Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade
dos saberes feministas
«Ali aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às
carruagens, para passar a sarjetas e para ter sempre, em qualquer
lado os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir às
carruagens, ou me dá o melhor lugar e não sou eu uma mulher? Olhem
para mim, olhem para os meus braços. Eu lavrei, eu plantei, eu
armazenei e nenhum homem me passava à frente. E não sou eu uma
mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto
(sempre que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o
chicote! E não sou eu mulher?»
Sojourner Truth (1851). Citada por Carmo & Amâncio
(2004), Vozes Insubmissas
1
A proposta de um dossier temático sobre "habitar" leva-nos a pensar
no modo como os feminismos contemporâneos se localizam num espaço cada vez mais
hifenizado, isto é, em espaços dialógicos (Bakhtin, 2006; Bakhtin, Holquist,
& Emerson, 1998), marcados por uma necessidade de estabelecer um diálogo
com outras áreas de produção teórica. Mais do que espaços dialogantes, são
espaços conceptualmente intersticiais (Bhabba, 2004) marcados pela liminaridade
e pela recusa da erecção de fronteiras estanques entre os saberes. Estes
espaços intersticiais implicam uma construção de saberes hifenizados, marcados
também pela hibridização e pelas múltiplas contradições que irão atravessar
esses campos do saber, já esquecidos das fronteiras disciplinares da científica
e inscritos numa lógica de transversalização dos saberes, tematicamente
organizados. Essa organização dos saberes não é hierárquica e poderíamos pensá-
la como rizomática: "um rizoma não deixaria de conectar elos semióticos,
organizações de poder, ocorrências que apontam para as artes, para as ciências,
para as lutas sociais" (Deleuze e Guattari, 2007: 26).
Inclino-me a considerar que a teoria feminista habita neste espaço de
interstícios,onde os cruzamentos conceptuais construíram um monstro (Haraway,
1992), uma forma híbrida de saberes, particularmente útil para compreender e
ler um mundo onde se perdeu a ilusão da estabilidade identitária e onde a
diversidade precisa de lentes mais afinadas e sofisticadas para ser percebida.
Defendo também a perspectiva de que o feminismo, enquanto espaço de intervenção
científica e filosófica, não é acantonável a uma unicidade de perspectivas.
Igualmente a minha proposta é pois que os feminismos habitam em espaços
marcados pela hifenização. Assim o ponto de partida deste texto são os espaços
habitáveis pelo feminismo na sua encarnação. De modo, que entendo aqui a noção
de habitar como um ponto de interrogação, como uma marca questionadora desses
espaços conceptuais. Uso habitar como um verbo (performativo), não como um
lugar preciso, apesar de o verbo implicar a localização. Onde se quer localizar
a teoria feminista? Qual as modalidades que recorre para dar sentido a essa
habitação? Este texto não indaga sobre um sujeito para o feminismo, procura
sim, quais os espaços em que os feminismos podem habitar em termos da sua
produção conceptual. E o termo habitar passa a ganhar ressonâncias diferentes,
como uma ferramenta de imaginação epistemológica de questionamento sobre o modo
como o conhecimento é construído, por quem é construído e quais os limites a
essa construção (Mbembe & Nuttall, 2004). Ora na teoria feminista creio que
a separação sujeito-objecto não apresenta qualquer sentido e apenas reproduz
uma visão disciplinar dos saberes de raiz cartesiana, que não permite sequer
representar muitos dos saberes feministas, assentes numa ética de implicação
(Nogueira, 2001) e numa lógica parcial (Haraway, 1988). Assim, creio que a
noção de habitar permite uma melhor explicitação dos espaços conceptuais que a
teoria feminista visita e revisita, pois permite manter quer uma política de
localização (Rich, 1984/1993), quer manter as fronteiras epistémicas abertas
sobre quem conhece quem. Sobretudo possibilita manter a imaginação
epistemológica alerta sobre novas formas de pensar a teoria feminista.
