Género e mudanças tecnológicas: o caso das indústrias gráficas
Introdução
Até à década de 1970, assumia-se como pressuposto o determinismo tecnológico
como uma força externa e autónoma que, naturalmente, influenciava a sociedade
(Liff, 1986; Mackay & Gillespie, 1992; Wajcman, 2000, 2002). Por essa
perspectiva, apenas seria possível aceitar acriticamente as mudanças
tecnológicas, procurar a adaptação a elas ou rejeitá-las (Wajcman, 2002). Os
chamados estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia1, com início nessa
década, introduziram a ideia de que a mudança tecnológica não resulta apenas de
imperativos tecnológicos racionais, pois as opções são criadas e decididas em
função do que se considera ser superior numa determinada circunstância (op.
cit.: 351).
Esta conceptualização foi importante para as posteriores leituras feministas,
pois serviu de base para as análises centradas na possível ligação entre a
mudança tecnológica e as relações sociais de género. De facto, se a mudança
tecnológica não é autodeterminada, legitimaram-se as interrogações acerca do
seu impacto na divisão sexual do trabalho, bem como da hipótese das relações de
poder entre homens e mulheres serem um dos factores determinantes das tais
opções tecnológicas (op. cit.: 356).
A partir de meados da década de 1970, a análise feminista recusou a visão
sociológica simplista de que a mudança tecnológica se reflectiria, sobretudo ou
somente, na conflitualidade das relações sociais de classe (entre trabalhadores
e empregadores), pois seria necessário introduzir a mediação do género na
avaliação do impacto dessa mudança (Bradley, 1986; Grieco & Whipp, 1986;
Liff, 1986; Wajcman, 1991, 2000).
Esta alegação assenta numa crítica ao silêncio do marxismo face ao género,
mesmo sabendo que a divisão do trabalho pago tem subjacente uma hierarquia
sexual, a qual não é casual (Collinson & Knights, 1986; Grieco & Whipp,
1986; Macdonald, 1995; Wajcman, 2000; Witz, 1990, 1992). Este pensamento
sociológico feminista começou por defender a necessidade de saber se o controlo
sobre o processo de produção e sobre a relação capital-trabalho decorre de
forma independente do sexo de quem está ser a controlado, complexificando,
portanto, as análises centradas unicamente nas questões de classe. Argumenta-
se, assim, que existe interesse dos empregadores e dos homens empregados em
manter a segregação entre sexos e que o género é um factor de sustentação da
organização do trabalho resultante da mudança tecnológica.
Estas perspectivas complexificam e aprofundam a óptica marxista acerca das
oposições de classe e dão visibilidade ao género no domínio dos estudos sobre a
tecnologia, explorando os efeitos desta na formação da identidade de ambos os
sexos, reconhecendo que a representação simbólica da tecnologia é profundamente
genderizada. Outro foco de interesse é a análise das competências de homens e
de mulheres para o uso das tecnologias, as quais, pelo menos na óptica dos
estudos sociais da ciência e da tecnologia, e até cerca da década de 1980, não
foram encaradas como tema com suficiente interesse para ser discutido pela
teoria social (Wajcman, 1991). Através desta óptica, foi possível clarificar
que as organizações de trabalhadores especializados lutaram, estrategicamente,
para construir e manter uma sobreposição entre a identidade dos homens e as
suas competências específicas como forma de perpetuarem a sua dominância no
local de trabalho e de conter a admissão de mulheres ou de as manter numa
posição de subordinação (op. cit.: 32-33).
Será, portanto, essencial reter que os processos de mudança nas organizações de
trabalho, desencadeados ou não pela adopção de novas tecnologias, «não resultam
apenas do conflito contínuo entre capital e trabalho, mas do conflito entre
quem trabalha, especialmente entre os trabalhadores de ambos os sexos» (op.
cit.: 33), algo bem demonstrado por Cynthia Cockburn (1983, 1985, 1988),
relativamente à indústria gráfica inglesa.
