África no Feminino. As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial
Ribeiro, Margarida Calafate (2007), África no Feminino. As Mulheres Portuguesas
e a Guerra Colonial, Porto, Edições Afrontamento.
Teresa Maria Leal de Assunção Martinho Toldy
Universidade Fernando Pessoa
Resultante de um projecto de pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, o livro de Margarida Calafate Ribeiro constitui um
estudo sobre as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial, num país que,
passados mais de quarenta anos sobre o início desta guerra, parece continuar a
manifestar dificuldade em visibilizar as histórias e memórias dos
acontecimentos. De facto, na perspectiva da autora, o facto de a memória da
Guerra Colonial estar associada a três acontecimentos extraordinariamente
relevantes da história de Portugal – o final da ditadura salazarista, o 25 de
Abril de 74 e a descolonização – assim como a quase inexistência de estudos
sobre a história colonial portuguesa, levam a que o conflito em causa seja
visto quase como "algo externo e não como algo de profundamente interno a
Portugal e aos países africanos, agora independentes" (p. 14). Se a
visibilidade pública daquilo que pode não ser esquecido passa pela
monumentalização da memória, bem como pela oficialização das comemorações, pela
estetização (da literatura e outras artes) e pela elaboração de discursos e
registos historiográficos, pedagógicos, políticos ou mediáticos, o que não deve
ser lembrado é remetido para o domínio do privado: o trauma não se expõe na
praça pública. A memória da Guerra Colonial conhece este lado
"publicamente não recomendável de recordar, invisível", isto é,
reservado aos "ex-combatentes e as suas famílias" (idem). É destas
memórias silenciadas, destas histórias invisíveis, tecidas de
"subjectividades e de objectos, como cartas, fotografias ou
souvenirs" (p.13), que nos fala o livro de Margarida Calafate Ribeiro.
A obra divide-se em duas partes: uma primeira, constituída por um ensaio
teórico a que a autora chama modestamente "introdução", mas que nos
apresenta uma reflexão de referência sobre a memória, uma resenha brevíssima do
eco que a expansão portuguesa e a Guerra Colonial têm encontrado na
historiografia e na literatura portuguesa e as linhas-mestras de interpretação
dos depoimentos de vinte e uma mulheres que acompanharam os seus maridos na
guerra, matéria que constitui a segunda parte da obra. O seu contributo fará,
certamente, história (memória) no processo de (re)construção de um
acontecimento que marcou e marca a sociedade portuguesa. Detenhamo-nos, então,
em cada uma das duas partes.
Na primeira parte do livro, Margarida Calafate Ribeiro discorre sobre o
significado da memória, mais, do "dever de memória" (nas palavras
de Primo Levi, citado pela autora: p. 15), na passagem dos testemunhos a
história. Ora, na sua perspectiva, em Portugal, o valor político e social da
memória privada e da memória colectiva não é coincidente, no que diz respeito à
Guerra Colonial. O divórcio existente no tempo da guerra entre o discurso
oficial e a experiência dos mobilizados, bem como das suas famílias, prolonga-
se na teimosia em ignorar publicamente o testemunho dos envolvidos. O
"dever de memória" inscreve-se neste hiato, com o objectivo de
"estabelecer um cúmplice compromisso entre quem conta – que assim cumpre
a sua função de testemunha – e quem ouve – que assim toma conhecimento e não
mais pode dizer que não sabia" (p. 15). A obra de Margarida Calafate
compreende-se, então, à luz deste "pacto de responsabilidade
partilhada", contribuindo para "uma textualidade produzida contra o
esquecimento" (idem).
O interesse por um projecto deste tipo nasceu, no dizer da autora, da leitura e
interpretação destas textualidades, tanto nas obras ficcionais portuguesas dos
"assombrados pelas memórias da guerra" (para retomar as palavras de
Paulo Medeiros, citadas pela autora: p. 16), como no contacto com mulheres da
geração da guerra. Margarida Calafate confessa que foi na leitura das obras de
Lídia Jorge e de Wanda Ramos, envolvidas na Guerra Colonial pelo facto de terem
acompanhado os seus maridos, que encontrou as "personagens" do seu
livro. Das mulheres que partilharam esses acontecimentos com os seus maridos, e
que "estão em toda a parte na nossa sociedade" (p. 17), não havia,
até agora, qualquer registo do ponto de vista da história documental. É do
"espanto" resultante da constatação da inexistência de registo não-
ficcional das vivências das mulheres que acompanharam os seus maridos na Guerra
Colonial que nasce o impulso para a realização deste estudo, à procura da
"densidade histórica do rosto destas mulheres que partiram" (p.
