exemplo, mesmo quando os sujeitos são avisados do enviesamento (e.g. Wilson
et al., 1996), quando as âncoras são valores desprovidos de qualquer
significado (e.g. Critcher & Gilovich, 2008) quando as âncoras são geradas
de forma completamente aleatória (e.g. Englich, Mussweiler, & Strack,
2006), ou quando as âncoras são valores completamente implausíveis (e.g. Strack
& Mussweiler, 1997) o efeito de ancoragem não é afectado.
Noutros estudos, procurou‑se manipular a motivação dos sujeitos com a
atribuição de incentivos para bons desempenhos na tarefa (incentivos monetários
ou publicação dos resultados na tarefa) (e.g. Wright & Anderson, 1989;
Tversky & Kahneman, 1974; Wilson et al., 1996), mas sem sucesso na
eliminação do efeito. Da mesma forma, nem o recurso a sujeitos especialistas
nos temas utilizados nas tarefas de ancoragem, permitiu eliminar o efeito (e.g.
Kaustia, Alho, & Puttonen, 2008; Northcraft & Neale, 1987). O que, como
veremos mais à frente, poderá ter grandes implicações sociais e económicas.
A robustez do efeito é ainda demonstrada em estudos que mostram um efeito de
ancoragem na ausência da pergunta comparativa. As pessoas podem, assim, ser
ancoradas a valores relevantes para o julgamento absoluto (Northcraft &
Neale, 1987), ou podem, na ausência de valores de referência, gerar valores
aproximados aos quais são ancoradas para responder às perguntas absolutas (e.g.
Epley & Gilovich, 2001). Por exemplo, para estimar a temperatura de
congelação da vodka, as pessoas tendem a gerar o valor de congelação da água
(0ºC) como âncora, e a ajustar até uma resposta a partir dessa âncora (Epley
& Gilovich, 2001). Aliás, mesmo a mera exposição extensiva a determinado
valor pode influenciar os julgamentos. Por exemplo, a exposição repetida a
números elevados (vs. baixos) numa tarefa não relacionada (ex., escrever
números numa folha de papel), levou a que as estimativas do número de
estudantes que iriam contrair cancro fossem mais elevadas (Wilson et al.,
1996). Da mesma forma, mas levado ao extremo, um estudo demonstrou que o efeito
de ancoragem ocorre mesmo com a apresentação subliminar das âncoras (Mussweiler
& Englich, 2005), deixando clara a natureza automática do fenómeno.
Esta consistência de natureza semântica reflecte‑se, ainda, na resistência
temporal que o efeito apresenta. Mesmo quando a distância temporal entre a
pergunta comparativa e a pergunta absoluta é de uma semana, o efeito continua a
ocorrer, e as respostas à pergunta absoluta a ser enviesadas no sentido da
âncora (Mussweiler, 2001).
Como vimos, existe um grande suporte empírico para a teorização do efeito de
ancoragem enquanto um processo de natureza semântica e largamente automático.
Estes dados experimentais, suportam a natureza semântica do efeito de ancoragem
de forma consistente, evidenciando a acessibilidade da informação sobre o alvo
consistente com a âncora no momento em que os sujeitos têm de fazer o
julgamento sobre o alvo. Demonstram, ainda, um elevado nível de automaticidade
subjacente ao processo, uma vez que a informação por mais irrelevante que seja
para o julgamento poderá influencia‑lo, além de que parece ser muito difícil
controlar os seus efeitos, mesmo que nos encontremos motivados para isso.
Note‑se que estas evidências suportam modelos teóricos, pelo que a partir da
conceptualização validada do efeito de ancoragem enquanto um fenómeno de
natureza essencialmente semântica, pode‑se inferir e compreender a grande
consistência e facilidade que existe em obter o efeito, pensar em estratégias
de correcção que protejam as nossas decisões de enviesamentos por ancoragem,
assim como derivar contextos em que este possa ocorrer. Como já vimos e
continuaremos a ver de seguida, a partir da teoria foram possíveis observar‑se
extensões do efeito de ancoragem em muitos contextos de decisão diferentes. Ou
seja, as extensões empíricas que iremos apresentar, sendo mais ou menos
intuitivas, foram encontradas por haver teorias e contribuem para o processo de
validação das mesmas. Por exemplo, embora em negociação seja intuitivo e de
senso comum que se queremos vender devemos pedir um preço elevado (e depois
baixar) e não começar logo pelo preço que queremos, demonstrando (boa)
vontade de negociar. Não é nada intuitivo ou evidente que copiar números para
um papel ou ser expostos a números irrelevantes terá o mesmo efeito, e que
esses efeitos sejam esperados na atribuição de penas nos tribunais ou de preços
dos mercados, como iremos ver. Assim, demonstrar que este fenómeno existe além
laboratório e que tem impacto em situações reais é uma derivação teórica, ou
seja, a extensibilidade empírica e as semelhanças subjacentes são função da
teoria, pelo que a aplicabilidade dos estudos experimentais decorre da
validação teórica. Passamos então a apresentar essas extensões empíricas do
efeito de ancoragem enquanto fenómeno de natureza semântica, nos mais diversos
contextos de decisão aplicada, ou seja, em decisões com impacto prático na vida
quotidiana.