O caso da indústria gráfica
A indústria gráfica e as profissões que lhe estão associadas são paradigmáticas
quanto às suas tradições corporativas (Barreto, 1981, 1982; Cockburn, 1981,
1983; Durão, 2003; Durão & Marques, 2001; Wallace & Kalleberg, 1982) e
foram, durante décadas, ocupadas quase exclusivamente por homens (Cockburn,
1981, 1983). A introdução dos métodos computadorizados – lentamente, durante a
década 70 do Século XX e, francamente, a partir da década de 80 (Cockburn,
1981, 1983; Wajcman, 1991; Wallace & Kalleberg, 1982) – colocou sérios
problemas aos compositores (tradicionalmente, homens), ameaçando uma profissão
que sempre teve uma identidade bem definida e foi numérica e simbolicamente
atribuída aos homens (Cockburn, 1981, 1983).
A definição do perfil de competências e dos critérios de recrutamento para as
profissões deste sector viria, inevitavelmente, a modificar-se, devido aos
interesses dos empregadores2 e também pelas alterações na natureza das tarefas
(Cockburn, 1983). Os computadores e os recursos electrónicos possibilitaram a
admissão de pessoas capazes de executar tarefas complexas, as quais eram,
anteriormente, um domínio exclusivo de trabalhadores seniores, como resultado
de uma aprendizagem longa e colectivamente regulada (op. cit.). Por outro lado,
muitos destes novos trabalhadores – nomeadamente de sexo feminino – eram
detentores de competências criativas (do domínio do design gráfico, por
exemplo), resultado de uma aprendizagem escolar e académica, sem um
conhecimento empírico de todo o processo gráfico (Durão & Marques, 2001).
Outra das consequências das alterações tecnológicas introduzidas neste sector
diz respeito à admissão de mulheres para as profissões em causa, sobretudo para
a chamada fase da pré-impressão (desde a criação, à montagem e à ‘arte-final’),
o que viria a por em causa a exclusividade masculina neste contexto
ocupacional. Os protestos dos homens desta indústria foram diversos e
incisivos, dirigindo-os, aparentemente e apenas, no sentido da defesa do
simbolismo e da ‘nobreza’ da sua profissão (Cockburn, 1983).
A presença das mulheres nos locais de trabalho e nas novas funções não
transpareceu como motivo explícito principal das suas reivindicações e da sua
oposição à mudança, pois as alterações tecnológicas foram assumidas como causa
fundamental da situação de incerteza e de ruptura (op. cit.).
A ameaça à dominação masculina concretiza-se, segundo Wajcman (1991), pela
opção estratégica dos empregadores em investirem nas novas tecnologias, o que
descaracteriza as competências requeridas paras as funções e diminui os custos
de produção. Por outro lado, os homens até aí dominantes, pela via do seu
número e da exclusividade dos seus saberes, perdem claramente com essa entrada
de mulheres, pois a mudança tecnológica associa-se, muito frequentemente, à
feminização das profissões, como forma de conseguir baixar os custos em
vencimentos (op. cit.: 36). As perdas, contudo, não são apenas para os homens,
pois também as mulheres que ficarão ligadas às profissões, sentirão a
diminuição dos salários, em grande medida, sob o argumento da simplificação dos
processos de produção (op. cit.: 36).
Como a introdução de novos processos de produção e de organização do trabalho é
coincidente com a entrada crescente de mulheres na profissão (Cockburn, 1983) a
indústria gráfica, e a montagem de offset3 em particular, constituem-se como um
campo privilegiado de observação da construção social do género na sua relação
com as mudanças tecnológicas, bem como com as dinâmicas de construção, defesa e
alteração das identidades profissionais. Daí, a importância das vozes e das
versões de quem vivenciou directamente estes processos, os homens e as mulheres
participantes desta pesquisa.
Método
Este estudo enquadra-se numa pesquisa sobre os processos da construção social
da masculinidade em contextos profissionais de dominância numérica e simbólica
masculina e nas especificidades da identidade masculina que emergem nestes
contextos, assumindo-se os seguintes objectivos gerais: identificar a possível
ligação entre a definição da identidade profissional e a construção da
masculinidade, identificar e caracterizar as estratégicas de adaptação das
mulheres a esses contextos profissionais e a manifestação, pelos homens, de
ameaça percebida pela adesão das mulheres profissões tradicionalmente ocupadas
por homens.
Os elementos de análise apresentados dizem respeito a 12 participantes, metade
de cada sexo, todos montadores de offset, em exercício ou em fase de reciclagem
profissional, e resultaram de entrevistas semiestruturadas, seguindo um guião
elementar constituído por cerca de 20 questões focalizadas nos objectivos
formulados.