18).
A autora reconstitui o percurso das questões hermenêuticas que se foi colocando
a si própria ao longo do estudo, a começar pela passagem de uma perspectiva em
que as mulheres ocupariam um lugar passivo – na qual a pergunta de partida
seria: "por que razão os homens portugueses levaram as suas mulheres para
a guerra?" – para uma abordagem que pressupõe o seu protagonismo
("por que razão as mulheres portuguesas foram para a guerra com os seus
maridos?") (p. 18). O testemunho das mulheres que partiram por opção
choca, assim, com o tema das mulheres que ficaram, "cum choro piadoso/
(…) / Mães, Esposas, Irmãs" (nas palavras de Camões, autor de referência
para Margarida Calafate, cit. p. 19) – e que constituem "a aventura
feminina das mulheres", que, nos Lusíadas, "ficavam e (…), pela via
do amor, questionavam a partida dos futuros heróis do mar" (idem). De
facto, a autora questiona os papéis atribuídos tradicionalmente às mulheres na
sociedade ocidental em guerra, ao longo da história, bem como na literatura
sobre a expansão. No seu dizer, foram precisos cinco séculos para retomar os
fios perdidos da presença das mulheres nas caravelas, para desconstruir o
estereótipo que atribui aos homens a construção do Império e às mulheres a
guarda passiva da casa. A construção do império pela valorização da "via
masculina" de saída para o espaço público e para a guerra, invisibilizou
as mulheres. Retomar os fios desta meada perdida pressupõe a redescoberta da
"presença insidiosa" das mulheres "nas naus rumo ao
Oriente" (p. 20): filhas da baixa nobreza, órfãs, prostitutas,
missionárias
1
.
Os estudos das mulheres têm procurado reconstituir os lugares de presença das
mulheres nos acontecimentos e territórios identificados durante séculos como
"do domínio do heroísmo masculino". Assim, sabe-se hoje que,
durante as guerras (nomeadamente, as duas Grandes Guerras), as mulheres
desempenharam papéis relevantes nos domínios "subsidiários" dos
conflitos: fábricas de munições, hospitais militares), mas também na
resistência e num quotidiano de protecção dos filhos em circunstâncias
extremas. Permito-me aqui acrescentar, contudo, que, muito frequentemente, a
superação do momento "de excepção" significou o "regresso ao
lar". Também na Guerra Colonial, as ocupações das mulheres relacionadas
com a mesma giravam em torno de tarefas de apoio (na área do cuidar dos feridos
e do bem-estar dos militares). Margarida Calafate conclui que "a
manutenção do mito de que a guerra é tarefa de homens possibilitava uma certa
estabilidade social, cara ao regime que promovia o conflito" (p. 24).
Particularmente interessante, contudo, é a conclusão que a autora tira acerca
da ineficácia do discurso de regime que procurava exaltar "o sacrifício
das mães portuguesas", que deveriam incitar os seus filhos a combater
pela pátria, oferecer-se como "madrinhas de guerra" de militares em
campanha e gerir o lar na ausência do seu chefe. Na perspectiva de Margarida
Calafate, ainda que o governo apostasse na participação das mulheres
(introduzindo a componente "família" no cenário de guerra) no
"projecto civilizador", subjacente à colonização, a geração de
mulheres que partiu com os seus maridos não parece ter coadjuvado este
projecto. De facto, estas mulheres – maior parte delas, viajando com filhos
pequenos, de meses; oriundas de todo o território continental e das regiões
autónomas dos Açores e da Madeira; de diversas proveniências sociais;
instaladas em situações extremamente diversas e díspares, num esforço de
adaptação hercúleo; sem profissão ou com profissões, muitas delas, professoras
– contribuíram para a "manutenção de uma certa aura de normalidade
familiar num teatro de guerra" (p. 28), tanto dentro de casa, como no
espaço social, na assistência e no ensino em África, mas também viveram, em
termos individuais, no dizerm de Margarida Calafate, «um momento emancipador»,
já que «a vivência em África foi o momento de início de vida conjugal fora das
peias familiares tradicionais, de início de vida profissional fora do quadro
esperado à saída dos liceus, das escolas técnicas ou da universidade» (idem).