Contextos de Aplicação
Como temos vindo a referir, a partir da teoria foi possível observar‑se
extensões empíricas do efeito de ancoragem, demonstrando a importância aplicada
dos estudos experimentais. Começamos por demonstrar que, muitas vezes, valores
numéricos presentes no contexto de decisão, por mais irrelevantes e arbitrários
que sejam, podem influenciar as nossas percepções e decisões quotidianas por
ancoragem (1). Em seguida serão explorados contextos específicos especialmente
susceptíveis ao efeito de ancoragem que podem implicar grandes e graves
consequências, como nos contextos de consumo em processos de avaliação (2) ou
negociação (3), em contextos de estimação de probabilidades e percepção de
risco (4), ou em contextos de importância social como a economia (5) ou as
decisões judiciais (6).
1. Âncoras Por Acaso
Em muitos contextos aplicados em que ocorre o efeito de ancoragem, pode‑se pôr
a hipótese de que as pessoas consideram que a informação utilizada como âncora
apresenta alguma utilidade e validade ecológica para tomar a decisão (e.g.,
Grice, 1975). Contudo, a partir da teorização do efeito enquanto um fenómeno de
natureza semântica largamente automático, foram encontradas evidências de que
informação completamente arbitrária e irrelevante, presente em contextos
reais de decisão, pode influenciar e ancorar as decisões quotidianas a esses
valores completamente aleatórios e acidentais. Neste sentido, Critcher e
Gilovich (2008) realizaram uma série de estudos onde exploraram a ideia de que
qualquer valor presente no ambiente de decisão se pode tornar uma âncora por
acaso.
Num dos estudos os experimentadores deram uma descrição fictícia sobre um
atleta (um jogador de futebol americano) e apresentaram‑no utilizando o número
54 ou com o número 94 na camisola. De seguida pediram aos sujeitos que fizessem
uma estimativa sobre qual a probabilidade desse atleta ter uma boa prestação no
campeonato. Por inacreditável que pareça os sujeitos estimaram desempenhos
significativamente melhores quando o número da camisola era mais elevado
(Critcher & Gilovich, 2008, estudo 1). Isto demonstrou que um valor
completamente irrelevante para inferir o desempenho do atleta ancorou as
estimativas de desempenho dos sujeitos.
Pensando agora na compra de um smartphone ou outro gadget qualquer, normalmente
esse tipo de produtos de consumo tecnológico tem associado um número de modelo
como o Nokia N97 ou o Nokia 5800 acontece que estes números que aparentemente
só indicam a versão do modelo podem alterar as percepções em relação ao
produto. Critcher e Gilovich (2008, estudo 2) apresentaram então a mesma
descrição de um telemóvel aos sujeitos, variando o nome do modelo, P17 ou P97.
Pediram então aos sujeitos que fizessem prognósticos de venda desse modelo de
telemóvel, uma vez que o seu sucesso iria depender da sua qualidade. Mais uma
vez, os sujeitos foram ancorados a um valor completamente acidental prevendo
maior sucesso e inferindo maior qualidade no modelo P97 do que no modelo P17.
Noutro exemplo, Critcher e Gilovich (2008, estudo 3) demonstraram também que os
participantes estavam dispostos a pagar mais para comer num restaurante chamado
Studio 97 (âncora alta) do que no Studio 17 (âncora baixa), especialmente se
não se recordassem do nome do restaurante.
Estes exemplos ilustram claramente a influência que valores completamente
acidentais, podem ter nas nossas decisões. A exposição a valores completamente
arbitrários levou, ainda assim, à activação de informação sobre o alvo
congruente com essa informação irrelevante, influenciando os julgamentos
posteriores. Posto isto, é natural que alguns contextos que lidam
frequentemente com números estejam especialmente susceptíveis a fenómenos de
ancoragem. Os contextos de consumo, que implicam negociação ou avaliação e
manipulação de valores numéricos, são um bom exemplo desta ideia, como veremos
de seguida.
2. Avaliação
Pensando nas situações em que se tem de pedir a um especialista para avaliar o
preço de algo que se quer vender, como um carro ou obras de arte desenterradas
no sótão da avó, ou, por outro lado, nas situações em que queremos comprar
determinado artigo em segunda mão. Qual é a melhor solução para não ser
enganado nestes negócios? Pedir a opinião a um especialista sobre o valor e
preço desse produto dirá a maior parte das pessoas. Concordamos plenamente, no
entanto, advertiríamos para o risco dos especialistas se enganarem ou serem
ancorados.
Por exemplo, num estudo, o experimentador levou um carro a um especialista que
lhe pudesse dizer se um problema que ele tinha no carro valeria a pena
arranjar, uma vez que o carro já era velho. Para ajudar o expert a decidir, o
experimentador apresentou‑lhe alguns factos sobre o carro, os quilómetros
percorridos, o ano e, deu‑lhe a sua estimativa de quanto valia o carro. Neste
último ponto, o experimentador poderia dar uma âncora alta 5,000 euros ou uma
âncora baixa 2,800 euros, depois perguntava ao expert se ele achava que esse
valor era maior ou menor que o preço do carro, pedindo depois uma estimativa
absoluta ao expert. Como esperado, o valor atribuído pelo expert era
consistentemente superior para a âncora alta, mostrando um efeito de ancoragem,
que teria repercussões na decisão de arranjar ou não o carro e em decisões
sobre o preço de venda do carro (Mussweiler, Strack & Pfeifer, 2000).
