Género, Diversidade e Cidadania
Henriques, Fernanda (coord.) (2008), Género, Diversidade e Cidadania, Lisboa,
Colibri.
Margarida Chagas Lopes
ISEG e SOCIUS, UTL
mclopes@iseg.utl.pt
O livro surge associado a 2007 enquanto Ano Europeu da Igualdade de
Oportunidades para toda/os, como uma das iniciativas promotoras da Igualdade
(de género mas não só), problemática que convoca múltiplos olhares e, portanto,
também os académicos.
A oportunidade e pertinência do livro transcendem, no entanto, aqueles espaços/
tempos de consagração institucional: é mester da/do humanista e da/do cientista
social apreender criticamente a realidade para poder intervir sobre ela, só
assim ' em minha opinião ' se realizando como cidadãs e cidadãos no sentido
mais nobre do termo. É essa combinação de papéis que Carolina Michäelis de
Vasconcelos tão notavelmente protagonizou e nos lembra no seu capítulo Fátima
Nunes.
É essa forma de assumir a profissão de investigadora e de investigador que vejo
nortear também autoras/es e coordenadora desta obra, referindo esta a propósito
na Introdução: «( ) o/a investigador/investigadora ( ) questiona o
desenvolvimento sociocultural para avaliar se ele se traduz num efectivo
progresso ( ) e se permite que a humanidade no conjunto das diversidades que a
constituem ( ) das quais a diferenciação sexual, aceda a uma vida plena».
O livro reveste-se também de oportunidade e importância fundamentais na
presente fase de crise do paradigma económico e social: com o agudizar dos
contornos da «face obscura da globalização», nas palavras de Manuela Silva, e
de crise de valores e referências, a qual faz Silvério da Rocha-Cunha
questionar-se sobre a possibilidade de cidadania no actual momento histórico.
Constitui uma contribuição muito relevante, ainda, ao proceder à interpretação
crítica dos modos de consagração da cidadania, quase sempre reducionistas
porque ideologicamente não neutros, como os que bebem inspiração no direito
natural e no contrato social, como nos sublinha Rosa Cobo. Pese embora a
densidade de produção legislativa, declarações e cartas de direitos, as
assimetrias e estereótipos persistem e, mais grave ainda, os sistemas de
educação e formação não têm sido suficientemente eficazes na sua erradicação.
Precisamos, assim, de medidas positivas, estratégicas e oportunidades
institucionais pois, como avisadamente lembra Maria do Céu da Cunha Rêgo, a
Sociedade do Conhecimento não pode dar-se ao luxo de descartar mais de metade
dos seus recursos humanos.
O contributo que o livro constitui avoluma-se ainda ao analisar criticamente
algumas das mais significativas novas formas de funcionamento e regulação dos
mercados de trabalho, um dos planos fundamentais de (des)construção da
cidadania, procedendo à sua caracterização empírica para Portugal em paralelo
com outros Estados Membros Europeus, como o faz Sara Falcão Casaca. Preocupa-se
esta autora em desmontar a ambiguidade e duplicidade inerentes à
desregulamentação neo-liberal quando, pretensamente, se propõe conciliar e
articular vida familiar com trabalho remunerado, cada vez mais flexível e
precário.
O aprofundamento conceptual de noções complexas como a de cidadania e a de
ética/moral (individual e institucional) que daquela se mostra indissociável,
de molde a constituírem um binómio que se configura como pré-requisito do
desenvolvimento sustentado, integram o notável capítulo da autoria de Adela
Cortina.
Não menos relevante se nos afigura a abordagem da dimensão histórica, patente
em vários capítulos da obra, mas que salientaria aqui a propósito do contributo
de Teresa Pinto: procede esta autora à reinterpretação do (verdadeiro) papel da
industrialização na (des)ocultação do trabalho feminino, desde logo em termos
da (in)visibilidade estatística, na redefinição das identidades de género e dos
espaços públicos e de domesticidade, em associação com a divisão sexual do
trabalho.