A análise do corpus constituído pelas transcrições das entrevistas foi
orientada pelas perspectivas discursivas da psicologia social (Billig, 1987,
1997; Edwards, 2004; Parker, 1997; Potter & Wetherell, 1987). Na
aproximação analítica aos discursos dos participantes, foram considerados os
objectivos gerais referidos, como dimensões de análise de orientação elementar,
mas admitindo a emergência de outras, assumindo a identificação de padrões de
regularidade nas narrativas, de forma a salientar a sua variabilidade e
consistência potenciais, ideando formas de interpretar o que é e porque é dito
de determinada forma (Gill, 2003; Potter & Wetherell, 1987).
Elementos de análise
Tradicionalmente, o envolvimento na profissão, a interiorização dos seus
valores próprios e o desenvolvimento das competências necessárias foi sendo
feito pela via da experiência concreta, junto com os mais experientes e mais
antigos, tal como refere a literatura (Barreto, 1981, 1982; Cockburn, 1981,
1983; Durão, 2003; Durão & Marques, 2001; Wallace & Kalleberg, 1982). A
ascensão nos patamares da profissão tenderia a ser lenta e regulada pela
passagem do conhecimento e à medida que aumentava o grau de autonomia de cada
trabalhador, tal como narram os participantes:
Nessa altura aprendíamos uns com os outros, quer dizer… Era
assim: entrávamos para aprendizes, ajudávamos os mais
velhos, íamos vendo, depois iam-nos dando alguns trabalhos
simples, a gente ia fazendo e um mais velho, ou um oficial
ia corrigindo, e tal… e era assim. Com o tempo iam vendo se
nós nos ajeitávamos ou não. Alguns não davam mesmo, não
saíam do mesmo. Entende? Era assim (H, 50)4.
A representação da profissão de montador de offset é definida pelas suas
tarefas bem delimitadas, exigentes do ponto de vista físico e intelectual,
enquadradas pelo cultivo da aprendizagem por transmissão oficial-aprendiz e por
uma tradição corporativa (Barreto, 1981, 1982).
Conhecimentos intelectuais, sem dúvida, e a tal acuidade.
Portanto, tínhamos que ter os órgãos da percepção ali
presentes, desde ver bem, imaginar e executar. Estava na
mente, estava nos olhos, estava nas mãos, em simultâneo(H,
38). Portanto, é uma concentração total. Um tipo… a pessoa
tem que ser uma pessoa muito concentrada, isto é verdade,
tem que ser muito concentrada e extremamente concentrada…
estar sempre com o cérebro bem, porque o trabalho é muito
caro – isso é fundamental – (…) Bem, depois, também, saber,
não é? (H, 47).
A representação do ideal de montador de offset associa, portanto, o seguimento
de uma ética tradicionalmente construída, baseada na entrega e empenhamento
totais na qualidade do trabalho, o qual tem uma natureza eminentemente
intelectual, mas que se expressa, fisicamente, na utilização dos sentidos e no
esforço da concentração.
Feminilidade na montagem de offset
Na história da profissão, a entrada de mulheres foi relativamente tardia e, em
grande medida, associada à introdução de inovações tecnológicas, como a
informatização. Por isso, os homens entrevistados referem ter conhecido poucas
profissionais e estas afirmam, com frequência, que foram sempre minoritárias ou
as únicas num grupo masculino alargado.
Nos discursos dos homens, identificam-se algumas particularidades femininas,
associadas à sua pertença sexual e, portanto, inerentes à sua ‘natureza’,
nomeadamente a dificuldade em atingirem o rigor necessário, mostrando alguma
desadequação face ao que se define como ideal na profissão e nos profissionais:
Agora, sinceramente, ultimamente trabalhei com várias
colegas minhas, espectáculo!, não havia diferença nenhuma,
antes pelo contrário, algumas até com um nível que
raramente falham.(…). As mulheres, sinceramente, e eu vou
dizer isto com toda a sinceridade, não eram… não percebiam
(…) Só que o problema era não entenderem o grau de precisão
das coisas.