Noutro estudo semelhante, pediu‑se a agentes imobiliários que fizessem uma
avaliação sobre o valor de uma casa, sendo‑lhes antes apresentada informação
sobre a casa, inclusive o preço da mesma. Naturalmente as estimativas
avaliativas da casa foram tão maiores quanto maior fosse o preço apresentado na
lista, revelando, mais uma vez, um efeito de ancoragem (Northcraft & Neale,
1987).
Parece então que não se pode confiar nos agentes imobiliários, embora, mesmo
quando é o próprio comprador a avaliar o imóvel, esse processo está também
sujeito ao efeito de ancoragem Num estudo de Chapman e Johnson (1999), após
observarem os atributos de um apartamento‑âncora considerado atractivo, os
sujeitos mostraram‑se dispostos a dar mais dinheiro por um apartamento‑alvo,
e demoraram mais tempo a olhar para os atributos positivos desse
apartamento‑alvo. Por outro lado, quando o apartamento‑âncora era considerado
indesejável, o apartamento‑alvo não era considerado tão valioso, e os sujeitos
demoravam mais tempo a olhar para os seus atributos negativos (Chapman &
Johnson, 1999, estudo 1). Da mesma forma, o efeito de ancoragem também se
manifesta na avaliação de produtos de consumo menos importantes que a compra de
casas ou carros, como em produtos alimentares ou electrodomésticos (Janiszewski
& Uy, 2008). É importante notar que a maior parte destes estudos decorrem
directamente da conceptualização do efeito de ancoragem enquanto um fenómeno de
primação semântica e reforçam essa mesma natureza. Por exemplo, a
acessibilidade de diferentes tipos de informação favorável (e.g., olhar para os
atributos positivos, estimar um maior valor, etc.) em relação a um produto após
a exposição a uma âncora alta, dificilmente poderia ser explicado por outro
processo que não implicasse um fenómeno de natureza semântica.
Assim, quando o contexto de avaliação nos expõe a determinado tipo de
informação pode favorecer uma avaliação mais alta ou baixa do produto em causa.
Portanto, se quisermos saber qual é o valor real daquele apartamento ou daquele
quadro tipo impressionista encontrado na feira da ladra e pedirmos a opinião a
um especialista em arte do séc. XIX, o melhor é não saber o preço do quadro,
nem dizer que o quadro é lindíssimo e que aquelas cores fazem lembrar Monet,
Degas ou Renoir, pois, por muito bom que o especialista seja a julgar preços de
obras perdidas, os nossos processos cognitivos são bem melhores a incluir
valores e atributos irrelevantes nas nossas decisões, é caso para dizer, que o
segredo é a alma do negócio!
3. Negociação
E por falar em feiras, um aspecto central da compra e venda nestes contextos é
a negociação, que também é afectada pelo efeito de ancoragem. De facto, devido
ao fenómeno de ancoragem, as situações de negociação podem ser comparadas a um
duelo de cowboys, o primeiro a sacar ganha. Numa série de estudos, Critcher e
Gilovich (2001) demonstraram que o primeiro dos intervenientes da negociação a
lançar um valor faz um melhor negócio. Ou seja, quando o vendedor era o
primeiro a fazer uma oferta o valor do acordo final era mais próximo da
proposta inicial do vendedor do que quando a primeira oferta era feita pelo
comprador e isto verificou‑se mesmo em negociações on‑line (Critcher &
Gilovich, 2008). Estes dados estão, também, em linha com os estudos que
mostraram que âncoras aleatórias afectam a disponibilidade para pagar (o valor
máximo que se dispõem a pagar) e a disponibilidade para aceitar (o valor mínimo
para aceitar uma oferta) (Simonson & Dorlet, 2003). No entanto, a principal
conclusão que se pode tirar é que o segredo de um bom negócio, é ser o primeiro
a sacar de um valor, ou seja, a arte de regatear é acessória pois o vencedor
foi definido à partida.
4. Probabilidades
Outra área de julgamentos que cedo se percebeu poder ser afectada por este
processo heurístico de ancoragem foram os julgamentos e estimativas de
probabilidade. A possibilidade de informação irrelevante influenciar os
julgamentos de probabilidade pode trazer grandes consequências para as decisões
e comportamentos quotidianos, desde questões sobre o tempo a avaliações de
risco.
Uma das primeiras aplicações do fenómeno de ancoragem foi na explicação da
falácia do planeamento enquanto sobrestimação da ocorrência de eventos
conjuntivos (a probabilidade de vários acontecimentos independentes ocorrerem
em conjunto) ou subestimação de eventos disjuntivos (i.e., a probabilidade de
pelo menos um evento, em vários, ocorrer) (Sherman & Corty, 1984). Por
exemplo, na estimativa de probabilidades de eventos conjuntivos, como a
probabilidade de sucesso de um novo restaurante, é necessário considerar a
probabilidade de vários acontecimentos, por exemplo, a probabilidade de ter
boa localização, a probabilidade de ter bons produtos, a probabilidade de ter
bons empregados, a probabilidade de ter concorrência, entre outros. As pessoas
podem, então, ancorar‑se à probabilidade de ocorrência de apenas uma parcela
desse evento (e.g. boa localização), que se for elevada deverá levar a uma
elevada estimativa de ocorrência do evento conjuntivo (neste caso o sucesso do
restaurante), desconsiderando outras parcelas dessa conjunção (e.g. existência
de concorrência, qualidade do produto, etc.).