A interseccionalidade de alguns projectos feministas
2
Uma das figurações lendárias para esta hifenização é Sojourner Truth, sobre a
qual nunca é demais citar as suas palavras em 1851 na Convenção sobre os
Direitos das Mulheres, em Akron:
Ali aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às
carruagens, para passar a sarjetas e para ter sempre, em qualquer
lado os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir às
carruagens, ou me dá o melhor lugar e não sou eu uma mulher? Olhem
para mim, olhem para os meus braços. Eu lavrei, eu plantei, eu
armazenei e nenhum homem me passava à frente. E não sou eu uma
mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto
(sempre que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o
chicote! E não sou eu mulher? (Sojourner Truth, 1851, citada por
Carmo & Amâncio, 2004: 227).
O tom crítico deste discurso de uma ex-escrava e posteriormente activista pela
igualdade e pelos direitos civis da população negra permite antecipar algumas
das contradições de um feminismo sem ter em conta outras formas de opressão.
Sendo o género uma forma de opressão, como se explica que dentro dessa
estrutura, hajam modalidades específicas de opressão, modeladas por outros
sistemas sociais que com o género se intersectam, como atesta o discurso com
mais de cem anos de Sojourner Truth? Este é um dos primeiros sinais de que o
feminismo centrado exclusivamente no género ou mesmo na diferença sexual não
seria suficiente para explicar as contradições vividas pelas mulheres negras.
Um contributo muito relevante é trazido pelas propostas da interseccionalidade
que marcam o feminismo negro, desde os tempos do Combahee River Collective
(Combahee River Collective, 1977). Essa marca interseccional está presente até
na crítica que desferem ao separatismo (de algum) do feminismo lésbico, pois
para este movimento de feministas negras havia muito a perder com a adesão ao
separatismo dos grupos feministas. Pelo contrário, advogam antes que "a
inclusão das nossas políticas fazem-nos preocupar com qualquer situação que
determine a vida das mulheres, das pessoas do Terceiro Mundo e das pessoas que
trabalham. Estamos comprometidas com o trabalho sobre essas lutas em que raça,
sexo e classe sejam factores simultâneos de opressão" (Combahee River
Collective, 1977:170). Será mais tarde que o conceito de interseccionalidade
irá adquirir relevância na teoria do género, mas o conceito foi trazido pela
praxis feminista de grupos como este.
Surgido nos 70, o feminismo negro é marcado também pelo movimento negro e pelas
lutas anti-racistas que vão marcar a agenda política americana nesta década
(Nogueira, 2001). O feminismo negro é um dos campos mais activos na década de
80, na produção teórica e no activismo e vai marcar a reflexão feminista desde
então. Igualmente emergente, o feminismo chicano vem marcar a agenda do
feminismo traduzindo a importância de pensar as mulheres vindas da América
Latina e o seu lugar no mundo e na sociedade norte-americana. Estes modelos
feministas permitiram que se comecem a trabalhar no feminismo a partir de
noções mais inclusivas, introduzindo a "raça" e a cultura como
balizas para pensar e para integrar mulheres, que antes não eram alvo do
pensamento feminista. Ou pelo menos que não se reviam nestas propostas, quando
aquilo a que bell hooks (hooks, 1984/2004) chama o feminismo branco,
interpelava as mulheres.
É precisamente por criar uma crítica ao feminismo, assente na exclusão das
negras, que permite a bell hooks (hooks, 1981) avançar para este projecto do
feminismo negro. As modalidades da crítica de bell hooks centram-se em duas
dimensões específicas: a importância da continuidade do feminismo enquanto
discurso critico do sexismo que atravessa toda a sociedade e a denúncia do
racismo dentro do feminismo branco. No que toca à primeira dimensão, bell hooks
(hooks, 1984/2004) vem na continuidade da tradição feminista. Contudo, condena
e critica a pretensão universalista das propostas feministas, nomeadamente no
que toca à universalidade da experiência feminina branca de classe média. O
pressuposto da obra de Betty Friedan (Friedan, 1963/1975), de que as donas de
casa casadas com educação universitária e de classe média são equivalentes ao
grupo das "mulheres" e que as "mulheres" sofrem do
"problema sem nome" que são os efeitos de terem uma educação
superior e não trabalharem, não almejando outro destino que não seja o trabalho
doméstico e a educação dos filhos, é um dos exemplos que bell hooks (hooks,
1984/2004) dá de feminismo branco.