(…), no meu tempo, a mulher… às vezes, a gente até se ria e
é verdade… que falhava muito, já mesmo depois de saber, já
depois de quatro ou cinco anos daquilo, falhava muito
ainda… «isso foi uma mulher que fez!»… (…). Era assim,
havia essa diferença (H, 47).
As alegações iniciais de que as mulheres, enquanto profissionais, atingem o
mesmo grau de desempenho que os homens, facilmente dão lugar à enumeração do
que, a partir da visão dos homens, as torna distintas como profissionais e
indistintas enquanto mulheres. O discurso seguinte sintetiza muito bem essa
dinâmica discursiva:
Quer dizer, eu acho que elas se ajeitam, mal ou bem
ajeitam-se. Eu… eu, não é por nada, mas na altura só as
achava assim menos aplicadas e tal. Que é que eu quero
dizer? Não ligam tanto aos pormenores, ás vezes não dão
valor… acham que não é nada e depois no trabalho final dava
mau resultado. É isso. E depois tinha outra coisa… quando
estavam numa de saírem e irem para casa não eram muito
maleáveis(…). É por isso que eu acho que não é por não
serem capazes, mas sempre há aquelas coisas… a casa, os
maridos, os filhos e isso que não dava muito para trabalhar
fora de horas e fins-de-semana e isso. (…) Dá-me ideia que,
antes delas virem, havia guerras e conflitos e volta e meia
a coisa azedava-se, discutia-se, e tal, mas parece que com
elas… Parece que as mulheres têm tendência para arranjar
confusões, intrigas, sei lá. (…) com elas… havia confusões
a toda a hora por isto, por aquilo… (H, 50).
Assim, a identificação de um nível menor de acuidade, tão importante na
definição da profissão, a indisponibilidade para trabalhar para além das horas
estabelecidas, devido às tarefas domésticas tradicionalmente atribuídas às
mulheres, e a tendência feminina para a conflitualidade (alimentada pela
intriga) parecem servir, neste discurso, para reanalisar e contradizer a
afirmação de que o nível de desempenho profissional é igual nos dois sexos. A
homogeneização das mulheres, enquanto grupo ou categoria, é tentada, pelo
recurso à menorização da sua capacidade ou do seu investimento no rigor do
trabalho e à acentuação de traços estereotípicos e dos papéis sóciosexuais que
lhes são associados.
Nos discursos, os temas de conversa desempenham o papel de exemplo ou de
indicador de alguma tensão entre a identidade profissional, associada à
masculinidade, e a gestão da dominação numérica de um ou outro sexo. A
feminilidade, trazida pelas mulheres e pela sua especificidade, será sujeita a
acções de delimitação e de sujeição, evitando que, visivelmente, passem a fazer
parte da identidade da montagem.
Quando alguma coisa tocasse, tivesse a ver comigo, então a
conversa… apesar delas, sendo pessoas que me dava muito bem
com elas, falávamos de tudo… eu até falava, às vezes, dizia
coisas que não devia dizer, mas, pronto, porque já tinha
uma confiança muito grande com elas. (…) … Por vezes, a
gente fartava-se de rir… «é, pá, pára aí, deixa de falar de
saldos e dessas coisas e fala de outra coisa qualquer»…
pronto… e quando é o contrário… Mas no caso dos homens,
aquilo que me parece é que… A gente, às vezes, só tinha uma
mulher na secção… A gente procurava … eu não estou a ser
machista, nem nada… [risos]… mas procurávamos sempre ter
uma conversa que também a abrangesse, nem que fosse só uma
(H, 47).
É justo admitir que estes discursos também constroem a uniformização dos homens
desta profissão, pois, no fundo, afirma-se que (todos) estes não participam (ou
não devem participar) dos traços da feminilidade, como a dedicação ao mundo
doméstico ou ter interesse por temas supostamente específicos das mulheres,
como as compras.
Estratégias das mulheres
As análises dos discursos anteriores já permitiram a aproximação à diversidade
de narrativas acerca da localização da feminilidade nas identidades de cada uma
das profissões. Foi suficientemente clarificado que, genericamente, a presença
das mulheres, em maior ou menor número, não abalou a hegemonia da masculinidade
neste contexto ocupacional. Há, então, fundamento para a interrogação acerca
das estratégias seguidas pelas mulheres para se incluírem em tais contextos e
culturas. Com efeito, sabendo-se minoritárias e admitidas para um trabalho que,
potencialmente, contraria os estereótipos sociais de género, o que, desde logo,
leva a baixas expectativas de desempenho (Aronson & Quinn, 1998; Stangor
& Sechrist, 1998; Wajcman, 1991), é pertinente analisar como as mulheres
descrevem as suas estratégias de superação dessa dificuldade.