Os jogos e apostas que dependem naturalmente das estimativas de probabilidade
de ganhar, são também susceptíveis a este fenómeno. Por exemplo, após a
exposição a valores elevados, as pessoas passam a atribuir maior valor a
lotarias do que quando expostas a valores baixos (e.g. Chapman & Johnson,
1994). Além disso o fenómeno de ancoragem pode também contribuir para a
explicação da falácia do jogador: a crença de que a probabilidade fixa de um
acontecimento, varia (aumenta ou diminui) de acordo com os acontecimentos mais
recentes. Por exemplo, no lançamento de moedas existe uma probabilidade fixa de
50% de sair uma cara ou uma coroa. No entanto, após uma série de ocorrências
consecutivas de um resultado, por exemplo, cara, a probabilidade percebida da
série continuar diminui e o resultado coroa torna‑se mais provável para os
jogadores, embora cada lançamento seja um acontecimento independente. Deste
modo, os jogadores, parecem ser ancorados às propriedades probabilísticas
estimadas inicialmente, esperando que essas propriedades se mantenham no
conjunto de acontecimentos, independentemente do tamanho da amostra e da
relação de dependência ou independência dos acontecimentos. Ou seja, se a
probabilidade de calhar cara e coroa é 50%, no total de lançamentos da moeda
deve observar‑se o mesmo número de caras e de coroas, independentemente do
tamanho da amostra e de se tratarem de acontecimentos independentes. Assim,
ancorados às probabilidades de partida, os jogadores julgam que após 4 caras a
probabilidade esperada de sair uma coroa é maior (Sherman & Corty, 1984).
Também a percepção de risco, que depende da probabilidade percebida de
determinado evento negativo ocorrer é susceptível à ancoragem. Por exemplo,
Plous (1989) demonstrou que a comparação com uma âncora alta (e.g. 90%) levou a
estimativas de probabilidade de ocorrência de uma guerra nuclear muito maiores
do que a comparação com uma âncora baixa (e.g. 1%). Da mesma forma, na política
surge outro exemplo de estimativas de risco afectadas pelo efeito de ancoragem.
Por exemplo, quando os sujeitos eram questionados sobre se a probabilidade de
determinado candidato ser eleito era maior ou menor que 20%, as suas
estimativas de probabilidade desse candidato ganhar eram muito inferiores
quando comparadas com as estimativas de probabilidade realizadas por sujeitos
aos quais se perguntou se a probabilidade do candidato ser eleito era maior ou
menor que 80% (Mussweiler, Strack & Pfeifer, 2000), mesmo avisando os
sujeitos que esses valores âncora haviam sido gerados aleatoriamente.
Concluindo, as estimativas de probabilidade e decisões dependentes desses
julgamentos, tão frequentes na vida quotidiana, podem ser influenciadas por
valores completamente irrelevantes às probabilidades de ocorrência,
evidenciando, mais uma vez a presença do efeito de ancoragem nos mais variados
contextos. Continuamos, agora, com a apresentação de mais alguns estudos que
ilustram as implicações do efeito de ancoragem em decisões de grande impacto
social, como as decisões associadas a contextos económicos e judiciais.
5. Economia
Estudos do Banco Mundial sugerem que o mercado bolsista é extremamente
importante para o desenvolvimento da economia de um país, o mercado de valores
não só segue o crescimento económico, como proporciona os meios para o
prognóstico das taxas futuras de crescimento do capital, da produtividade e da
renda per capita. Posto isto, é essencial compreender as movimentações do
mercado de valores e o que determina as decisões dos investidores. Esta questão
é especialmente interessante se considerarmos que, embora os valores de mercado
e o comportamento dos investidores apresentem uma aparente coerência e
sensibilidade às notícias e eventos económicos significativos, esperando‑se
que reflictam o valor fundamental de uma empresa, a natureza inerentemente
ambígua dos preços das acções (Summers, 1986), sugere que a origem desses
valores possa ter sido determinada por factores completamente aleatórios
(Ariely, Loewenstein, & Prelec, 2003; 2006). De facto, existem evidências
de que os processos de avaliação têm uma grande componente arbitrária, estando
sujeitos a fenómenos de ancoragem a informação irrelevante (Ariely et al.,
2003; 2006; Mussweiler & Schneller, 2003; Kaustia et al., 2008).
Por exemplo, Ariely e colaboradores pediram para os sujeitos decidirem se
estavam, ou não, dispostos a pagar/receber o valor dos 3 últimos dígitos do seu
número de segurança social (SS) (uma âncora completamente arbitrária) por
determinado estímulo positivo/aversivo que experimentavam antes do julgamento
(e.g. garrafa de vinho ou um som aversivo). Foi, então, observado que quanto
maior fosse o valor dos 3 últimos dígitos do número de SS, mais os sujeitos
estavam dispostos a pagar por um estímulo positivo, ou mais exigiam para serem
expostos a um estímulo aversivo embora revelassem grande coerência nas
avaliações quanto às diferenças escalares desses estímulos (e.g., mostraram‑se
dispostos a pagar mais por um vinho bom do que por um vinho médio).
Estes dados sugerem que, os processos de avaliação estão inicialmente sujeitos
a fenómenos de ancoragem a informação irrelevante, e que as avaliações
posteriores serão coerentes com essa avaliação inicial e com as especificidades
escalares dos novos estímulos, num processo que parece aplicar‑se e
verificar‑se nas flutuações do mercado de valores (Ariely et al., 2003, 2006).