Partir do pressuposto de que as mulheres não trabalhavam nos anos 50, nos
Estados Unidos, implica obliterar as negras e as brancas pobres, isto é,
implica esquecer que mais de um terço das mulheres norte-americanas trabalhavam
nesta época. Necessariamente, para bell hooks (hooks, 1984/2004), as feministas
brancas reflectem o discurso racista e de supremacia branca da sociedade
americana. Ainda que a opressão sexista seja uma experiência comum a todas as
mulheres, não é suficiente para homogeneizar esta experiência.
As mulheres negras não têm nenhum outro na escala social que possa estar numa
situação de subalternidade (Spivak, 1996), o que lhes permite pensar o
feminismo a partir de uma posição de marginalidade. Essa posição de
marginalidade permite-lhes criticar as hegemonias racistas, classistas e
sexistas e criar outras práticas feministas que permitam contrariar estas ditas
hegemonias.
É neste âmbito que as propostas da interseccionalidade vão ganhar corpo. Na
ideia de que não é possível estudar e intervir separadamente sobre pessoas que
sofrem duplas e triplas experiências de discriminação assentes numa experiência
de opressão marcada pelo género, classe e raça. Patricia Hill Collins (Collins,
2003) analisa o triplo processo de segregação das mulheres negras nos Estados
Unidos e mostra como a exploração das mulheres afro-americanas é marcada por
uma dimensão económica, política e ideológica. Assim, em termos económicos, o
trabalho mal pago das negras no pós-esclavagismo colocou-as maioritariamente
numa situação em que a sobrevivência era a principal das suas
preocupações,aceitando a ghettização das ocupações mal pagas que lhes eram
destinadas no quadro do capitalismo. A dimensão de opressão politica implicou a
recusa da atribuição de direitos sociais e civis à população negra tanto no
plano dos direitos políticos, ao trabalho e do acesso à educação, partilhando
as mulheres negras uma condição marcada pela exclusão de direitos justificada
por um sistema racista. No plano ideológico, os estereótipos das negras ditados
por um sistema racista e sexista naturalizaram essa opressão no plano
identitário. A análise de Collins (Collins, 2003) mostra como estas três áreas
criaram um sistema de exclusão e controlo social para as mulheres negras.
Como se pode depreender nesta análise, não é possível perceber de forma
separada os mecanismos de exclusão envolvidos nesta intersecção entre vários
planos de opressão. Angela Davis (Davis, 1982) já tinha evidenciado o modo como
sexo, raça e classe social se cruzam para gerar a discriminação específica e
profunda opressão vivida pelas mulheres negras.
É contudo apenas com Kimberley Creshaw que o termo ganha um conceito e se
inicia uma teorização mais sistemática da interseccionalidade (Cole, 2009), que
é definida como uma área de investigação que estuda os significados e as
consequências das múltiplas pertenças categoriais. Sem nos pretendermos alongar
mais na interseccionalidade como área de investigação (Nogueira, no prelo), é
possível desde já perceber o ênfase colocado num habitar marcado por categorias
que se intersectam.
Igualmente importantes, para este propósito são as propostas de Gloria Anzaldúa
(Anzaldúa, 1987/2004), nomeadamente por duas questões: a importância que vem
dar à indefinição de fronteiras, introduzida no seu pensamento pela figuração
da mestiza, mas também pelas suas próprias tecnologias de escrita, que misturam
o ensaio no sentido académico, e a alimentação de uma narrativa ficcional e
auto-biográfica. O enaltecimento da figuração híbrida, permite a Anzaldúa,
propor a confusão de fronteiras, enquanto maneira de problematizar a identidade
chicana, das mulheres de origem sul-americana, residentes nos Estados Unidos.
Constata-se, contudo, que as propostas de Anzaldúa, embora estilisticamente
associáveis às propostas do standpoint, filiadas portanto na óptica do
feminismo radical, já apresentam características pós-modernas (Macedo, 2008),
nomeadamente a preocupação com a hibridização e com as questões da etnicidade e
dos pós-colonialismos.