Os discursos que negam a existência de acções de discriminação negativa,
protagonizada pelos homens, e as dificuldades de integração são absolutamente
prevalecentes, ainda que em diferentes versões. Nas narrativas resultantes da
primeira referência às suas experiências nas profissões são apresentados
argumentos que defendem a plena aceitação, a naturalidade desse processo, bem
como a ausência de distinção significativa entre os sexos.
Contudo, após estas primeiras expressões acerca das experiências nos contextos
profissionais, as suas alegações fazem emergir um conjunto de estratégias
possíveis para que tenham mantido e mantenham a presença nas profissões, assim
como discursos de alguma complexidade e profundidade, muitos deles pautados
pela contradição de afirmações precedentes.
Elevação dos graus de exigência e evidência de capacidades
Os discursos de todas as participantes expressam o seu conhecimento de que, por
tradição, os homens foram únicos e são numericamente maioritários na profissão
que partilham com elas. A estranheza pela sua entrada nesta profissão terá sido
manifesta por expressões de expectativa face ao desempenho, sob o augúrio de
insucesso provável:
E – E os seus colegas aceitaram-na bem?
Agora, houve casos, colegas, alguns, em que eu não me senti
muito bem recebida e acho mesmo que era por ser mulher, não
tenho dúvida. Assim, tipo, «deixa cá ver se esta aselha é
capaz de dar conta disto». E nos primeiros tempos andavam
ali com o olho em cima de nós para tentar apanhar-nos em
falta, ou assim. E era nesse caso que nós tínhamos de… Dava
algum stress, a gente saber que se falhasse eles não
deixavam passar em branco e faziam logo conversa disso,
para nos chatear. Senti muito isso (M, 37).
Este extracto é bastante explícito quanto à necessidade sentida pelas mulheres
para contrariar as expectativas de insucesso e à premência para demonstrar
níveis de competência iguais aos dos homens. Os níveis de execução podem ser,
de forma deliberada, aumentados pelas mulheres, com o objectivo de sublinhar as
suas capacidades de superação desses níveis e de se ‘imporem’, ainda que tal
implique um esforço acrescido e uma atenção redobrada.
Ocultação e não acentuação da feminilidade
Aquelas que classifico como estratégias de ocultação (tentada) da sua presença
manifestam-se de formas diversas, ainda que o objectivo se aproxime de uma
afirmação paradoxal como “estou entre vós, mas não quero ser vista (como
mulher)”, o que me parece transparecer no excerto seguinte pelo uso de
metáforas como “não criar problemas” e “não levantar ondas”:
É assim, quando nós queremos, corre bem, se nós não
criarmos problemas, acaba por correr bem. Fazemos o nosso
trabalho o melhor possível, não levantamos ondas… entende?
Se for assim, acaba por correr bem (M, 37).
A consecução desse objectivo paradoxal de ocultação concretiza-se pela não
ocupação do espaço do convívio e do diálogo com assuntos que consideram típicos
das mulheres e do mundo doméstico, evitando aflorá-los junto dos colegas
homens:
Eles falavam entre eles e se eu quisesse também podia
falar, mas… É assim: a gente sente quando está a mais ou…
Eu sentia que eles não me queriam ali. Depois, o que é que
eu ia falar? Das compras, dos miúdos, de um livro que
estava a ler? (…) Não dava mesmo… (M, 37).
Falar dos filhos, das compras, da roupa, das ‘áreas tipicamente femininas’, é
apontado pelas mulheres como um comportamento a evitar, pelo menos na presença
de elementos masculinos, ilustrando a eficácia da cultura ocupacional ao nível
da incorporação das normas. No entanto, o teor das conversas entre colegas de
profissão é um tema insistentemente desenvolvido pelas entrevistadas:
Tive que eu adaptar-me a eles. (…) Adaptei-me ao pé de um
ambiente masculino onde, realmente, o tipo de conversas é
outro, o tipo de brincadeiras é outro e, no fundo, eu nunca
quis que fossem eles a adaptar-se a mim. (…). Eu sempre os
pus à vontade… às vezes, lá deixavam escapar uma asneira ou
assim. «Ah, desculpe!». «Não tem nada de desculpar! Eu se
estiver mal mudo-me ou então finjo que não ouvi, porque
vocês estão no vosso ambiente, eu só tenho é que, se não
gostar de ouvir, finjo que não ouvi». Sempre os pus à
vontade nisso. Depois, fui ficando mais à vontade e já era
eu que participava nas brincadeiras e nas conversas… (M,
37).