Mussweiler e Schneller (2003) demonstraram também a influência de valores
economicamente irrelevantes, nas decisões de investimento. Embora do ponto de
vista da teoria económica dos mercados, o desempenho passado do preço das
acções seja irrelevante para o seu futuro desenvolvimento (Fama, 1998), tanto
os investidores privados como os profissionais da bolsa são influenciados pelos
valores extremos dos gráficos de desempenho dos preços das acções (Mussweiler
& Schneller, 2003). Por exemplo, quando os gráficos do desenvolvimento do
preço das acções durante 12 meses tinham um valor extremo positivo os
investidores estimavam um preço futuro mais elevado, investiam mais do triplo
do dinheiro e vendiam duas vezes menos do que quando o valor extremo nesse
gráfico era negativo. Embora ambos os gráficos terminassem com o mesmo lucro de
20%, e os sujeitos tivessem acesso a toda a informação sobre a companhia
(Mussweiler & Schneller, 2003). Ou seja, informação teoricamente
irrelevante para as decisões de investimento parece ancorar os investidores e
determinar as suas decisões.
Concluindo, estes estudos demonstram que as avaliações inerentes aos mercados
de valores estão na sua essência e nos consequentes comportamentos de
investimento sujeitas a influências arbitrárias e fenómenos de ancoragem. Dessa
forma, um fenómeno de natureza cognitiva como a ancoragem parece poder
influenciar algo tão importante como o desenvolvimento dos mercados
financeiros.
6. Justiça e contexto legal
A atribuição de uma sentença judicial deve ser guiada por factos relevantes e
imparcialidade, e, embora se trate de uma decisão com alguma incerteza, o
sistema penal, os anos de estudo e de experiência dos responsáveis pelas
decisões legais, e a importância da decisão para a vida de outras pessoas,
devem proteger essas decisões de influências indesejadas. No entanto, o efeito
de ancoragem parece estar acima da lei!
De facto, existem evidências de manifestações do efeito de ancoragem em
contextos judiciais, sugerindo que quanto maior for a exigência feita ao
tribunal, maior será a compensação atribuída pelo juiz (e.g., Hastie, Schkade,
& Payne, 1999; Marti & Wissler, 2000). Por exemplo, Chapman e Bornstein
(1996) mostraram que em casos de danos pessoais, a compensação exigida
influencia sistematicamente a compensação atribuída pelos júris, assim como a
probabilidade percebida do acusado ter sido responsável pelos danos. Ou seja,
quanto mais se pedir pelo dano/ofensa, mais se recebe e mais vítima se parece,
uma vez que as decisões são ancoradas ao pedido do lesado.
Resultados semelhantes foram, também obtidos em contextos criminais.
Especificamente, tem sido demonstrado que profissionais judiciais que assumem o
papel de juiz no julgamento de, por exemplo, um caso de violação, são altamente
influenciados pelas sentenças exigidas pela acusação (Englich & Mussweiler,
2001; Englich, Mussweiler, & Strack, 2005) independentemente de já terem
até mais de 15 anos de experiência (Englich & Mussweiler, 2001), o que está
de acordo com estudos correlacionais a partir de registos legais que concluíram
que a sentença final tende a ser próxima da sentença recomendada ou sugerida
durante o julgamento (e.g. Martin & Alonso, 1997).
Englich e colaboradores (Englich, et al., 2005) demonstraram ainda, que as
alegações e exigências feitas pela acusação vão influenciar as próprias
alegações e contra‑propostas da defesa. De facto, após manipular a sentença
sugerida pela acusação (alta ou baixa), pediu‑se a especialistas e
profissionais com experiência que fizessem o papel de advogado de defesa em
relação a esse caso. Os resultados mostraram um efeito de ancoragem, sendo que,
quanto mais pesada fosse a sentença pedida pela acusação, mais pesada seria
também a sentença sugerida pela defesa. Da mesma forma, quando se pediu a
experts que fizessem o papel de juiz num caso em que eram apresentadas as
alegações manipuladas da acusação e as respostas enviesadas da defesa, as penas
atribuídas foram, tão maiores quanto mais elevadas fossem as penas exigidas
pela acusação. Assim, foi possível demonstrar que devido ao efeito de
ancoragem, as alegações da defesa em vez de contrabalançarem as alegações da
acusação, simplesmente mediaram a influência dessas alegações na decisão do
juiz (Englich et al., 2005).
No entanto, pode‑se sempre argumentar que os sujeitos foram influenciados
pelas alegações da acusação porque as consideraram válidas. Por isso mesmo,
Englich e colaboradores (Englich et al., 2006), foram mais longe e demonstraram
que especialistas em lei criminal foram igualmente afectados por valores
claramente irrelevantes, como os gerados a partir de um dado. Ou seja, após o
lançamento de dois dados quando o valor fosse elevado os argumentos
incriminatórios tornavam‑se mais acessíveis e as sentenças eram também mais
pesadas do que quando o valor dos dados era baixo, o que resultava em sentenças
mais leves, revelando uma ancoragem das decisões penais ao valor dos dados
(Englich et al., 2006).
Mais uma vez se demonstrou que o fenómeno de ancoragem tem implicações na vida
real e em contextos de extrema importância e responsabilidade social, e onde se
procura ter o máximo de controlo sobre as decisões, como o contexto de justiça.