Além disso, a vivência em África constituiu também um momento revelador do
ponto de vista político, já que proporcionou um encontro com o reverso do
discurso de exaltação gloriosa dos feitos na nação, embarcado em caixões de
pinho, entrados pelo calar da noite. A doçura das recordações de juventude (da
paixão, dos primeiros anos de casamento, do nascimento dos filhos) aparece
associada aos «voos dos helicópteros e aviões que traziam os feridos, os boatos
que alimentavam a guerra» (p. 29). De facto, como a autora conclui: «o regime
comprometeu as mulheres com a guerra» (idem): elas foram testemunhas.
«Colocadas na margem do universo da guerra, vivendo muitas vezes situações de
grande isolamento, elas registaram esta experiência, ouviram, observaram,
traçaram relações com o poder e foram revelando um olhar-outro, elaborando uma
razão-outra, sobre as razões do conflito bélico ( )» (idem).
Este olhar complexo sobre uma realidade complexa torna a leitura da segunda
parte da obra ainda mais interessante, já que nela encontramos consubstanciada
a ideia de que há muitos universos de mulheres, transgredindo as habituais
linhas entre o público e o privado, mas também iludindo os discursos
convencionais de separação entre cada um deles. Seria arbitrário fazer um
resumo da segunda parte da obra: como se resumem testemunhos? O texto será lido
e interpretado a partir dos olhares dos seus leitores, num processo que apela
ao estabelecimento do pacto de responsabilidade partilhada de transmissão das
memórias de uma geração marcada pelo cais de Alcântara, como recorda uma das
testemunhas:
Aquele cais era uma coisa tremenda, um drama humano com imensos rostos. Os
militares entravam no barco, nós ficávamos num varandim a acenar e o barco ia-
se afastando lentamente. Pessoas com crianças ao colo, mulheres, mães, não
sabendo se eles voltavam ou não. E eram choros, desmaios, um pranto contínuo no
ar. Era um ritual tremendo, todos com os lenços a acenarem, já nem sabíamos
para quem, com as imagens que se iam perdendo na distância (p. 173).
Por isso, o medo do telegrama com a notícia fatídica, a dor da separação sem
certeza de regresso, o amor contra toda a esperança, o sacrifício pelos filhos,
a invocação e simulação de uma «normalidade» para impedir a loucura, o choque e
a desilusão da impossibilidade de «tudo voltar a ser como antes», a nostalgia
da luz em África, as fotografias guardadas, escondidas e reencontradas muitos
anos depois, o silêncio da morte ' tudo isso «é de uma violência tremenda»,
como diz uma testemunha, que acrescenta: «não há perdão político ou moral para
uma coisa destas» (p. 192). É desse drama da nossa história recente que olivro
de Margarida Calafate Ribeiro nos dá conta, num exemplo magistral de como a
investigação social é produtora de conhecimento útil.
1
Margarida Calafate Ribeiro reporta-se ao Congresso Internacional O Rosto
Feminino da Expansão Portuguesa: Actas I e II, Cadernos Condição Feminina, 43,
Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher, 1995.
Teresa Maria Leal de Assunção Martinho Toldy, Doutorada em Teologia Feminista
pela Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen (Frankfurt), Mestre e
Licenciada em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa. Professora
Associada da Universidade Fernando Pessoa, onde é docente de Ética e
investigadora do Centro de Estudos Culturais, da Linguagem e do Comportamento
(da mesma Universidade), na área da cidadania. Colaboradora do CES
(Universidade de Coimbra). Vice-Presidente da APEM. Endereço electrónico:
toldy@ufp.pt