(…) As pessoas têm que se ir adaptando aos meios, não é?
Não podia chegar ali e, agora, começar a entrar em guerra
com os homens todos por causa de … «olhe, vejam lá, não
digam isso!». Não! Somos todos pessoas e nunca achei que
tivesse, que tivesse de ser especial só porque… por ser
mulher (M, 42).
A adesão aos conteúdos e estilos da conversa dos homens parece ser, pois, um
imperativo («tive de adaptar-me»), o que, aliás, é encarado como um indicador
de integração no grupo dos homens, até ao limite da indistintividade entre os
sexos («somos todos pessoas»). Contudo, os discursos clarificam que essa
indistintividade é conseguida através da adaptação e elevada tolerância das
mulheres e que o sentido do contributo de cada sexo não é arbitrário nem
biunívoco. Quer dizer, as mulheres adoptam a norma (masculina) da profissão e a
sua presença parece não abalar, nem modificar, em permanência, os
comportamentos dos homens. Provavelmente, se tal objectivo não fosse bem
sucedido, pôr-se-ia em perigo a plena integração das mulheres na cultura
ocupacional, pois tornar-se-iam demasiado visíveis.
Vivências da discriminação
A continuidade do diálogo, a pormenorização das práticas profissionais
quotidianas, a recuperação de memórias e, provavelmente, o maior grau de à-
vontade na relação permitiram ou suscitaram a narração de múltiplas vivências
consideradas pelas mulheres como práticas de discriminação negativa. Estas
narrativas coexistem, na mesma entrevista, com aquelas que negam a
discriminação, ilustrando, com emoção e sob a forma de denúncia, as diferentes
vozes para se referirem a este tema:
No meu último emprego eram 7 homens e eu. Eu até dizia que
era a Branca de Neve e os sete anões. Eles fizeram-me a
vida negra. Fizeram-me a vida negra, porque eu ganhava mais
do que eles e tinha entrado há menos tempo do que eles e,
então… Adaptei-me à situação, aprendi rapidamente o que era
necessário, eles tinham algumas dificuldades. Ganhava mais
e, então, fizeram-me a vida negra… (M, 55).
Esta narrativa mostra que a remuneração superior à dos colegas se tornou motivo
para a rejeição desta mulher no seio do grupo e exemplifica como a credenciação
desafia as vias tradicionais de admissão e de progressão na profissão e como os
seus efeitos podem ser genderizados. Neste caso, trata-se de alguém que
inaugurou o uso da informática naquela empresa, pelo que a oposição à
tecnologia e a marginalização das mulheres que a manuseiam se confundem, uma
reflexão que Judy Wajcman (1991, 2002) já havia realizado5.
Discussão e conclusões
A definição do perfil ideal destes profissionais evidencia as capacidades de
abstracção e intelectualização do trabalho e de autodisciplina, expressas
através da concentração, resistência à pressão do ambiente de trabalho,
exigência e orgulho na cultura da profissão. Através da interpretação dos
significados destes atributos desejáveis, salienta-se uma forma hegemónica de
inteligibilidade (Wetherell & Edley, 1999; Connell, 1995; 2001) acerca do
que significa ser homem e, ao mesmo tempo, montador de offset. Por
desenvolverem, predominantemente, actividades de natureza intelectual, é uma
representação que partilha de alguns dos traços da masculinidade heróica, como
a eficácia, a energia, a firmeza e a frieza de pensamento (Wetherell &
Edley, 1999: 351).