Assim, mesmo que os juízes não atirem dados para tomar as decisões legais, eles
estão constantemente a ser expostos a potenciais âncoras durante as decisões,
quer seja através dos advogados, dos media (Englich et al., 2006), da audiência
do tribunal, das opiniões pessoais do companheiro, amigos, vizinhos, ou mesmo
através de qualquer valor que esteja acessível na mente do juiz no momento de
definir a sentença.
Este conjunto de evidências da ocorrência do efeito de ancoragem em contextos
judiciais, assim como nos outros contextos exemplificados, demonstra, mais uma
vez, toda a consistência do efeito e revela a sua aplicabilidade e peso em
decisões reais, das mais irrelevantes e quotidianas às mais importantes do
ponto de vista social ou económico. No entanto, é importante não esquecer que
muitas das manifestações aplicadas do efeito aqui apresentadas partiram
directamente da teoria testada e validada no laboratório. Ou seja, a
conceptualização semântica do efeito de ancoragem sugere que informação
irrelevante, como lançamentos de dados, poderá afectar decisões posteriores em
diversos contextos (como atribuição de penas) o que contribuiu para as
demonstrações aplicadas do efeito. Ao mesmo tempo, estas evidências servem de
suporte à própria teoria, uma vez que hipóteses concorrentes dificilmente
poderiam prever resultados transcontextuais e de natureza semântica, como um
aumento da acessibilidade de informação incriminatória após tirar um valor alto
no lançamento de um dado.
Ancoragem aplicada: Conclusão
Esperamos que com esta secção se tenha tornado evidente a aplicabilidade do
efeito de ancoragem. Como vimos o efeito de ancoragem pode ocorrer em quase
todos os contextos de decisão que envolvam valores numéricos, mesmo em
contextos, que dada a sua importância social e pessoal, parecem depender,
apenas, de raciocínios deliberados e motivados. Estas evidentes manifestações
do efeito de ancoragem em contextos de decisão reais, reforçam também a
conceptualização do mesmo enquanto um fenómeno semântico largamente automático.
No entanto, muitas destas evidências têm a sua origem precisamente na teoria,
na compreensão profunda do fenómeno, só possível a partir de estudos
laboratoriais extremamente controlados. Ou seja, a compreensão, delimitação e
capacidade de previsão deste fenómeno no laboratório, desde a sua descoberta
nas experiências seminais de Tversky e Kahneman até à compreensão profunda dos
processos cognitivos que lhe estão subjacentes, permitiu construir um corpo
teórico e empírico capaz de prever e desenvolver extensões empíricas
impressionantes e que dotam o efeito de ancoragem de uma aplicabilidade
considerável. Reforça‑se, assim, a ideia de que o estudo em ambientes
controlados, não carece de aplicabilidade, uma vez que a validação teórica
permite compreender para depois prever e aplicar fenómenos de natureza
cognitiva a contextos reais. Como argumentámos, a partir da teoria e sua
validação torna‑se possível prever e compreender outras manifestações do
fenómeno, assim como toda a sua consistência e robustez. O corpo empírico
apresentado até agora, tem evidenciado que o efeito de ancoragem é extremamente
difícil de evitar, apresentando uma grande consistência e resistência às mais
variadas manipulações, o que é previsto e reforça a sua conceptualização
semântica largamente automática. Assim, será, também, a partir destes
princípios semânticos teorizados que poderão ser pensadas estratégias que
permitam evitar ou reduzir as manifestações do efeito de ancoragem nas
decisões, como veremos de seguida.
Içar a Âncora!
A grande consistência e resistência transcontextual do efeito de ancoragem
implica que a influência que a informação irrelevante pode exercer nas nossas
decisões seja difícil de contrariar. Contudo, partindo da compreensão dos
processos subjacentes à ancoragem, foi possível explorar algumas condições
favoráveis à redução do efeito.
A questão que se coloca, é a de como evitar ou corrigir este tipo de
enviesamentos cognitivos, ou seja, que condições potenciam o controlo mental,
um processo cognitivamente exigente e dependente de vários factores e crenças
dos indivíduos (Wilson & Brekke, 1994).
Especificamente, nos contextos de ancoragem, a falta de consciência dos
processos mentais que estão a decorrer e a dificuldade em detectar os
enviesamentos (Wilson, Houton, Etling & Brekke, 1993) serão factores que
dificultam a sua correcção. Além disso, mesmo que os sujeitos reconheçam que o
seu julgamento está enviesado, é necessário que estejam motivados para a
correcção e que conheçam a direcção e magnitude do enviesamento (Wilson &
Brekke, 1994). Naturalmente estas condições nunca foram reunidas nos estudos de
ancoragem pelo que a dificuldade em reduzir o efeito pode ter que ver com estas
condicionantes do controlo mental. Existem, contudo, algumas evidências de
manipulações experimentais que, a partir da conceptualização do efeito de
ancoragem enquanto um caso semelhante à primação semântica, reduziram o impacto
da âncora nos julgamentos das pessoas.