Conforme foi patente nesta revisita a textos centrais dos feminismos, torna-se
por demais evidente que o processo de centramento dos feminismos na ideia de
"mulher" deixava de fora uma série de processos e de hierarquias
sociais, que se tornam claras quando se usa a interseccionalidade para proceder
ao questionamento das elaborações entre género, raça e classe como maneira de
analisar de forma localizada as opressões. Assim, esta interseccionalidade dos
saberes feministas situa-se na linha do que fora proposto por Adrienne Rich
(Rich, 1984/2003), que se propõe pensar o feminismo como uma politica de
localização, isto é, caracterizando os saberes feministas como não
deslocalizados, nem universalistas. A crítica a uma noção essencialista de
mulher que não tem em conta a diversidade das mulheres é feita também a partir
desta ideia de localização. Ou seja, a teoria feminista deixa de querer habitar
apenas nesse espaço da "mulher" e passa a querer entender as
imbricações das várias multitudes contidas nessas mulheres.
As lésbicas não são mulheres?
Um outro local de reelaboração conceptual dos feminismos, particularmente nas
décadas de 70 e 80, foi o feminismo lésbico, onde as questões da opressão da
sexualidade se cruzaram com a opressão de género
Poderíamos entender as propostas do feminismo lésbico, a partir quer das suas
influências enquanto movimento social, quer das suas propostas para a teoria
feminista. Emergindo do feminismo radical, as propostas do feminismo lésbico
são determinantes para a constituição das teorias feministas. Para ilustrar a
problematização do feminismo lésbico nos modos como infectar uma teoria
feminista ainda marcada pelo fetichismo da noção de mulher e propor a lésbica
como outra categoria para habitar as preocupações feministas, escolhemos
Monique Wittig. É com Wittig (Wittig, 1992), que são integrados uma série de
potenciais teóricos que continuaram a ser explorados (Butler, 1990) e que
possibilitaram um entendimento mais amplo das relações entre os sistemas de
género e a heterossexualidade normativa.
O sistema normativo a que Wittig (Wittig, 1992) vai aludir e teorizar é
precisamente a heterossexualidade como máquina de produção de sujeitos
heterossexuais. O exemplo específico da população lésbica permite entender
como, num sistema em que a heterossexualidade é normativa, é negada às lésbicas
toda a possibilidade de criar as suas próprias categorias. Daí que as propostas
de Wittig (Wittig, 1992), venham traduzir uma preocupação em desconstruir o
pensamento heterossexual, que ela define como uma ideologia inquestionada,
reproduzida nas ciências e nos discursos, que marca conceitos como
"mulher", "homem", "sexo", "diferença
sexual", presumindo a existência de uma base natural, para lá dos
discursos das construções sociais. Essa base é a relação heterossexual. O
pensamento heterossexual3 não é problematizado nem teorizado, precisamente por
se pressupor a sua universalidade.
A exclusão provocada por este sistema de pensamento é pois o apagamento do
lesbianismo e da homossexualidade, num jogo de ocultação dos termos: teoriza-se
que o tabu do incesto é a maior proibição, quando na realidade é a
homossexualidade. Assim, diferença sexual é um conceito a ser repensado.
Nomeadamente por só fazer sentido com o pensamento heterossexual. Tal como a
ideia de mulher e homem, que só têm cabimento na manutenção da
heterossexualidade enquanto sistema hegemónico. A proposta de Wittig, é de que
as lésbicas não são mulheres, retirando as lésbicas do sistema hegemónico
heterossexual e também do domínio da diferença sexual.
A desconstrução da ideia de mulheres é feita, no ano seguinte, em Wittig
(Wittig, 1992). Num título que faz ligar o ensaio de Wittig a "O Segundo
Sexo" de Simone de Beauvoir (Beauvoir, 1949/1975), são enunciadas as
propostas e as consequências da afirmação célebre de que as lésbicas não são
mulheres. Como Beauvoir (Beauvoir, 1949/1975), Monique Wittig (Wittig, 1992),
recusa a biologização do feminino. O carácter naturalizador destas categorias
de homem ou de mulher, implica uma naturalização da própria opressão, de
fenómenos que são históricos e políticos.