A representação das mulheres com esta ocupação profissional resulta da
articulação de duas versões diferentes: uma que as descreve como indistintas e
outra que as afasta dos traços normativos da profissão, devido à sua “natureza
feminina”. Admite-se, em potência, que as mulheres da profissão poderão ter
níveis de produtividade semelhantes aos dos homens, mas também se defende que
terão tendência a ser menos precisas, a investir menos no trabalho, a ter um
menor envolvimento nas actividades extralaborais do grupo e a serem
conflituosas.
Os argumentos que dão corpo a essa representação relacionam-se, do ponto de
vista discursivo, com o “natural” desempenho dos papéis conjugais e familiares,
por parte das mulheres, o que pressupõe que os homens desta profissão não terão
interesses relacionados com esse universo e que a feminilidade não deve
contribuir para o ideal normativo, pois é encarada como marginal e exclusiva do
ser feminino (Amâncio, 2003; Amâncio & Oliveira, 2006).
Por serem mulheres e terem optado por uma profissão que não se justapõe aos
estereótipos sociais de género, espera-as, por princípio e consequência, um
cenário de expectativas de insucesso (Aronson & Quinn, 1998; Stangor &
Sechrist, 1998; Wajcman, 1991). Enquanto grupo minoritário e simbolicamente
dominado, ser-lhes-ão necessárias capacidades de sustentação da sua presença e
de enquadramento no grande grupo, ou seja, o uso de mecanismos de adaptação que
articulem esse estatuto grupal, a vigilância das suas realizações e a
permanência. Trata-se, portanto, de um conjunto de estratégias de sobrevivência
e de inclusão (Aronson & Quinn, 1998; Branscombe & Ellemers, 1998;
Stangor & Sechrist, 1998; Marques & Amâncio, 2004), podendo ou não
passar pelo desejo de atenuar a diferença face ao grupo dominante (Branscombe
& Ellemers, 1998; Fine, 1987).
As mulheres envolvidas neste estudo recorrem a um reportório discursivo de
negação ou desvalorização das dificuldades de adaptação a um universo
profissional dominado simbólica e numericamente por homens e a uma cultura
ocupacional assente na masculinidade hegemónica. Não se trata de uma
originalidade destas mulheres, pois este reportório foi identificado noutras
investigações e em profissionais da gestão (Nogueira, 1996; Collison &
Hearn, 2001), da condução de táxis (Kimberly, 1997; Marques, 2007) e da
cirurgia geral e da magistratura judicial (Marques, 2004).
As elevadas expectativas e a vigilância face ao desempenho feminino são-lhes
directamente relembradas por aqueles que encontram nos contextos de trabalho ou
são simplesmente deduzidas pelo conhecimento de que foram admitidas num espaço
em que a sua presença não é habitual.
A tentativa de afirmação de que estão plenamente integradas e que abdicam,
enquanto profissionais, do que distingue a sua pertença sexual é muito evidente
nas estratégias narradas pelas profissionais, confirmando um fenómeno comum a
condutoras de táxi (Boyd, 1997; Marques, 2007), advogadas (Quinn, 2000) e
cirurgiãs (Riska, 2001; Marques & Amâncio, 2004; Sanfey, 2006) . O esforço
para a integração manifesta-se na ocultação ou subvalorização dos seus
interesses, no evitamento da condução das conversas e na cedência ao
protagonismo e imposição de temas e palavras dos colegas, ilustrando o forte
poder performativo da fala e do discurso (Foucault, 1980; Potter &
Wetherell, 1987; Augoustinos, 1999).
As afirmações das mulheres sobre a aceitação pelos colegas são ilustradas por
práticas entendidas como de discriminação positiva ou como sinal evidente de
sucesso, ainda que, contraditoriamente, esses discursos e experiências
assinalem a presença de situações de efectiva coacção e acentuação da
desigualdade e da diferença neste contexto e nesta cultura genderizados.
Algumas das narrativas assumidas pelas participantes como de ilustração de
experiências de discriminação negativa são melhor compreendidas quando as
experiências são histórica e sociologicamente enquadradas. Possivelmente, por
terem dado início a processos de abertura da profissão às mulheres, as
narrativas recorrem a um passado longínquo para ilustrar essas experiências.
Contudo, este não é um tema unicamente do passado e, portanto, desactualizado,
o que justifica um investimento na compreensão acerca dos processos mais ou
menos subtis de construção da diferença e de acentuação das desigualdades de
género, bem como a identificação de estratégias de intervenção que garantam a
mudança e a emancipação.