Embora as manipulações de expertise nunca tenham eliminado o efeito, existem
algumas evidências de redução da influência da âncora nas decisões de
especialistas (e.g. Kaustia, et al., 2008). Essa redução deve‑se ao maior
nível de conhecimento sobre determinado alvo que irá reduzir o efeito de
ancoragem se a âncora for um valor que se encontra fora do intervalo subjectivo
de valores plausíveis que o expert tem para o alvo (Mussweiler & Strack,
2000b). Quando a âncora é um valor que se encontra fora desse intervalo, como
por exemplo as âncoras implausíveis, os sujeitos ajustam até ao valor mais
extremo da sua distribuição subjectiva de valores plausíveis e são ancorados a
esse valor limite (Epley e Gilovich, 2006; Mussweiler & Strack, 2000b;
Mussweiler & Strack, 2001; Quattrone, Lawrence, Finkel, & Andrus,
1981). Desta forma, quanto maior for o conhecimento sobre o alvo, menor deverá
ser a distribuição de valores aceitáveis, e maior será a probabilidade da
âncora se encontrar fora desse intervalo. Assim, o efeito obtido dever‑se‑á à
utilização de um valor extremo do intervalo de valores plausíveis, o limite
superior para âncoras altas e o valor limite inferior para âncoras baixas
(Mussweiler & Strack, 2000b).
Resumindo, o conhecimento sobre o alvo pode reduzir a influência de âncoras
externas, ao reduzir o intervalo de valores aceitáveis para o alvo, embora,
mesmo nesses casos, como vimos, o fenómeno continue a ocorrer a partir dos
valores limite da distribuição subjectiva de valores plausíveis para o alvo que
são auto‑gerados pelo indivíduo (Mussweiler & Strack, 2000b), a não ser,
claro, que esse intervalo se resuma a apenas um valor.
Outras situações onde se encontram reduções do efeito de assimilação das
âncoras surgem quando o conhecimento activado pela âncora é desadequado para
responder à pergunta sobre o alvo. Por exemplo, quando no paradigma clássico de
ancoragem se pede aos sujeitos para comparar o comprimento do rio Mississípi
com determinada âncora e depois lhes é pedida uma estimativa absoluta sobre a
largura do rio observa‑se um menor efeito de ancoragem do que quando os
sujeitos respondem a uma pergunta absoluta sobre o comprimento do rio (Strack
& Mussweiler, 1997; Simonson & Drolet, 2003). Noutro estudo, obteve‑se
mesmo um efeito de contraste, isto é, uma correcção exagerada da resposta, em
que as âncoras altas levaram a respostas mais baixas e vice‑versa, quando, por
exemplo as perguntas fossem sobre a mesma dimensão, mas sobre alvos diferentes
(Strack & Mussweiler, 1997, estudo 2). Ou seja, dada a natureza semântica
do efeito, quando o conhecimento activado pela âncora não se aplica ao
julgamento sobre o alvo, a sua influência é claramente reduzida, podendo mesmo
ser revertida.
Como vimos, o efeito de ancoragem deve‑se à activação de informação sobre o
alvo congruente com a âncora, que se torna acessível e é recuperada durante a
estimativa absoluta sobre o alvo. Posto isto, uma forma de reduzir o
enviesamento é activar informação sobre o alvo que seja incongruente com a
âncora, anulando, por assim dizer, a influência assimilativa que a âncora iria
exercer no julgamento. Por exemplo, num contexto de venda de carros
apresentou‑se toda a informação sobre o carro e pediu‑se uma avaliação a um
especialista. Neste caso, a sugestão de que o carro tem um preço elevado ao
especialista, seguida de um pedido de evidências de que esse valor é um preço
inadequado para o carro, leva a que as estimativas de preço desse especialista
sejam mais baixas, ou menos ancoradas ao valor sugerido inicialmente, do que
quando não é pedido para gerar essa informação contraditória (Mussweiler,
Strack, & Pfeifer, 2000). Assim, gerar evidências que contrariem a âncora
irá resultar num menor efeito de ancoragem uma vez que além de informação sobre
o alvo congruente com a âncora será gerada informação sobre o alvo incongruente
com a âncora, pelo que na estimativa absoluta sobre o alvo a informação
recuperada será menos enviesada no sentido da âncora (Mussweiler et al., 2000).
Embora existam estratégias que permitem reduzir a magnitude dos enviesamentos
por ancoragem, estas não são normalmente utilizadas, uma vez que em ambientes
naturais, as pessoas não costumam estar conscientes de que os seus julgamentos
estão a ser afectados por estímulos irrelevantes. Além de que, mesmo que haja
consciência do enviesamento ou dessa susceptibilidade, os processos de
correcção serão sempre incertos e de qualidade duvidosa, uma vez que são feitos
em incerteza quanto à magnitude do efeito e exigem alguns recursos
motivacionais e cognitivos, que podem, ou não estar disponíveis. Deste modo,
pode‑se concluir que o efeito de ancoragem é, de facto, extremamente difícil
de evitar, e que a influência que valores irrelevantes podem ter nos nossos
julgamentos é uma consequência real do nosso aparelho cognitivo.