A opção por um feminismo assente na diferença contribui para este processo,
nomeadamente pela capitulação ao patriarcado
4
: a celebração de diferenças e das características positivas da feminilidade
corresponde a assumir os melhores traços que as relações de dominação atribuem
às mulheres. Assim o feminismo da diferença traduz a a-historicidade do género.
Desta forma, e recusando a heterogeneidade do grupo das mulheres, opta-se pelo
mito da mulher, e salientam-se as suas diferenças em relação ao mito do homem.
Este processo revela pois, o carácter político da categoria mulher e a sua
dependência do pensamento que Wittig caracteriza como pensamento heterossexual.
Dado que, fora deste sistema ideológico não teria sentido a manutenção das
categorias de sexo, promovendo-se assim a subjectividade, enquanto critério de
diferenciação entre pessoas e não as características presumivelmente associadas
ao sexo. O que, para Wittig (Wittig, 1992), constitui uma mulher é a sua
relação social específica em relação aos homens, relação de dominação dentro de
um sistema heterossexual.
A estratégia de luta contra a subordinação das mulheres passa por destruir o
pensamento heterossexual e destruir o próprio conceito de mulheres,
precisamente para evitar a subordinação das mulheres aos homens. Esta proposta
é necessariamente incompatível com qualquer projecto assente na diferença
sexual. Para Wittig, a categoria "mulher" transporta consigo a
inevitabilidade da dominação, por isso importa desconstrui-la. Desta forma, o
acesso das mulheres a um estatuto de sujeito universal, só ocorre com a
desconstrução da categoria "mulher".
Verificámos como o trabalho do feminismo lésbico introduziu uma ruptura no
pensamento feminista, na denúncia dos fenómenos heterossexistas e da
heterossexualidade como modelo politico de organização social no patriarcado.
Vemos como a lésbica se torna um ponto de inflexão no discurso de que a teoria
feminista se deve cingir a habitar no espaço da mulher. Como fazê-lo, se as
lésbicas não são mulheres (Wittig, 1992)? A imbricação destas várias
modalidades de opressão, que se cruzam e se interligam, é pois, um pressuposto
dos feminismos pós-estruturalistas, como irá evidenciar Donna Haraway, cujo
pensamento daremos conta na secção seguinte.
As figurações feministas e a obra de Donna Haraway: o prazer na confusão das
fronteiras
A manifesto for cyborgs (ou ciborgue na tradução portuguesa - ver Macedo,
2001) é um texto (Haraway, 1985/1991) que vem inaugurar e estabelecer um
programa para a 3.ª Vaga do Feminismo. Para Haraway (Haraway, 1985/1991), a
tecnologia está no mundo e pode ser usada como se entender, sem que isso seja
necessariamente positivo ou negativo para o feminismo. O pressuposto de Haraway
(Haraway, 1985/1991) é que incorporámos a tecnologia e por isso, obliterar essa
incorporação da tecnologia é manter uma ingenuidade, que Haraway (Haraway,
1985/1991) critica em autoras como Adrienne Rich e Audre Lorde. Essa
ingenuidade está presente na maneira como estas autoras e nomeadamente o
ecofeminismo abraçaram a noção de organismo.
Ora Haraway (Haraway, 1985/1991) demonstra que não é possível pensar os
organismos, sem ter em conta que fazem parte de uma ideologia oposicional
(Sandoval, 1995 citada por Haraway, 1985/1991) com a máquina. O manifesto
centra-se pois em desconstruir estas oposições, elegendo como figuração
feminista (Haraway, 1985/1991), a imagem d@ ciborgue. @ ciborgue assenta na
lógica de ultrapassar os dualismos, numa época em que cada vez mais deixa de
fazer sentido pensarmo-nos como uma espécie de humanos puros, sem ter em conta
o papel crescente da tecnologia nas nossas modalidades de incorporação. Esta
figuração, esta metáfora incorporada, assente na ideia de hibridização, vai
possibilitar a construção de um discurso sobre a ciência e a tecnologia,
problematizando as fronteiras entre humanos e não humanos, físico e biológico e
entre orgânico e inorgânico.