A importância do contributo que o livro significa passa, também, pela análise
crítica dos materiais didácticos, aspecto a que se dedicam vários capítulos. O
papel da pintura no ensino da História é-nos trazido por Antónia Fernández
Valencia, mostrando como ela permite uma leitura crítica dos significados das
visibilidades e ocultações nas relações entre mulheres e homens. Já Paula
Botelho Gomes e o grupo de investigadoras/es por si coordenado procede a uma
análise crítica da forma como os manuais de Educação Física veiculam '
despreocupada ou irreflectidamente? ' estereótipos de género. Por sua vez, o
estudo do contributo da iconografia para o ensino e aprendizagem da História é
o objectivo do capítulo de Teresa Alvarez: através da análise de manuais de
História do 12.º ano, esta autora constata o predomínio das visões
androcêntricas do processo histórico, sublinhando, tal como o deduzo, o enorme
retrocesso que significa permitir-se que se reproduzam junto das novas gerações
estereótipos de género como os que detectou.
Não é minha intenção a apresentação sistemática do livro ao rés da página por
me parecer menos interessante o acompanhamento sucessivo de partes e capítulos.
Direi apenas, a esse respeito, que o livro se compõe de três partes
estruturantes, as quais se desenvolvem por declinação, aprofundamento,
recombinação e concretização dos conceitos fundamentais de cidadania,
diversidade, género, conhecimento, trabalho Tópicos essenciais que preferi
respigar através das temáticas propostas pelos diferentes autores.
Referirei no entanto, a concluir, o que considero constituir outro ponto forte
do livro: a multiplicidade de planos de investigação e eixos analíticos à luz
dos quais pode proceder-se à apreensão da obra no seu todo. Assim, e por
exemplo:
A) O eixo que parte do aprofundamento e inteligibilidade de conceitos complexos
mas insuficientemente apreendidos, como os de cidadania global, nos seus vários
desdobramentos analíticos (Adela Cortina, Silvério Rocha-Cunha). Que prossegue,
de seguida, para a submissão aos testes de validação/infirmação a três níveis:
o empírico, nas dimensões social e económica (Manuela Silva; Sara Falcão
Casaca); o da análise crítica dos processos históricos (Teresa Pinto); o da
consagração no Direito, com eventual restrição na transição da vivência
quotidiana para o texto legal (Rosa Cobo; Maria do Céu da Cunha Rêgo). Cuidando
ainda de avaliar as condições de eliminação ou perpetuação de estereótipos ' de
género ou outros ' na socialização intergeracional (Antónia Fernández; Paula
Gomes et al.; Teresa Alvarez), socialização na qual o enaltecimento do exemplo,
como o de Carolina Michäelis, desempenha papel primordial (Fátima Nunes).
B) O plano da desconstrução da leitura dos factos e processos históricos que é
veiculada por concepções ideológicas ' quando não ideologizantes ' que
obscurecem/tornam visível, conforme as normas e convenções socialmente
constituídas; processos de ocultação/ênfase servidos não poucas vezes pela
iconografia e que perpassam os materiais didácticos que (en)formam as novas
gerações.
C) O alinhamento que ancora na crise do paradigma actual, no que se refere aos
modos de vivência do social, do económico, do político, do cultural, do
familiar e das combinações possíveis entre estas vertentes. Crise que, com
origem embora num dos planos da cidadania, o económico, ou seja, o da
globalização desregulada, da financeirização generalizada e da pobreza
(absoluta, relativa e não só material como sublinha e descreve Manuela Silva),
desse modo extravasa aquele plano restrito. E assim marca indelevelmente, nesta
fase de viragem histórica, o nosso modo de viver colectivo, de seres que não
integraremos o grupo dos demónios (estúpidos ou inteligentes) de Adela Cortina,
antes o de pessoas, mas será que o das cidadãs e dos cidadãos de facto?