Deve, no entanto, destacar‑se que embora o efeito de ancoragem seja difícil de
evitar, dada a sua natureza semântica e largamente automática, as suas
consequências na maioria das decisões não são necessariamente negativas. Neste
sentido, alguns autores têm sugerido que os processos de decisão heurísticos,
são mecanismos de considerável validade ecológica (e.g. Gigerenzer, 2007), pelo
que, ancoragem, enquanto assimilação de valores presentes no contexto de
decisão, pode revelar‑se uma estratégia útil à decisão quando nos encontramos
em incerteza. De facto, em condições naturais, a informação presente no
ambiente de decisão deverá ser mais relevante para a decisão que a informação
(irrelevante) apresentada nos estudos sobre ancoragem, pelo que, em incerteza,
ser influenciado por essa informação relevante, presente no ambiente, deverá
ser útil e contribuir para uma melhor resposta. Reforçando esta ideia de
validade ecológica da ancoragem, as supracitadas evidências de sensibilidade do
efeito de ancoragem ao conhecimento do decisor, sugerem que quanto maior o
conhecimento sobre o alvo, menor será a probabilidade da decisão se basear em
informação irrelevante (isto é, valores implausíveis), pelo que o efeito de
ancoragem não é um produto cognitivo necessariamente enviesado, podendo, mesmo,
ser uma boa estratégia de decisão em determinados contextos de incerteza.
Para os objectivos do presente artigo, é, importante, destacar que
independentemente da sua facilidade de utilização, estes processos de
correcção, a partir da geração de conhecimento que invalide a âncora ou que é
inapropriado ao julgamento sobre o alvo, decorrem da teoria e são, ao mesmo
tempo fortes evidências da natureza semântica do efeito. O que acaba por
enfatizar, mais uma vez, a relação entre a teoria, a prática e o teste empírico
das teorias, que defendemos neste artigo.
Conclusão
Como referimos no início deste artigo, um problema frequentemente apontado à
investigação social, e à psicologia experimental laboratorial, como a cognição
social, é a falta de relevância aplicada ou falta de validade externa desses
estudos. Estas críticas baseiam‑se na dificuldade que este tipo de
investigação tem na generalização de resultados a contextos aplicados. De
facto, é inegável que imensas variáveis contextuais, emocionais, motivacionais
e cognitivas com influência no comportamento são sistematicamente ignoradas nos
estudos experimentais que procuram, antes, controlar variáveis isoladas,
resultando numa grande artificialidade e dificuldade de generalização dos
resultados.
Este trabalho procurou, contudo, demonstrar que esta artificialidade
experimental é por vezes necessária à validação teórica e não implica que esses
estudos tenham uma baixa aplicabilidade, antes pelo contrário. Neste artigo,
defendemos que só o teste controlado de modelos explicativos e de hipóteses
teóricas permite compreender os fenómenos psicológicos e os processos
subjacentes, podendo esta compreensão ser posteriormente aplicada aos contextos
reais. Não são os resultados dos estudos laboratoriais que procuram a
generalização, mas sim as teorias devidamente validadas.
O efeito de ancoragem, enquanto um fenómeno dos laboratórios mas também,
enquanto um fenómeno transversal a muitos contextos de decisão que lidam com
julgamentos numéricos, foi utilizado enquanto exemplo desta tese. Foram
revistos vários estudos ilustrativos do poder aplicado do efeito de ancoragem.
No entanto, reforçámos que grande parte do conjunto de evidências aplicadas
aqui apresentadas, só foi possível obter a partir de teorias validadas em
estudos artificiais de laboratório pois partem da conceptualização validada
da ancoragem enquanto um fenómeno de natureza semântica. Ou seja, várias das
demonstrações aplicadas do efeito de ancoragem, aqui apresentadas, são
extensões empíricas da teoria e como tal resultam da generalização de processos
e fenómenos postulados por teorias causais validadas conceptualmente em estudos
de laboratório altamente controlados.
No caso do efeito de ancoragem, estudos de laboratório deixaram‑nos com fortes
evidências de que este efeito se deve a um processo semelhante à primação
semântica, em que a partir da âncora há uma activação de informação sobre o
alvo congruente com a mesma, resultando em respostas enviesadas no sentido da
âncora. A partir da validação empírica desta conceptualização teórica, foi
possível a sua generalização a contextos aplicados. Neste processo de
generalização teórica, como exemplificámos nos mais variados contextos, foram
demonstradas aplicações e implicações reais e significativas do efeito de
ancoragem nas decisões e vida das pessoas. Note‑se, também, que ao partirem da
teoria, as evidências aplicadas acabam por contribuir para a validação da
própria teoria, criando um interessante e promissor circuito científico de
teoria‑prática‑teoria. Note‑se contudo que não é a existência de evidências
aplicadas a contextos reais que legitima os estudos de laboratório, pois a
sua contribuição para a compreensão dos processos psicológicos vai além da
necessidade de generalizar e reunir evidências aplicadas de teorias e
modelos.
Esperamos, assim, ter contribuído para a compreensão do processo
teórico‑prático da psicologia experimental e em particular da cognição social,
psicologia cognitiva e social, ao explorarmos, a partir do efeito de ancoragem,
o problema da aplicabilidade da investigação social experimental a contextos
reais. Assim, também esperamos ter contribuído para a compreensão do efeito
de ancoragem do ponto de vista da sua conceptualização de natureza semântica e
da sua omnipresença em contextos de decisão que envolvam informação numérica. O
que não implica que os nossos julgamentos sejam necessariamente enviesados,
pois em situação de incerteza, a assimilação de valores que estejam presentes
no contexto de decisão pode ser mesmo o melhor a fazer, dotando esta heurística
de considerável validade ecológica (e.g. Gigerenzer, 2007).
Concluindo, a cognição social aplicada não é um peixe fora de água, nem o
pretende ser. Heurísticas e fenómenos socio‑cognitivos são, então, âncoras,
que partindo do mar teórico e experimental, nos permitem manter em terreno
aplicado.