Inspirada pela ficção científica, pelo feminismo e pelo socialismo, para
Haraway (Haraway, 1985/1991), a figura ciborgue permite prever alterações
radicais na estrutura do poder/saber e de bio-poder (Foucault, 1976/1994), nas
concepções de humanidade e alterações radicais na estrutura patriarcal de
género.
Esta figuração ciborgue permite que se utilize enquanto figura geradora de
tensões por resolver e enquanto híbrido que permite fazer a contestação das
categorias de humanidade, género e "raça". A rejeição desta
categoria essencializada da "mulher" permite a Haraway afirmar que
o género é uma relação social, atravessada por outras como a etnicidade, a
cultura, a orientação sexual, a classe social, entre outras.
Esta contestação do feminino enquanto essência e a consideração do género num
feixe de relações sociais, práticas científicas e políticas no seio das
sociedades contemporâneas, introduz igualmente a questão da homogeneização da
categoria "mulheres". Para Haraway (Haraway, 1985/1991) deixa de
fazer sentido falar em nome das "mulheres" ou assentar a teoria
feminista na ideia essencializada de mulher. Estamos no domínio da
problematização desta ideia de mulheres, para passar a englobar outras
categorias dominadas que se intersectam com a categoria de mulher, mas também
outras que partilham com a categoria uma história e uma sociologia de
dominação.
Necessariamente, o projecto feminista vê em parte o seu sujeito histórico
ameaçado. Foi a partir da ideia de mulher que se questionou o sistema
patriarcal e se reivindicou a extensão da democracia às mulheres. Através da
homogeneização da ideia de mulheres, escondem-se situações e contextos
diferentes. Lésbicas, negras, mulheres de culturas não ocidentais, pobres,
constituem exemplos de situações divergentes da mulher branca ocidental e
heterossexual e de classe média, pensada enquanto sujeito do feminismo,
aptamente denunciada pelo feminismo negro (hooks, 1981). Trata-se de
reposicionar conceptualmente o feminismo, voltando-se mais para um
questionamento da dominação do que focar-se exclusivamente, como fez o
feminismo radical cultural para a saliência de uma categorias sobre as outras.
Com isto não se pretende condenar a acção política e activista em termos da
ideia de mulher, mas mostrar como uma reflexão sobre o feminismo enquanto
prática de interrogação do mundo não pode prescindir de uma análise que tome
mais questões em linha de conta.
O projecto de Haraway (Haraway, 1985/2003: 250) para o feminismo parte desta
ideia:
A imagética ciborgue pode apontar um caminho para sairmos do
labirinto de dualismos em que explicámos a nós mesmas os nossos
corpos e as nossas ferramentas. Este sonho não é um sonho de uma
língua comum, mas uma poderosa e infiel heteroglossia. É a imaginação
de uma feminista que fala em línguas capazes de infundir o medo nos
circuitos supersalvadores da nova direita. Significa, simultaneamente
construir e destruir máquinas, identidades, categorias, relações e
histórias espaciais. Embora estejam ambos presos um ao outro numa
dança em espiral, antes queria ser ciborgue do que deusa.
A imagem bíblica (ou blasfema) da feminista (ou deveríamos dizer d@?), falando
em línguas, inspira o projecto feminista a seguir este caminho. Um caminho
marcado pela polifonia, em que as várias vozes localizadas, irão construir
saberes que por vezes podem parecer contraditórios, mas que constituem essa
manta de retalhos que será a teoria feminista e o feminismo, que deixam de ter
sentido no singular e adquirem-no apenas no plural. Conforme iremos ver, esta
proposta irá abrir uma nova epistemologia feminista, a ideia de conhecimentos
situados (Haraway, 1988/1991), a que aludiremos adiante. Donna Haraway prepara
o caminho para a desconstrução das fronteiras taxonómicas e categoriais que um
mundo herdeiro do iluminismo adoptou. Para o género, as consequências são
enormes: pressupõe-se no género, uma ideia de relação, que é simultaneamente
intersectada pela "raça", a orientação sexual, a cultura, etc. Com
Donna Haraway, o género passará não só a construir e simultaneamente a
desconstruir as categorias de homem e de mulher, mas também a estudar @s
innapropriate/d others (Trihn, 1989), aqueles que estão fora do sistema sexo/
género (Rubin, 1984/1993).
A própria proposta de Haraway abre o caminho, para o que ela própria, vem
designar como as promessas dos monstros (Haraway, 1992). Veja-se o caso d@
ciborgue: entidade pensada no contexto da guerra fria, para fins militares, o
primeiro ciborgue é um rato com um êmbolo, que é implantado no seu organismo
para lhe transmitir determinadas hormonas (ver Gray, 1995 para uma análise). A
reapropriação feminista do ciborgue, na era Reagan, permite uma utilização
dessa metáfora resistente às oposições categoriais no âmbito do feminismo, re-
significando uma figura que decorre de um sistema bélico e sexista.
Quem habita os Feminismos são híbrid@s
Nas suas propostas mais epistemológicas, Haraway (Haraway, 1988/1991) propõe um
processo de reestruturação das epistemologias feministas, conhecido como
conhecimentos situados onde questiona a construção do tropo da objectividade
nos processos de legitimação do conhecimento científico, condenando a exclusão
das relações de poder e do próprio processo de construção do saber, dos manuais
e artigos científicos.
Para Haraway (Haraway, 1988/1991), a ideia de objectividade é precisamente a
justificação discursiva que legitima o conhecimento científico como verdade,
relegando as fundações contingentes (Butler, 1991) desse saber, nomeadamente a
sua contingência histórica, política e cultural. Mas esta desconstrução e
atenção à localização dos saberes, precisamente por ser balizada pela
implicação política feminista, evita cair no universalismo e no relativismo.
"O relativismo é uma maneira de estar em parte nenhuma enquanto se afirma
estar em toda a parte" (Haraway, 1988/1991: 191). Tanto o universalismo
tentador como a negação de responsabilidade relativista impedem a
responsabilização pela construção dos saberes.
Num texto onde reflectimos sobre os conhecimentos situados, afirmámos:
Os conhecimentos situados correspondem a uma incorporação dos
saberes, partindo da opção pela responsabilidade na produção dos
saberes e pela sua localização sócio-histórica. Assim a objectividade
na produção feminista assenta na parcialidade, no olhar
contextualizado, em vez dos falsos universalismos da ciência
positiva, indissociavelmente inscrita na meta-narrativa patriarcal e
moderna, em busca de verdades para a sua auto-legitimação (Oliveira e
Amâncio, 2006: 601).
É este tipo de epistemologia que Donna Haraway propõe como metodologia para a
arqueologia do saber (Foucault, 1969) do que conta como humano. Uma proposta
assente nas vantagens epistemológicas da parcialidade, sobre a omnisciência da
suposta objectividade que obscurece mais do que realmente clarifica. Este
posicionamento implica uma proximidade face ao objecto no sentido a que Haraway
(Haraway, 1988/1991) dá aos conhecimentos situados. Trata-se de utilizar o
privilégio da perspectiva parcial que nos permite estar simultaneamente
inserid@s no quadro do objecto e produzir conhecimento sobre ele, a partir
dessa inserção. O contributo desta análise para as epistemologias feministas
implica uma mudança de concepção. Os projectos de pesquisa de conhecimentos
situados não são marcados pelo distanciamento positivista com pretensões de
universalidade ou neutralidade. São antes, uma pesquisa marcada pela
interpretação necessariamente parcial e por isso, não pretende constituir-se
como uma explicação de factos ou constituição de modelos teóricos reprodutíveis
a outras situações. Assumir o papel de testemunhas modestas como propõe Haraway
(Haraway, 1998), implica sujeitos situados, produtor@s de conhecimentos
contextuais e responsáveis localizáveis pela produção desse conhecimento. E é
esse o espaço para a pesquisa feminista.
O contributo de Haraway é também fundamental para pensar o espaço conceptual do
humano. Se no início da modernidade, o humano estava incluído na categoria de
cidadão e, por isso, as mulheres eram colocadas fora desse âmbito, graças ao
paradoxo da modernidade que Joan Scott (Scott, 1997) identifica -, a
coexistência da universalidade dos direitos com a universalidade da diferença
sexual - hoje em dia, a ideia de humano continua a ser um tropo que
permite incluir e excluir. O que constitui uma forma particularmente eficaz de
exercer uma relação de dominação, através da classificação dos grupos em termos
das distâncias em relação ao referente humano. Para figurar a humanidade, a
partir de uma perspectiva feminista, Haraway (Haraway, 1992), recorre à figura
de Sojourner Truth, um exemplo do que pode ser uma figuração do que possibilita
"figurar uma humanidade colectiva sem construir o fechamento cósmico de
uma categoria não marcada" (Haraway, 1992: 92). Isto é, possibilita uma
hipótese de figuração fora dos limites da inclusão que a categoria
"humano", construída num determinado "regime de verité"
e no seio do projecto de saber-poder (Foucault, 1976/1994), a que Haraway
denomina tecnociência.
Esta análise de Haraway de uma figuração da humanidade que não é apenas mulher,
apenas negra, apenas escrava, apenas pobre, apenas feminista conduz-nos pois a
pensar já não num sujeito feminista, mas numa figuração dos feminismos numa
óptica de intersecção. Os feminismos são já (provavelmente sempre o foram)
espaços onde para explicar a complexidade da intersecção entre categorias que
cada um/a ocupa e habita é necessário recorrer a abordagens que integrem e que
situem essa experiência na sua intersecção. Ou seja, os feminismos não devem
apenas localizar-se no género ou em explicações relativas às posições relativas
de homens e de mulheres.
Este cepticismo em relação à ideia da mulher poder continuar a ser considerada
como sujeito do projecto feminista foi posta em causa, dado que esta grande
categoria ilude as divisões intra-categoriais.
Afirmámos recentemente num texto colectivo (Oliveira, Pinto, Pena & Costa,
2009) que o feminismo queer era uma condição de viabilidade dos próprios
projectos feministas. Retomando textos fundamentais para a compreensão da
teoria feminista vemos como este propósito de hibridização de saberes está
presente no feminismo não só desde os anos 70, com os feminismos lésbicos e
negros, mas desde Sojourner Truth, quando 1851 proferiu o célebre discurso
"Ain't I a Woman?". Fundar o feminismo numa experiência sexuada,
branca, ocidental corresponde a privilegiar exclusivamente uma faceta do
feminismo. Com Haraway, torna-se evidente que não é conceptualmente relevante
continuar a fazê-lo sem situar estes conhecimentos numa matriz muito mais
complexa que engloba as redes onde as mulheres estão, marcadas pela confluência
de sistemas múltiplos de opressão e privilégio. Não é possível continuar a
produzir uma teoria feminista que atenda exclusivamente ao género. Sem abdicar
deste conceito nem da sua proficuidade conceptual e analítica, é necessário
hifenizar o género com questões de "raça", sexualidades, classe
social, e outros sistemas para produzir teorias feministas, não unificadas que
desafiem esta construção de fronteiras e que possibilitem a análise e a praxis
a partir de pontos multifacetados que nos conduzam ao espaço dos hífens, onde
nunca se é apenas um/a, mas múltipl@. É no espaço politico e conceptual do
feminismo (Pollock, 2001) enquanto produto precário de um paradoxo, de
permanente desconstrução do seu objecto/sujeito que localizamos este projecto
político, da hifenização constante dos feminismos.
Habitar esse espaço conceptual híbrido, marcado pelo hífen e já não apenas com
o plural da ideia de mulher implica um reposicionamento das propostas
feministas. Nomeadamente a recusa de um sujeito histórico do qual o feminismo
se ocupa inteiramente e a substituição dessa noção fundacionalista por uma
preocupação com os múltiplos cruzamentos conceptuais e políticos, uma recusa da
erecção de fronteiras. Habitar em vez de um sujeito parece-me um bom princípio
de conversa…